Rumo a "uma sociedade do saber": abordagem etno- informacional da "cultura da informação"1
Viviane COUZINET2
1 COUZINET Viviane, 2008. Vers « une société du savoir » : approche ethno- informationnelle de la « culture de l’information ». Analele Stiintifice ale Universitatii Alexandru Ioan Guza Din Iasi, octobre 2008, tome1, p. 83-98.
2 Professora titular de Ciências da informação e da comunicação. Universidade de Toulouse, Laboratório de Estudos e Pesquisa Aplicada em Ciências Sociais, LERASS EA 827 Universidade de Toulouse, Laboratório de Estudos e Pesquisa Aplicada em Ciências Sociais, LERASS EA 827; Equipe de pesquisa Mediações em informação- comunicação especializada (MICS) 115 B, route de Narbonne, 31077 Toulouse – França.
3 É professora livre-docente da Universidade de São Paulo e ministra aulas na Graduação e na Pós-Graduação. Coordenou, entre nov. 2005 a nov. 2008, o Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da ECA. Na área de Ciência da Informação, desenvolve pesquisa sobre a organização da informação e do conhecimento e temas relacionados: linguística documentária, linguagem documentária, representação documentária, arquitetura da informação, relações entre os estudos da linguagem e a ciência da informação, bases culturais da organização da informação, terminologia. larama@usp.br
4 Professora Senior – USP. Docente permanente do PPGCI-USP. nykobash@usp.br
INTRODUÇÃO
Diversos trabalhos de pesquisadores, de profissionais de bibliotecas e de centros de documentação, em escala internacional, mostram que não é recente a preocupação em facilitar o acesso à informação (BAWDEN, 2001; BRUCE, 2002). Os conteúdos e os métodos usados para capacitar o usuário têm sido objeto de inúmeros debates em revistas científicas e em conferências mundiais organizadas por associações profissionais. Essa temática é, com efeito, reconhecida como essencial para refletir sobre o compartilhamento de saberes e para compreender como pode ser adquirida a competência em informação. Trata-se de tornar-se tão apto quanto possível para enfrentar as mudanças futuras na vida profissional e pessoal em uma sociedade voltada para a circulação de ideias. Esse fenômeno, qualificado como "sociedade da informação", não é novo, como nos lembra o glossário crítico a ele consagrado (COMISSION NATIONALE FRANÇAISE POUR
L’UNESCO, 2005, p. 11). Mas, o que é mais recente é o resgate de seu sentido político-econômico e a confusão entre "informação" e "tecnologias da informação". Pode parecer que ter uma "cultura da informação" seria comparável a dominar os dispositivos técnicos. Porém, saber usar as máquinas e a Internet não é suficiente para entender e se apropriar de conteúdos. O processo de elaboração de informações envolve muitos atores, proponentes de projetos, que é necessário distinguir. As ferramentas de acesso à informação não respondem apenas à função a elas atribuídas a priori.
A informação aqui considerada é a informação especializada, útil para avançar, que designamos no singular para expressar a ação, o processo pelo qual um sujeito se informa.
Para contribuir para o debate desta questão, centrada na “cultura da informação" ou "information literacy"5, propomos partir de dois exemplos de objetos que desencadeiam pesquisas: a bibliografia e a organização de saberes, que desenvolvemos em outros estudos (COURBIÈRES, COUZINET, 2005; COUZINET,
2008). Eles serão parcialmente retomados aqui para expor a complexidade do acesso à informação e os desafios a eles subjacentes, como revelam as pesquisas científicas, a fim de enfatizar os aspectos que os usuários de bibliotecas ou pesquisadores de informações online desconhecem. Situado no contexto francês, será abordada a emergência dos novos paradigmas e reunidos vários pontos de vista para definir "cultura da informação". Em seguida, por meio do cruzamento da abordagem informacional e etnológica, serão apresentadas as etapas da cultura da informação. Trata-se, portanto, de expor os elementos de uma reflexão que amplia o debate iniciado em encontros científicos e que se alimenta das discussões mantidas no âmbito de uma equipe de pesquisa.
COMPREENDER AS FERRAMENTAS INFORMACIONAIS
Em um primeiro momento, nos centraremos na bibliografia enquanto ferramenta que antecede os bancos de dados. Abordaremos, em um segundo momento, a questão mais ampla da organização de saberes.
5 Nota das tradutoras: o termo information literacy, usado pela autora, será mantido no original, assim como todos os outros termos em inglês.
A biografia
O crescimento da produção de livros e de documentos diversos colocou rapidamente a necessidade de repertoriá-los. O trabalho bibliográfico nasceu dessa necessidade. Ele consiste em pesquisar os escritos, identificá-los e definir a forma de classificá- los. É, portanto, a arte de elaborar registros e classificá-los de acordo com regras pré-estabelecidas (RICHTER, 2007). Essa atividade, realizada por um especialista, o bibliógrafo, resulta em um objeto denominado bibliografia. O termo designa as listas exaustivas de livros (RICHTER, 2007). É utilizado, também, para nomear a lista de documentos consultados para a produção de um texto. A bibliografia acompanha, por exemplo, o percurso de desenvolvimento de uma pesquisa científica. Ela é útil, essencial, para delimitar o domínio de estudo, contribui para a construção do objeto de pesquisa, das hipóteses de partida e a validação dos resultados (PROVANSAL, 1997). Sua onipresença no trabalho científico está refletida nas listas de obras colocadas ao final dos trabalhos universitários e de pesquisa.
Essa atividade é bastante antiga. O catálogo sistemático de manuscritos da Biblioteca de Alexandria, elaborado por Calímaco, no século III a.C., pode ser considerado um dos primeiros repertórios bibliográficos (FRIEDEN, 1934). Da mesma forma, as listas de obras organizadas por autor, desde a Antiguidade, tal como o De libris propiis, lista de livros elaborada por Galeno, médico grego do século II (PROVANSAL, 1997), prefiguram as bibliografias.
Os primeiros repertórios atribuíam um lugar importante aos autores, assemelhando-se aos dicionários biobibliográficos
manuscritos. Os Bibliotheca, scriptores, catalogus scriptorum, index, são consagradas sobretudo aos escritores e às suas obras, a ponto de alguns especialistas, como Malclès (1984), não hesitarem em considerá-los obras de historiadores do pensamento e da cultura. Os registros catalográficos acrescidos de textos, por especificarem a biografia do autor, retraçar o contexto de produção, apresentar um olhar crítico sobre a obra, por vezes sobre o editor, justificam tal designação. O trabalho de acompanhamento analítico ou crítico valeu-lhes então o nome de "bibliografia analítica" e de “bibliografia crítica ou “raisonnée", conforme o caso. Assim, o conhecimento dos livros foi erigido em "ciência das ciências".
Se a bibliografia responde sobretudo ao projeto de constituição de verdadeiras memórias da produção intelectual, o interesse por esses levantamentos reside nas diversas possibilidades de acesso oferecidas. Os índices que os acompanham multiplicam as entradas e, dessa forma, facilitam o uso pelos leitores. Além disso, a exibição das posições pessoais dos autores e o enriquecimento proporcionado pelas notas constituem um conjunto de fontes de informação utilizáveis pelos pesquisadores.
Assim, a bibliografia, pela quantidade e qualidade de informações fornecidas, é uma importante fonte de pesquisa científica. Se admitimos que ela é essencial para a produção da história cultural e literária, ela é também um auxiliar das Ciências da Informação e da Comunicação, sendo igualmente objeto de estudo dessas áreas. Os repertórios, testemunhos do avanço da produção escrita e das atividades editoriais e de impressão, permitem compreender o interesse pelo recenseamento, pela promoção da visibilidade dessa produção, pela evolução do pensamento, das
ciências ou das técnicas, em um determinado contexto e as intenções a eles subjacentes. Ademais, como intermediário entre a demanda de documentos e o usuário, permite partilhar saberes tanto no seio de mundos muitas vezes restritos, o dos estudiosos e pesquisadores, quanto no âmbito do mundo mais vasto que designamos por “grande público”, constituído de profissionais do livro, bibliotecários e livreiros.
Mais recentemente, o termo bibliografia foi estendido aos documentos textuais eletrônicos (PROVANSAL, 1997). Os repertórios bibliográficos impressos são, com efeito, os ancestrais dos bancos de dados online ou em suportes digitais. Porém, mesmo que estes últimos utilizem técnicas antigas – identificação, descrição, análise, classificação – eles podem incluir objetos documentários não escritos, o que os diferencia das bibliografias propriamente ditas.
A partir da segunda metade do século XX, os grandes organismos nacionais de pesquisa se encarregam da elaboração dos atuais repertórios, ou seja, recenseiam documentos, dentre os quais os artigos de revistas, à medida que são publicados. Na França, o Institut de l’Information Scientifique et Technique (INIST), centro de documentação do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), elaborou levantamentos da produção francesa. Inicialmente impressos, foram transformados, a partir da década de 1980, em bancos de dados classificados por disciplinas acadêmicas. O Current contents, dividido em seções científicas, publicado desde 1958 pelo Institut for Scientific Information (ISI), criado na Filadélfia por Eugene Garfield, foi construído com base nesse modelo. É conhecido o seu papel na avaliação da pesquisa mundial.
Atualmente, são os bancos de dados que produzem os catálogos bibliográficos. Estes permitem realizar pesquisas retrospectivas, exaustivas, seletivas ou especializadas, em função dos objetivos visados por seus idealizadores e campos de busca previstos. Apresentam a vantagem de serem atualizados de forma relativamente rápida e dispor formas de acesso simplificados para o grande público, ou mais especializado, para as pesquisas complexas realizadas por profissionais. Dentre os bancos de dados especializados mais conhecidos pode ser citado, no campo da Química, o Chemical Abstracts, produzido pela American Chemical Society, cujo primeiro fascículo impresso foi publicado em 1907, e informatizado nos anos 1960. Para gerenciar a massa de informações produzidas, e facilitar sua circulação, essas organizações de documentação transformaram-se em verdadeiras empresas que empregam muitas centenas de pessoas. O Chemical Abstract Service, que produz atualmente o Chemical Abstracts, empregava 1.200 pessoas em 1987 (SUCH, PEROL, 1987). Assim, passou-se da gestão artesanal da informação para a gestão em escala industrial.
Com este único exemplo é possível notar que a divulgação da informação por meio de catálogos bibliográficos, sobre os quais apresentamos aqui apenas algumas dimensões, não proporciona apenas a vantagem de conhecer os documentos que existem. Ao mesmo tempo que asseguram a conservação da memória intelectual, permitem apreender o contexto e uma parte dos meios de produção. Os desafios são, portanto, científicos. Os bancos de dados, enquanto ferramentas de partilha de saberes para o avanço da pesquisa, e em consequência, para a inovação industrial, supõem elevadas competências em mediação documentária. Trata-
se, com efeito, de dispor de conhecimentos suficientes para retrabalhar conteúdos, assegurar sua reinscrição e condensação para colocá-los ao alcance de diferentes usuários.
Enquanto ferramenta de registro da produção científica, os bancos de dados podem ser objetos de trabalhos que visam, a partir de indicadores, medir o impacto e a produtividade da pesquisa e revelam, simultaneamente, as redes de pesquisadores em escala nacional ou mundial.
Um segundo exemplo, distinto do que acabou de ser apresentado, diz respeito à organização do conhecimento e suas ferramentas.
2.2 A organização do conhecimento
Diversos enfoques sobre a organização do conhecimento em bibliotecas têm sido propostos pelos pesquisadores das Ciências da Informação e da Comunicação, em particular sobre as ferramentas de classificação, que permitem atribuir um lugar aos livros em um espaço documentário. Alguns autores consideram possível dividi-los em dois grupos. Em primeiro lugar, os que se dedicam à representação de conjuntos de conhecimentos, inseridos na teoria moderna; em seguida, aqueles que visam produzir ferramentas pragmáticas para domínios específicos, integrados à teoria pós- moderna. Mais recentemente, outros pesquisadores, mais relativistas, focalizam os contextos e as áreas onde as classificações são usadas. Essas pesquisas evidenciam que os que concebem estes últimos impõem sua forma de ver a realidade. A abordagem construtivista das interações entre os usuários da
informação e a estrutura dos domínios estão em emergência (MAI, 2004).
Por outro lado, a adoção de dimensões sociológicas mostrou que a construção das classificações e sua atualização estão estreitamente ligadas à produção documentária, portanto, aos paradigmas reconhecidos em um dado momento pela comunidade científica, às mudanças sociais, às tendências que estão na moda
… (RIESTHUIS, 1994). A construção de uma classificação é determinada frequentemente por razões sociais. Foi assim que Paul Otlet e Henri La Fontaine, advogados de nacionalidade belga, criadores da Classificação Decimal Universal (CDU), visaram ao compartilhamento universalizado dos conhecimentos. Entre as duas guerras mundiais, a constituição e a organização da memória dos saberes do mundo se configuravam para eles como um símbolo da paz. No entanto, a concretização do que foi considerada uma utopia enfrentou inúmeros imprevistos e, na prática, sua única produção ainda utilizada é a CDU.
Tendo como ponto de partida as preocupações dos autores de sistemas classificatórios e assumindo que estes têm a ver com a comunicação social ou política desenvolvemos, dentro da Equipe MICS, trabalhos centrados na representação ideológica dos conhecimentos e na interpretação de mundo que elas veiculam. Com base na análise dos índices – códigos numéricos que significam assuntos – das várias edições que se sucederam entre 1958 e 1998 para indexar os principais temas relativos à guerra e à paz, foi possível identificar a influência de dois elementos que predominaram na elaboração da CDU. Em primeiro lugar, nota-se o retorno de um certo rigor da edição de 1958 até a de 1998. O cuidado com os detalhes sobre a guerra pode ser explicado pela
irrupção de múltiplos conflitos armados internacionais e a atenção que recebiam. Com efeito, o espectro da Segunda Guerra Mundial permaneceu presente na década de 1950, porque foi difícil estabelecer a paz. Nem a Sociedade das Nações, nem a Organização das Nações Unidas, que estabeleceram reuniões de conciliação regulares entre as potências, conseguiram manter uma situação sem conflitos6. Além disso, expressões recorrentes que remetem a essa situação, tais como “equilíbrio do terror” e “guerra fria”, eram amplamente veiculadas pela mídia. As três décadas seguintes foram também marcadas por guerras, próximas ou distantes do Ocidente, nas quais este último estava envolvido7. Em segundo lugar, a depuração semântica operada na última versão traduz a condenação legítima dos danos ligados à eclosão do estado de guerra. A evolução da CDU reflete claramente nosso horizonte cultural contemporâneo, no qual a urgência dessa questão implica tomar partido (COURBIÈRES; COUZINET, 2005).
Um outro exemplo, bem conhecido nas Ciências da informação, é a classificação elaborada por Shiyali Ramamrita Ranganathan, matemático e bibliotecário indiano, baseada na organização dita "facetada". Essa classificação, denominada Colon Classification, é fundamentada no pensamento hinduísta, que olha todo ato sob cinco aspectos básicos: personalidade, matéria, energia, espaço e tempo. Publicada em 1933, alguns anos após o ingresso de Gandhi, em 1917, no Partido do Congresso (um partido nacionalista dominado pelos hinduístas) e após as campanhas de
6 Desde 1945, são numerosos os episódios de luta armada de duração curta ou longa e períodos de tensão entre países ou dentro de um país. Podem ser citados alguns fatos mais importantes como a Guerra da Coreia (1950-1953), o caso de Suez (1956) o início da Guerra da Argélia.
7 Pode ser citada, por exemplo, a Guerra do Golfo, a Guerra do Líbano ou o conflito entre Israel e Palestina.
desobediência civil de 1920-1922 e 1930-1933, por ele organizadas, pode-se pensar que Ranganathan foi bastante influenciado pela situação do momento e que seu projeto foi um ato militante mais ou menos consciente. Usada na Índia em grandes bibliotecas universitárias, a Colon Classification impulsionou, de fato, a organização do saber de mundo baseada na concepção hinduísta.
Pode-se falar, ainda, do estudo sobre a distribuição temática de livros nas bibliotecas parisienses (1989), coordenado por Eliseo Verón (1989). A circulação adotada no espaço documentário, labiríntico ou simplificado, revela a atitude dos bibliotecários em relação aos usuários. A preocupação em acompanhar estes últimos em seus percursos, ou ao contrário, de lhes permitir acesso mais autônomo, manifesta-se também nos mapas de distribuição espacial da massa de documentos.
Estes exemplos mostram bem um outro aspecto do trabalho documentário, desconhecido da maioria dos usuários, que se relaciona à comunicação social ou política. No entanto, pode ser útil trazê-lo à luz porque, assim como devemos ser capazes de analisar e compreender uma posição expressa pela imprensa, é necessário compreender a sua influência sobre os usuários, as ferramentas documentárias e seus elementos constitutivos, os espaços de informação, sua organização interna, para melhor gerenciá-la. É necessário, portanto, questionar as ações desenvolvidas pelos profissionais e pelos poderes públicos para caminhar em direção à competência em informação.
COMPREENDER O FUNCIONAMENTO DOS CENTROS DE DOCUMENTAÇÃO: ABORDAGEM INFORMACIONAL
Na França, nas bibliotecas universitárias, têm sido realizadas ações para permitir que os usuários utilizem melhor os recursos colocados à sua disposição. Os eventos relacionados à informação, em escala internacional, e a generalização do uso da informática, levou os poderes públicos a elaborar uma política em favor do desenvolvimento do acesso à informação.
Os centros documentários
Os primeiros indicadores tangíveis da intenção de formar os usuários provêm da tomada de consciência dos bibliotecários, nos anos 1970, sobre a necessidade de explicar o funcionamento das bibliotecas a fim de promover seu uso mais eficaz. Anteriormente, alguns deles estavam envolvidos no ensino de elaboração de bibliografias, inserido de forma mais ou menos formalizada em programas de formação. Limitadas aos estudantes engajados em estudos avançados, com a necessidade de elaborar relatórios (no quatrième e cinquième années) ou na preparação para o doutorado, os programas eram constituídos de formação para o uso das “salas de referência”, locais especificamente dedicados aos catálogos, reservados aos pesquisadores iniciantes ou experientes. Essa iniciação à bibliografia, que os colegas anglo-saxões denominam de bibliographic instruction, perduraram por um tempo relativamente longo em função das demandas dos orientadores de teses.
A preocupação era, pois, a de facilitar a recuperação dos documentos inseridos em um espaço determinado com o auxílio das ferramentas próprias desse lugar. A missão desses profissionais era formar para usar os documentos secundários por eles produzidos. Tais documentos secundários podem ser, de um
lado, ferramentas de pesquisa para encontrar os livros disponíveis e, de outro, ferramentas de gestão de fundos documentários. Desse modo, eles podem conter informações bastante úteis para a segunda atividade, sendo, porém, inúteis para a primeira. É o caso, por exemplo, do tamanho dos livros (altura para permitir eventualmente o armazenamento por formato) quando as fichas dos catálogos eram impressas, ou o número internacional (ISBN), desnecessário quando se trata de pesquisar ou fazer empréstimos de livros na biblioteca. Outras informações, como a sequência de edições, as traduções em diversas línguas ou a transliteração de um título em língua neolatina, indicações preciosas para a pesquisa universitária, não são bem compreendidas pelo leitor. Com efeito, as bibliotecas são frequentemente acusadas de serem sistemas mais voltados para si mesmas do que centradas nos usuários. Formar estes últimos apresenta-se, assim, como um meio para ultrapassar os obstáculos decorrentes da lentidão da gestão de estoques muito grandes, visto que esta última parece se sobrepor à disponibilização dos documentos. A responsabilidade mais importante do profissional, a que dita as regras da profissão, parece concentrar-se nas aquisições, na constituição das memórias dos saberes e na sua classificação dentro de espaços bem delimitados.
Assim, durante um longo período, foi privilegiada a formação em recuperação de documentos no local, sob a forma de visitas guiadas e demonstração do uso do catálogo de fichas. No entanto, a questão do acesso à informação coloca-se de maneira igualmente muito viva no contexto industrial e no mundo da pesquisa. As bibliotecas centradas essencialmente na missão cultural ou de apoio à formação universitária, prestadoras de serviços para grandes grupos – os habitantes de uma cidade, no caso da
biblioteca municipal, o conjunto dos estudantes e professores no caso da universidade – não se adaptam a um usuário exigente, altamente especializado que trabalha, com frequência, em regime de urgência. Além disso, a informatização, que começa a se generalizar, modifica consideravelmente os métodos de trabalho, a relação com o leitor e amplia o acesso aos recursos documentários disponíveis. Surgiu então, na França, a partir de 1950, um grupo profissional, o dos documentalistas, que se diferenciam dos bibliotecários pelo interesse particular pelos usuários. Para este grupo, trata-se de colocar o usuário no centro das preocupações e, doravante, oferecer respostas adaptadas às suas necessidades, de se deslocar do interesse geral, atender demandas mais específicas e oferecer informação elaborada, com maior valor agregado. Esta nova profissão inscreve-se em um conjunto de ações e demandas que visam dar lugar de destaque à informação para a economia e para a pesquisa científica, como ocorre nos Estados Unidos e na URSS8, países visivelmente mais avançados, cuja hegemonia informacional suscita temores.
A transição do paradigma “sistema orientado ao sistema” para o paradigma “sistema orientado ao usuário”, revelada por inúmeros trabalhos em Ciências da informação, levou ao desenvolvimento dos centros de documentação, espaços dedicados à ciência e à técnica, em paralelo às bibliotecas universitárias ou às bibliotecas de leitura pública. Porém, o advento da Internet, a permanência da desigualdade perante os meios, a iminência de uma “sociedade
8 Os elementos mais marcantes de seu avanço em matéria de informação estão ligados ao lançamento do Sputnik pela URSS, em 1957, programa tecnológico realizado em plena guerra fria e a publicação do relatório Weinberg nos Estados Unidos, intitulado As responsabilidades da comunidade científica e do governo na transferência da informação, em 1963.
interconectada”, na qual a capacidade de dominar a informação será a competência principal, reforça a questão: como contribuir para reduzir a distância entre os que possuem e os que não possuem as competências que permitem transformar informação em conhecimento?
Competência em informação como auxílio para o sucesso
A partir de 1973, os poderes públicos deram início à definição de uma política de informação para superar o atraso francês. O Bureau National de l’Information Scientifique et Technique (BNIST), vinculado ao Ministère de l’Industrie et de la Recherche, tem a missão de definir e promover uma política nacional de informação. Três ações principais foram a ela confiadas. Tratou-se, primeiramente, de apoiar a publicação científica, em seguida, de auxiliar a produção de bancos de dados e, em terceiro lugar, de promover a difusão da informação. É no âmbito desta última missão que um forte impulso foi dado à formação. Um grupo de reflexão intitulado "Formation des utilisateurs-étudiants de l’Enseignement supérieur” criado no seio do Bureau, fez recomendações que estão na origem das diversas experiências realizadas até o final dos anos 1980 (BRETELLE-DÉMAZIÈRES, 1998).
A partir de 1983, a criação das Unités regionales de formation à l’information Scientifique et thechnique (URFIST), dotadas de terminais de computadores e de recursos financeiros que permitiam assinar grandes bancos de dados, inclusive estrangeiros, contribuiu para a formação inicial dos documentalistas. O pessoal envolvido,
um professor pesquisador com estatuto de maître de conférences9 e um gestor de bibliotecas, foram beneficiados com uma formação específica, constantemente atualizada, para a consulta a esses bancos de dados. Formados com ferramentas adequadas, os profissionais dominam melhor a pesquisa documentária informatizada e podem, assim, facilitar o trabalho dos usuários.
Além disso, essas unidades são responsáveis pela formação continuada de todos os profissionais das Unités de formation et de recherche (UFR), dos laboratórios universitários e das grandes instituições de pesquisa. Aos poucos, a missão das URFIST foi estendida ao setor privado e incentivou a criação de bancos de dados a partir dos fundos dos laboratórios e da produção dos pesquisadores. Mais recentemente, a missão foi estendida à formação dos alunos de doutorado dos Centres d’initiation à l’enseignement supérieur (CIES)10 e, posteriormente, por meio de sua inserção nos cursos de doutorado, foi estendido a todos os alunos desse nível de ensino.
Paralelamente, várias pesquisas e observações foram sendo feitas pelos próprios bibliotecários. Sua revista, o Bulletin des bibliotèques de France, repercutiu essa preocupação. Pesquisadores das Ciências da Educação e da Psicologia também se debruçaram sobre essa literatura. O papel da competência em informação para o sucesso da universidade pode, assim, ser colocado em evidência pelo monitoramento de grupos de estudantes, ao longo de vários anos (COULON, 1993) como
9 Nota das tradutoras: o maître de conferences é um título que antecede o de professeur. Trata-se de um professor-pesquisador que tem título de doutorado, mas ainda não está habilitado a orientar alunos de Doutorado.
10 Os CIES são reservados aos doutorandos beneficiários de subsídio de pesquisa.
também nas prescrições de leitura feitas pelos professores nas bibliografias de seus cursos (FIJALKOW; TAILLEFER, 1995). Nos diversos casos, os estudantes de premier cycle11, que majoritariamente frequentam a biblioteca e usam os livros, são objeto de estudos. Entretanto, há também alguns trabalhos, mais raros, sobre os second cycles12 (SUBLET, PRÊTEUR, 1989). Todos parecem se inscrever no movimento iniciado pelo Ministère de l’Education nationale, por meio da “Mission de la lecture étudiante” para coletar dados e examinar a realidade. Nas Ciências da Informação e da Comunicação, o interesse centrou-se, na prática, na Revue des Sciences Humaines et Sociales (COUZINET; BOUZON; NORMAND, 1995) e, de forma mais geral, nas práticas documentárias dos futuros doutores.
A preocupação essencial, no ensino superior, é formar para a busca de informação voltada à localização em espaços documentários – locais, fontes – aprendizagem do uso das ferramentas de pesquisa dos repertórios impressos e, em particular, do catálogo online (ONLINE PUBLIC ACCESS CATALOG, OPAC). O acesso aos bancos de dados via rede foi facilitado a partir dos anos 1990, mas a utilização de alguns deles, por razões de custo e complexidade, passa sempre pela intermediação de um profissional treinado.
No ensino de segundo grau, o propósito de iniciar a competência em informação se concretizou, após muitos anos de experiências, com a criação de um corpo específico de professores,
11 Nota das tradutoras: Premier cycle universitaire corresponde, no Brasil, ao período de Graduação, na Educação Superior. Fonte: http://educ-br.fr/pt- br/estudar-e-pesquisar-na-franca/revalidacao-de-diplomas/
12 Nota das tradutoras: Second cycle universitaire corresponde, no Brasil, ao Mestrado, na Educação Superior. Fonte: http://educ-br.fr/pt-br/estudar-e- pesquisar-na-franca/revalidacao-de-diplomas/
os professores-documentalistas, tanto no Ensino agrícola, como na Educação Nacional. Encontra-se, dentro de um outro espaço que não a biblioteca – o centro de documentação e informação (CDI), um local específico disponível em cada estabelecimento, para facilitar a pesquisa documentária com ferramentas próprias. No entanto, o projeto de desenvolver o uso da informação nos lycées e colléges13 é mais amplo porque se trata de conceber essa iniciação como um meio de formar um cidadão autônomo. Esse projeto envolve o professor-documentalista, mas também o conjunto de professores. O local da atividade não é a sala de aula, mas o CDI, espaço específico onde se adquire a cultura da informação, também aberto ao exterior, que acolhe autores, contadoras e contadores de histórias, exposições e visitas culturais. Trata-se, então, de um verdadeiro projeto educativo que justifica o estatuto de professor- documentalista e a criação de um concurso específico, equivalente ao dos professores de outras disciplinas, por meio do qual é atribuído o certificado de aptidão ao professorado do segundo grau (CAPES)14
Assim, passou-se progressivamente de um "sistema orientado para o sistema" para um "sistema orientado para o usuário" e, finalmente, com o envolvimento de professores- documentalistas, para um paradigma mais voltado ao aluno como ator, "sistema orientado para o ator", capaz de selecionar e tratar informação de
13 Nota das tradutoras: O collège se refere ao nível educacional francês voltado a crianças e adolescentes de 11 a 15 anos. Já o lycée corresponde ao ensino médio, para jovens de 16 a 18 anos. Fonte: http://educ-br.fr/pt-br/estudar-e- pesquisar-na-franca/revalidacao-de-diplomas/.
14 O CAPES é acessível a pessoas que obtiveram um diploma depois de três anos de estudos universitários (licenciatura ou L3 atual). A preparação para o concurso dura um ano e se realiza no Instituto Universitário de Formação de Mestres (IUFM). A aprovação no concurso implica uma formação prática/treinamento de um ano suplementar.
forma a relacioná-la aos seus conhecimentos e torná-lo apto a construir sua própria cultura de informação.
CULTURA DA INFORMAÇÃO, ABORDAGEM ETNO- INFORMACIONAL
Entretanto, se tudo parece estar em ordem para facilitar o acesso à informação, restam muitas questões sem respostas. Notadamente, formar para recuperar nos espaços documentários e utilizar as ferramentas é suficiente para assegurar o domínio da informação? Afirmar a vontade de conduzir à autonomia é suficiente para torná-la realidade? Para tentar responder, nós nos debruçaremos primeiramente sobre as definições atuais de « cultura da informação », assunto muito debatido em nível internacional sob o título « information literacy », com o objetivo de propor uma análise mais pessoal fundada sobre a ampliação da noção.
Da cultura da informação…
O termo cultura15 pode ser associado a outros termos considerados próximos, além daqueles ligados à informação. Podemos localizar ao menos cinco expressões, como “cultura informática”, “cultura das bibliotecas”, “cultura das mídias”, “cultura
15 Nota das tradutoras: No original, literacy. ‘Literacy’ foi aqui traduzido para ‘cultura’, respeitando os usos feitos pela autora para os sintagmas iniciados por literacy, em francês: « culture informatique », « culture des bibliothèques »,
« culture des médias », « culture des réseaux », « culture digitale ». Em português, os termos poderiam ter as seguintes traduções: literacia, literacia computacional, literacia bibliotecária, literacia das mídias, literacia das redes, literacia digital.
das redes”, “cultura digital”.1617 (BAWDEN, 2001). Ele não se aplica somente ao domínio da informação; podemos encontrá-lo em outras disciplinas, como “geographic literacy” ou “legal literacy”, por exemplo.
Information literacy parece fazer parte, desde os anos 1970, das culturas baseadas no saber-fazer (skills based literacies). Podemos enumerar todo um conjunto de expressões que designam as competências ou os conhecimentos de base num campo particular. No domínio das bibliotecas e das Ciências da informação, a expressão provém da orientação bibliográfica – tanto da pesquisa de documentos em bibliotecas e da aprendizagem de elaboração de referências de livros, como esclarecemos acima – e do saber-fazer em bibliotecas, o library skills, ou o library instruction and user education, “formação de usuários” (CAMPBELL, 2004), que mostra ser mais abrangente.
David Bawden relaciona-o à "culture de la culture" (cultural literacy), definida como o conhecimento das normas e valores de uma cultura em relação aos textos clássicos, e de “culture de l’informatique” (BAWDEN, 2001) que recobre a cultura do computador e do acesso às redes. Podemos, então, considerar “cultura da informação” como o termo genérico que vem ganhando significado em razão dos avanços das técnicas e das diversas habilidades requeridas para ter acesso à informação.
Outros autores, porém, ampliam ainda mais o conceito, como Christine Bruce, que considera que « tornar as tecnologias e a informação disponíveis para o mundo não é suficiente », e que um «
16 Nota das tradutoras: no original, “culture informatique”, “culture des bibliothèques”, “culture des médias”, “culture des réseaux”, “culture digitale”. 17 Computer literacy, library literacy, media literacy, network literacy, digital literacy.
sistema de educação tem a função de assegurar aos alunos de hoje os meios de aprender e de ocupar um lugar na sociedade do conhecimento” (BRUCE,1997). Para ela, a cultura da informação é uma ferramenta intelectual indispensável para o desenvolvimento da formação ao longo de toda a vida, essencial para conduzir ao desenvolvimento pessoal e para contribuir para o desenvolvimento econômico. A competência da informação é indispensável para assegurar a passagem da “sociedade da informação” à “sociedade centrada no conhecimento” que deve sucedê-la. A Information literacy, segundo Bruce (1997) se refere às capacidades intelectuais de apropriação e às competências incluídas nos usos transponíveis para as práticas da vida profissional, cívica e pessoal. Por isso, não se trata, somente, de ser capaz de utilizar as infraestruturas de informação e comunicação, mas também de estar apto a olhar de forma crítica para a informação (“critical literacy”).
Assim, a visão de uma cultura da informação como equivalente ou limitada a uma cultura das tecnologias da informação (information technology literacy) é insuficiente sendo considerada apenas como um ponto de partida. Essa posição é compartilhada pela American Library Association (ALA, 2000). A cultura da informação, combinada à reflexão sobre sua aprendizagem, ajuda os estudantes a perceberem a possível transferência dos processos requeridos na vida cotidiana para o contexto social e de trabalho, que os ajudará a melhor se adaptar a situações novas. Por isso, Christine Bruce considera que a cultura da informação deve fazer parte do currículo universitário.
Contudo, Bawden relata que a educação para a Informação18 não tem aceitação unânime no mundo profissional. Por que não adaptar as bibliotecas aos usuários? Ou repensar a formação dos profissionais? Por que não privilegiar a cultura informática e permitir que os profissionais façam seu trabalho com os usuários? E, finalmente, para alguns, formar para essa cultura não provou ser eficaz.
Entretanto, muitas associações profissionais, professores- pesquisadores de várias disciplinas, autoridades públicas preconizam e instituem, na França e no exterior, cursos de formação em cultura da informação, e os congressos e simpósios de Biblioteconomia ou de Ciências da informação fazem eco e criticam os modelos e normas que servem de referência em diversos países. Algumas delas foram baseadas em observações no ambiente industrial. Destacam as tarefas de definição, construção de estratégias de pesquisa, localização e acesso, utilização, condensação e avaliação da informação. É o caso do Big6 information skills, elaborado por Eisenberg e Berkowitz, em 1990, citado por C. Bruce. De maneira geral, todas destacam o saber-fazer. As abordagens comportamentais desenvolvidas por psicólogos, ou as teorias do tratamento da informação relacionadas à utilização de computadores, que conduzem à formulação de processos lineares de resolução de problemas, são dominantes. C. Bruce se interessa pela abordagem relacional em desenvolvimento na Austrália e na Suécia pela qual « o fenômeno da cultura da informação pode ser compreendido como a combinação de diferentes maneiras pelas quais é experimentada» (BRUCE, 1997). Ela pretende definir um quadro que privilegia a construção de
18 No original, éducation à l’ information.
conhecimentos pessoais, o aprofundamento dos conhecimentos que levam à inovação e à criatividade e o desenvolvimento da capacidade de julgamento, apoiando-se no saber-fazer.
As normas estabelecidas pela American Library Association introduzem três categorias de aprendizagem fundamentais para o segundo grau: a cultura da informação, a autonomia e a responsabilidade social, e especifica outras cinco categorias de habilidades a serem adquiridas nos estudos superiores. O aluno
«culto»19 seria capaz de determinar a natureza e a extensão da informação desejada; de aceder à informação efetivamente esperada; de avaliar a informação e suas fontes, selecioná-la e incorporá-la aos seus conhecimentos e valores; de utilizá-la eficazmente, sozinho ou em grupo, para um fim específico; de compreender as questões econômicas, legais e sociais relacionadas ao seu uso e acesso; e de respeitar as regras da ética e da legalidade (ALA, 2000).
Esses modelos e normas sublinham a importância da aquisição dessa cultura como parte integrante do «aprender a aprender» (BRUCE, 2002). Trata-se, então, de formar pessoas que não serão consumidoras passivas, mas pessoas ativas capazes de utilizar os recursos do mundo real. Em seu dicionário online, uma profissional americana20 propõe uma definição que permite ligar, de um lado, os métodos de acesso à informação e as competências
19 No original, « cultivé ».
20 Information literacy (IL): Habilidade de localizar a informação que se necessita, incluindo uma compreensão sobre como as bibliotecas são organizadas, familiaridade com os recursos que elas provêm (incluindo formatos de informação e ferramentas automática de busca), e conhecimento em técnicas de pesquisas comumente usadas. O conceito também inclui as habilidades necessárias para avaliar criticamente o conteúdo da informação e empregá-la efetivamente, como também compreender a infraestrutura tecnológica na qual a transmissão da informação é baseada, incluindo seu contexto e impacto social, político cultural (REITZ, 2004).
para utilizá-la e, de outro, a compreensão do ambiente tecnológico, econômico, social, político e cultural no qual ela é inserida e sobre a qual ela pode agir (REITZ, 2004).
Vemos que o interesse dirigido à questão da aprendizagem em matéria de informação é compartilhado em escala mundial. Poderíamos nos referir, igualmente, a outros estudos, como aqueles desenvolvidos por Bernhard (2000), Gervais e Arsenault (2005), no Canadá, ou à sua emergência na Espanha (PASEDAS UREÑAS, 2003), para citar apenas mais alguns países. Os programas incluem essencialmente dimensões técnicas e aplicadas. As dimensões cognitivas são debatidas e tudo parece se debruçar sobre os comportamentos sociais. O desafio é, ao menos na França, preparar um cidadão autônomo capaz de se informar e de fazer escolhas pessoais.
4.2 ... à cultura informacional
O problema da definição de information literacy, que traduzimos neste momento por “cultura da informação”, parece parcialmente resolvido ao menos em nível internacional. Como afirmamos recentemente, para sintetizar as diversas abordagens, trata-se essencialmente de trabalhar a expressão a fim de determinar a finalidade que ela recobre em um mundo em mudança, para o qual é necessário preparar o usuário em termos de métodos de aprendizagem a serem desenvolvidos na escola e transferíveis à vida cotidiana, úteis para que o adulto assuma a sua vida profissional e pessoal da melhor maneira possível. Isso levaria a uma atitude cidadã que permitiria a integração social. A preocupação é, por um lado, individual, a de permitir a formação ao
longo da vida e, por outro, coletiva, a de oferecer a todos os meios para compreender e se apropriar do mundo por meio da capacidade de manipular os dispositivos técnicos de acesso à informação e a própria informação. Pode-se então nos limitarmos à transmissão do saber-fazer? Este último é suficiente para compreender e se apropriar das mudanças da sociedade? Para aprofundar as reflexões dos diversos autores mobilizados, sugerimos também, em outro texto (COUZINET, 2008), uma abordagem referente à etnologia que tentaremos desenvolver aqui.
Se voltarmos à tradução francesa de information literacy por cultura da informação, geralmente aceita nos países francófonos (BERNHARD, 2000), somos confrontados com a polissemia do termo “cultura” que pode ser entendida, na sua acepção antropológica, como pertencimento a um grupo social ou, em seu sentido usual, como o conjunto de conhecimentos adquiridos (JUANALS, 2003). Por outro lado, pesquisadores espanhóis propuseram integrar à noção uma dimensão intercultural, como “capacidade de compreender as culturas em relação ao seu contexto histórico e social […], capacidade de compreender e de respeitar pontos de vista diferentes”21 (PINTO, SALES, 2007), seguindo, nesse caso, as orientações da UNESCO. Para assimilar as diversas extensões da expressão, encontrar a ligação entre o sentido corrente e o sentido antropológico, parece-nos desejável considerar o problema desde o início, e convidar a repensar a formação dos formadores para essa cultura introduzindo, de maneira mais incisiva, as pesquisas sobre temáticas nas quais poderemos colocar o assunto para reflexão, os subsídios para a
21 Nota da autora: A tradução inglesa do título do artigo desses autores feita pelos Anales de documentación é Information literacy for a multicultural society: some public libraries’endeavours.
prática e a ampliação de seus pontos de vista, como mostram os dois exemplos apresentados na primeira parte.
Trata-se então, de aprender as técnicas para acessar a informação e de adquirir as competências para usá-las, de descobrir as questões subjacentes aos processos de construção da informação, sua valorização, seus problemas, sua perspectiva no tempo e no espaço para permitir a passagem do estatuto de não iniciado, para o de iniciado. O “rito de passagem”, no sentido antropológico da expressão (BONTE; IZARD, 1991), comporta uma estrutura ternária: parte-se, na primeira fase, do “analfabetismo em matéria de informação” para a descoberta individual viabilizada pelos dispositivos e suportes de informações disponíveis na vida cotidiana; na segunda fase, passa-se para a “cultura autodidata da informação » (fase de separação), etapa da iniciação em grupo, centrada nas habilidades, no quadro do ensino das técnicas de pesquisa e de exploração ; na terceira, chega-se à “cultura da informação” (fase de latência), quando se requer uma abordagem documentada, distanciada e referida a um conjunto específico do domínio, ou seja, “a cultura informacional”22 (fase de agregação), adjetivo que introduz uma aproximação com a teoria. Alcançar essa última fase, que requer um aprendizado do domínio científico da informação, parece-nos indispensável para poder transmitir essa cultura. Parece-nos igualmente importante constituir o fundamento necessário à compreensão da informação como meio de poder e de influência, de integração social e de posicionamento pessoal. O uso dos conhecimentos desenvolvidos na disciplina de referência
22 No original, “culture informationnelle”.
conduz a ser information literate23, ou seja, não apenas dispor de uma cultura da informação, que afinal deveria ser uma cultura comum a todos, mas uma « cultura informacional », ou seja, referida às teorias, inserida numa disciplina científica reconhecida. Assim, esta última fase, constituída de camadas de conhecimentos a serem compartilhados, implica refletir sobre a transferência didática dos conhecimentos informacionais. Não se trataria mais de colocar as Ciências da informação e da comunicação como metadisciplina cujos limites seriam a prestação de serviços, mas de contribuir à sua construção como disciplina autônoma que deve ter como objetivo a transferência didática e a progressão dos conteúdos e métodos, da escola à universidade.
Esse recurso de abordagem etnológica nos autorizar também, no seio das reflexões da Equipe de pesquisa MICS e de nossos colaboradores da unidade de pesquisa EducAgro24 , a definir as etapas nacionais de desenvolvimento informacional, a partir da observação de indicadores fundados na existência e antiguidade das formações profissionais e universitárias em Ciências da informação, sobre os equipamentos em relação às bibliotecas, centros de documentação, de infraestruturas de comunicação25, formação dispensada no âmbito do ensino, reconhecimento do estatuto profissional dos técnicos, dispositivos legais adotados pelos poderes públicos, atividade de pesquisa reconhecida e produção editorial na disciplina. Estes são alguns indicadores que
23 Nota das tradutoras: No original. Poderíamos traduzir o termo por ‘alfabetizado em informação’.
24 Particularmente, Cécile Gardiès e Isabelle Fabre, doutoras em ciências da informação e da comunicação.
25 Compreendemos por infraestruturas de comunicação, os equipamentos técnicos de acesso e as máquinas.
ainda precisam ser refinados e testados e completados26 para determinar a sua capacidade de informar sobre a situação real. Recolocados em seu contexto nacional, deverão permitir enriquecer a reflexão sobre os componentes úteis para assegurar a abertura à "sociedade do conhecimento", chamadas, sobretudo no discurso político, a substituir a "sociedade da informação".
CONCLUSÃO
Assim, a “cultura da informação” que se adquire no segundo grau, retomada no ensino superior no premier cycle ou na formação de doutorado, muitas vezes no âmbito de uma parceria entre a unidade de formação e a biblioteca, é limitada a um conjunto de procedimentos para melhor localizar fontes e pesquisar nos catálogos online. Embora vista como aprimoramento da prática autodidata, ela não atende aos objetivos estabelecidos de permitir que cada indivíduo conquiste autonomia. Pensada como rito de passagem, ela permite definir um outro tipo de cultura baseada na aquisição de conhecimentos que torne possível o olhar crítico que permita compreender as intenções dos atores da informação, os mecanismos em que estas se baseiam, e os processos de influência no trabalho, tirando partido dos avanços das pesquisas. Realizar a distinção entre as diversas formas de cultura permite definir uma progressão entre “cultura da informação” e “cultura informacional”, e entre o estado de simples usuário ao estado de um usuário iniciado. Este último parece mais adaptado a uma
26 Um primeiro estudo está em andamento em colaboração com pesquisadores brasileiros.
“sociedade do conhecimento” promessa que ainda precisa ser definida.
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