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Entrevista com a Professora Natalia Duque-Cardona1 concedida a Guilherme Fellipin dos Santos2


Bibliotecas desde Abya-Yala: semear a palavra para colher a vida


Libraries from Abya-Yala: sowing the word to harvest the life


Bibliotecas de Abya-Yala: sembrar la palabra para cosechar vida


Bibliothèques d'Abya-Yala: semer la parole pour récolter la vie


Correspondência


Autor para correspondência. Guilherme Fellipin dos Santos

Email: guilherme.fellipin.santos@usp.br

ORCID: ORCID do autor para correspondência, com https://orcid.org/0000-0002-0074-008X


1 Ph.D. en Ciencias Humanas y Sociales de la Universidad Nacional de Colombia (2019). Magíster en Educación con énfasis en Estudios Interculturales (2014). Bibliotecóloga de la Universidad de Antioquia (2011). Diplomada en evaluación de Programas y políticas públicas en educación (2015). Diplomada en en Lenguaje y Permanencia (2016). Diplomada en Promoción de lectura, escritura y oralidad (2018). Diplomada en Gestión Escolar (2021). Diplomada en modelos educativos flexibles (2021). Diplomada en biblioteca escolar y plan lector (2021). Diplomada en Educación virtual (2020). Diplomada en Fundamentación de pedagogía y didáctica universitaria (2022).

2 Bacharel em Relações Internacionais (2015-2019) pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Mestre em Ciência da Informação, na linha de pesquisa Cultura e Informação com ênfase na área de Apropriação Social da Informação, pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (2020 - 2023).


RESUMO

Pensar, propor e operar uma Biblioteconomia a partir de Abya-Yala é mais do que um exercício teórico, implica inclusive estar fora das formas tradicionais como nos entendemos como cientistas sociais. Implica fazer uso da palavra, semeá-la para colher outras formas de nos relacionarmos, nomeando-nos e fortalecendo a disciplina em torno de suas funções sociais. A professora Natalia Duque Cardona, da Universidade de Antioquia, Colômbia e criadora da proposta de pesquisa-ação Bibliotecas desde Abya-Yala, que hoje é uma linha de pesquisa da Escola Interamericana de Biblioteconomia, conta nesta entrevista um pouco sobre qual tem sido a sua configuração subjetiva e profissional neste compromisso não só académico, mas também pessoal e político.


Palavras-chave: Abya-Yala; Biblioteconomia; Ciência da Informação; Interculturalidade; América Latina.


ABSTRACT

Thinking, proposing and operating a librarianship from Abya-Yala is more than a theoretical exercise, it even implies being outside the traditional ways in which we have understood ourselves as social scientists. It implies making use of the word, sowing it to reap other ways of relating to each other, naming ourselves and strengthening the field around its social functions. Professor Natalia Duque Cardona, from the University of Antioquia, Colombia and creator of the action research proposal Libraries from Abya-Yala, which today is a line of research of the Inter-American School of Library Science, tells in this interview a little about what has been your subjective and professional configuration in this commitment that is not only academic, but also personal and political.

Keywords: Abya-Yala; Library Science; Information Science; Interculturality; Latin America.


RESUMEN

Pensar, proponer y accionar uma bibliotecología desde Abya-Yala es más que um ejercicio teórico, implica incluso estar al margen de las formas tradicionales bajo las que nos hemos comprendido como cientificos sociales. Implica hacerse de la palabra, sembrarla para cosechar formas otras de relacionarnos, nombrarnos y fortalecer la disiciplina alrededor de sus funciones sociales. La profesora Natalia Duque Cardona, de la Universidad de Antioquia, Colombia y creadora de la propuesta de investigación acción Bibliotecas desde Abya-Yala, que hoy día es uma línea de investigación de la Escuela


Interamericana de Bibliotecología cuenta em esta entrevista um poco alrededor de lo que há sido su configuración subjetiva y profesional en esta apuesta que no sólo es académica, también personal y política

Palabras clave: Abya-Yala; Bibliotecología; Ciencia de la Información; Interculturalidad; Latinoamerica.


RÉSUMÉ

Penser, proposer et faire fonctionner une bibliothéconomie basée sur l'Abya-Yala est plus qu'un exercice théorique, cela implique même d'être en dehors des façons traditionnelles dont nous nous comprenons en tant que chercheurs en sciences sociales. Cela implique d'utiliser le mot, de le semer pour récolter d'autres façons de se lier, de se nommer et de renforcer la discipline autour de ses fonctions sociales. Le professeur Natalia Duque Cardona, de l'université d'Antioquia, en Colombie, et créatrice de la proposition de recherche-action "Bibliothèques d'Abya-Yala", qui constitue désormais une ligne de recherche à l'École interaméricaine de bibliothéconomie, nous explique dans cet entretien quelle a été sa configuration subjective et professionnelle dans cet engagement non seulement académique, mais aussi personnel et politique.


Mots-clés : Abya-Yala ; bibliothéconomie ; sciences de l'information; interculturalisme ; Amérique latine.


Gostaria de começar descobrindo um pouco mais sobre quem é a pessoa pesquisadora. Em muitas ocasiões quando você se apresenta, surge na sua palavra um exercício de interseccionalidade. Já ouvi, por exemplo, para além de pesquisadora, vocês se posicionar como mãe, latino-americana, feminista, entre outras identidades. Também é comum no seu trabalho não só a valorização, mas também a redistribuição e participação em vários lugares de fala e origem. O que isso significa para você? De onde vem e de onde fala Natalia Duque?

Há mais de uma década, quando me pediam uma mini biografia, sempre começava pelos meus títulos acadêmicos, porém, graças ao feminismo e à teoria da coletividade, entendi que não sou uma coisa só, e de fato meus trabalhos acadêmico, cultural e militante em torno


da educação, da cultura e das bibliotecas se nutre de tudo o que Natalia é. Da atenção que ser mãe me deu, da disciplina que ter cursado engenharia física (em algum momento da minha vida) me deu, da sororidade que o feminismo me ensinou, da escuta que ser professora me ensinou. Então, quando decido que a forma como quero ser chamada, não implica apenas em não ser acadêmico, é como se você propusesse um exercício político, ético, epistêmico e estético. Um compromisso pessoal para reconhecer que Natalia como um todo é aquela que sonha, trabalha, acredita e caminha, não para uma, mas para múltiplas utopias. É um exercício reconhecer que a academia e a produção de conhecimento não estão alheias às emoções, ao que cada um de nós constrói no dia a dia. Que estou aqui pela economia de cuidados que minha avó contribuiu desde menina. Também pelo fato de hoje meu companheiro contribuir para minha família, o que tem possibilitado meu crescimento em muitos aspectos da minha vida. Acredito então que me nomear de vários lugares é um exercício de justiça social que me permite entender que estar no mundo acadêmico é um privilégio e uma grande responsabilidade que deve ser somada à ciência como um bem comum.

No ambiente acadêmico tradicional, pesquisadoras e pesquisadores são incentivados a adotar comportamentos e posições objetivas, neutras, na verdade buscando se afastar o máximo possível dos vieses que suas identidades pessoais e coletivas, teoricamente, produzem em seus trabalhos. Seria interessante saber mais sobre como foi o processo de mudança na maneira de se apresentar, no contexto de trabalho em geral e acadêmico, e se percebe uma resistência negativa nessa maneira de se nomear.


Essa mudança na forma como me nomeio veio depois de me aproximar de coletivos sociais interculturais e comunitários. E tendo explorado estudos interculturais. Em 2013 tive a sorte de conhecer o Equador, e mais especificamente a Universidad Andina Simón Bolívar, lá em conversas com Catherine Walsh entendi um pouco sobre a necessidade de diminuir a distância entre o trabalho acadêmico e a mobilização social e como eles estavam fazendo isso. E na Colômbia tive a sorte de ter a direção de mestre de Hilda Mar Rodríguez, uma professora que ensina pelo exemplo e acompanha com a palavra, com a sua palavra e com a poesia. O feminismo também me ensinou outras formas de ser e estar perto da sororidade. Foram muitas as mulheres e pessoas que levaram essa mudança na forma, não só de me nomear, mas também de me conceber. E resistência? Claro, desconforto, comentários. Hoje, por exemplo, ouço muitos professores caçoarem de atos como esses, ridicularizando questões como a decolonialidade quando acabaram de chegar e há quem trabalhe e caminhe essas questões há mais de vinte e cinco anos. As injustiças epistêmicas aumentam com essas formas de zombaria, eu realmente só espero acrescentar algo a um bem comum como a ciência.

Seguindo mais um pouco nas perguntas da sua mini-biografia, agora referente às suas formações profissional e disciplinar, qual é a relação de Natália com a Biblioteconomia e a Ciência da Informação (CI), sua área de formação e de atuação profissional? Por que a ênfase subsequente na Educação e nas Ciências Sociais?

Nessa ordem de ideias, nomear-me é fazer uso da palavra como tecnologia de poder, que é minha principal relação com a


Biblioteconomia e a CI. A minha decisão desde que comecei a licenciatura foi optar pela vertente social da Biblioteconomia e sobretudo pela promoção da leitura. Isso me formou no campo da educação, estudos interculturais, sociologia, ciência política, entre outros. Reconheço que a Biblioteconomia é uma ciência interdisciplinar onde a linguagem, além da informação, é uma categoria fundamental, e nos esquecemos disto. É um conceito incontornável ao pensar e justificar sua existência como ciência social. A linguagem como capacidade humana, como tecnologia de poder nos termos foucaultianos, nos permite resistir à desumanização, à violência, ao ódio... Então, acho que é por isso que minha principal relação com a ciência da qual hoje tenho a alegria de fazer parte tem se dado através da compreensão dos fenômenos da linguagem. Isso me levou a avançar em um exercício de fundamentação em uma perspectiva latino-americana que implica novamente o uso da própria voz, do próprio conhecimento em prol da compreensão de um conhecimento situado, que é o que chamamos de Bibliotecas desde Abya-Yala.

Com alguns anos de trabalho com bibliotecas na Colômbia e especificamente em Medellín, muitos bibliotecários e promotores das LEO a têm como referência de conhecimento crítico para o campo. Desde a sua experiência, o que você considera ser a importância das bibliotecas e das LEO a nível de América Latina e Caribe?

Na região, as bibliotecas são essenciais. Eles são um bem comum que todos desfrutamos, mas não nos apropriamos. Continuam a ser fundamentais porque nos permitem trabalhar para garantir os direitos constitucionais e humanos. Mas cada vez mais eles exigem, não uma reinvenção, mas uma conscientização do lugar que ocupam na


sociedade. Pensar, como diz Gonzalo Oyarzún em seu livro “La Biblioteca Imaginada” (2021), que a biblioteca só terá sentido se for devida à comunidade. Vamos pensar se trabalhamos para, com ou a partir das comunidades. O que você acha? E no que diz respeito à leitura, à escrita, à oralidade, para mim estão no plural, não no singular, e são fundamentais não só para a garantia de direitos, mas para exigir nossos direitos de resistir à pilhagem da Palavra, que é o que nos permite criar comunidade.

Em relação aos desafios do nosso tempo e ao futuro do seu trabalho, com o que você espera trabalhar nos próximos anos? Quais são as questões e problemáticas que uma Biblioteconomia desde Abya-Yala deve se debruçar nos próximos anos, considerando sua consolidação como referencial teórico crítico aos engessamentos da Biblioteconomia e CI “tradicionais”?

Para pensar nos desafios, meu primeiro convite é deixar de considerar a biblioteconomia como um exercício técnico, pois hoje acredito que como ciência temos uma maioridade que nos coloca em pé de igualdade para dialogar frente a frente com diversas áreas do conhecimento. Somos uma ciência auxiliar, somos essenciais para contribuir na configuração de uma sociedade justa e digna. Então, sinto que nosso principal desafio é sair do ciclo endogâmico em que estivemos. Arriscar o diálogo, a colaboração e a cooperação com todas as áreas do conhecimento para contribuir com os desafios que temos como espécie. Por isso, minha intenção é continuar fortalecendo a proposta de fundação das Bibliotecas desde Abya- Yala, para que afete as salas de aula, as universidades, a pesquisa e, acima de tudo, nos permitam reduzir as distâncias entre a Universidade e o mundo da vida. Sonho com uma fundação onde o


conhecimento ancestral e popular e o conhecimento científico não estejam em disputa, mas sim na possibilidade de nos fortalecermos como espécie e como comunidade. Por isso, hoje estou fazendo um pós-doutorado no CELEI, Chile, tentando abordar a relação entre a biblioteca, a linguagem e as economias camponesas para que através do patrimônio cultural imaterial possamos fortalecer nossas políticas comunitárias, familiares e camponesas sob princípios de soberania e autonomia. E isso é biblioteconomia? Sim. Devemos ter o cuidado de pensar nas funções ecológicas e econômicas das bibliotecas e da biblioteconomia para enfrentar o Antropoceno. Nosso desafio não é fugir ou ignorar as demandas que temos como sociedade. Uma ciência não deveria existir se não tiver uma função que contribuísse para a sociedade. Tem um trabalho que sempre quis fazer, não sei se consigo nem começar, mas sempre digo aos meus alunos que espero que consigam. E é isso se você já leu a maravilhosa Irene Vallejo e seu ensaio El infinito em um junco. Sonho que a partir da biblioteconomia possamos realizar nossa semeadura da palavra para colher vida, aquilo que a linguagem nos dá. Sonho com a recuperação de uma história das bibliotecas (se assim são nomeadas), das leituras, escritas e oralidade deste lado do Atlântico, desde Abya-Yala. Sei que é uma ideia bastante ambiciosa e complexa de concretizar, mas não impossível, imaginem só: bibliotecários, arqueólogos, antropólogos, sociólogos, linguistas todos semeando palavras, resgatando uma memória que continua a pulsar nesta terra fértil. O nome desse livro seria algo como “Semeando a palavra para colher a vida: Memórias das bibliotecas, leituras, escritas e oralidades em Abya-Yala".