Football, whiteness and ethnic-racial relationships: Vini Jr.’s case
Aline Passos de Jesus Santana1
Jerônimo da Silva2 Letícia Dantas Sobral3 Paulo Faria Almeida Neto4
O presente artigo aborda o racismo sofrido pelo jogador brasileiro do Real Madrid, Vini Jr, em maio de 2023, e que mobilizou uma ampla discussão midiática. O objetivo do trabalho é compreender as condições de possibilidade da reação de Vini Jr., ao paralisar o jogo e apontar um dos autores dos atos racistas, mantendo-se, após o episódio, firme em denunciar La Liga como omissa e conivente com o racismo. Entende-se que essa reação, incomum diante de tantos episódios de racismo no futebol “europeu”, é efeito de novas configurações nas rela disseminar clções de poder que estão tensionadas pela reemergência da extrema-direita, a eclosão de movimentos antirracistas e da postura insubmissa de esportistas negros em vários países. Ao analisar as condições de possibilidade da atitude de Vini Jr, utilizamos a teoria da performatividade, a partir de postagens no Twitter, para localizar discursos que são, ao mesmo tempo, ações, ou seja, que produzem aquilo que dizem. Nos marcos de uma pesquisa exploratória, foi formulada a possibilidade jurídico-política de disseminar cláusulas antirracistas nos contratos de jogadores negros, integrantes de minorias étnicas e/ou imigrantes que produza o reconhecimento e a reparação para esses grupos que, inclusive, sustentam a qualidade do futebol “europeu”.
This article addresses the racism suffered by the Brazilian Real Madrid player, Vini Jr, in May 2023, which mobilized a wide media discussion. The objective of the work is to understand the conditions of possibility of Vini Jr.'s reaction, by paralyzing the game and pointing out one of the authors of the racist acts, remaining, after the episode, firm in denouncing La Liga as silent and colluding with racism. . It is understood that this reaction, unusual in the face of so many episodes of racism in “European” football, is the effect of new configurations in power
1 Doutora em Sociologia pela UFS, Pós-doutorado em Direitos Humanos na Universidade Tiradentes (UNIT). E- mail: aline@leiturasabolicionistas.com.br
2 Mestrando em Direitos Humanos pela UNIT. E-mail: mestrado_jeronimo@souunit.com.br
3 Mestranda em Direitos Humanos pela UNIT. E-mail: mestrado_leticiads@souunit.com.br
4 Mestrando em Direitos Humanos pela UNIT. E-mail: mestrado_paulo@souunit.com.br
relations that are strained by the reemergence of the extreme right, the outbreak of anti-racist movements and the unsubmissive posture of sportsmen. blacks in several countries. When analyzing the conditions of possibility of Vini Jr's attitude, we use the theory of performativity, from posts on Twitter, to locate speeches that are, at the same time, actions, that is, that produce what they say. Within the framework of an exploratory research, the legal-political possibility of disseminating anti-racist clauses in the contracts of black players, members of ethnic minorities and/or immigrants was formulated, which would produce recognition and reparation for these groups that even sustain the quality of the “European” football.
Em 21 de maio de 2023, ocorreu mais uma partida de futebol entre dois times espanhóis tradicionais, o Real Madrid e o Valencia. O time do Real Madrid é composto por excelentes jogadores, entre os quais se destaca um brasileiro, por suas jogadas criativas e comemorações dançantes. Trata-se do jogador Vinícius José da Silva Paixão, de apenas 22 anos, ou como todos o conhecem, Vini Jr.
Durante a partida, torcedores do Valencia chamaram Vini Jr, homem preto retinto, reiteradas vezes, de macaco. Em vídeos amplamente divulgados nas redes sociais, é possível ver o jogador reclamando com o juiz, apontando para a torcida, chorando com as agressões. Em determinado momento, ao perceber que nenhuma providência seria tomada, Vini Jr. se dirigiu à arquibancada e apontou um de seus agressores exigindo que cessassem os ataques. Neste momento, jogadores do Valencia atacaram Vini Jr., que recebeu até mesmo um “mata- leão”, golpe que consiste em segurar alguém de costas pelo pescoço, não raro, causando sufocamento. Surpreendentemente, depois de todas essas agressões, quem foi expulso da partida foi o jogador brasileiro
Não é a primeira vez que o atleta é alvo de ofensas racistas. Após os últimos acontecimentos, Vini Jr. publicou em suas redes sociais, uma sequência de 10 ataques racistas que ele sofreu em campo entre os anos de 2021 e 2023. Dentre eles, destaca-se o jogo de 19 de março deste ano, no qual a torcida do rival Barcelona se dirigiu ao jogador literalmente desejando sua morte (“morra, Vinicius”). Ainda em redes sociais, Vini Jr. explicitou que as
A questão que se coloca diante do caso e da repercussão internacional é que Vini Jr. não é o primeiro jogador brasileiro e/ou negro a atuar no campeonato espanhol, tampouco a sofrer ofensas racistas. O que mudou desde casos anteriores, como o de Daniel Alves, em 2014, a quem foi atirada uma banana em campo, para ficar apenas em um exemplo emblemático?
Apresentamos aqui três explicações, de ordem histórica, política e sociológica: i) a reorganização da extrema-direita em nível global; ii) a resposta do jogador ao racismo sofrido, que não performa a autodepreciação, a minimização como “caso isolado” e/ou como prática socialmente aceita no futebol; iii) resultado das lutas antirracistas em vários lugares do planeta, a exemplo do Black Lives Matter (EUA/2013) e da Coalizão Negra por Direitos (Brasil, 2019).
O objetivo principal trabalho é apontar possibilidades de usos do Direito, enquanto ciência social aplicada, para formular cláusulas contratuais antirracistas em defesa de atletas brasileiros, negros e negras, que joguem no Brasil ou no exterior, a partir da premissa de que existe um regime internacional de combate à discriminação racial do qual o Brasil participa, notadamente desde a ratificação da Convenção Interamericana contra o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, em 2022. Uma cláusula antirracista que preveja possibilidade de rescisão contratual em favor da vítima, seja qual for o valor do contrato, pode produzir um efeito mobilizador em clubes e federações para promoverem políticas de prevenção, combate e reparação ao racismo.
5 Disponível em: https://twitter.com/vinijr/status/1660379570149683200. Acesso em: 05 jun. 2023.
6 Disponível em: https://twitter.com/superdeporte_es/status/1660926036404568065. Acesso em: 05 jun. 2023.
Justifica-se a temática, nas palavras de Francisco de Oliveira, pela “riqueza da iniquidade de ser periferia” (2003, p. 86), pois, ao contrário do pensamento eurocêntrico hegemônico que dita, há muitos séculos, o que é o Humano, é dos territórios saqueados, dos povos explorados e colonizados, que podem emergir leituras expansivas do humano e da humanidade, segundo as quais a hierarquia racial deixe de produzir um “Outro” inumano, desumano, indigno de vida. Neste sentido, o caso Vini Jr. pode ser uma oportunidade de impor a países europeus responsabilização e reparação às vítimas do racismo no esporte, inclusive considerando a imensa quantidade de jogadores e atletas que atuam no continente, mas são oriundos de suas ex-colônias.
Para Aimé Césaire, “a Europa é indefensável” (2020, p. 09). Com isso, o autor nascido na Martinica, ex-colônia francesa, acusa o europeu de não se escandalizar com a barbárie cometida contra povos não europeus:
[...] o que ele não perdoa em Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, é a humilhação do homem branco, é de haver aplicado à Europa os procedimentos colonialistas que atingiam até então apenas os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África (Césaire, 2020, p. 18).
Já Nelson Maldonado-Torres explica que o processo de colonização significou uma ruptura tão radical com a percepção européia do Ser que as invasões coloniais, consideradas como “descobertas”, quebraram “com [...] a noção de uma cadeia que conectava todos os seres ao Divino [...] Isso introduz o que eu denominei em outro lugar de diferença subontológica ou diferença entre seres e aqueles abaixo dos seres (Maldonado-Torres, 2020, p. 37).
Ainda que distante dos pensamentos pós-colonial e decolonial, Michel Foucault também pensou uma forma de dominação - que chamou de biopolítica - cujo funcionamento dependia da separação entre o humano e o menos humano; o humano e a degeneração do próprio humano. E essa separação, segundo ele, é operada a partir do racismo: “Com efeito, o que é o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o
poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer” (Foucault, 2002, p. 304-305).
Não é à toa que “macaco” é um xingamento utilizado para se referir a pessoas negras, seja na Europa, seja no Brasil. O animal representa uma localização inferior dentro da escala evolutiva, de acordo com as versões mais medíocres da evolução das espécies. O macaco é um “pré-humano” ou “quase-humano”. Há, inclusive, uma longa lista de dizeres racistas na sociedade brasileira, associando pessoas negras e macacos como forma de racismo recreativo (Moreira, 2019).
No futebol, pesquisas recentes ressaltam que o esporte é uma via de ascensão social para alguns jovens negros, ao mesmo tempo em que as diretorias de clubes e federações são majoritariamente brancas (Silva; Paula, 2020, p. 03). Essa possibilidade de ascensão, ainda que ocorra para uma minoria, é reiteradamente narrada como “prova” de que o esporte é racialmente democrático e tudo depende do mérito individual de cada jogador (Silva; Paula, 2020, p. 02).
A meritocracia é um conceito da branquitude por excelência. E essa maneira de tratar a ascensão social do negro pelo futebol não esconde, muitas vezes, a associação que se faz entre o negro e as habilidades físicas - notadamente, a força - em oposição, às vezes tácita, à inteligência, à racionalidade, à autonomia e à condição de sujeito. A branquitude espera, no entanto, que esse negro que ascende socialmente seja, em paradoxo, grato pelo próprio mérito (o que, na verdade, significa grato por ter sido admitido em espaços que não são originalmente para pessoas como ele).
Quando, portanto, um negro bem-sucedido dentro dos próprios limites do capitalismo não se porta como a branquitude espera, surge o “terror que os sujeitos-cidadãos sentem quando eles concebem o colonizado como um agente” (Maldonado-Torres, 2020, p. 34), ou ainda, como disse Frantz Fanon, quando o colonizado aparece como questionador legítimo (Fanon, 2008, p. 99).
A filósofa estadunidense Judith Butler, ao examinar discursos de ódio, chamou a atenção para o que pode acontecer em decorrência deles:
Portanto, o chamamento injurioso pode parecer restringir ou paralisar aquele ao qual é dirigido, mas também pode produzir uma resposta inesperada e que oferece possibilidades. Ser chamado é ser interpelado, a denominação ofensiva tem o risco
de introduzir no discurso um sujeito que utilizará a linguagem para rebater a denominação ofensiva. Quando o chamamento é injurioso, exerce sua força sobre aquele a quem fere. Mas o que é essa força, e como podemos entender suas falhas? (Butler, 2021, p. 13).
O sujeito que sofre a injúria não é um objeto inerte. Ele pode se utilizar exatamente dela para instaurar debates e mudanças a respeito de sua condição, especialmente quando se trata de uma condição compartilhada com outros, como é o caso do racismo. É que parece acontecer no caso de Vini Jr. que apontou seus ofensores dentro do estádio, forçou a imprensa europeia a pautar o caso, não raro, demonstrando que os torcedores racistas no estádio não são alienígenas e compartilham de uma cultura colonizadora que, de fato, é racista, dentro e fora dos estádios.
Este sujeito injuriado, no entanto, não está apartado das condições de seu tempo. Vini Jr. joga no Real Madrid em tempos de ascensão da extrema-direita europeia, o vem implicando no aumento das tensões raciais, ainda mais do que outras que também habitam a ideologia desse campo político. Para entender o que aqui se chama de extrema-direita, toma- se emprestada a definição de Michel Löwy (2015, p. 653-654):
A atual extrema-direita europeia é muito diversa, uma variedade que vai de partidos abertamente neonazistas, como o Aurora Dourada na Grécia, a forças burguesas perfeitamente bem integradas ao jogo político institucional, como o suíço UDC. O que eles têm em comum é o seu nacionalismo chauvinista — e, portanto, oposição à globalização “cosmopolita” e a qualquer forma de unidade europeia —, xenofobia, racismo, ódio a imigrantes e ciganos (o povo mais antigo do continente), islamofobia e anticomunismo. Além disso, em sua maioria, se não em sua totalidade, são favoráveis a medidas autoritárias contra a “insegurança” (usualmente associada a imigrantes) por meio do aumento da repressão policial, penas de prisão e pela reintrodução da pena de morte. A orientação reacionária nacionalista, na maioria das vezes, é “complementada” com uma retórica “social”, em apoio às pessoas simples e à classe trabalhadora (branca) nacional. Em outras questões — por exemplo, neoliberalismo, democracia parlamentar, antissemitismo, homofobia, misoginia ou secularismo — esses movimentos são mais divididos.
Ao mesmo tempo, estamos falando de uma época e de um jogador negro, imigrante transatlântico, que está conectado com as lutas em territórios onde a escravidão marcou indelevelmente as relações sociais e segue atualizada pelos dispositivos de colonialidade. Diferente de seus compatriotas e/ou colegas de trabalho que também sofreram racismo dentro de campo, como aconteceu com o brasileiro Daniel Alves, já mencionado anteriormente, Vini Jr. se encontra num momento histórico-político em que as resistências
advindas das antigas colônias se fazem notar dentro e fora da Europa. Cita-se aqui como exemplo o caso da Namíbia, que segundo historiadores, “registra o primeiro genocídio do século XX” (Correa, 2011, p. 86), praticado pelos colonizadores alemães, mas que só teve essa história reconhecida pela Alemanha em 2021 (Calça, 2021, p. 288).
Enquanto gerações anteriores de atletas eram até mesmo punidas por se manifestar politicamente, nos países onde a escravidão se instalou e, inclusive, se reproduziu de muitas formas mesmo depois de legalmente extinta (como era o caso das Leis Jim Crow, nos EUA), mais recentemente encontramos astros do basquete estadunidense como LeBron James que há anos denuncia o racismo sofrido nas quadras. Ou como o piloto de Fórmula 1, Lewis Hamilton, que ganhou processo contra o ex-piloto brasileiro Nelson Piquet, também por ofensas racistas.
Assim, Vini Jr. e os jogadores de sua geração se encontram no centro de tensões políticas e sociais que vão da ascensão da extrema-direita ao fortalecimento de movimentos antirracistas pelo mundo. Talvez, o exemplo mais evidente seja o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) surgido nos EUA e rapidamente internacionalizado após de uma sequência de assassinatos de jovens negros pela polícia, entre os anos de 2013 e 2015.
Hoje, o nascimento de um novo movimento contra o racismo e a polícia está destruindo a ilusão de daltonismo racial e pós-racialização dos Estados Unidos. Os clamores “Hands up, don’t shoot” [Mãos ao alto, não atire], “I can´t breathe” [Não consigo respirar] e “Black lives matter” [Vidas negras importam] foram ouvidos em todo o país, e dezenas de milhares de pessoas se mobilizaram para exigir o fim da desmedida brutalidade policial e do assassinato de afro-estadunidenses (Taylor, 2020, p. 41).
A postura de uma nova geração de jovens negros em evidência, seja no esporte, seja nas artes ou na política, alimenta e é alimentada por esses movimentos sociais, de maneira que o antirracismo se torna pauta incontornável no debate público e, inclusive, no futebol, envolvendo marcas, empresas, federações, clubes, torcidas e, como mostrou o caso Vini Jr., mobilizando até mesmo instâncias diplomáticas internacionais, como será apontado adiante.
A metodologia utilizada para a pesquisa analisa o discurso a partir da teoria da performatividade (Butler, 2021, p. 14-15), ou seja, busca identificar os discursos em que a fala, efetivamente, faz algo.
[...] nem todo ato na linguagem é um ato descritivo – ou constatativo [...] pois ao falarmos nem sempre estamos constatando, informando ou descrevendo um dado da realidade, nem todo ato de fala é uma ‘afirmação’ clássica, concebida frequentemente como uma ‘descrição’ verdadeira ou falsa dos fatos [...] Pelo contrário, muito da linguagem é composto por atos que constituem um agir pelo falar, atos que produzem algo, atos de fala por meio dos quais falar é fazer” (Gomes, 2019, p. 13).
Foram analisadas páginas e publicações do jogador, do Real Madrid, do presidente da federação espanhola La Liga (Javier Tebas Medrado) e do jornal esportivo Superdeporte, da cidade de Valencia (oponente do Real Madrid na ocasião do racismo contra Vini Jr.), no dia 21 de maio de 2023, todos na rede social Twitter, com o intuito de captar o que cada um deles produzia efetivamente no desenrolar do caso, que chegou à mobilizar até mesmo incidente diplomático, com manifestação dos Ministérios da Igualdade Racial do governo brasileiro e espanhol, declarando irrestrita solidariedade ao jogador.
Butler chamou a atenção para o fato de discursos de ódio serem frequentemente associados a uma dor física. Esse é só um dos exemplos de como a performatividade opera: “Afirmar que a linguagem fere ou [...] que ‘as palavras machucam’ é combinar vocabulários linguísticos e físicos [...] Essas formulações sugerem que a injúria linguística atua de forma similar à injúria física” (Butler, 2021, p. 16).
Ao lado da injúria, do xingamento, da violência verbal, no entanto, o Direito também se organiza a partir de atos de fala. Por exemplo, quando define que feminicídio é um crime praticado “em razão do sexo feminino”, o Código Penal adota uma perspectiva trans- excludente, que afasta da definição de mulher, as trans e travestis. Neste sentido, o Direito “faz a mulher”, pois diz quem é e quem não é, em seus termos. Assim, há uma performatividade jurídica, uma cadeia de significados que, uma vez acionada, tem uma força material.
No Caso Vini Jr, os tweets de Javier Tebas Medrado e do jornal Superdeporte, recorreram a discursos que identificam o negro/imigrante que se insurge contra o racismo/xenofobia como sujeito provocador das ofensas que sofre. Ao proferir essa
caracterização, buscaram isolar o jogador de seus pares, ao mesmo tempo em que pretendiam afastar da discussão o próprio racismo. Esse discurso é um performativo que, historicamente, produziu exatamente o que disse e criou os “jogadores-problema” para não lidar com esportistas vítimas de racismo/xenofobia. Desta vez, no entanto, uma fissura se instaurou na repetição que o performativo carrega e o centro do debate foi, efetivamente, o racismo.
Que fissura foi essa e como ela se produziu? Como pesquisa exploratória, ao analisar as redes sociais do jogador, percebeu-se que ele mobilizou, inclusive por meio de imagens e vídeos, uma longa sequência do racismo que sofre na Europa, e compreendeu-se que no intervalo entre seu gesto em campo e as disputas narrativas sobre seu significado, ele conseguiu demonstrar que a repetição dos eventos tinha um principal responsável, a saber, La Liga. Com isso, o debate saiu da esfera meramente individual autor/vítima, para se tornar um caso de racismo institucional, o que instaura um debate sobre a responsabilização de clubes e federações europeias sobre casos de racismo/xenofobia.
O Direito também é performativo, como já dito anteriormente. Ou seja, ele dá nome e cria, ao mesmo tempo, realidades. Assim, ele pode ser estrategicamente utilizado para ampliar os limites das vidas dignas de serem vividas. Todas as vidas que não cabem no modelo do colonizador ocidental, diga-se de passagem. Dito de outra forma, quando falha o performativo do “jogador-problema”, provocador, que servia para esconder o racismo/xenofobia no futebol europeu, torna-se possível subverter o discurso e colocar as instituições no lugar, digamos, de “instituições-problema”. A partir daí, é possível pensar como a responsabilização por racismo pode deixar de ser somente do campo individual – sempre moral – para ser alçada à condição institucional no futebol.
Como demonstrou Ferreira Jr. (2021, p. 306), “a violência racial há muito faz parte do esporte moderno”, primeiro com a destruição de práticas corporais que faziam parte da socialização não-branca até meados do século XX. Dessa forma, a integração e resistência das populações negras e indígenas nos esportes se deu sempre sob o poder dos “herdeiros brancos da infraestrutura material e simbólica (Ferreira Jr., 2021, p. 307). Neste campo, coube a estas populações erigir resistências num “processo sinuoso caracterizado por avanços e
recuos, ambíguo e repleto de experiências de assimilação e apropriação contra-hegemônicas
das técnicas esportivas” (Ferreira Jr., 2021, p. 307).
O caso Vini Jr. levantou a necessidade de ampliar a discussão e qualificar a implementação de cláusulas antirracistas no futebol em nível internacional. No Brasil, o primeiro clube punido pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) foi o Juventude (RS), em 2005, porque sua torcida imitava um macaco toda vez que o jogador Tinga, do Internacional (RS), tocava na bola (Primeiro..., 2005). Desde então, os próprios clubes começaram a implementar cláusulas antirracistas em seus estatutos, punindo funcionários, entre eles, jogadores, por práticas racistas. Um dos primeiros exemplos foi o time do Bahia:
O Bahia foi um dos primeiros clubes a divulgar a inclusão da cláusula antirracista em seus contratos. Nela, há previsão de multa ou demissão por justa causa. A medida foi tomada logo após um jogador de seu elenco, Índio Ramirez, ser acusado por Gerson, ex-Flamengo, de injúria racial, durante uma partida do Brasileirão de 2020. Na ocasião, o Tricolor chegou a afastar Ramirez por um período, mas reintegrou o jogador por considerar não haver elementos que comprovassem as ofensas (Hamilton, 2021).
As cláusulas antirracistas podem prover punições desde advertência até desligamento do clube. Para tanto, elas têm como parâmetro do artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva:
Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
Pena: suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de cento e vinte a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código, além de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).
1º Caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, esta também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidência, com a perda do dobro do numero de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de pratica desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente.
2º A pena de multa prevista neste artigo poderá ser aplicada a entidade de prática desportiva cuja torcida praticar os atos discriminatórios nele tipificados, e os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias.
Se cada clube adotar uma cláusula/política antirracista, a vantagem é não depender diretamente da justiça desportiva para fazê-la cumprir. Nos casos de jogadores brasileiros, principalmente dos que vão jogar fora do país tão jovens, como é a história de Vini Jr., torna- se cada vez mais evidente a necessidade de obrigar os compradores a incluírem cláusulas antirracistas nos contatos, uma vez que imigrantes e minorias étnico-raciais são mais vulneráveis a incidentes como o que ocorreu em 21 de maio de 2023 contra o jogador negro brasileiro. Esse tipo de cláusula deve se tornar conditio sine qua non para a própria celebração contratual de nível internacional.
Os contratos de trabalhos desportivos, em especial, os contratos entre atletas profissionais, com os clubes de futebol, dispõem de um arcabouço de cláusulas e cláusulas acessórias, notadamente criadas com o objetivo de proteção dos interesses das entidades, necessidade de proteger os interesses dos clubes brasileiros, com intuito de coibir o assédio e aliciamento seduzidos por propostas de equipes mais pujantes financeiramente, em especial os clubes europeus, o que a várias quebras contratuais deixando os clubes menores vulneráveis (Ramos, 2010, p. 226).
A legislação nacional adaptando-se a essa peculiaridade, traz no artigo 28, caput da Lei 9.615/98, a conhecida Lei Pelé, determina como elemento indispensável aos contratos de trabalho desportivos a obrigatoriedade da existência da pactuação de clausulas penais, como incentivo à estabilidade contratual, o que para Diniz e Sakahida (2019, p. 86-87) funciona como um equalizador nas relações profissionais desportivas entre as partes e limitando a interferências externas, vindo a consolidar o pacta sunt servanda laboraloris sportive.
No tocante a possibilidade de inserção obrigatória de cláusula antirracista, observamos que os §§ 3º e 5º do artigo 28 da lei Pelé, ao preverem as cláusulas penais, com duas finalidades, a primeira de sanção pecuniária por inadimplemento de qualquer das cláusulas contratuais, e a de rescisão unilateral, com a aplicação ou não de multa (Diniz; Sakahida, 2019, p. 86-87).
Ramos (2010, p. 228) avença que nas transações internacionais as cláusulas penais, com caráter rescisório já são utilizadas quando das transações internacionais, sem limitantes de quantos indenizatórios para os clubes. As cláusulas penais podem servir, tanto ao clube contratante, quanto ao profissional contratado.
As cláusulas penais, como elemento rescisório já são utilizadas, reprimenda antirracista por clubes brasileiros da Série A, quando da contratação de jogadores profissionais estrangeiros que venham a cometer qualquer ato racista ou de ódio durante a vigência de seus contratos (Ramos, 2010, p. 234).
A experiencia pátria Hamilton (2021) na elaboração pode levar a possíveis influencias nas futuras contratações de jogadores brasileiros para clubes sediados em países notadamente com histórico de episódios racistas, a exemplo da inserção de clausulas penais, com sanções pecuniárias e de rescisões com multas em favor dos atletas vitimados, caso os clubes quedem inertes a coibir e apoiar os jogadores, quando sofrerem os ataques, e possibilitando ao atleta rescindir o contrato sem qualquer ônus, caso os ataques atinjam ou ameacem a integridade física dos atletas e seus familiares.
A imposição de cláusula penal antirracista deve passar a ser uma obrigação por parte dos clubes e dos empresários dos atletas, impondo condições contratuais que venham a proteger e coibir o racismo e atos violentos praticados por torcidas, dirigentes e por outros jogadores, minorando os efeitos de insegurança e revolta dos jogadores brasileiros, africanos, asiáticos vítimas, em episódios semelhantes dos ocorridos com Vinicius Junior.
Neste trabalho, exploramos o caso de racismo sofrido pelo jogador Vini Jr., do Real Madrid, em 21 de maio de 2023, durante uma partida contra o Valencia, tomando como ponto de partida para analisar a recorrência de ataques racistas que sofrem os jogadores de futebol brasileiros, negros, na europa. Para tanto, apresentamos três explicações: i) a reorganização da extrema-direita em nível global; ii) a resposta do jogador ao racismo sofrido, que não performa a autodepreciação, a minimização como “caso isolado” e/ou como prática socialmente aceita no futebol; iii) resultado das lutas antirracistas em vários lugares do planeta, a exemplo do Black Lives Matter (EUA/2013) e da Coalizão Negra por Direitos (Brasil/2019).
Como objetivo principal, propomos o uso do Direito como uma ciência social aplicada para criar cláusulas contratuais antirracistas em defesa de atletas brasileiros, negros e negras, atuando tanto no Brasil como no exterior, como: cláusulas de não discriminação, mecanismos
de denúncia e investigação e estabelecimento de penalidades e sanções. Justificando a matéria no que chama Francisco de Oliveira (2003, p. 86) de “riqueza da iniquidade de ser periferia”. Essa situação também pode representar uma oportunidade para responsabilizar e buscar reparações das vítimas do racismo no esporte em países europeus, levando em consideração a significativa presença de jogadores e atletas que atuam no continente, mas são originários de ex-colônias. Ademais, que países do chamado Sul Global formulem essas cláusulas é também a inversão de um performativo de contratações que se dão nos termos exclusivamente das legislações dos países compradores, em sua maioria, do Norte Global
Tomamos como referencial teórico as contribuições de Aimé Césaire, Nelson Maldonado-Torres e Michel Foucault sobre o processo de colonização e decolonialidade, e o racismo que os envolve. Ainda, utilizamos Judith Butler para examinar discursos de ódio e chamar a atenção para o que eles podem causar. Para entender o que se chama de extrema- direita, toma-se emprestada a definição de Michel Löwy e a análise da cientista política Camila Rocha sobre o crescimento de uma nova direita no Brasil, uma vez que sua reestruturação mundial trouxe à tona alguns comportamentos e manifestações, dentre eles a negação literal da existência do racismo.
Em contraponto, abordamos o fortalecimento de movimentos antirracistas pelo mundo, como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), que alimentam a postura da nova geração de jovens negros, de modo que o antirracismo se torna pauta no debate público e no futebol, mobilizando até mesmo instâncias diplomáticas internacionais, de forma que está aberto o espaço para juridicamente serem protegidos jogadores imigrantes e/ou pertencentes a minorias étnico-raciais, por meio de cláusulas antirracistas no futebol, cujas instituições são dirigidas majoritariamente por pessoas brancas e tenta se justificar a partir do discurso da meritocracia.
Por fim, exploramos o Direito como um performativo, um discurso que cria realidades e que pode estar comprometido com a ampliação dos limites de vidas dignas de serem vividas, ao localizar o racismo em relações não apenas individuais, mas também institucionais, e produzir, assim, responsabilidade e reparação.
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