in Revista Tempos e Espaços em Educação
O movimento das ocupações estudantis no Pará em 2016
Resumo
É feita uma interpretação histórica das ocupações de instituições de Ensino Médio no Pará, em 2016, procurando compreender suas características e suas práticas políticas e formativas, com base na categoria de experiência de Thompson e na de sujeito histórico de Rancière. Foram realizadas cinco entrevistas em 2019, ouvindo jovens que participaram do movimento das ocupações em quatro municípios. Como resultados, o Pará se incorporou ao movimento nacional de ocupações estudantis de forma muito atuante, tanto aderindo à pauta nacional quanto propondo suas próprias demandas. Também, estudantes vivenciaram práticas formativas que ressignificaram a cultura escolar, a cultura juvenil e a cultura política, combinando tanto a tendência autonomista quanto a orientação política das entidades estudantis, produzindo significativos impactos nas trajetórias escolares e políticas dos sujeitos entrevistados.
Main Text
INTRODUÇÃO
Tendo como tema o movimento das ocupações de estudantes do Ensino Médio (EM) no Brasil em 2015 e 2016, o artigo pretende fazer uma interpretação histórica das ocupações no Pará, procurando compreender as suas características – tanto as específicas quanto as que compartilha com o movimento nacional – e suas práticas políticas e formativas. Tendo como base teórica a categoria de experiência de Thompson e a de sujeito histórico segundo Rancière, a investigação que deu origem ao artigo se insere na pesquisa “Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016: formação e auto-formação das/dos ocupas”. A pesquisa é coordenada pelo autor deste artigo e financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a ser desenvolvida entre março de 2019 e fevereiro de 2022, envolvendo 12 instituições de pesquisa em 10 estados do país.
Foi feito levantamento de dados a partir de contatos com a direção da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) no Pará, além de publicações da imprensa. Foram realizadas cinco entrevistas em agosto de 2019, ouvindo jovens que, em 2016, participaram do movimento das ocupações em instituições públicas nos municípios de Abaetetuba, Belém, Marabá e Marapanim.
Esse trabalho se justifica pela necessidade e a importância de conhecer o modo como a Região Norte atuou no movimento, tendo o Pará como o seu principal participante. Apesar da proficuidade de trabalhos acadêmicos sobre as ocupações estudantis de 2015 e 2016, não encontramos até o momento nenhum que trata do Pará ou mesmo da Região Norte, o que configura o ineditismo deste artigo.
EXPERIÊNCIA E HISTÓRIA
Como fundamentação historiográfica deste nosso trabalho, nos baseamos em E. P. Thompson e J. Rancière, os quais dialogam com o legado marxista na historiografia. São autores importantes para analisar um movimento social que, além de juvenil e estudantil, pode ser caracterizado como popular, já que boa parte das e dos estudantes das instituições públicas de EM são filhas e filhos das classes trabalhadoras.
Thompson parte do reconhecimento da atuação de trabalhadoras e trabalhadores da Grã-Bretanha no final do século XVIII e XIX, com esforços conscientes, em seu fazer-se histórico como classe. Não se trata de um olhar de condescendência. Foram esses sujeitos quem realmente viveram seu tempo. São eles que podem nos fazer conhecer melhor o passado e o sentido das lutas sociais: “Suas aspirações eram vividas nos termos de sua própria experiência”. (Thompson, 1987, p. 13). Tanto por meio das derrotas dessas pessoas que viviam do trabalho, quanto das suas vitórias e táticas bem-sucedidas, uma classe se constituiu: “A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) aos seus” (Thompson, 1987, p. 19).
Thompson (2002) trata também da relação entre educação e experiência, ao considerar que as experiências dos membros da classe trabalhadora podem vir a enriquecer o próprio processo educativo formal, para além de apenas a escolarização contribuir com a formação da classe trabalhadora. Para tanto, afirma que as universidades deveriam se engajar na educação de pessoas adultas não apenas para ensinar, mas também para aprender. Para o historiador inglês, a educação de pessoas adultas deve valorizar a experiência vivida por seu corpo discente: “A experiência modifica, às vezes de modo sutil e às vezes radicalmente, todo o processo educacional” (Thompson, 2002, p. 13).
Entretanto, o que Thompson reconhece nas pessoas adultas que chegam tardiamente à escola pode também ser aplicado, ainda que de diferente modo, a adolescentes das classes populares, como aquelas e aqueles que ocuparam as escolas públicas no Brasil em 2015 e 2016. Tais adolescentes, que se chamaram de ocupas, também carregam experiências prévias e diferenciadas em relação à cultura escolar, peculiares à sua condição etária, bem como à sua condição social. Suas vivências trazem uma diferente perspectiva em relação ao tempo e ao espaço social, as quais constituíram o movimento das ocupações também a partir de suas demandas e expectativas.
As ocupações são um exemplo da conversão das experiências “vividas” - estudantis, adolescentes e populares – em experiências “modificadas” pela ação coletiva, as quais fundamentam propostas e práticas de alteração radical do processo educacional e da participação política. Não são eventos rotineiros, pois, segundo Thompson (apud Borges & Silva, 2019, p. 261), “somente em circunstâncias excepcionais as pessoas realmente vão além de sua experiência local, de seus valores vividos e apresentam um desafio mais amplo”.
Jacques Rancière, filósofo e historiador francês, tem sido também uma importante referência para nossa pesquisa nacional. Aqui, desejamos trazer principalmente suas ideias sobre o significado da história, desde a história da classe proletária francesa no século XIX. Elas nos ajudam a lidar com os relatos das e dos ocupas, pois, assim como as de Thompson, clamam para que evitemos uma postura de superioridade sobre as pessoas que são pesquisadas, postura que costuma tratar o sujeito que faz e se faz na história ora como ser ingênuo, ora como totalmente inconsciente em relação ao sentido histórico de suas ações.
Rancière, após se afastar de seu mestre, Louis Althusser, passou a desenvolver um corpus teórico original, com base na pressuposição radical da igualdade entre todas as pessoas, em especial graças à pesquisa que deu origem ao livro “A noite dos proletários”. (Rancière, 1988). Buscou romper as tendências dominantes na historiografia, que tinham em comum a atitude de não tomar os textos e as falas populares como tendo valor em si mesmas, mas apenas como indício ou sintoma ou, ainda, ideologia no sentido de falsas ideias. Quem escreve a história presume dizer a verdade por detrás das falas populares, descobrindo os processos e as estruturas. (Voigt, 2018).
“A noite dos proletários” narra sonhos da emancipação operária, nas noites em que pessoas diversas, e não apenas as propriamente operárias, se encontravam em tabernas, casas e ruas, produziam jornais, livros e poemas. Assim, a “cultura proletária” não emanava de maneira inconsciente e espontânea do modo de vida e do trabalho do operariado, mas justamente de sua interrupção, nessas noites roubadas do sono. Também, não emanava tão somente de pessoas que alugavam sua força de trabalho, mas, justamente, no seu encontro com outros sujeitos, como pequeno-burgueses e burgueses empobrecidos que ajudaram a construir discursos para o próprio proletariado. (Rancière, 1988).
O encontro de Ranciére (2010) com as publicações do operariado o levaram a descobrir que essas pessoas eram capazes de serem “expectadoras” de sua própria classe social e falarem sobre si mesmas. Ou seja, elas também eram intelectuais. Na verdade, qualquer pessoa é intelectual. Rancière nos convida a tratar os sujeitos históricos como pessoas em condição de igualdade intelectual e capacidade de ação social e política, assim como todas as outras, incluindo quem faz a pesquisa histórica. Desse modo, escrever história passa a significar um reconto de nossa própria aventura intelectual entre os sujeitos históricos – em nosso caso, as e os ocupas – e um convite para que quem lê faça a “sua própria tradução.” (Rancière, 2010, p. 121).
O MOVIMENTO DAS OCUPAÇÕES NO PARÁ
O movimento das ocupações estudantis no Brasil começou em novembro de 2015, em São Paulo (SP), contra a política estadual de “Reorganização” das escolas públicas. Daí até julho de 2016, irromperam uma série de mobilizações estaduais em que estudantes ocuparam escolas, cada qual com dinâmica e pautas que remetiam a questões próprias, reagindo contra políticas estaduais de caráter neoliberal ou apoiando greves de docentes, sempre incluindo na pauta a denúncia da precarização das escolas e do ensino: Goiás (GO), Mato Grosso (MS), Rio de Janeiro (RJ), novamente SP, Rio Grande do Sul (RS) e Ceará (CE). Essas mobilizações estaduais tiveram diferentes graus de sucesso em suas reivindicações e se retroalimentaram, no que se refere a práticas organizativas e táticas de resistência e negociação.
Enquanto os poderes públicos e agentes de segurança foram inovando em táticas de deslegitimação e repressão, organizações políticas, como entidades estudantis, juventudes partidárias e sindicatos no campo da esquerda, passaram a considerar a tática da ocupação como relevante na resistência aos retrocessos políticos nacionais, escancarados no impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 31 de agosto de 2016. Essas organizações constituíram o que Medeiros, Januário e Melo (2019) descrevem como o campo democrático-popular entre as forças políticas do movimento das ocupações.
No entanto, o pequeno, mas aguerrido campo autonomista teve protagonismo inegável, inclusive nas primeiras mobilizações em SP, representadas pelo Coletivo O Mal Educado (2017). Esse campo, que contou com a adesão de algumas juventudes partidárias menos identificadas com o campo democrático-popular, tendeu a representar melhor o perfil majoritariamente independente das e dos ocupas, a saber, adolescentes que passaram a se interessar por política e a se mobilizar, mesmo sem se identificar imediata ou posteriormente com alguma organização formal.
Logo se configuraria uma “segunda onda” das ocupações estudantis, agora com pauta e dinâmica nacionais. Ela se iniciou no início de outubro de 2016, no Paraná e se espalhou para quase todas as unidades federativas do país. Novamente, a pauta era reativa, ainda que nacional, primeiro contra a Medida Provisória nº 746/2016 (MP746), decretada pelo Governo Federal de Michel Temer, em 22 de setembro, a qual, posteriormente transformada em lei, “reformou” o EM que, entre outras medidas, reorganizou-o em torno de cinco itinerários formativos e mantendo como obrigatórias no currículo das três séries do EM apenas as disciplinas de português e matemática.
Já com as primeiras escolas ocupadas, nova pauta nacional se acrescentou, ainda em outubro, quando a Proposta de Emenda à Constituição nº 241/2016 (PEC241), a “PEC do Teto de Gastos Públicos”, passou a ser deliberada pelo Congresso Nacional. A PEC241, depois PEC55 quando deliberada pelo Senado e, enfim, Emenda Constitucional 95, alterou as Disposições Constitucionais Transitórias, instituindo um novo Regime Fiscal à nação, “congelando” por 20 anos os gastos públicos com as políticas sociais. Em reação à “PEC do Fim do Mundo”, não apenas mais escolas públicas foram ocupadas, mas também campi de universidades e institutos técnicos públicos, especialmente federais.
Dados fornecidos pela UBES permitem afirmar que esta segunda onda de ocupações atingiu seu auge no final de outubro de 2016, com 1.154 instituições de ensino envolvidas, entre as quais, mais de 800 escolas paranaenses e 123 campi de IES (Instituições de Ensino Superior) públicas. Apenas três estados, todos no Norte do país, não tiveram registro de ocupações: Amazonas, Roraima e Acre.
Além do Pará, o Norte registrou ocupações em Tocantins e Amapá. No Pará, nossa equipe obteve o registro de ocupações estudantis em 11 municípios ao longo de 2016, envolvendo 19 unidades de ensino públicas: seis campi do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA), cinco escolas de Educação Básica (quatro estaduais e uma federal), quatro campi da Universidade Federal do Pará (UFPA), dois campi da Universidade do Estado do Pará (UEPA), um campus da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA) e um campus da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). A capital, Belém, teve o maior número de unidades ocupadas (seis), seguida por Abaetetuba, Altamira e Marabá, cada qual com duas ocupações. Os municípios a seguir tiveram uma ocupação cada: Bragança, Cametá, Castanhal, Marapanim, Santarém, Vigia e Tucuruí.
Três ocupações aconteceram de forma isolada, ainda no primeiro semestre de 2016, dada a insatisfação de estudantes com a infraestrutura precária de suas escolas, todas estaduais de Educação Básica (EB): em Marabá e Marapanim, no final de maio, e em Belém em meados de junho. Os registros dessas ocupações se devem à memória de duas pessoas que entrevistamos, então militantes da União da Juventude Socialista (UJS), organização política de juventude com grande relação com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que vem há anos hegemonizando a UBES e a União Nacional dos Estudantes (UNE).
Em Marabá, município que constitui uma região metropolitana com cerca de 350 mil habitantes (IBGE, 2010), a ação aconteceu em 30 maio de 2016, durou menos de 24 horas e as principais demandas se referiam à estrutura física precária da escola. Em Marapanim, município com cerca de 28 mil habitantes (IBGE, 2010), a ocupação se iniciou no dia seguinte, 31 de maio, durou 31 dias e demandou a reforma da escola, cuja estrutura também estava bastante debilitada.
Em Belém, capital paraense, com quase 1 milhão e meio de habitantes em 2019 (IBGE, 2010), a ocupação ocorreu em meados de junho e durou pouco mais de 24 horas. Nesse caso específico, uma das principais demandas era a reforma do telhado, devido à infestação de pombos. Em resposta à demanda, a Secretaria de Educação (Seduc) assinou documento que prometia a reforma, dando fim à ocupação. No entanto, assim como se deu com as duas escolas anteriores, tais compromissos não se materializaram.
Em outubro, esta escola seria reocupada, uma das diversas instituições paraenses que seguiram o exemplo de outra escola periférica da capital, ocupada em 23 de outubro, inserindo o Pará na onda nacional de ações contra a MP74 e PEC55. Assim como ocorreu no restante do país, as instituições passaram a ser desocupadas principalmente após 29 de novembro, com a aprovação em 1º turno no Senado da PEC55. Antes, em 1 de novembro, o governo federal adiara o ENEM em 12 campi ocupados de universidades e do IFPA no Pará, em uma das várias manobras para colocar a opinião pública contra o movimento.
Em outubro e novembro de 2016, a maioria das instituições ocupadas no Pará foram campi de universidades e do IFPA, enquanto que, nas demais unidades da federação, as principais instituições mobilizadas foram escolas públicas com EM. Nos protestos contra a PEC241/55, apenas três escolas paraenses de EB foram ocupadas.
Contudo, deve ser mencionado que o IFPA é uma instituição que congrega não apenas cursos de graduação, mas também estudantes de EM integrado ao ensino profissional e de ensino profissional na fase subsequente ao EM. Segundo as entrevistas, secundaristas estiveram presentes em maior número no IFPA em Belém e organizaram a ação no IFPA em Abaetetuba, município com uma população de cerca de 156 mil pessoas (IBGE, 2010). Enfim, deve se recordar que, nesta segunda onda de ocupações no Pará, a iniciativa coube a uma escola estadual em bairro periférico, que permaneceu 29 dias ocupada.
Já a Escola de Aplicação seria ocupada apenas em 9 de novembro. Visitamos a escola em agosto de 2019 e pudemos registrar algo que tem sido pouco comum em nossa pesquisa nacional: a preservação de registros da ocupação, nesse caso, na forma de grafites e murais no prédio que abriga o EM. Figuras heroicas como Frida Kahlo e Malala, rostos negros e indígenas, emblemas como flores, olhos, sol, astronautas e unicórnios, ironias, como o presidente Temer retratado como um diabo, e o Capitão América incomodado por buzina. Frases como “flores vencendo o canhão”, “que toda dor vire flor”, “ative suas mentes”, “ser mulher e negra é minha essência e não minha sentença”, “tão linda quanto uma mulher magra” (emoldurada por corpo feminino gordo), “meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder”, “não à PEC241/55”, “Direito para quem?” e “desordem e regresso”. As figuras e frases condensam as pautas e as ideias políticas que circularam durante as ocupações em todo o país, seja aquelas mais diretamente ligadas às causas do movimento, seja aquelas que compunham diversas pautas identitárias, destacando-se o feminismo secundarista, mas incluindo também a valorização das pessoas negras e dos povos indígenas e até mesmo a denúncia da gordofobia.
Assim, ainda que as ocupações de unidades de ensino de IES tenham predominado no Pará, foram muito importantes as ações em escolas de EB com EM, não tanto por sua quantidade, mas por seu significado. Elas ajudam a desvelar os problemas da EB pública no Pará, onde as contradições características do Brasil aparecem de modo mais explícito. A história do EM no Brasil é composta de avanços e conquistas, tanto quanto de precariedades persistentes e novas, já identificadas por Saviani (2013, p. 220) como “a marca que atravessa toda a história da educação brasileira […]”. No Pará, as ocupações, especialmente das escolas, expressavam não apenas uma reação a medidas nacionais que faziam retroceder o direito à educação, mas também denunciaram problemas específicos de cada unidade escolar, como a precariedade patente da estrutura e do cotidiano (merenda, material e qualidade de ensino) e problemas graves de gestão.
Os indicadores da educação paraense são muito negativos. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) aponta o estado como tendo os segundos piores indicadores de educação escolar do país. Em 2010, era o 4º estado em porcentagem de crianças de 0 a 7 anos fora da escola, com 5%, dado que se eleva a 18,5% no que se refere a adolescentes de 15 a 17 anos. No mesmo ano, o Pará tinha índice de apenas 4,26% de pessoas com Educação Superior (ES), superando apenas outro estado do país. Em relação ao EM, no Pará as matrículas em 2018 foram quase 360 mil, portanto o 7º estado com maior número de matrículas no EM. (IBGE, 2010). Considerando os dados da 3ª série do EM, se em 2009 o estado conseguiu alcançar as metas projetadas para o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), ficou abaixo da média nos anos seguintes. (Brasil, 2019).
Não à toa, as ocupações iniciadas em outubro de 2016 foram precedidas por ocupações isoladas em Marabá, Marapanim e Belém, em maio e junho. Elas são três ocupações sui generis, pois não tiveram relação nem com a onda nacional do segundo semestre de 2016, nem conformaram um movimento estadual contra dada política educacional ou em apoio à greve docente. Até o momento, encontramos o registro de ocupações desse tipo apenas em Belo Horizonte/MG, no início de 2016. (Gonçalves & Rena, 2019), assim como no Paraná, em junho de 2016.
A EXPERIÊNCIA DE OCUPAR NO PARÁ
Em outubro de 2019, realizamos nas dependências do Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Educação Básica da Universidade Federal do Pará (NEB-UFPA), em Belém, cinco entrevistas semiestruturadas com ocupas, fazendo uso de roteiro desenvolvido pela equipe nacional da pesquisa “Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016”. Esse roteiro se estrutura em quatro partes: trajetória escolar, formação política, participação na ocupação e trajetória pós-ocupação. Tais jovens receberam o convite a partir de contatos acadêmicos e políticos, bem como por páginas das ocupações nas redes sociais. As entrevistas duraram entre 1 e 2 horas. Elas foram gravadas e posteriormente transcritas e analisadas. As e os ocupas escolheram seus próprios pseudônimos.
O quadro 1 caracteriza as pessoas entrevistadas. Buscamos a maior variedade possível em termos de instituições ocupadas (escolas e instituto técnico) e características das e dos ocupas (independentes, militantes e dirigente). Foi possível entrevistar três pessoas que ocuparam instituições fora de Belém: Terry, dirigente da UBES e que ajudou a organizar a ocupação em Marabá em maio; Anita, ocupa de Marapanim, que era estudante de História da UFPA quando entrevistada; e Gabriel, ocupa de Abaetetuba, que se deslocou para Belém para participar de mesa-redonda promovida pelo NEB-UFPA a respeito do movimento das ocupações e conceder a entrevista.
As primeiras ocupações em maio e junho tiveram pautas exclusivamente específicas e locais, em especial a demanda pela reforma das escolas. Se em Marabá e Belém, a pauta da reforma foi a única, em Marapanim a demanda pela reforma se somou a denúncias de problemas na administração municipal, que estavam prejudicando estudantes que necessitavam de transporte para a escola. Como a ocupação em Marapanim foi mais longa, a descoberta de problemas na gestão da escola, tanto quanto a oposição da direção ao movimento, levaram à proposição de mais um item na pauta: a eleição da direção da escola.
Estas ações explicitam as contradições do sistema público da EB paraense. Não tiveram efeito de contágio, até porque suas pautas eram bastante particulares. No entanto, são mais um exemplo da interiorização e descentramento do movimento das ocupações, quase sempre se iniciando em municípios do interior ou de regiões periféricas. Inclusive porque a próxima ocupação paraense, essa sim com efeito de contágio, se deu em escola de bairro periférico da capital.
Por outro lado, as ocupações em maio e junho tiveram papel muito ativo da militância da UJS e da direção da UBES. Em seu relato, Anita afirma que foram discentes da escola que tiveram a ideia e a iniciativa. Por serem militantes da UJS, procuraram a orientação do Terry. O caso ilustra que as entidades estudantis e as juventudes partidárias vinham rapidamente incorporando a tática da ocupação como forma de mobilizar estudantes e a própria população.
As ocupações em outubro e novembro de 2016 tenderam a congregar pautas nacionais e pautas específicas. Na escola estadual, surgiu novamente demanda relacionada à estrutura da escola, pela retomada da reforma do prédio. Em Abaetetuba, ao protesto contra a PEC55 se somou o inconformismo diante da intenção da vereança duplicar seu salário. No campus do Instituto em Belém, algumas questões específicas foram trazidas, como a assistência estudantil e a infraestrutura.
Em escolas estaduais ocupadas, a ação levou à descoberta de possíveis negligências ou irregularidades da gestão da escola em relação à merenda. Os relatos que tratam disso são marcados pela indignação, tendo em vista a má qualidade da merenda servida cotidianamente.
A decisão de ocupar tendeu a ser protagonizada por um grupo de estudantes que buscou se informar e demandou orientações e apoio de organizações políticas e estudantes da ES, mesmo se esse grupo era independente (como na escola de Belém e no Instituto em Abaetetuba) ou composto de diferentes militâncias (como no instituto em Belém). Exceto pelo Instituto em Belém, as ações conseguiram mobilizar intensamente as comunidades locais, dada a importância da unidade de ensino ocupada na localidade ou sua capacidade de articular questões locais. Em Marapanim e Abaetetuba, a assembleia que deliberou pela ocupação foi precedida por ato público nas ruas. Na escola em Belém, membros da comunidade participaram de assembleias, declararam sua concordância e deram apoio, na forma de doações.
O ato de ocupar, em todos os casos, foi precedida por assembleia discente que deliberou favoravelmente. No caso do instituto em Belém, ela aconteceu depois da assembleia docente que declarou greve. Em Marabá e Abaetetuba, haviam grêmios e ele organizaram e lideraram a ação. O grêmio do instituto em Belém não organizou a ocupação, que esteve mais a cargo de estudantes de graduação, mas participou da ação. A escola de Belém não tinha grêmio e a ação foi organizada por estudantes independentes do 3º ano do EM.
Ao narrar a dinâmica das ocupações, as entrevistas destacam as dificuldades, os conflitos, as ameaças e as agressões sofridas. Docentes por vezes deram importante apoio à ocupação, por outro lado, vários se opuseram ativamente, enquanto a maioria parece ter se omitido. O principal apoio foi narrado no instituto em Belém e Abaetetuba, já que docentes também estavam em greve contra a PEC 241/55, mas ainda assim houve alguns conflitos. Pedro, do instituto em Belém, considera que o pouco apoio de docentes foi sua maior frustração na ocupação. A maior frustração de Gabriel, do instituto em Abaetetuba, foram as ofensas vindas de professores aos quais antes tinha admiração. Ocupas contam de tentativas de docentes forçarem a entrada da escola para ministrar aulas. Nas escolas, foi narrado ainda o apoio velado de parte relevante da docência, que doou alimentos, mas tinha medo de retaliação pela direção, especialmente quem tinha contrato temporário.
Houve conflitos também com o corpo técnico do Instituto. Uma técnica em Abaetetuba postou vídeo da ocupação “denunciando” oficinas que ministrariam conteúdos “não acadêmicos”, enquanto outro técnico em Belém atropelou barracas de ocupas no estacionamento com seu carro, conforme os relatos. Quanto às direções, se as do instituto dialogaram com ocupas e cumpriram com o que foi negociado, as das escolas fizeram oposição ativa ao movimento, tentando deslegitimar a ação diante de docentes, discentes e comunidade.
Por outro lado, especificamente uma técnica e um técnico de escola ocupada em Marapanim foram muito importantes para as e os ocupas, uma garantindo a compra de pães para o café da manhã, outro ajudando a resolver algumas intempéries surgidas, como a quebra da bomba d’água.
Ocupas viveram dificuldades inesperadas. De novo em Marapanim, uma ocupa foi convidada a se retirar após furtar roupas e dinheiro arrecadado para comprar alimentos. As ocupações mais longas, dado o cansaço e desgaste, foram vendo o número de ocupas ir se reduzindo bastante. O desgaste também provocou algumas discussões internas. O caso mais grave parece ter sido o assalto ao caixa eletrônico no instituto em Belém, quando ocupas foram feitos reféns. O episódio afetou outros campi do instituto que estavam ocupados, com pressões a estudantes para desocuparem por causa da suposta falta de segurança.
Foram marcantes as ameaças e agressões, algumas já narradas acima, porque vindas de docentes e direção. Outras se acrescentam: pedra atirada em Marapanim, ameaças a ocupa feita por estudantes contrários à ocupação em escola de Belém, tentativa de invasão da escola em Belém e do instituto em Abaetetuba pela polícia e tentativas de desmoralizar o movimento perante a comunidade com postagens falsas ou descontextualizadas nas redes sociais.
As ocupações isoladas em maio e junho foram conduzidas em parte pela UJS e, concomitantemente, pela UBES. Durante a ocupação em Marapanim, na escola, foi realizado o 1º Congresso Municipal da UJS, com a participação de lideranças locais do PCdoB, em que foi formada direção local e eleita delegação para o encontro estadual.
No entanto, outras organizações vieram apoiar esta ocupação, como membros do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o Sindicato das Trabalhadoras e dos Trabalhadores em Educação Pública do Pará (SINTEPP). O SINTEPP foi citado em todas as entrevistas como um grande apoiador, tanto do ponto de vista material quanto jurídico e político. O sindicato participou da condução da greve docente, decretada em outubro, e também via nas ocupações uma tática importante de apoio às suas estratégias sindicais e políticas, como os demais partidos, entidades estudantis e juventudes partidárias que vieram apoiar as e os ocupas. Duas outras organizações políticas juvenis, além da UJS, ambas com ligações mais ou menos assumidas com partidos de esquerda, também foram citadas: o Levante Popular da Juventude (orientado pelo partido não-eleitoral Consulta Popular) e o Juntos! (parte da Juventude do PSOL [Partido Socialismo e Liberdade]). Em relação aos campi ocupados do instituto técnico, foi citada a importante atuação da Federação Nacional do Estudantes em Ensino Técnico (FENET), à qual Pedro (instituto em Belém) era filiado.
No entanto, e o militante Terry é o primeiro a reconhecer, as ocupações que começam em outubro não foram dirigidas por organizações estudantis ou partidárias. Isso vale especialmente para a escola da periferia de Belém, que reiniciou o movimento, quando estudantes independentes ou, nos termos de Marielle, “pimentinhas” de sua turma, puxaram a ação. Aí passou a valer a tônica presente nas demais ondas estaduais de ocupações, tanto quanto dessa onda nacional: o caráter largamente independente e autônomo das e dos ocupas, com relações mais ou menos estreitas com organizações apoiadoras, a depender do contexto e situação.
Devem ser citados, em apoio às atividades políticas e formativas, também estudantes e docentes da UFPA, boa parte também ligada às organizações políticas já citadas. E, enfim, profissionais do Direito, como advogadas e advogados, com ou sem ligação com os sindicatos, e até mesmo um defensor público que palestrou em uma das escolas ocupadas em Belém. Essas pessoas apoiadoras anunciam o tema a seguir, as práticas políticas e formativas nas e das ocupações.
PRÁTICAS POLÍTICAS E FORMATIVAS DAS OCUPAÇÕES NO PARÁ
Tivemos relatos interessantes sobre as práticas políticas nas ocupações. As práticas políticas difundidas pelas ocupações país afora também estiveram presentes no Pará, como as assembleias, as comissões e a interlocução constante com organizações apoiadoras. Ainda mais ricos foram os relatos acerca das práticas formativas. No Pará, assim como nas demais unidades da federação, o movimento se assumiu como tendo forte caráter formativo, reconhecido como o principal legado pela maioria de ocupas.
Os registros das ocupações Brasil afora indicam as tendências à horizontalidade, participação, assembleísmo e preocupação em não afirmar lideranças ou porta-vozes fixos. No Pará, essas tendências autonomistas marcaram as ocupações a partir de outubro, já que as de maio e junho foram orientadas por organizações que tendem ao “centralismo democrático”. Assim, as assembleias e o estímulo à participação conviveram com a formação prévia de um “comando” de estudantes com filiação à UJS e orientado pelas organizações (UJS e UBES). Aí, foi usada cartilha preparada pela UBES que apresentava seu entendimento de como fazer a ocupação, enfatizando a organização: “Nós tínhamos todo um cronograma, uma cartilha dentro das ocupações, não tinha horário ocioso”. (Terry, UBES).
Nas ocupações de outubro e novembro, destacam-se decisões consensuais construídas em assembleias, em alguns casos diárias, que também orientavam o trabalho das comissões: de alimentação, segurança, limpeza e comunicação. Relatam-se alguns esforços para romper os estereótipos de gênero na distribuição de tarefas. Destaca-se o empenho para dialogar com pessoas que não concordavam ou não entendiam os motivos da ocupação. O relato de Gabriel (Abaetetuba) é o que mais ilustra certa tendência de romper com formas tradicionais de protesto, tal qual a clássica passeata puxada por carro de som comandado por dirigentes. Gabriel fala de aulões públicos, mas também pode ser incluído o intenso uso das redes sociais e Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) como prática de organização, diálogo e divulgação.
Em relação às práticas formativas, também no Pará as oficinas tiveram grande destaque como metodologia educacional, as quais podemos caracterizar como prática largamente participativa, que aproxima conteúdos teóricos e práticos, bem como aproxima sujeito que ensina e sujeito que aprende, e traz como resultados, em geral, aprendizados de aplicação imediata. Entre as oficinas, destacaram-se as de artes, como as de hip hop e de cartoon, com artistas conhecidos no estado. Assim como nas demais unidades da federação, também foram importantes os “aulões”, prática que combina o formato tradicional das aulas – a exposição de dado tema, preferencialmente curricular – com a forma da assembleia – uma multidão reunida por um interesse comum. No Pará, vários aulões foram ministrados por docentes da universidade federal. Enfim, tiveram grande importância as orientações jurídicas por profissionais do Direito. Essas orientações jurídicas levaram Marielle, inclusive, a decidir cursar graduação em Direito.
É importante citar que a ocupação de um dia em Marabá foi preparada de modo muito detalhado, com uma agenda de atividades formativas que contou com a presença de artistas de renome, docentes da universidade, membro da Comissão da Verdade e apresentações de hip hop. Enquanto isso, na escola de Belém, Marielle relata que estudantes de escolas próximas, que não estavam ocupadas, vinham participar de oficinas. Nessa escola, assim como no instituto em Belém, também houve oficinas oferecidas por organizações ligadas ao movimento negro. Entre os aprendizados citados, temos o pensamento crítico, a capacidade de se posicionar politicamente, o respeito à diversidade, a clareza sobre a orientação sexual, conhecimentos sobre a ES pública e a definição da carreira profissional que se desejava seguir e, até mesmo, a reorientação da filiação religiosa.
O relato de Gabriel, acima, é o que mais ilustra que, também no Pará, o movimento das ocupações teve caráter largamente pré-figurativo, ou seja, as práticas políticas durante a ocupação procuravam efetivar, elas próprias, aquilo que era a meta ou objetivo da ação coletiva. (Reguillo, 2013). No caso de Gabriel, isso aparece no empenho de praticar, no cotidiano das comissões e reuniões, o respeito concreto à diversidade que era defendido nos discursos da militância.
Assim como nos demais casos que temos investigado, também no Pará as ocupações se delinearam como zonas libertadas, nos termos de Boaventura Sousa Santos (2019), ou seja, como comunidades fundadas no consenso e na participação de todas as pessoas que as integram, comunidades com “natureza performativa, prefigurativa e educativa”. (Santos, 2019, p. 57). A ocupação como esboço de uma zona libertada vivia, em parte, sob a “lógica da confrontação”, a saber, contra autoridades nacionais, suas MPs e PECs, por vezes contra a direção e parte do corpo docente e discente. Em parte, a ocupação vivia sob a “lógica da existência paralela”, quando enfatizava a autonomia das e dos ocupas na gestão do espaço e na organização de atividades educacionais. As zonas libertadas costumam conceber-se como “processos de autoeducacação” (Santos, 2019, p. 57), e não foi diferente com as ocupações paraenses, tanto pela proficuidade das práticas formativas, quanto pelo reconhecimento de que elas foram as vivências mais marcantes pelas pessoas entrevistadas.
As ocupações das escolas estaduais se encerraram com a assinatura de acordos com a Seduc, nos quais era prometida a reforma ou a continuidade da reforma do prédio escolar. Se a promessa não se cumprira nas escolas ocupadas em maio e junho, na da periferia de Belém a reforma tinha sido retomada, ainda que continuasse a se arrastar em 2019.
O não cumprimento da promessa em Marapanim frustrou Anita. A frustração também foi sentimento presente nas ocupações do segundo semestre, já que o que se tornara a principal pauta – a derrubada da PEC 241/55 – fora derrotada. A aprovação em 1º turno pelo Senado, em 29 de novembro de 2016, acelerou o processo de desocupação nos lugares onde a ação ainda se mantinha.
Já nos relatos de Marielle e Gabriel estão mais presentes sentimentos positivos. Para Marielle, a ocupação garantiu a retomada da reforma da escola, assim como valorizou jovens daquele bairro. Gabriel relata que, em Abaetetuba, ao desocupar o instituto, as e os ocupas ocuparam brevemente a Câmara de Vereadores, junto a outras organizações da cidade, e garantiram a reprovação da duplicação do salário da vereança local.
Como temos constatado ao longo de nossa pesquisa, nas ocupações em outros estados também estiveram presentes, como legado, esses efeitos ambíguos: de um lado, o sentimento de frustração e relativa desmobilização; de outro, uma esperança latente, depositada tanto em pequenas conquistas e novas mobilizações locais, quanto na prontidão em reassumir a presença em novas lutas sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse artigo tinha como objetivo uma interpretação da história das ocupações por estudantes secundaristas no Pará, em 2016. Temos, em primeiro lugar, que o Pará não foi cópia, imitação ou mero reflexo de ocupações de outros locais do país supostamente mais centrais do ponto de vista econômico e político. As ocupações no Pará tanto repetiram tendências e pautas do movimento maior, quanto deram suas próprias contribuições para a dinâmica das ações coletivas.
Em sua dinâmica, as ocupações no Pará tiveram um importante diferencial: três ocupações organizadas pela UBES e UJS, com pautas locais bastante significativas, mas ocorrendo de forma isolada, em maio e junho de 2016. Elas não deram origem a uma onda de ocupações, mas foram importante exercício de experimentação, tanto por estudantes como pelas organizações. Até o momento, encontramos fenômeno semelhante apenas em Minas Gerais, em sua capital, e no Paraná, mas acreditamos que outros exemplos podem vir a ser conhecidos por nossa pesquisa.
Já em outubro e novembro de 2016, as ocupações no Pará adotaram a pauta nacional, nesse momento em que o movimento das ocupações atingiu quase todas as unidades da federação. Às pautas mais gerais, foram acrescidas questões locais e específicas, fortemente ligadas à infraestrutura dos prédios escolares, evoluindo à crítica de severos problemas de gestão.
Nas formas de ação e organização, também no Pará observamos diversas combinações entre tendências autonomistas– como a importância das assembleias, da horizontalidade e das comissões – e a orientação política de organizações formais (entidades estudantis e juventudes partidárias), ou ao menos o apoio dessas organizações, ao lado de sindicatos e outros sujeitos da sociedade civil e política. Como diferencial, as ocupações no Pará em maio e junho foram orientadas diretamente pela UBES e UJS, se aproximando de algumas experiências registradas no RS. Já as ocupações no Pará em outubro e novembro tiveram como marca uma convivência relativamente amistosa entre as duas tendências organizativas, com as organizações atuando mais como apoio do que como direção do movimento.
Quanto às práticas formativas, no Pará elas também deixaram fortes impressões e aprendizados. Essas práticas ressignificaram a cultura escolar e reconheceram o valor de elementos da cultura juvenil – como o hip hop e o feminismo secundarista – e das culturas militantes das organizações apoiadoras. Esses novos conteúdos estiveram presentes na forma de oficinas, aulões e orientações jurídicas.
As narrativas relativas às tensões, ameaças, violências e traumas são semelhantes às de outros estados. Ocupas tiveram como algozes, no Pará, parte da gestão, do corpo docente e do corpo discente, com tentativas de invasão policial e ameaças, assim como pedras atiradas e portão de entrada forçado. Por outro lado, no Pará, quase todas as unidades escolares ocupadas tinham grande significado social e político para as comunidades locais, e suas ocupações, por meio de pautas específicas e locais, conseguiram ganhar o apoio da maioria da população.
Apesar da experimentação estimulada pela juventude partidária em maio e junho, a entrada do Pará na onda nacional de ocupações, em outubro, foi fruto sobretudo da iniciativa de “pimentinhas” de uma escola estadual de EB na periferia de Belém: estudantes independentes que, logo, receberam o apoio de diversas organizações e sujeitos, tanto quanto foram capazes de, agora sim, criar um efeito de contágio, inspirando outras ocupações em unidades de EB e ES no estado, combinando questões específicas do Pará com questões nacionais, representadas pela luta contra os retrocessos nos direitos educacionais e sociais.
As categorias de experiência de Thompson e a de sujeito histórico de Rancière estiveram presentes, ao longo desta rememoração histórica, como fundamentação e orientação de nossa interpretação. Cabe aqui, ao final, entretanto, explicitar como essas categorias têm contribuído com o entendimento deste recente acontecimento histórico em nosso país.
Os relatos das e dos ocupas iluminam os sentidos das lutas sociais travadas em um passado muito recente, lutas que são importantes para além da vitória ou derrota em relação às suas pautas oficiais, pois revelam os esforços de grupos populares em seu “fazer-se” histórico como sujeitos políticos. Nos levam, ainda, a reconhecer os saberes dos grupos populares, no caso, de adolescentes estudantes do EM, que estabelecem relações próprias e criativas com a cultura escolar e as próprias culturas juvenis que circulam tanto nas mídias quanto nas ruas. Tais adolescentes populares vivem de formas específicas, de acordo com seu grupo etário e classe social, as relações com o tempo e o espaço social, as quais conformaram no movimento das ocupações experiências “modificadas” impactantes, capazes de alimentar uma luta social de grande radicalidade e abrangência entre 2015 e 2016.
As e os ocupas, até então estudantes de escolas públicas de EM, constituem uma cultura política rebelde, largamente adolescente, feminina e popular, que deu fundamento e força às ocupações estudantis. Isso foi possível menos por uma espécie de continuidade entre as rotinas da escola, das ruas e das praças, mas, antes, por uma interrupção no modus operandi educacional e um desafio à organização escolar e política constituída. Trata-se algo similar ao que Rancière observara com a cultura proletária na França do século XIX, pois estamos agora diante de uma reinterpretação popular e adolescente – no diálogo e até mesmo na tensão com militantes jovens e de idade adulta que vêm apoiar as ocupações – das experiências “vividas” escolares e políticas. Elas são acionadas, no protesto estudantil, como experiências “modificadas”. Essas, aparentemente esgotadas com o fim das ocupações, guardam sempre a potencialidade de emergirem e alimentarem novos movimentos sociais.
Resumo
Main Text
INTRODUÇÃO
EXPERIÊNCIA E HISTÓRIA
O MOVIMENTO DAS OCUPAÇÕES NO PARÁ
A EXPERIÊNCIA DE OCUPAR NO PARÁ
PRÁTICAS POLÍTICAS E FORMATIVAS DAS OCUPAÇÕES NO PARÁ
CONSIDERAÇÕES FINAIS