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Conflitos Belicosos e seus Impactos sobre as Expectativas
de Desenvolvimento Humano nos RDHS/Pnud/Onu:
Uma Leitura a partir de Norbert Elias*1
Maria José de Rezende**2
Resumo: Buscar-se-á o significado social e político dos diagnósticos, postos nos Relatórios Globais do Desenvolvimento Humano (RDHs), acerca da impossibilidade de alcançar melhorias (na renda, escolaridade, saúde, moradia adequada, nutrição e participação política) em favor das pes-soas mais pobres, sem que sejam desarmados, mais e mais, os conflitos violentos oriundos tanto dos vários tipos de guerras quanto das crises sociais e ambientais. Ao longo de quase três décadas, os formulado-res e encampadores desses documentos têm feito prescrições sobre a necessidade de os Estados nacionais e os organismos internacionais se empenharem em combater o acirramento dos conflitos bélicos, os quais possuem, nas suas bases, motivos diversos tais como: crises so-ciais, políticas e institucionais, crises ambientais e disputas bélicas, territoriais, étnico-raciais e religiosas.
Palavras-chave: Guerras. Conflitos. Desenvolvimento humano. Violência.
* Uma parte deste artigo foi apresentada oralmente e registrada nas memórias do Sim-pósio Internacional de Processos Civilizadores: Norbert Elias ocorrido na Universidade Estadual de Londrina entre os dias 16 e 19 de outubro de 2018.** Doutora em Sociologia pela USP. Professora de Sociologia na UEL.E-mail: mjderezende@gmail.com
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CONFLITOS BELICOSOS E SEUS IMPACTOS SOBRE AS EXPECTATIVAS DE
DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONU
Warlike Conflicts And Their Impacts On Human
Development Expectations In The Hdrs/Undp/Un: A
Reading From Norbert Elias
AbstractIt will be sought the social and political significance of the diagnoses set out in the Global Human Development Reports (GHDRs) about the impossibility of achieving improvements (in terms of income, school-ing, health, adequate housing, nutrition and political participation), in favor of the poorest people, without having violent conflicts, originat-ing from both the different types wars and social and environmental crises, being increasingly disarmed. For almost three decades, formu-lators and proponents of these documents have made prescriptions on whether national states and international organizations should strive to combat war-related conflicts, which have in their bases diverse mo-tives, such as: social, political and institutional crises, environmental crises and warlike, territorial, ethnic-racial and religious disputes.
Keywords: Wars. Conflicts. Human development. Violence.
Conflictos Bélicos Y Su Impacto En Las Expectativas
De Desarrollo Humano En Los Hdr/Pnud/Onu:
Una Lectura De Norbert Elias
ResumenSe buscará la importancia social y política de los diagnósticos, publi-cados en los Informes mundiales de desarrollo humano (HDR), sobre la imposibilidad de lograr mejoras (en ingresos, escolaridad, salud, vivienda adecuada, nutrición y participación política), a favor de las personas más pobres, sin estar desarmados, cada vez más, los violen-tos conflictos que surgen de ambos tipos de guerras y crisis sociales y ambientales. Durante casi tres décadas, los formuladores de estos documentos han prescrito la necesidad de que los estados nacionales y las organizaciones internacionales se esfuercen por combatir la in-tensificación de los conflictos bélicos, que tienen varias razones, tales
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como: crisis sociales, políticas e institucionales, crisis ambientales y disputas militares, territoriales, étnico-raciales y religiosas.
Palabras clave: Guerras. Conflictos. Desarrollo humano. Violencia.
IntroduçãoEm “A condição humana”, Norbert Elias (1991) expõe, por ocasião do 40º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, os muitos motivos e razões que sustentam as tradições bélicas e militares, bem como os jogos de poder que tornam provável a ocorrência de novas tragédias. Essas, porém, podem ser cada vez mais violentas em razão das lutas armamentistas que nunca deixaram de existir. Ele alertava que a tarefa de combater a belicosidade, pelo bem da humanidade, era uma das tarefas mais difíceis e inglórias de que se tinha conhecimento ao longo da história. A grande dificuldade, segundo Elias (1991), está no fato de que, para dissuadir [as nações da] belicosidade, tem-se de lidar com ele-mentos racionais (cálculos sobre o quanto se poderia economizar, desistindo-se de guerras e armamentos e aplicando-se o montante economizado no bem-estar social da população mais pobre (cálcu-los, nesse caso, dos benefícios, para todos, econômicos e contábeis da paz social, entre outros) e irracionais (medos, temores infun-dados, desejos de provar condições de superioridade de grupos e povos, discriminações e preconceitos contra segmentos sociais e étnico-raciais diversos, sentimentos de ódios e vinganças, etc.). Por esse caminho é possível entender os muitos percalços que se colocam às prescrições dos “Relatórios do Desenvolvimento Humano” (RDHs) para a diminuição das despesas militares1, das
1 “As despesas militares [são calculadas] em percentagem do PIB” (PNUD/RDH, 2013, p. 41). Deve-se observar ainda que “os dados relativos às despesas militares referem--se, exclusivamente, às despesas estatais, deixando de fora as despesas dos atores não--estatais” (PNUD/RDH, 2013, p. 132).
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CONFLITOS BELICOSOS E SEUS IMPACTOS SOBRE AS EXPECTATIVAS DE
DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUguerras e dos conflitos bélicos generalizados, como condição es-sencial para a expansão do desenvolvimento humano (PNUD/RDH, 2014, 2010, 2005, 2002, 1997, 1991). Não serão analisados, neste texto, os debates sobre se são efi-cientes ou não as prescrições acerca das políticas de desenvolvi-mento em geral ou do desenvolvimento humano em específico. Será discutido como os referidos documentos constroem uma narrativa acerca do modo como a guerra e os conflitos bélicos têm obstado, sempre mais, em várias partes do mundo, a possi-bilidade de construção de políticas que implementem o desen-volvimento humano como um direito de todos os povos, incluin-do-se os que vivem em situação de pobreza extrema. Os Relatórios do Desenvolvimento Humano (RDHs), publicados, anualmente, desde 1990 pelo Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento (PNUD), chamam atenção para a necessi-dade de dissuadir os governantes, os segmentos que detêm o poder econômico e político e todos os demais grupos defenso-res da belicosidade de seguirem o caminho da guerra e da luta armamentista. Fazem isso com muitos argumentos, a maioria deles de caráter racional, baseados no que se ganha, com a dimi-nuição das guerras e dos conflitos bélicos, e no que se perde com a ampliação da corrida armamentista e das despesas militares2 no mundo3. Esses relatórios são documentos que objetivam o diálogo com o poder público em suas diversas instâncias (locais e nacionais), com lideranças políticas, organismos internacionais, organiza-
2 O que são essas despesas? “Gastos militares. Los gastos efectuados, ya sea por el Mi-nisterio de Defensa u otras dependencias, en el mantenimiento de las fuerzas militares, incluyendo adquisición de provisiones y equipos militares, construcción, reclutamiento, entrenamiento y programas de asistencia militar” (PNUD/RDH, 1991, p. 262).3 O Instituto Sueco chamado SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute) tem produzido muitos dados sobre as despesas militares no mundo atual. Ver: Sipri.Yearbook, 2015.
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ções diversas da sociedade civil (movimentos sociais, sindicatos, associações de classes e outras), para prescrever um conjunto de ações indicadoras de que estaria havendo esforço coletivo em prol do desenvolvimento humano. O que querem os encampa-dores e divulgadores (equipes do PNUD) desses documentos? Diagnosticar se os países membros das Nações Unidas cum-prem, ou não, os acordos firmados para tornar efetivo o direi-to de todos os povos e segmentos sociais ao desenvolvimento, conforme pactos estabelecidos, entre outros, em: (Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, 1986; Declaração do Milê-nio, 2000; Declaração ODS, 2015). O PNUD encomenda, todos os anos, esses documentos a equi-pes de especialistas nas temáticas tratadas em cada ano. Os temas orientadores dos diagnósticos e das prescrições (parti-cipação política, educação, liberdade cultural, problemas am-bientais, crise da água, migrações, trabalho decente, pobre-za multidimensional, desigualdades, conflitos, democracia, direitos humanos, globalização dos mercados, entre outros) são diversos e são propostos, pelo que tudo indica, em razão de muitos embates políticos no interior desse organismo in-ternacional. O objeto de estudo deste artigo são as correlações que fazem, na forma de diagnósticos e prescrições, os elaboradores dos Rela-tórios do Desenvolvimento Humano entre a difusão das guerras e dos generalizados conflitos armados e as indicações de que há dificuldades de se desenvolverem, em várias partes do mundo, políticas garantidoras da expansão do desenvolvimento e dos di-reitos humanos para os segmentos mais pobres, que são os mais atingidos por conflitos violentos e belicosos. Em razão do objeto deste estudo, esclarece-se que os referidos relatórios são elaborados por equipes do PNUD, consultores, técnicos e colaboradores especialistas em algumas áreas tra-tadas em cada documento. O último relatório, o de 2019 por
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DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUexemplo, teve os seguintes “colaboradores externos do Capítu-lo 3 (por World Inequality Lab): Lucas Chancel, Denis Cogneau, Amory Gethin, Alix Myczkowski y Thomas Piketty” (PNUD/RDH, 2019, p. II). Todos eles são cientistas reconhecidos nos estudos e pesquisas sobre desigualdades.
Os referidos documentos são produzidos por diversas equi-pes de técnicos e estudiosos sobre os temas tratados a cada ano. [Eles estão, muitas vezes] amparados pela Abordagem do Desenvolvimento Humano (ADH) e centrados na tese de que a pobreza extrema deve ser combatida através da gera-ção de capacidades econômicas, sociais e políticas (Rezen-de, 2017, p. 221).
Levantam-se, assim, os seguintes problemas sociológicos: De que argumentos os produtores dos RDHs lançam mão para ates-tar que há uma forte correlação entre a ampliação da violência bélica e a diminuição das possibilidades de efetivar o desenvol-vimento humano? Sob que estratégias políticas eles constroem os diagnósticos assentados nessas correlações? Por que, ao cha-mar atenção para o fato de que as guerras e os conflitos bélicos anulam quaisquer possibilidades de desenvolvimento humano, os elaboradores dos relatórios creem estar formulando uma narrativa pacificadora que abriria caminho para as políticas de melhoria da vida das pessoas mais pobres?No que diz respeito aos procedimentos de pesquisa, “acredita--se que a compreensão histórico-hermenêutica possibilita deci-frar o que as propostas, as análises, as sugestões, as leituras do mundo [contidas nos respectivos documentos] revelam e o que dissimulam” (Rezende, 2017, p. 222-3). Não é possível analisar as muitas prescrições e os diversos diagnósticos constantes nes-ses documentos. “Ganham primazia, nesta investigação, as con-dições sociais e históricas nas quais os textos são produzidos, lidos, divulgados, aceitos, recusados, criticados e interpretados” (Rezende, 2017, p. 222-3).
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Deve-se esclarecer ainda, em relação aos procedimentos empre-gados nesta pesquisa documental, que a análise das narrativas não irá buscar somente o que está, supostamente, oculto nos textos referentes às construções dos diagnósticos acerca dos en-traves às políticas de desenvolvimento humano e às prescrições (Rezende, 2015) que visam dissuadir governantes e lideranças políticas de ações voltadas para guerras e conflitos bélicos. Os elaboradores e encampadores desses documentos, ao denun-ciarem as tragédias provocadas pelas guerras e conflitos belico-sos, estão compondo um feixe de estratégias políticas que tem de ser analisadas não só em decorrência de uma investigação interna das narrativas4 (ou seja, em torno do que é dito e do modo como é dito, numa abordagem da sintaxe e da semântica) do texto (Bauer, 2002), mas também em decorrência, principalmente, das razões externas formadas pelos jogos configuracionais (entre Estados, governantes, organizações da sociedade civil, organismos inter-nacionais, entre outros), jogos de poder (Elias, 1994) e as condi-ções sociais, culturais, políticas e econômicas (Williams, 2015).
Os conflitos belicosos e a violência: processos que obstam
a operacionalização do desenvolvimento humano As guerras e os conflitos bélicos, de modo geral, constituem-se, segundo formuladores dos RDHs, obstáculos expressivos para as propostas de elevação dos índices do desenvolvimento huma-
no5, que condicionam a expansão das melhorias sociais à dimi-nuição significativa das guerras, das perseguições, das violên-cias e das violações de direitos que atingem populações diversas ao redor do planeta.
4 Sobre os focos analíticos internalistas e externalistas, ver: Heloísa Pontes, 1996.5 “Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) Um índice composto que mede as realizações em três dimensões básicas do desenvolvimento humano – uma vida longa e saudável, o conhecimento e um padrão de vida digno” (PNUD/RDH, 2010, p. 232).
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CONFLITOS BELICOSOS E SEUS IMPACTOS SOBRE AS EXPECTATIVAS DE
DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUEnsina Norbert Elias (1991) que as tentativas de diminuir, ainda que pouco, as hostilidades, os ódios, os sentimentos de superio-ridade, a corrida armamentista, as guerras e as violências têm sido, ao longo da história, um dos maiores desafios. Isso pode ser verificado por meio de dados empíricos trazidos pelos pró-prios relatórios. “Em 2009, as despesas militares globais aproxi-maram-se dos 3% do PIB mundial, enquanto alguns países gas-taram muito mais, incluindo os Estados Unidos (4,7% do PIB) e a Federação Russa (4,3% do PIB)” (PNUD/RDH, 2011, p. 97)6. O relatório de 2013 reitera essa informação com os seguintes números:
Em todo o mundo, as despesas militares ultrapassaram 1,4 bilhão de dólares em 2010, mais do que [a soma do PIB] dos 50 países mais pobres do mundo. Mesmo nas situações em que a consolidação orçamentária é necessária, não é forço-so que [ela] exija cortes nos serviços sociais (PNUD/RDH, 2013, p. 22).
Assinale-se, então, que não há novidade alguma no fato de o pla-neta estar, ainda no século XXI, acometido por guerras e violên-cias de grandes, médias e pequenas extensões. O que se observa é que, após a Segunda Guerra Mundial, surgem algumas organiza-ções e vozes que se esforçam, com muito empenho, por dissuadir tais formas de conflitos. E, no caso dos RDHs, ganha relevo um conjunto de diagnósticos que associa as dificuldades de desenvol-vimento humano, entre outros motivos, também ao aumento das guerras, das despesas militares, dos aparatos bélicos, da crimina-lidade, das disputas territoriais, das crises sociais e ambientais.
Segundo o Stockholm International Peace Research Insti-tute – SIPRI, organização que realiza pesquisas científicas
6 Dados sobre os gastos militares por continentes e países podem ser encontrados nas publicações feitas pelo Stockholm International Peace Research Institute – SIPRI. Insti-tuto especialista no mapeamento e divulgação desses números.
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em questões sobre conflitos com sede em Estocolmo, em seu relatório anual aponta que o gasto militar mundial está estimado em US$ 1.739 bilhões em 2017, o nível mais alto desde o final da guerra fria, equivalente a 2,2% do produto interno bruto (PIB) global ou US$ 230 por pessoa. (...) O Bra-sil, apesar da crise econômica e política, teve uma expansão de investimentos na área militar acima da média mundial, aponta o relatório do SIPRI, registrando um aumento nos gastos militares acima da média mundial, saltando de 13º em 2016 para 11º em 2017 no ranking dos países que mais investem no setor (PIRES, 2019, p. 41).Os elaboradores e encampadores desses documentos destacam que controlar a violência generalizada pode levar à expansão do desenvolvimento humano, entendido a partir da perspectiva de Amartya Sen (2006, 2008, 2010, 2011) e de Mahbub Ul Haq (1963, 1978, 1995), como a inserção dos indivíduos em condi-ções adequadas de alimentação, de moradia, de saúde, de esco-larização7, de participação política e de respeito aos seus direi-tos humanos e fundamentais.
A teoria de Sen de desenvolvimento como expansão das capacidades, é um ponto inicial para ADH [Abordagem do Desenvolvimento Humano]: a ideia de que o objetivo do desenvolvimento é melhorar as vidas humanas e que isso significa expandir as possibilidades de ser e fazer do indiví-duo (funcionamentos e capacidades de funcionar, tais como ser saudável, e bem nutrido, ter conhecimento, participar da vida da comunidade) (Fukuda-Parr, 2002, p. 3).
Da dissuasão das violências e das guerras devem participar os Estados nacionais, os organismos internacionais e as organiza-ções da sociedade civil. Ganham relevo, nos RDHs, aqueles pri-meiros como configurações que deveriam estar voltadas para o
7 “Índice de desenvolvimento humano – híbrido Um índice que usa a mesma forma fun-cional do IDH, mas que usa a alfabetização e as matrículas brutas para calcular o índice de educação e o PIB per capita para o indicador de rendimento” (PNUD/RDH 2010, p. 232).
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DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUcombate à belicosidade e a todas as formas de violência. Os Esta-dos, as instituições de maneira geral, os organismos internacio-nais e as organizações da sociedade civil formam configurações que podem ser simples ou complexas em vários níveis. Confor-me ressalta Norbert Elias (2006), as relações de interdependên-cia estão na base dessas configurações vistas como incumbidas de combater os processos que levam aos conflitos bélicos. Sem desconsiderar os muitos problemas que obstam o desen-volvimento humano, os relacionados à pobreza extrema, às guerras, aos conflitos armados e às violências belicosas são os que mais ganham, nos RDHs de 2014, 2010, 2005, 2002, 1997 e 1991, um “forte sentido de urgência. (...), [ou seja], é preciso agir já (...). Propõem-se, assim, várias formas de atuação sobre tais problemas: é preciso agir já e aqui e é possível fazê-lo” (Carva-lho, 2000, p. 151). Tem obstado a efetivação do desenvolvimento como um direito humano de países e povos diversos, não somente as guerras, os conflitos e as violências bélicos, mas também as desigualdades e a pobreza extrema. Esclarece-se, no entanto, que este artigo estará mais voltado para refletir sobre os argumentos constan-tes nos RDHs sobre o modo como os eventos belicosos têm im-pedido a expansão do direito ao desenvolvimento, já que criam situações bloqueadoras de políticas voltadas para as populações mais pobres.É evidente que “as guerras e os conflitos civis podem ter impac-tos perversos e duradouros sobre o desenvolvimento humano” (PNUD/RDH, 2014, p. 15). Tais impactos são de grande monta e atingem as pessoas em todas as esferas da vida. “Os conflitos armados [são] obstáculo[s] ao desenvolvimento humano, espe-cialmente para os países com um baixo IDH. Em 2012, registra-ram-se, [em âmbito] a nível mundial, 37.941 mortes conflitos decorrentes de 41 conflitos” (RDH, 2014, p. 52). Consta no RDH de 2014:
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Os conflitos prejudicam o funcionamento de serviços pú-blicos essenciais, como os cuidados de saúde básicos e a educação, causando prejuízos permanentes às pessoas ao longo de toda a vida, nomeadamente problemas de saúde duradouros para gerações inteiras de crianças em zonas de conflito, frequentemente impedidas de concluir o ensino primário. Além disso, o conflito armado pode originar enor-mes distúrbios psicológicos (RDH, 2014, p. 52).
Verificar-se-á se as dificuldades aventadas pelos formuladores dos relatórios do PNUD estão relacionadas aos aspectos técnicos e aos modos de operacionalizar as políticas de desenvolvimento, uma vez que as guerras e os conflitos bélicos desfazem, muitas vezes, os pactos de cooperação, os acordos de parceria e de fi-nanciamento. Buscar-se-á compreender, também, se as posições constantes nos relatórios estão voltadas, mais enfaticamente, para ressaltar que as guerras e os conflitos bélicos bloqueiam o desenvolvimento humano porque agravam ainda mais aqueles cenários (países, regiões, continentes) em que o desenvolvimen-to, como direito humano, é dificílimo. Já, no segundo relatório, ou seja, o de 1991 – uma vez que essa série de documentos anu-ais teve sua primeira edição em 1990 – encontram-se os seguin-tes dados quantitativos:
Cerca de US$50.000 millones anuales un 2% del PNB de los países en desarrollo podrían asignarse a propósitos más productivos. La mayor parte de esta suma podría obtener-se de la congelación de los gastos militares, que absorben el 5.5% del PNB del mundo en desarrollo. En algunos de los pa-íses más pobres, se gasta el doble en asuntos militares que en salud y educación, como es el caso de Angola, Chad, Pakistán, Perú, Siria, Uganda y Zaire (PNUD/RDH, 1991, p. 24).
São muitos os pesquisadores (Ferguson, 2012; Reinert, 2016; Viola, 2000) que vêm atestando, em suas pesquisas, que as po-líticas de desenvolvimento têm demonstrado ser ora uma “ma-
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DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUquinaria antipolítica”8, que não faz outra coisa senão despoliti-zar os processos sustentadores das desigualdades e da pobreza (Ferguson, 2012), ora um conjunto de medidas paliativas que beneficia sempre os países e segmentos mais ricos (Reinert, 2016). À luz desses estudos ficaria evidente que as políticas de operacionalização e efetivação do desenvolvimento humano fra-cassam sempre na constituição de melhorias para as populações mais pobres. São fracassos sucessivos e não ligados somente a situações de guerras e/ou a conflitos bélicos.O desenvolvimento humano, consta nos relatórios analisados, é algo dificílimo de alcançar em situações de conflitos bélicos por-que fica inviável atingir as metas mínimas de melhoria de renda, escolarização e saúde (nutrição, vacinas, medicamentos, sanea-mento) naquelas situações em que os conflitos são constantes e insolúveis. Para os elaboradores do RDH de 2014,
Os conflitos e as guerras infligem choques na sociedade e na segurança humana. Os surtos de violência local, os ataques de grupos terroristas, as batalhas entre gangues de rua e os protestos que se transformam em violência ameaçam forte-mente as vidas e os meios de subsistência. A violência crimi-nosa e doméstica aumenta a insegurança pessoal (PNUD/RDH, 2014, p. 21).
O pano de fundo das proposições desenvolvidas pelos formula-dores dos relatórios é a Declaração sobre o Direito ao Desen-volvimento, adotada pela resolução 41/128 de 1986. Esse docu-mento está, a partir de 1990, na base da formulação dos RDHs e da Declaração do Milênio, de 2000, ambas adotadas em Assem-bleia Geral das Nações Unidas. São acordos estabelecidos entre
8 Não há como entrar a fundo nessa discussão no âmbito deste artigo; todavia, há cien-tistas que vão refutar essas perspectivas negativas quanto aos intentos das políticas de desenvolvimento. Sobre isso, ver: Moares, 2016.
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os países membros da ONU, os quais visam ajustar condutas e procedimentos governamentais, administrativos e políticos para que os mais pobres – entendam-se aqui pessoas, povos e países – fossem contemplados em políticas de desenvolvimento econômico. Não se deve pressupor que a existência dessa Declaração so-bre o Direito ao Desenvolvimento tenha apaziguado os diver-sos países que, desde então, passaram a reconhecer tal direito para todas as nações e povos do mundo. Não tem sido assim. Os pesquisadores nigerianos E. S. Nwauche e J. C. Nwobike (2005) mostram o embate político que tal declaração provocou, no inte-rior das Nações Unidas, entre os países do Hemisfério Norte e os do Sul9. Pode-se afirmar, por meio de uma análise ancorada em suas reflexões, que esse embate político evidencia que há impos-sibilidade de cumprir não só o que prescreve esse documento de 1986, mas também o que sugerem as Nações Unidas nos docu-mentos: Nós, os povos (2000), Declaração do Milênio (2000) e na Agenda 2030 para os ODS (2015). Assinale-se que o objetivo número 8 da Declaração do Milênio indica que se estabeleça, nos próximos anos,
(...) uma parceria mundial para o desenvolvimento (metas: desenvolver um sistema comercial e financeiro aberto com regras e mecanismos que garantam a previsibilidade e a não-discriminação das nações pobres, atender as necessi-dades especiais dos países menos desenvolvidos para que exportem seus produtos sem sofrer perdas tarifárias, aten-der as necessidades especiais dos países sem acesso ao mar, tornar as dívidas dos países em desenvolvimento sustentá-veis a longo prazo, etc.) (UMA VISÃO a partir da América Latina e do Caribe apud Folha Informativa ODM, PNUD/CEPAL, 2005).
9 “(...) a controvérsia em torno do direito ao desenvolvimento provocou, e continua a provocar, divisões entre os governos do Norte e do Sul” (Nwauche e Nwobike, 2005, p. 2).
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CONFLITOS BELICOSOS E SEUS IMPACTOS SOBRE AS EXPECTATIVAS DE
DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUComo uma configuração complexa em múltiplos níveis, confor-me ensina Norbert Elias (2006a; 2006b; 2006c), e como órgão prescritivo, as Nações Unidas podem, evidentemente, ajudar a desencadear processos cada vez mais complexos de luta política. A indicação da necessidade de que todos os povos e países, in-clusive os mais pobres, tenham efetivamente o direito ao desen-volvimento aponta para o irrompimento de uma longa marcha de disputas diversas, entre países que compõem o sistema das Nações Unidas, acerca das desigualdades econômicas e políticas e dos desequilíbrios de poder entre nações e grupos sociais. Como o direito ao desenvolvimento vai se materializando em pactos, acordos, tratados, convenções e protocolos diversos, vão ficando sempre mais evidentes os muitos conflitos de interesses que obstam, até mesmo, a dissuasão das muitas formas de guer-ras e de violências bélicas. E. S. Nwauche e J. C. Nwobike (2005) insistem que há, muitas vezes, descompassos entre os pactos de desenvolvimento firmados entre países e organismos interna-cionais e as abordagens do desenvolvimento como um direito humano. Analisando as posições de Arjun Sengupta, técnico gra-duado das Nações Unidas para a questão do desenvolvimento como direito humano, eles fazem a seguinte consideração:
As metas de desenvolvimento humano e social devem ser vis-tas como direitos que podem ser legitimamente reivindicados pelos indivíduos como detentores de direitos diante dos cor-respondentes detentores de deveres, tais como o Estado e a comunidade internacional (Nwauche e Nwobike, 2005, p .2).Que problema tem vindo à tona quando são analisadas as pres-crições dos organismos internacionais, que estão ancoradas na busca da observância dos direitos humanos fundamentais?
Essa posição contrasta nitidamente com as abordagens ba-seadas em direito adotadas pela maioria das agências de de-senvolvimento, pelas instituições financeiras internacionais
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e pelos doadores bilaterais. Estes defendem o que pode ser definido como uma visão instrumental dos direitos huma-nos (Nwauche e Nwobike, 2005, p. 2).
Considerações como essas podem tornar cada vez mais comple-xos os diagnósticos e as prescrições presentes nos RDHs em re-lação a todas as áreas abrangidas (renda, escolarização, moradia precária, saneamento, saúde, participação política) no atinente ao combate à pobreza extrema. A perspectiva dos direitos huma-nos – considerada como direcionamento para alcançar melho-rias em prol daqueles indivíduos submetidos, cotidianamente, a toda forma de violência e de miserabilidade – tem sido conce-bida, por alguns estudiosos (Nwauche e Nwobike, 2005), como prevalentemente instrumental. Assim, dentro dessa lógica, os direitos humanos ajudariam na consecução dos objetivos dos RDHs; eles são, portanto, princí-pios orientadores, mas suas prescrições encontrariam dificul-dades para ir muito além disso. Existem grandes obstáculos, no entender dos cientistas nigerianos, para a elaboração de pro-postas que promovam, de fato, tais direitos, de modo contínuo e duradouro. Veja-se o que dizem os cientistas sociais nigerianos sobre isso:
A redução da pobreza é entendida como o objetivo principal do desenvolvimento, e os direitos humanos são percebidos como meios para atingir tais objetivos ou como princípios a serem seguidos, sem constituírem, por si mesmos, o ob-jetivo do desenvolvimento. Dito de maneira simplificada, o objetivo da assistência ao desenvolvimento é erradicar a po-breza, e não respeitar e promover direitos humanos (Nwau-che e Nwobike, 2005, p. 2). Por que tal discussão – sobre o fato de o direito ao desenvolvi-mento poder assumir, em algumas situações e circunstâncias, uma feição instrumental e não se constituir o fim último do desen-volvimento – é relevante para esta análise sobre a maneira como
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CONFLITOS BELICOSOS E SEUS IMPACTOS SOBRE AS EXPECTATIVAS DE
DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUas guerras e os conflitos bélicos são vistos, nos RDHs, isto é, como grandes empecilhos para as melhorias na vida dos mais pobres? Em primeiro lugar, deve-se dizer que tais situações de violência são tidas como capazes de minar as estruturas sociais, as inte-rações comunitárias, as possibilidades de subsistência material e a própria vida que, de um modo ou de outro, é ceifada. Nesses casos, ainda que instrumental, a perspectiva dos direitos huma-nos inserida nas prescrições de desenvolvimento humano tem um valor pragmático relevante.
Em alguns conflitos, os civis são visados e mutilados como estratégia deliberada para desmoralizar as comunidades e destruir as suas estruturas sociais. As violações são muitas vezes expressão de poder e brutalidade contra as comuni-dades (PNUD/RDH 2014, p. 21).
Ainda que não seja possível adentrar no debate sociológico so-bre as ações racionais referentes a fins e sobre aquelas relacio-nadas a valores que, em qualquer caso, dizem respeito a essa discussão, pode-se argumentar que as prescrições formadoras dos Relatórios do Desenvolvimento Humano enquadram-se nos dois tipos de ação racional (valores e fins). Os diagnósticos e as recomendações possuem um fim: erradicar a pobreza. Porém, somente os meios consentâneos com as políticas de observância dos direitos humanos podem ser tolerados e incentivados. Deriva daí a necessidade, assinalada pelos formuladores desses relatórios, de estabelecimento de estratégias, por parte do Esta-do, dos governantes, das lideranças políticas, das organizações da sociedade civil e dos organismos internacionais, que enqua-drem todas as ações e procedimentos no âmbito de uma pers-pectiva de direitos. Os cientistas sociais Nwauche e Nwobike (2005) estão alertan-do sobre a insuficiência e a fragilidade dessas sugestões, que po-
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dem fazer dos direitos humanos somente um instrumento palia-tivo e passageiro, no interior das práticas sociais. Nesse caso, o desenvolvimento poderia alcançar algumas melhorias, mas não ser, de fato, promotor dos direitos humanos. No caso da diminuição das guerras e dos conflitos bélicos como condição essencial para alcançar o direito ao desenvolvimento, como um direito humano, tem-se uma narrativa acerca destes últimos, ora como um conjunto de ações de caráter instrumen-tal, ora como um conjunto de ações de caráter substantivo. O ob-jetivo primeiro do desenvolvimento é erradicar a pobreza, mas é também dar acesso à escolarização, à moradia, ao saneamento e aos serviços de saúde. Isso, porque tais serviços são direitos de todos, incluindo-se aí os indivíduos mais pobres, que quase sempre têm tais direitos, persistentemente, negados. Há um caráter substantivo nesses procedimentos, já que, em sendo melhoradas a renda, a escolari-dade, a saúde, a nutrição e as condições de moradia das pessoas, essas podem ser capacitadas (objetiva e subjetivamente) a rea-lizar uma leitura de mundo que as ajude a situar suas demandas no campo da ampliação dos direitos fundamentais e humanos. Todavia, as possibilidades de mudanças substantivas que de-correriam de um processo de ampliação dos direitos humanos e fundamentais, a partir das demandas dos próprios indivíduos mais pobres, aparecem atravessadas por muitos fatores impe-ditivos como, por exemplo, governos nacionais irresponsáveis, instituições sociais frágeis, falta de coesão social, sociedades divididas, de modo belicoso, por guerras civis (grupos raciais, étnicos, religiosos, entre outros), violências e criminalidades.
Cabe aos governos nacionais a principal responsabilidade na ajuda aos mais vulneráveis, especialmente quando ou-tras instituições não conseguem fazê-lo, porém o desempe-nho dessa responsabilidade varia consideravelmente. (...)
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CONFLITOS BELICOSOS E SEUS IMPACTOS SOBRE AS EXPECTATIVAS DE
DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUEm sociedades divididas, as instituições sociais conseguem prestar um apoio substancial no seio de determinado gru-po, porém, não tanto de forma transversal aos diferentes grupos (PNUD/RDH, 2014, p. 25). Os elaboradores dos relatórios ressaltam que muitas vezes, em sociedades divididas por guerras civis e todo tipo de conflitos belicosos, as verbas de cooperação internacional, que deveriam ser aplicadas em melhorias sociais para os mais pobres, são dire-cionadas para gastos armamentistas e nunca para aquelas áreas que incrementariam políticas de desenvolvimento humano. Observe-se que a narrativa do relatório, acima mencionado, situa a discussão no campo de “ajudas aos mais vulneráveis”, o que sus-cita desconfianças acerca das políticas sugeridas, uma vez que há uma distância enorme entre a condição de ajuda e a de desenvol-vimento humano. É interessante destacar que essa ambiguidade entre ajuda internacional e desenvolvimento humano ocorre em vários momentos dos relatórios, os quais fazem que as suas pres-crições pareçam, muitas vezes, esvaziadas de substancialidade, verdadeiramente, modificadora da vida dos indivíduos. Na realidade, as ajudas internacionais (em caso de guerras, ca-tástrofes climáticas, conflitos bélicos) raramente são converti-das em políticas de desenvolvimento humano. Isso, os próprios formuladores dos relatórios têm demonstrado ao dizerem que muitas ações de cooperação internacional se converteram em um meio de expandir, em vários países, os gastos militares, que alimentam os conflitos bélicos. Veja-se o que está registrado no RDH de 1991:
(…) Si los donantes ejercieran presión para que se adopta-ra este tipo de reforma [nos gastos militares, por ejemplo], probablemente descubrirían a muchos aliados en los países en desarrollo y lograrían cambios muchos más grandes que los mejoramientos marginales con los cuales suelen conten-tarse (PNUD/RDH, 1991, p. 33).
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Os formuladores do relatório de 2014 – feito sob o impacto do con-junto de movimentos de protestos, no mundo árabe, conhecidos como Primavera Árabe – chamavam atenção para o fato de que tais “agitações civis” teriam emergido da percepção popular de que as políticas e os recursos (internos e externos) não estavam voltados para atender, minimamente, as pessoas mais empobrecidas. Num contexto em que suas vozes não eram ouvidas, nem con-templadas suas necessidades, explodiram os muitos descon-tentamentos que não seriam resolvidos por meio de confrontos belicosos e guerras civis, mas, sim, por meio de estratégias de governação, entendida como “uma maior responsabilização e capacidade de resposta por parte dos governos às preocupações dos seus cidadãos” (PNUD/RDH, 2014, p. 52). A governação é concebida como a geração de “margem de mano-bra política [capaz] de permitir [que] a agência humana” (PNUD/RDH, 2014, p. 52) produza “transformações profundas” (PNUD/RDH, 2014, p. 52), visando diminuir os conflitos oriundos tanto dos processos de geração e gestão das diversas formas de de-mandas quanto dos muitos interesses envolvidos na efetivação de todas e quaisquer mudanças sociais e políticas. Ao tratar do modo como os conflitos armados e as guerras des-troem as possibilidades de desenvolvimento humano, os pro-dutores do relatório de 2014 enfatizam os muitos motivos que estão na base de tais disputas bélicas. “Os [o deficit] déficits em termos de desenvolvimento, os ressentimentos não resolvidos (incluindo[-se] conflitos do passado) e os lucros obtidos com os recursos naturais são pontos em comum na maioria dos confli-tos armados” (PNUD/RDH, 2014, p. 52). O deficit no desenvolvimento social aparece, de modo geral, como impulsionador de guerras e disputas armadas. Nesse caso, a impressão que fica é a de que os formuladores dos relatórios querem fazer crer que o desenvolvimento é um antídoto contra
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DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUtais situações. Em meio a essas afirmações, vê-se a prevalência de uma posição muito em voga, em meados do século XX, a de que o desenvolvimento, sinônimo de progresso e modernização, seria capaz de resolver muitos problemas que acometiam os pa-íses do Hemisfério Sul. Em passagens como essas, os argumentos parecem acoplados ao que Celso Furtado denominou de “o mito do desenvolvimento econômico” (1974). Não há dúvida de que essa noção de desen-volvimento compõe os diagnósticos e prescrições feitos, desde a década de 1950, pelos organismos internacionais. Não obstante, não há dúvida que esse mito, Celso Furtado, ainda que não in-tencionalmente, em uma fase de sua atuação, ajudou a propagar. Em Dialética do desenvolvimento, ele dizia que o desenvolvi-mento é “um processo de mudança social pelo qual um número crescente de necessidades humanas – preexistentes ou criadas pela própria mudança – são satisfeitas através de uma diferen-ciação no sistema produtivo decorrente da introdução de inova-ções tecnológicas” (Furtado, 1964, p. 64). Alguns anos depois, já desvencilhado do mito, ele asseverava: “Utilizo a palavra trans-formação para significar desenvolvimento global, o que inclui mudanças ao nível das estruturas” (Furtado, 1977, p. 126).A caracterização do desenvolvimento, como desenvolvimen-to humano, faz parte do esforço de levar as pessoas, dirigentes políticos e governos a se desvencilharem de crenças infundadas que difundem ser o desenvolvimento tão somente sinônimo de progresso econômico. Esse último pode potencializar – e isso tem ocorrido com muita frequência em várias partes do mundo – a riqueza e a pobreza em escalas descomunais. Todavia parece, em alguns momentos, que o PNUD não consegue se desembaraçar, inteiramente, de uma perspectiva de desenvol-vimento que já estava presente na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) em meados de 1950.
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Ao afirmarem, no RDH de 2014, que a exploração dos recursos naturais, em busca de lucros, estava na base dos conflitos arma-dos que destruíam as possibilidades de expansão de políticas de desenvolvimento humano, os feitores e divulgadores dos RDHs tocam de leve em algo que teria de ser mais bem explorado. Ou seja, o modo como se processa a busca incessante por recursos naturais, destruindo-se regiões, países e comunidades inteiras. O modelo econômico, fundado na necessidade de recursos natu-rais esgotáveis, estaria, ele mesmo, na base de conflitos sangren-tos e belicosos, que impossibilitam a implementação de políticas de desenvolvimento humano nos países mais pobres. No entanto, os produtores do RDH de 2014 não vão muito lon-ge nessa discussão, fazem apenas menção a ela. Mergulhar um pouco mais fundo nessa questão exigiria o enfrentamento de questões sobre como, por exemplo, países com os maiores PIBs (Produto Interno Bruto) do mundo são partícipes, em várias partes do globo, em processos altamente fomentadores de guer-ras e conflitos armados que obstam, inteiramente, o desenvolvi-mento humano. Zygmunt Bauman (2008, p. 144) demonstrou, com dados de Maurice Druon (2004), em Medo líquido, como a guerra no Iraque, iniciada em 2003, levou não só “ao fracasso no fornecimento de serviços sociais básicos” essenciais, como também fez expandir o não-acesso ao trabalho, lançando, assim, inúmeros civis ao crescente processo de empobrecimento. Para muitas pessoas, não há sequer como esperar algum tipo de melhoria; milhares delas são expulsas de seus países por ga-nância daqueles que promovem conflitos e guerras por recursos naturais.
Os conflitos forçam igualmente as pessoas a fugir das suas casas e a abandonar os seus meios de subsistência. As mu-lheres e crianças representam 80 por cento dos refugiados e das pessoas deslocadas [em âmbito] mundial (PNUD/RDH, 2014, p. 52).
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DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUA situação é de calamidade tamanha que “entre 2012 e 2013 mais de um milhão de pessoas fugiram dos seus países de ori-gem devido a conflitos e a perseguição” (PNUD/RDH, 2014, p. 52). Devem-se observar ainda os seguintes dados: “Em 2013, 232 milhões de pessoas viviam fora de seu país natal (...). O nú-mero de pessoas deslocadas devido a conflitos tem aumentado nos últimos anos, tendo atingido o valor mais elevado em quase duas décadas” (PNUD/RDH, 2014, p. 116). Ao longo das exposições feitas nos relatórios, é perceptível que as guerras e os conflitos armados parecem de difícil solução ou até mesmo insolúveis. Tem-se, então, a seguinte linha argumen-tativa: trava-se uma batalha pela organização de estratégias ca-pazes de dissuadir governantes e países de alimentarem situa-ções belicosas diversas. Porém, os formuladores dos relatórios, que trabalham com mui-tos dados empíricos, ao constatarem que seria muito difícil al-cançar tais metas, passam, em suas narrativas, ao seguinte ra-ciocínio: com ou sem guerra, com ou sem conflito armado, os diversos países membros das Nações Unidas teriam de investir nas políticas de seguridade humana (educação, saúde, moradia, saneamento).Os produtores dos relatórios estão retomando uma discussão que ficou conhecida como “guns and butter trade-off” (Diki-ci, 2015; Hartley e Sendler, 1995; 2007; Ram, 1995; Braddon, 1995; Deger e Sen, 1995).
Neste caso, o custo envolvido na tomada de decisão dei-xa de ser avaliado em termos puramente financeiros (...). O custo de um avião de combate (...) deixa de ser medido apenas em milhões de dólares para ser medido, também, em termos daquilo que deixa de ser oferecido à nação, por exemplo, ensino fundamental ou saúde básica (Almeida, 2013, p. 431).
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A instabilidade política, provocada por qualquer causa que seja, não deveria minar as possibilidades de cumprir os compromis-sos firmados nos acordos e tratados internacionais. Assim como não desobrigava os organismos internacionais, os governos na-cionais e os Estados da “Responsabilidade de Proteger” os mais vulneráveis.
A doutrina da Responsabilidade de Proteger, também co-nhecida pela sigla inglesa R2P10, é um instrumento essen-cial da responsabilização da comunidade internacional e de cada um dos países pelas pessoas vulneráveis. Trata-se de um instrumento crucial, embora pouco desenvolvido, para fazer face a um conjunto específico de vulnerabilidades — responsabilizar os Estados pelo genocídio, pelos crimes de guerra, pela limpeza étnica e pelos crimes contra a humani-dade (PNUD/RDH, 2014, p. 122). Nesse caso, os formuladores dos RDHs propõem ampliar-se, de tal modo, a noção da responsabilidade de proteger, por parte dos Estados Nacionais, dos governantes, que nela se inclua “a responsabilidade dos Estados [pela] proteção de grupos vulne-ráveis, incluindo [-se] mulheres, crianças e jovens, idosos e imi-grantes” (PNUD/RDH, 2014, p. 122). A situação de conflitos armados, de guerras internas, deveria mobilizar, em se tratando da responsabilidade de proteger,
o principal princípio que lhe está subjacente — que a so-berania não constitui um privilégio, mas sim uma respon-sabilidade — não deveria ficar limitado às atrocidades de larga escala, como o genocídio, tendo em conta a miríade de outras vulnerabilidades persistentes que as populações enfrentam desde as crises financeiras às catástrofes relacio-nadas com o clima (PNUD/RDH, 2014, p. 122).
10 “Sobre a condição complementar, ou não, da R2P (Responsabilidade de Proteger) e da RwP (Responsabilidade ao Proteger), ver: Rocha e Baccarini, 2017.
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DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUNão há dúvida de que, ao invocar o alargamento da responsa-bilidade de proteger, os produtores do relatório de 2014 – que iniciam seus diagnósticos e prescrições indicando ser possível dissuadir as muitas configurações e interações sociais geradoras de conflitos violentos e bélicos – vão constatando o quanto seria difícil essa tarefa. Em razão de tais dificuldades, eles parecem convictos de que a única saída é invocar a Doutrina da Responsabilidade de Prote-ger, ampliando-a para alcançar a proteção das pessoas que vi-vem em situação de vulnerabilidade ocasionada por situações de guerras ou por outras causas. Os obstáculos ao direito de de-senvolvimento dos povos e países pobres parecem, então, cada vez mais intransponíveis.
Estão os formuladores dos RDHs envidando esforços, ou
não, na quebra da tradição armamentista bélica e violenta? Não há dúvida de que os relatórios têm construído uma forma de persuasão, que se configura tanto como uma estratégia políti-ca quanto como uma ideologia e acaba confundindo a realidade (na qual prevalecem as guerras e os conflitos bélicos) sugerindo que seria possível dissuadir de suas práticas belicosas os gover-nantes das várias partes do mundo, para que haja, assim, maio-res investimentos em políticas de desenvolvimento humano. Confunde-se, como assinala Elias (1994, 1994a, 2001), um ideal com o supostamente realizável. Conforme ensina Raymond Williams (2015, p. 286), é neces-sário analisar as propostas, apresentadas nos respectivos re-latórios, de ação política em alguns movimentos, ou seja, “ao mesmo tempo [como] uma estratégia e uma ideologia” e de modo separado, preponderantemente, como uma estratégia política ou, prioritariamente, como um conjunto de valores ideológicos.
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Os relatórios também estão compostos de valores ideológicos, porquanto seus formuladores operam aproximando, desmedi-damente, a realidade e os ideais de desenvolvimento humano e com isso tornando-os, quase sempre, inalcançáveis. A inatin-gibilidade do ideal de melhoria social aparece embaralhado em muitos momentos. De forma direta, pode-se dizer que os formuladores dos RDHs não enfrentam, em suas narrativas, os muitos desequilíbrios de poder, no mundo atual, que tornam possível sustentar e potencializar a tradição bélica e armamentista. Por isso, seus investimentos, na quebra dessa tradição, são fagulhas de luz num universo dominado por relações de poder sustentadas pela expansão dos aparatos bélicos11. Os argumentos mostram ambi-guidades e ambivalências. É ambíguo porque, conquanto defendam a diminuição das guer-ras e conflitos armados, eles não estão se situando fora da tradi-ção bélica e armamentista. E é ambivalente pelo fato de apontar para dois caminhos opostos: ou há a diminuição das guerras e dos conflitos bélicos, como forma de ampliar o desenvolvimento humano, ou prevalecerá a expansão daqueles primeiros e a di-minuição das chances deste último. Os formuladores do relatório de 2014 argumentam que a falta de trabalho, a pobreza extrema, a falta de expectativas têm sido estopim de guerras civis e de revoltas, que culminam em belico-sidades extremas. Falando sobre a Síria, eles dizem:
Essas privações, combinadas com a falta de postos de tra-balho, uma resposta inadequada da parte do Estado e da comunidade internacional, contribuíram para a rápida acu-mulação da insatisfação e uma grande conscientização da
11 O RDH de 2005 contém uma discussão sobre a expressão “guerra contra a pobreza”. Ela seria uma metáfora militar. De todas as guerras essa seria a que deveria prevalecer.
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DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUdesigualdade de grupo, terreno fértil para a guerra civil, que começou em 2011 (PNUD/RDH, 2014, p. 130).
O RDH de 2005 possui um capítulo intitulado Conflito violento – pôr em evidência a verdadeira ameaça, no qual são destacadas as guerras civis (Serra Leoa, Angola, Moçambique) e as guerras entre países (Libéria vérsus Serra Leoa e as da região dos Bál-cãs, antiga Iugoslávia) que têm penalizado, demasiadamente, as pessoas mais pobres. Sobre seus ombros recai o peso maior das guerras, sejam elas civis ou não. Isso, porque os custos das guerras, as despesas militares e armamentistas fazem que sejam canalizados muitos recursos para atividades belicosas. Todavia, não há como supor que os formuladores e encampado-res dos relatórios estejam elaborando argumentos inteiramente pacificadores. É uma narrativa que visa dissuadir conflitos in-ternos, mas que o faz ao mesmo tempo que clama pelas forças armadas como capazes de resolver diversas situações relaciona-das à segurança no mundo atual. Suas prescrições mantêm-se no âmbito de uma tradição bélica. Veja-se o texto abaixo:
A estrutura dominante das forças armadas — assente num modelo de despesa militar estatal e de Guerra entre Estados--nação que tem estado em declínio ao longo do último meio sé-culo — permanece mal equipada para ter resultados em regi-ões onde a necessidade de segurança se impõe hoje com maior urgência. A resolução de crises e a reconstrução pós-crise exigem a cooperação e a colaboração entre forças armadas e comunidade internacional, sendo essencial atentar nas causas dos conflitos internos (PNUD/RDH, 2014, p. 118). Os elaboradores e encampadores dos referidos documentos têm muitos cuidados argumentativos ao associar a diminuição das guerras e conflitos bélicos e o aumento das políticas de desen-volvimento humano. Essa associação não visa, pelo que se ob-serva, desmantelar a relação positiva que eles estabelecem entre
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segurança e forças armadas, as quais teriam, no entanto, “o com-promisso de defesa dos direitos dos cidadãos ao abrigo de uma série de tratados” (PNUD/RDH, 2014, p. 118). Os produtores dos relatórios fazem questão de exaltar esse com-promisso, demonstrando que não havia qualquer apoio às ações autoritárias que se davam em total desacordo com os Atos Inter-nacionais (AIs). A Responsabilidade de Proteger (R2P), com a qual haviam concordado os diversos países que compõem o sistema das Nações Unidas, teria de ser o marco de todas as ações dos Es-tados, incluídas aí as ações de suas Forças Armadas. “Mas o con-senso em adotar este princípio [RP] foi quebrado por desavenças graves quanto à sua implementação” (PNUD/RDH, 2014, p. 118). Nota-se que os produtores e difusores dos RDHs fazem questão de situar suas narrativas reafirmando: “o Conselho de Segurança [CSNU] continua a ser o órgão essencial de defesa da seguran-ça humana” (PNUD/RDH, 2014, p. 118). Ao fazerem isso, eles reafirmam uma tradição belicosa combinada com preocupações humanitárias. Os diagnósticos e as prescrições, presentes nos relatórios, não são propugnadores da quebra de uma tradição armamentista que tem prevalecido há alguns séculos. São construídos diálogos e pontes com as agendas temáticas da CSNU voltadas para as populações vulneráveis (Oliveira e Rebelo, 2017). Sem indicar a necessidade de quebrar a tradição bélica fica difícil, para os elaboradores dos relatórios, sustentar que é possível fazer avan-çar o desenvolvimento humano desde que sejam diminuídas as guerras.
Conflito, nomeadamente as guerras civis, parece estar as-sociado ao mau desempenho em termos do Índice de De-senvolvimento Humano-IDH (progresso significativamente abaixo do que se poderia esperar dadas as condições ini-ciais), visto que 60 por cento dos países que vivem este tipo
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DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUde conflito (28 de 46 países incluídos na amostragem) apre-sentaram resultados insuficientes neste domínio (PNUD/RDH 2014, p. 140).
De um modo ou de outro, os argumentos postos nos relatórios podem ser tomados como tentativas de indicar que haveria avanços nas políticas de desenvolvimento humano, se as guerras fossem evitadas mediante acordos arbitrados por órgãos como as Nações Unidas. Norbert Elias (1991) afirmava que, para al-cançar isso, a humanidade teria de passar, ainda, por processos pacificadores muito árduos.
A diminuição da desconfiança entre os Estados não é realizável de hoje para amanhã. Ela exige o esforço conjunto e paciente de muitos homens, que lutem nos seus países para que cresça a disponibilidade para resolver os conflitos entre os Estados, seja por meio de compromissos não violentos, seja por via da arbi-tragem exercida por órgãos supraestatais (Elias, 1991, p. 101).
Os elaboradores do RDH de 2010 demonstram o quanto é difícil frutificarem ações pacificadoras naqueles países e regiões toma-dos pela pobreza multidimensional, pelas doenças como HIV e Malária, pelas desigualdades abissais e pelas guerras civis ainda que de baixa intensidade12. A noção de pobreza multidimensional, bem como o seu cálculo, deriva das discussões de Amartya Sen. Ele diz:
[O] que quero enfatizar [é] que, quando se gera mais edu-cação, mais saúde, isso em si é uma eliminação da pobreza, pois pobreza não é apenas baixa renda, [é], também anal-
12 “Guerra civil, intensidade: Pontuação que indica o nível de intensidade de um confli-to de guerra civil. Uma pontuação de “0” indica ausência de conflito; “1” é sinal de guerra civil menor na qual o número de mortes por ano é inferior a 1.000 pessoas; “2” indica uma guerra civil de grande escala na qual o número de mortes por ano é de, pelo menos, 1.000 pessoas” (PNUD/RDH, 2014, p. 232).
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fabetismo, [é], também não ter tratamento médico quando necessário (Sen, 2010, p. 12).
O cálculo da pobreza multidimensional contém um embate te-órico e técnico com o cálculo da pobreza absoluta. A primeira resulta não só da ausência e/ou precariedade de renda, mas também da falta de acesso à educação, à moradia adequada, a saneamento, à saúde e à participação política. Sobre o conceito e cálculos da pobreza multidimensional (PNUD/RDH, 1997). Esses fatores juntos têm-se revelado bastante explosivos. Veja--se o que consta no RDH de 2010:
A Zâmbia registrou declínios na esperança de vida, taxas brutas de matrícula e rendimento por diversos motivos. O colapso dos preços do cobre em 1980 despoletou uma lon-ga depressão que contraiu a economia em um terço. O país também se ressentiu das vagas de refugiados em fuga das respectivas guerras civis em Angola e Moçambique, seus vizinhos, e da epidemia de VIH, que fez com que o país apre-sentasse a quinta taxa mais elevada de prevalência de VIH no mundo (PNUD/RDH, 2010, p. 32). Fica evidenciado, no relatório de 2010, que a explicação para as dificuldades de expansão das políticas de desenvolvimento hu-mano não está relacionada somente à vigência das guerras civis ou entre países. Essas têm um peso enorme, que muitas vezes se somam a outros fatores. A junção das guerras (de diversas intensidades) com epidemias, fomes e desastres ambientais compõe um cenário capaz de mi-nar toda e qualquer possibilidade de combate à pobreza mul-tidimensional. Todos esses fatores impactam negativamente o desenvolvimento humano, conforme consta no RDH de 2010. Norbert Elias (1991) afirma que tentar indicar posições contrá-rias à tradição belicosa é uma tarefa dificílima. Essa é uma das
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DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUempreitadas mais complexas que já se conheceu. Por isso, não se deve supor que os respectivos relatórios, em poucos anos e sozi-nhos, sejam capazes de grandes avanços rumo a uma tomada de posição, de fato, contrária à tradição bélica. Norbert Elias (1991), em A condição humana, afirma que que-brar essa tradição belicosa poderia vir a ser o maior desafio das Nações Unidas. Isso fica evidenciado em muitos trechos dos relatórios. “O déficit de governação (...) limita a capacidade de governação internacional, com vista à solução dos problemas de segurança urgentes, passando o ônus para as populações em zonas de conflito” (RDH, 2014, p. 118). Governação, segundo os elaboradores do RDH de 2010, é a com-binação da responsabilização democrática – dos diversos agen-tes que participam do processo decisório para que haja uma melhor distribuição do poder – com a experimentação institu-cional, a qual é o processo de abertura de espaços para que os múltiplos atores (governamentais e não-governamentais) pos-sam construir estratégias de participação na construção do de-senvolvimento (PNUD/RDH, 2010, p. 114). Situar os argumentos pressupondo-se que a segurança humana depende das Forças Armadas e de seu poderio bélico é contra-ditório, pois não se chegará a qualquer segurança por esse meio (Elias, 1991, p. 100). Em A condição humana, Norbert Elias faz, por ocasião do aniversário de 50 anos do final da Segunda Guer-ra Mundial, uma ampla reflexão sobre o quanto tem sido difícil desmontar a ideia de que os aparatos bélicos são as formas pos-síveis de garantir a paz. Não há dúvida de que a associação entre a diminuição das pos-sibilidades do desenvolvimento humano e o aumento dos en-frentamentos e conflitos bélicos revela algo de grande monta: a aposta numa “restrição bélica voluntária” (Elias, 1991, p. 100).
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É claro que se isso ocorresse, como afirma Elias (1991), seria um salto civilizacional, posto que se estaria testando a capacidade de autorregulação, autocontenção e autocontrole dos países, governos e dirigentes. As narrativas postas nos relatórios tentam construir estratégias indicadoras de uma pacificação em meio a disputas que negam, inteiramente, esse direcionamento. No entanto, a pacificação só seria alcançada se fossem estabelecidas políticas permanentes de melhorias sociais. O que se mostra, no final da segunda década do século XXI, bastante distante. Observem-se estes dados das Nações Unidas de 2017:
Em 2017, mais de US$ 1,7 trilhão foram investidos em ar-mas e no subsídio a exércitos, os maiores índices desde a queda do Muro de Berlim, 80 vezes mais que o financiamen-to humanitário básico em todo o planeta (Nações Unidas. Gastos militares são 80 vezes maiores que os humanitários, 2018, p. 1).
Um dos maiores problemas que se coloca aos aconselhamentos feitos pelos elaboradores dos relatórios aos Estados e aos orga-nismos internacionais é o fato de que as decisões – de diminuir as guerras, as belicosidades e as violências, para assim tornar menos difícil o desenrolar de políticas de desenvolvimento hu-mano – não obedecem a lógicas somente racionais. Conforme demonstra Norbert Elias (1991), há muitos mitos sociais (supe-rioridade dos povos, valoração ou desvalorização de traços ét-nico-raciais) e irracionalidades (sentimentos de ódios, temores infundados, desejos de destruição do outro) que se interpõem negativamente nas estratégias de controle da violência.
Considerações finais Embora critiquem a expansão das despesas militares, o aumento dos conflitos bélicos e o potencial destrutivo das guerras no con-cernente aos avanços do desenvolvimento humano, os formula-
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DESENVOLVIMENTO HUMANO NOS RDHS/PNUD/ONUdores dos Relatórios do Desenvolvimento Humano têm dificulda-de de advogar contra a ideia de que não é possível a segurança sem que haja um poder armamentista e bélico em pleno funciona-mento. Ou seja, a segurança e a paz, conforme dizem, não podem ser mantidas somente pelas Forças Armadas, mas elas continuam, segundo os produtores do RDH de 2005 e 2014, essenciais. Tem-se a impressão de que eles desejam assinalar que a paz e a segurança são garantidas por dois processos simultâneos: 1) o combate à pobreza extrema e a expansão do desenvolvimento humano e 2) a atuação das Forças Armadas dentro dos parâme-tros acordados pelos Atos Internacionais. Já as guerras contra o terrorismo, por exemplo, poderiam camuflar violações dos di-reitos humanos (PNUD/RDH, 2005).Ao discutir os emperramentos trazidos pelas guerras e conflitos bélicos, os produtores dos relatórios fazem um esforço intenso para não deixarem transparecer que os obstáculos e bloqueios, que essas situações impõem ao desenvolvimento humano, são in-transponíveis. Para evitar que tais impedimentos sejam colocados em primeiro plano, eles direcionam a discussão para os impactos negativos e positivos que tais condições de violência produzem na vida econômica, política e social dos países e regiões13. Se as guerras afetam a vida cotidiana como um todo, tem-se aí o aprofundamento da inacessibilidade à escolarização e aos bens e serviços relacionados à saúde e a todos os demais serviços que podem ser convertidos em avanços sociais cada vez mais amplos. São organizadas estratégias narrativas que amenizam, signi-ficativamente, os processos obstrutivos de políticas de amplas
13 “Contudo, impactos negativos imprevistos, tais como guerras, epidemias ou calami-dades ambientais, comprometeriam o desenvolvimento humano futuro. Impactos positi-vos, como a cura para a malária e o VIH/SIDA e o cessar de conflitos, impeliriam avanços” (PNUD/RDH, 2010, p. 106).
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melhorias sociais. Ao fazerem isso, as estratégias políticas vão se convertendo em estratégias ideológicas, que mantêm as pers-pectivas de alcançar o desenvolvimento humano, mesmo diante de uma realidade que o nega peremptoriamente. Não há dúvida de que, de todas as recomendações postas nos relatórios, aquelas que dizem respeito à necessidade de dimi-nuir os aparatos bélicos, as guerras e as violências são as mais difíceis de serem implantadas. E qual é, então, a questão central abordada? Os formuladores dos relatórios parecem pressupor que dariam algum tipo de resultado positivo, se bem que am-bíguas e ambivalentes, as estratégias de convencer aqueles que estão à frente dos Estados de que os recursos direcionados às guerras e aos conflitos poderiam ser utilizados na expansão do desenvolvimento humano. Destacou-se que os formuladores dos relatórios tentaram cons-truir, por meio de diagnósticos e prescrições, estratégias dissu-asoras da violência e isso eles o fizeram em duas frentes: numa insistem no desperdício de recursos, que deveriam ser direcio-nados a políticas de melhoria da vida da população; na outra de-monstram que, quando estão submetidas a guerras e conflitos violentos, a pessoa tem a vida destroçada. Quanto mais pobres, mais a violência mina as suas possibilidades de acesso à saúde, à educação, à justiça e à renda14.As estratégias políticas anunciadas nos respectivos documentos vão ficando mais e mais tortuosas, visto que os seus formula-dores não veem como exequíveis, no mundo atual, mudanças políticas substantivas em relação aos conflitos bélicos. Eviden-ciam-se, então, as impossibilidades de desfazer as convicções, nas relações internacionais, de que o enfrentamento e a guerra devem ordenar a vida social e política.
14 Sobre isso, ver: Ballesteros, 2014.
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Recebido em 28/04/2020Aprovado em 15/04/2021