TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
Pandemia x pandemônio:
o cotidiano da periferia no noticiário
Ada Cristina Machado Silveira*1
Camila Hartmann**2
Bruno Kegler***3
Resumo
Assume-se no artigo que a cobertura do cotidiano da periferia brasilei-
ra poderá ganhar uma dimensão ainda não explorada com o surgimen-
to da pandemia de Covid-19. Enfrentada concomitantemente à polari-
zação política brasileira, a emergência sanitária permitiu à oposição
cunhar a noção de pandemônio como denominação aplicável a diver-
gências na política pública de combate à pandemia. A materialização
da periferia metropolitana, tratada como o lugar simbólico dos mais
pobres, se articula às condições narrativas e discursivas instauradas
pela ordem da noticiabilidade, responsável por expressar as condições
de trato dos acontecimentos. A análise empírica de matérias jornalísti-
cas veiculadas on-line que exploram o (não) enfrentamento da pande-
mia na periferia brasileira junto ao estudo de postagens em platafor-
mas de mídia social expõem resultados que decalcam o imaginário de
caos aplicável à noticiabilidade da periferia metropolitana em capas de
revistas do período 1994-2014 para a situação atual.
Palavras-chave: Periferia. Noticiabilidade. Pandemônio. Pandemia. Co-
vid-19.
* Professora no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal
de Santa Maria (POSCOM/UFSM). E-mail: ada.silveira@ufsm.br
** Graduada em jornalismo, mestra e doutoranda no Programa de Pós-graduação em
Comunicação. da UFSM. E-mail: camilahartmann6@gmail.com
*** Graduado em Publicidade e Propaganda e mestrado em Comunicação pela UFSM,
doutor em Comunicação pela UFRGS. Realiza estágio pós-doutoral na UFSM. E-mail: bru-
nokegler@gmail.com
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PANDEMIA X PANDEMÔNIO
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Pandemic vs. pandemonium: the daily life of the
periphery in the news
Abstract
It is assumed in the article that the daily coverage of the Brazilian pe-
riphery may gain a dimension that has not yet been explored with the
emergence of the Covid-19 pandemic. Faced with the Brazilian poli-
tical polarization, the health emergency allowed the opposition to
coin the notion of pandemonium as a term applicable to differences in
public policy to combat the pandemic. The materialization of the me-
tropolitan periphery, treated as the symbolic place of the poorest, is
linked to the narrative and discursive conditions established by the or-
der of news, responsible for expressing the conditions for dealing with
events. The empirical analysis of journalistic articles published online
that explore the (non) confrontation of the pandemic in the Brazilian
periphery together with the study of posts on social media platforms
exposes results that decalulate the imaginary of chaos applicable to
the news of the metropolitan periphery in magazine covers from 1994-
2014 period for the current situation.
Keywords: Periphery. News. Pandemonium. Pandemic. Covid-19.
Pandemia vs. pandemonio: la vida cotidiana de la
periferia en el noticiero
Resumen
Se supone que la cobertura de la vida cotidiana en la periferia brasileña
puede adquirir una dimensión que aún no ha sido explorada con el sur-
gimiento de la pandemia Covid-19. Enfrentada concomitantemente a
la polarización política brasileña, la emergencia sanitaria permitió a
la oposición acuñar la noción de pandemonio como término aplicable
a las diferencias en la política pública para combatir la pandemia. La
materialización de la periferia metropolitana, tratada como el lugar
simbólico de los más pobres, está ligada a las condiciones narrativas
y discursivas establecidas por la orden de las noticias, encargadas de
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expresar las condiciones de afrontamiento de los hechos. El análisis
empírico de artículos periodísticos publicados online que exploran el
(no) enfrentamiento de la pandemia en la periferia brasileña junto con
el estudio de publicaciones en plataformas de redes sociales expone resultados que descalifican el imaginario de caos aplicable a las noti-
cias de la periferia metropolitana en portadas de revistas del período
de 1994 a 2014 para la situación actual.
Palabras clave: Periferia. Noticias. Pandemonio. Pandemia .Covid-19.
Introdução
O presente texto assume que a cobertura do cotidiano da perife-
ria brasileira poderá ganhar uma dimensão ainda não explorada
com a emergência sanitária de 2020.
Até o dia 4 de julho de 2020 o novo coronavírus havia feito
523.011 vítimas no mundo. Os casos batiam a marca de quase 11 milhões. No Brasil, o total de casos confirmados chegou a
1.496.858; as mortes já se aproximam de 62 mil (World Health
Organization, 2020). A parcela populacional mais vulnerável do
Brasil é a que mais tem sofrido com a pandemia. Embora seja considerado democrático no contágio, dada sua fluidez e, espe-
cialmente, nossa ignorância no tema, o novo coronavírus não o é na produção de mortes. Dificuldades no acesso a serviços de saú-
de, o abastecimento de água intermitente, a falta de saneamento
básico e as moradias aglomeradas são alguns dos fatores que tor-
nam os grupos periféricos mais suscetíveis ao contágio. As me-
didas preventivas recomendadas para conter a pandemia, como
praticar o distanciamento social, lavar as mãos frequentemente e usar álcool gel, são em sua maioria dificultosas, quando não im-
praticáveis, para muitos moradores de bairros periféricos.
As condições estruturais da desigualdade no Brasil manifes-
tam-se em números expressivos. Um estudo realizado em São
Paulo mostrava em junho de 2020 que por volta de 16% da
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população residente em regiões mais pobres da cidade já havia
contraído o vírus; a porcentagem representava mais que o do-
bro do observado nos bairros mais ricos, onde cerca de 6,5%
das pessoas teria sido infectada (Menon, 2020). A edição do
Mapa Social do Coronavírus, levantamento feito pelo Observa-
tório de Favelas, evidenciava que a estabilização e declínio na
curva de contágio, observados em algumas áreas mais nobres
do Rio de Janeiro (RJ), não estavam acontecendo na periferia.
Os bairros aquinhoados de Botafogo e Barra da Tijuca apre-
sentavam no dia 1º de junho taxas de letalidade da Covid-19
girando próximas de 7%; os números chegaram a 41,6% nos
bairros periféricos da Maré, Cidade de Deus e Rocinha (Souto,
2020). Já em Salvador (BA) o número de casos cresceu 1.200%
na periferia: em 22 de maio havia 458 infectados registrados
nos dez maiores bairros da periferia da cidade; em 1º de julho
este número saltou para 5.949 (Pitombo, 2020). A situação se
repetia no Distrito Federal: no primeiro boletim epidemioló-
gico da Secretaria de Saúde que apontou o recorte da infecção
por região, em 26 de março, o Plano Piloto constava da maior
parte de casos, com 50 moradores diagnosticados com o ví-
rus; um morador de Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, teve
resultado positivo. Ceilândia alcançaria em julho de 2020 o
maior número de infectados, quase duas vezes maior que o do
Plano Piloto de Brasília (DF) (Rios, 2020).
Admite-se também a polarização política vigente no Brasil de-
tectada especialmente pelas eleições presidenciais de 2018 e
que permitiu que a oposição cunhasse a noção de pandemônio
como denominação aplicável às divergências na política públi-
ca de combate à pandemia, manifestas através da incompatibi-lidade da conduta governamental, personificada especialmente
pelo Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, diante do
momento caótico de restrições e proliferação de crises em nível
mundial. O ex-ministro da Saúde de Dilma Rousseff (2011-2014)
e Deputado Federal Alexandre Padilha (PT-SP) aciona o termo
ao declarar: “É a maior tragédia humana que o Brasil já viu, e o
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Brasil vive a pandemia e o pandemônio, que é o Presidente Jair
Bolsonaro” (UOL, 2020, On-line).
A realidade da pandemia tem forçado a inauguração de formas
diversas de sociabilidade, trabalho, acesso à cultura e ao la-
zer. A cidade polifônica aludida por Massimo Canevacci parece
estar mais manifesta do que nunca. A relação de mútua afe-
tação da cidade e de seus espectadores, o “[...] coro que canta
com uma multiplicidade de vozes autônomas que se cruzam,
relacionam-se, sobrepõem-se umas às outras, isolam-se ou se
contrastam [...]” (Canevacci, 2004, p. 17), já não se manifesta
apenas no espaço urbano; transcende a realidade material,
emanando também da virtualidade – o que se potencializa
num contexto em que a orientação é manter o distanciamen-
to social. As plataformas de mídia social apresentam-se, assim,
como protagonistas do debate público, potencialmente polari-
zado e midiatizado.
O artigo está estruturado pelo estudo da noticiabilidade, reali-
zado pelo grupo de pesquisa Comunicação, identidades e fron-
teiras, articulado à análise empírica de matérias jornalísticas
veiculadas on-line que exploram o (não) enfrentamento ao novo
coronavírus na periferia brasileira e postagens em plataformas
de mídia social que põem de manifesto a construção do pande-
mônio. A problemática está assim sumarizada: como se mate-
rializa a construção do pandemônio a partir da noticiabilidade
estabelecida em torno da pandemia na periferia? A abordagem
do noticiário é tensionada com a visibilidade positivada que foi
conferida aos grupos periféricos quando do aumento de seu
poder de compra (Hartmann, 2019). O objetivo aqui posto, por
conseguinte, é o de compreender como se decalca o imaginário
de caos aplicável à noticiabilidade da periferia metropolitana
em capas de revistas do período de 1994 a 2014 para a situação
atual, permitindo a alusão ao pandemônio. Antes disso, aprofun-
da-se a ordem da noticiabilidade e suas consequências na cober-
tura noticiosa.
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Periferia e noticiabilidade
Para estudar a cobertura noticiosa considera-se a noção de no-
ticiabilidade, a qual “[...] resulta da compreensão de uma ordem
noticiosa que reproduz a percepção de uma dada ordem social”
(Hartmann; Silveira, 2018, p. 202). A ordem da noticiabilidade
“[...] expressa as condições de trato dos acontecimentos; ela é
fruto da convivência social, de crenças religiosas e laicas, do
exercício do poder e do exercício da resistência” (Hartmann; Sil-
veira, 2018, p. 202). Comparecem, assim, condições para a cons-trução de situações de comunicação que definem elementos do
jornalismo corporativo com os compromissos sociais da cober-
tura noticiosa.Daí ser importante reconhecer o lugar específico que a perife-
ria passou a deter com a ascensão da “nova classe média” (Neri,
2010; Souza, J., 2010; Brasil, 2012; 2014; Alvarenga, 2014) e seu
atual deterioro. O momento histórico de tal ascensão é por mui-
tos marcado pela estabilização econômica proporcionada pelo
Plano Real e, posteriormente, por políticas implementadas pe-
los governos do Partido dos Trabalhadores, interrompidas com
a deposição de Dilma Rousseff em 2016. O período de 1994 a
2014 marca, portanto, duas décadas de consolidação do que a
cobertura noticiosa denominou de “país da periferia”, tergiver-
sando entre ambivalência e liminaridade das condições da po-
pulação periférica (Silveira; Schwartz; Guimarães, 2016).
Entende-se que, após a interrupção das políticas públicas desti-
nadas aos menos favorecidos economicamente e com a expan-
são da pandemia causada pela Covid-19, a cobertura noticiosa
do cotidiano brasileiro vê-se profundamente alterada nos valo-
res que a norteavam.
O anseio de atuação político-normativa do Jornalismo na reor-
ganização das relações sociais materializa-se na ordem da no-
ticiabilidade estabelecida. Analogamente à ordem do discurso,
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nos termos foucaultianos (Foucault, 1996), a noticiabilidade também é própria de um período específico, possui uma função
reguladora, normativa, e põe em funcionamento procedimentos
de organização do real. Deste modo, o jornalismo “[...] assume,
ainda que parcialmente, o papel legislativo de discriminar para
a sociedade e o papel judiciário de emitir juízos, através de sua
ação ordenadora a partir de um discurso situado [...]” (Silveira,
2016, p. 39). A eficácia social dos relatos jornalísticos mostra-se na medida
em que são instituídos como um repositório de saber coletivo
sobre a realidade. Elaborando e fazendo circular representações e reflexões identitárias, promovendo distintas discursividades
sobre os indivíduos e correntemente jogando com estereótipos,
depreende-se que o jornalismo mobiliza uma atualização das
identidades social e discursiva (Charaudeau, 2006).
Antonio Fausto Neto concebe o jornalismo como um território
estratégico em que não só é possível vitrinizar a realidade, mas
de onde se torna possível seu engendramento. O discurso jor-
nalístico, posto numa tal condição, constitui-se em uma voz que
não faz, simplesmente, “[...] o reclame das coisas, mas uma voz
que se impõe às coisas e que a anuncia seus próprios semanti-
zadores” (Fausto Neto, 1994, p. 160, grifo do autor). Responde,
assim, à construção de uma verdade que, longe de ser neutra, é
obrigatoriamente invadida pelas marcas dos enunciadores dei-
xadas nos discursos (Fausto Neto, 1993, p. 4).
Retomando a Foucault, convém ressaltar que as produções de
verdades não podem ser dissociadas dos mecanismos de poder.
O poder induz as produções de verdades que, por sua vez, pos-
suem efeitos de poder. E cada sociedade possui uma “política ge-
ral” de verdade que inclui os tipos de discurso acolhidos e que
funcionam como verdadeiros, as instâncias e os mecanismos
que distinguem os enunciados verdadeiros dos falsos, os pro-
cedimentos estimados para a obtenção da verdade e, outrossim,
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o estatuto de quem determina o que funciona como verdadeiro
(Foucault, 1979, p. 12).
Haveria, ademais, “[...] regras de uma ‘polícia’ discursiva que
devemos reativar em cada um de nossos discursos” (Foucault,
1996, p. 35). Tal polícia ata o jornalismo a um imaginário buro-
cratizado de violência e criminalidade que instiga medo e segre-
ga a sociedade. A cobertura noticiosa de zonas periféricas (me-
tropolitanas e fronteiriças) evidencia uma contradição, assim
sintetizada a partir de diversas análises empíricas de revistas
semanais e jornais brasileiros:
As condições permeáveis das fronteiras internacio-
nais brasileiras, a amplitude de seus 16 mil quilôme-
tros, a existência de comunidades transfronteiriças e o caráter marcadamente pacífico dessa convivência
contrastam com o noticiário marcado por cenas de
violência e crimes de descaminho, de um lado, e caos
e ausência de Estado, de outro, ou seja, problemas de
segurança pública e problemas de segurança nacional
(Silveira, 2016, p. 28).
Essa abordagem cristaliza o imaginário de pandemônio. Não se
poderia antecipar, ao estudar a cobertura noticiosa dos últimos
quase 30 anos, que um real pandemônio se apresentaria como o governo Bolsonaro na pandemia. Parece figurar-se aí uma justa-
posição de imaginários a partir da partícula grega “pan”.
Pandemia, pandemônio, pânico Originado do prefixo grego pan, adicionado a daimon (demônio),
o termo pandemônio popularizou-se através do inglês pandemo-
nium, habitação dos diabos todos. Pandemonium também deno-
mina a capital imaginária de um mundo infernal, lugar de ruídos,
reunião tumultuosa, reunião de indivíduos que promovem desor-
dens e fazem mal aos outros, tumulto, desordem, babel, balbúrdia,
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conluio de pessoas para armar desordens. Pandemonium pode
designar tanto o lugar imaginário onde se realizam assembleias
dos demônios, ou ser referência à gritaria e confusão.
Já pandemia refere-se à doença que ataca ao mesmo tempo a
um grande número de pessoas, na mesma região ou em distintas
regiões. Na situação atual, a pandemia decorre da contaminação
pelo vírus SARS-Cov-2.
Na mitologia grega, o deus pastor Pan, habitante da Arcádia, era
portador de um corpo peludo, com pernas e cornos de cabra. A
devoção dos pastores a Pan decorreu de sua proteção na batalha
de Maratona, decidida contra os persas1. Pânico, Pandora, pante-
ra, pandemia e pandemônio são palavras que retêm em seu radi-
cal a natureza envolvente de Pan, como força poderosa que agrega
imagens também no jornalismo por força de uso da linguagem.
Habitualmente, a periferia metropolitana é tratada como o lugar
simbólico dos mais pobres; uma narrativa que assim se mani-
festava em um passado imediato: “ela particulariza no ambiente
de favela os valores estabelecidos para certos espaços urbanos
marcados pela segregação e pobreza, havendo ganhado no dis-
curso jornalístico um lócus privilegiado e visível” (Silveira et al.,
2016, p. 109). Materializando a distância da periferia para com o cotidiano da prática profissional jornalística, a arraigada ten-
dência da cultura política brasileira de desprezo ao periférico
1 Conforme um dicionário de simbologia, a atribuição do significado do nome do deus
pastor Pan a “tudo” em grego, e, por extensão, em muitos outros idiomas dele origina-dos em figura de natureza abrangente, provém da devoção dos pastores. A mitologia
registra que os pastores acreditavam que Pan amava tanto sua soneca no calor do dia
que ninguém se atreveria a interrompê-la, pois um furioso Pan poderia aparecer e, de
repente, sua aparição encheria o agressor de um terror paralisante. Diz-se que esse teria
sido o destino dos persas na batalha de Maratona, daí decorrendo o templo erguido em honra de Pan, na Acrópole, como expressão da sua gratidão. A flauta Pan que ele tocava
também é chamada de sirene – assim chamada a ninfa Syrinx que iludiu seus avanços amorosos ao se transformar em uma cama de junco. A fim de ouvir sua preciosa voz, Pan formou a flauta a partir dos simples talos desses juncos (Biedermann, 1992, p. 252-3).
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seria assim discursivamente reproduzida no noticiário (Silveira,
2016, p. 33-4).
A periferia metropolitana como espaço social possui designa-
ções distintas. Sua identidade social conta com diversas deno-
minações – classe C, nova classe média, grupos periféricos – as
quais registram a variedade de abordagens que as estudam.
Por força da hegemonia midiática do Sudeste brasileiro, o no-
ticiário de referência as designa por favelas ou comunidades, denominações que o Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-tística (IBGE) definiria como aglomerados subnormais e que
passaram a comparecer ao noticiário habilitando novas pautas para coberturas jornalísticas antes desestimadas pelos confli-
tos de classe e visão elitista dos problemas sociais, atentos ao
lucro fácil de apelo comercial.As definições que comumente se atribuem à periferia, na es-
teira do apontado por Guaciara B. de Freitas (2008, p. 2), a ca-
racterizam desde uma perspectiva relacional, um espaço con-
traposto a outro (tomado como centro). Daí atestar-se que no
senso comum, cujo discurso reverbera e se conforma também
no campo midiático, a periferia constitui-se no conjunto de
espaços pobres vistos como excluídos em sua relação com o
espaço urbano, “[...] o depósito daquilo que o centro não quis”
(Souza, G., 2012, p. 118).
A segregação estaria relacionada a um processo histórico de de-
marcação territorial do qual teriam se originado os agrupamen-
tos periféricos. Consoante sumariza Ingrid Lisboa (2007, p. 45),
ao longo do decurso de urbanização e industrialização das cida-
des, ao valorizar determinados territórios, o mercado imobiliá-
rio favoreceu a criação de nichos descentralizados, periféricos,
que foram sendo ocupados por migrantes. Como bem lembram
Denise Paim e colaboradores (2015, On-line), para mais da de-
sigualdade manifesta no espaço urbano, a disparidade releva-se
também no plano simbólico, compreendendo a distância “ [...]
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do acesso à informação, da vida cívica, dos recursos políticos,
sociais, econômicos, e dos padrões idealizados pelos modos de
ser chancelados pelos movimentos culturais majoritários”.
A prática continuada de tal jornalismo seria corresponsável pela
polarização da sociedade. Da perspectiva da análise da situação
de comunicação ele teria desestimado o autorreconhecimento
de comunidades periféricas na cobertura noticiosa. De outra parte, também os conteúdos científicos foram negligenciados,
evidenciando o preconceito com a cultura letrada e sua incapa-
cidade de atentar à complexidade que sua compreensão requer.
A hipótese da impossibilidade de sustentação da polifasia cogni-
tiva, a qual seria capaz de amparar a coexistência de diferentes
tipos de racionalidade (Viana; Morigi, 2018). A derrota da poli-
fasia cognitiva seria um dos pilares do ambiente de polarização
política e do franco consumo de notícias falsas. A crise noticiosa
fortaleceu o discurso de ódio, tomado como valor de base nas
disputas narrativas da atualidade vigente nas mídias sociais.
Convém comentar que a conceituação que aponta a periferia para além do agrupamento de locais geograficamente excluídos
nas cidades alude para a metáfora de Jürgen Habermas (1997)
acerca do confronto da estrutura de poder dos grupos que con-
trolam o aparelho do Estado e as grandes corporações do merca-
do, obstaculizando com barreiras o ingresso de temas e reivindi-
cações da periferia, que seria constituída por todos os indivíduos
posicionados de forma contrafactual à ideologia dominante das elites. Ademais do conjunto de habitantes da periferia geográfi-
ca e/ou de classe, nesta perspectiva, a periferia compreenderia
um grupo formado por integrantes de movimentos sociais, artis-tas, estudantes, professores, intelectuais, profissionais radicais e
todos aqueles que se portam contracorrentemente ao centro de
poder (Habermas, 1997, p. 115).
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A cobertura noticiosa da periferia brasileira
Em conformidade ao já delineado, o padrão de noticiabilidade
em acordo à perspectiva dominante, vigente quase univocamen-
te em um passado imediato, conferia aos acontecimentos ocor-
ridos nos espaços periféricos um enquadramento distanciado.
A abordagem da periferia no jornalismo, assim sendo, estava
relacionada à falta de condições básicas de saneamento, desor-
dem, pobreza e violência; um local marcado pela proliferação do crime organizado em torno do tráfico armamentício e de drogas,
ademais de outras contravenções legais (Silveira, 2009).
Ainda no escopo dos estudos realizados no grupo de Pesquisa
Comunicação, identidades e fronteiras, assevera-se que a cober-
tura jornalística nacional sobre a periferia se caracterizava por
enquadrar os acontecimentos como alarmes de incêndio ou dis-
positivos panópticos, com o propósito de alertar continuamente
a comunidade nacional para os perigos destas áreas. Além disso,
as pesquisas apontam a prevalência de uma condição ambivalen-
te no noticiário sobre a periferia, na medida em que, ao alertar
a população sobre os perigos das regiões periféricas, os veículos
o faziam sob o prisma das autoridades estatais e policiais, igno-
rando as manifestações oriundas do grupo social marginalizado
(Silveira, 2009; 2016; Silveira et al., 2016; Silveira; Guimarães,
2016; Silveira; Schwartz; Guimarães, 2016).
A análise da cobertura em revistas semanais de circulação na-
cional permitiu constatar a característica da mesmidade na re-
presentação da identidade social da periferia, caracterizando
um imaginário congelado no tempo (Silveira, 2016, p. 26). Neste
sentido, por muitos anos, percebeu-se a propagação do mesmo
tratamento para distintas favelas, vilas ou comunidades, enqua-
drando-as como um local alternativo que pode ser semelhante
a outros e, ainda assim, segregado do restante da sociedade. Os
marcadores para narrar a periferia, como apontam Paim e cola-
boradores (2012, p. 30), por longo tempo, demarcavam-na ape-
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nas como “[...] um lugar de exclusão, dominado pelas carências, violências, pelo tráfico de drogas, criminalidade e pobreza”. A abordagem cristalizada no noticiário começa a se modificar na virada do século XX para o XXI, quando ocorreu a ressignificação simbólica da periferia, fenômeno atribuído ao controle da infla-
ção e à retomada do crescimento econômico no País. Desde então,
a cobertura não se pauta apenas na falta de recursos que recai-
ria sobre o grupo. A construção midiática de uma outra face das
classes populares, focada em seu potencial de consumo devido ao
incremento de renda, tornou-se fator determinante para o reco-
nhecimento da visibilidade e o status de maior “respeitabilidade
midiática” de suas iniciativas culturais (Paim et al., 2012, p. 42).
A periferia passa a ser mostrada também a partir do cotidiano
de seus moradores e a cobertura jornalística vai atuar no sen-
tido de apontar aspectos positivados acerca de seus modos de
vida. O processo de midiatização da periferia põe de manifesto,
então, uma “[...] nova possibilidade de ver e pensar esse lugar”,
consolidando o que Paim e colaboradores (2012, p. 30) conce-
bem como um novo ethos de periferia, uma nova maneira de
referir e representar os acontecimentos aí imbricados, caracte-
rizada pela minimização da violência, exclusão e preconceito. Os
espaços periféricos vieram a se tornar, desta forma, objeto de
nova visibilidade: “a busca por novos produtos midiáticos levou os olhares dos produtores de televisão, rádio e jornais a fixarem
a atenção nas criações que estavam acontecendo longe dos cen-
tros urbanos” (Paim et al., 2015, On-line).
Depreende-se, assim, que o fenômeno de emergência de um
novo grupo social no Brasil proporcionou uma guinada no tema
da visibilidade dos habitantes de espaços periféricos. Sua iden-tidade social passou a ser exibida em relação ao que, ao final do
segundo governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, foi re-
conhecido como a ascensão da “nova classe média” (Neri, 2010;
Souza, J., 2010; Brasil, 2012; 2014; Alvarenga, 2014).
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Em que pese as dificuldades dos institutos de pesquisa no que se
refere a estabelecer características demarcatórias do fenômeno
referido de ampliação de renda da camada média da população
brasileira, considera-se que ele foi impulsionado pela políti-
ca econômica adotada nos idos de 1990 e que concedia maior
acesso aos parcelamentos e ao crédito. A nova classe social que
viria a emergir constitui-se de uma população pobre e de pouca
expectativa no futuro que, com a melhor distribuição de renda,
o aumento do salário mínimo e as medidas governamentais de
redução da pobreza, atingiu um patamar superior de consumo,
tornando-se foco de diversas empresas que buscaram adequar-
-se para atender a uma emergente parcela de consumidores.
Em 2014, a pesquisa Faces da classe média apontava a classe
emergente, a nova classe C ou nova classe média – que, por de-finição, comporta famílias com renda mensal per capita entre
R$ 320 e R$ 1.120 –, como a mais numerosa do Brasil, corres-
pondente a 54% da população total. O estudo posiciona a classe
média brasileira no G20 do consumo mundial: se fosse um país,
ela seria o 12º em população e o 18º em consumo (Alvarenga,
2014). Justamente este foi noticiado como o referido anterior-
mente “país da periferia”.
Um relatório divulgado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos
da Presidência atesta que uma combinação de crescimento com
equidade resultou no ingresso de 44,7 milhões de brasileiros na
nova classe média de 2003 a 2013 (Brasil, 2014, p. 7). Esse novo
segmento seria formado por um “[...] grupo reconhecidamente
heterogêneo que resultou das múltiplas mudanças sociais ocor-
ridas recentemente no país [...]” (Brasil, 2012, p. 11).
Conforme assinala Marcelo Neri (2010, p. 86), a nova classe
média brasileira teria se tornado dominante em termos popu-
lacionais e política e economicamente: “[...] não só inclui o elei-
tor mediano, aquele que decide o segundo turno de uma eleição,
mas ela poderia sozinha decidir um pleito majoritário. A classe
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C é também dominante do ponto de vista econômico, pois con-
centra mais 46,2% do poder de compra dos brasileiros em 2009
[...]”. A relevância do grupo é sinalada por Jessé Souza (2010) em
pesquisa empírica. Os resultados levam-no a designar o fenôme-no como a discussão política, econômica e social mais significa-tiva dos derradeiros anos, o que justificaria o grande interesse
que o grupo vem despertando.Configurou-se, dessa maneira, um cenário que alterou as repre-
sentações midiáticas das camadas mais empobrecidas da popu-
lação em suas relações com o consumo. Despontou para as em-presas de mídia a possibilidade de desfrutar de novos benefícios
econômicos advindos da expansão de seu universo de leitores
para os grupos periféricos, outrora estigmatizados pela noticia-
bilidade modélica.
A análise de um corpus de capas de revistas semanais de circu-
lação nacional (Veja, Carta Capital, Época e IstoÉ) detida no pe-
ríodo entre 1994 e 2014 permitiu constatar uma mudança na
noticiabilidade praticada pelos enunciadores das revistas que,
frente ao contexto de mudanças socioeconômicas em voga, ope-
ram um deslocamento de sentidos sobre uma realidade que se
torna palatável para o desfecho do consumo jornalístico (Hart-
mann, 2019).
A abordagem positivada em torno das classes populares foi se
esvaindo à medida que se consolidou um cenário econômico
desfavorável. Grosso modo, não fazendo mais parte de uma par-
cela consumidora emergente, a periferia volta a ser noticiada
desde um viés negativo e excludente. Já se tinha, portanto, e no-
vamente, uma abordagem pejorativa dos espaços e grupos peri-
féricos. A chegada da pandemia na periferia reforça os estigmas
já consolidados. A narrativa de vulnerabilidade torna-se recor-
rente no noticiário, como demonstram os exemplos elencados à
continuação.
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PANDEMIA X PANDEMÔNIO
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Notícias falsas e a prática social da noticiabilidade
O cenário da pandemia é sobremaneira favorável à desinfor-
mação. Uma pesquisa realizada por Avaaz aponta que 94% dos
brasileiros com internet receberam pelo menos uma fake News
sobre o novo coronavírus. Sete em cada dez pessoas acreditaram
no conteúdo (Rede Globo, 2020a). É aí que o jornalismo “aparece
como um elemento legitimador da informação veiculada (Patrí-
cio, 2020, On-line). O fenômeno das notícias falsas expõe a crise
de legitimidade da atividade jornalística corporativa, afetando práticas reificadas da noticiabilidade de orientação comercial.
Selecionando os fatos dignos de alcançar o interesse público e
a eles conferindo efeitos de sentido, o jornalismo exerce o seu
poder, uma prática desmascarada com as mídias sociais. O agra-
vamento da crise, estabelecido pelo aparecimento de opções do
lado das audiências, se vê aprofundado com o fenômeno da opa-
cidade dos algoritmos no jornalismo de plataforma.
Dito isso, cabe salientar que a expressão plataformas de mídia
social é aqui adotada em alusão a todo conjunto de software,
aplicativos, websites, sistemas, bancos de dados, dentre outras
aplicações que servem como lugar para conectividade e intera-
ção on-line entre usuários, bem como seus produtos e serviços
e as empresas por eles responsáveis. Google, Facebook, Insta-
gram, Reddit, Tumblr, Pinterest, Twitter, Snapchat podem ser
tomados como exemplos de plataformas (Hartmann; Fanfa; Sil-
veira, 2020).
Considera-se que está em curso um processo de midiatização da
sociedade. Stig Hjarvard (2014) argumenta que a midiatização
se torna um conceito-chave para tensionar a relação da mídia
com a sociedade e a cultura. O engendramento social, as formas
de vida e as interações interpessoais se veem complexamente
alteradas com a propagação e convergência de novos protoco-
los sociotécnicos. Parte fundamental desta conjuntura são as
plataformas, “uma arquitetura digital programável desenhada
Ada Cristina Machado Silveira; Camila Hartmann; Bruno Kegler
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para organizar interações entre usuários – não apenas usuários finais, mas também corporações e instituições públicas” (Van
Dijck; Poell; De Waal, 2018, p. 4, tradução nossa)2. Como uma mediação social exercida profissionalmente em con-
dições de midiatização (Silveira, 2015), o jornalismo parece se
colocar numa nova posição no bojo da luta simbólica em torno
do poder, da qual faz parte a contar de seu surgimento. Empre-
sas jornalísticas têm postulado sua preocupação com o impacto
social de suas produções, aludindo uma pretensa responsabi-
lidade social. A mídia de referência alega ser responsável pelo referido jornalismo profissional. Tal expressão, assinala Edgard
Patrício (2020, On-line), cria “uma polarização com qualquer outro jornalismo que não seja profissional” – as iniciativas de
jornalismo independente ou alternativo, por exemplo. Trata-se
de uma expressão utilizada pela mídia de referência com vistas a
promover-se em tempos de crise, como um slogan promocional.
A denominação mídia de referência designa o que até um pas-
sado recente era conhecido como imprensa de referência, in-
cluindo o conjunto de jornais diários e de revistas semanais que
pretendiam ter circulação na amplitude do território brasileiro.
Diante dessa impossibilidade concreta e, mais adiante, com a
consolidação da sociedade midiatizada, os conteúdos divulga-dos na imprensa de referência vieram a definir a programação
noticiosa de televisão e de rádio. Por conseguinte, o caráter refe-
rencial da mídia estabeleceu-se por sua capacidade de impacto
na ordem noticiosa, antes que por indicadores de tiragem, audi-
ência e circulação (Silveira; Hartmann; Schwartz, 2020).
A pandemia da Covid-19 animou a emergência do que se tem
chamado de uma tripla crise: sanitária, econômica e política.
2 No original: “An online ‘platform’ is a programmable digital architecture designed to
organize interactions between users – not just end users but also corporate entities and
public bodies”.
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Descortinando as mazelas da desigualdade profunda que afeta
a milhões de brasileiros, expondo a incompetência institucio-
nal, o novo coronavírus deu abertura a uma chaga que histo-
ricamente se tentou velar. Desacreditada em grande parte das
instituições, a população parece reconsiderar a qualidade do jornalismo dito profissional. Há uma suposta revalorização
da atividade jornalística, correlata, como aponta Roseli Figaro
(2020, On-line), a “necessidade da informação como um bem
fundamental para a vida do cidadão”, especialmente ante a dis-
seminação de notícias falsas.
Entendidas como “histórias sobre fatos inventados ou proposi-talmente alterados para fins políticos” (Dourado; Gomes, 2019,
p. 1), as notícias falsas circulam especialmente com o suporte
técnico de plataformas on-line. Elas ganham impulso num con-
texto em que “há cada vez mais reivindicações de verdade e há
cada vez mais mentiras no que se refere a histórias políticas”
(Dourado; Gomes, 2019, p. 2). Tendo-se em vista que verdade
ou falsidade se relacionam com a possibilidade de que narra-
tivas factuais expressem ou não os fatos a que se referem, há,
como pré-condicionante, a necessidade de abdicar da verdade,
originando-se um novo horizonte cognitivo que tensiona deba-
tes considerados já superados pela ciência.
A disseminação de notícias falsas está, assim, alicerçada na des-qualificação de instituições dotadas de credibilidade para arbi-
trar sobre o conhecimento socialmente aceito acerca dos fatos,
tais como as universidades e o jornalismo corporativo. Parado-
xal e estrategicamente, ademais, no horizonte das notícias falsas há relatos camuflados de notícias, respaldados justamente pela
autoridade e pela credibilidade do jornalismo, que desvirtuam
os fatos, sobretudo em plataformas on-line. Emerge no debate a
necessidade de criar distinções:
Então, o que torna as notícias falsas em falsas notícias? Se
notícias se referem a uma descrição precisa de um evento
Ada Cristina Machado Silveira; Camila Hartmann; Bruno Kegler
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TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
real (Kershner, 2005), o que significa notícias falsas? As
notícias são supostamente - e normalmente - baseadas na
verdade, o que torna o termo “notícias falsas” um oxímoro.
A palavra “falso” é frequentemente usada de forma inter-cambiável com palavras como cópia, falsificação, falsifica-
ção e inautenticidade (Andrea, 2016). O Oxford Dictionary define “fake” como um adjetivo que significa “não genuíno; imitação ou falsificação “. Um estudo sobre a detecção de sites falsos distinguiu dois tipos: “sites falsificados” [spoof
sites], que imitam sites existentes, e “sites inventados”
[concocted sites], que são “sites enganosos que buscam
aparecer como entidades comerciais legítimas e únicas”
(Abbasi et al. 2010, p. 437). Um estudo sobre revisões on--line falsas também especificou o papel da intenção na definição do que é falso. O estudo definiu avaliações fal-
sas “como análises enganosas fornecidas com a intenção
de enganar os consumidores em suas decisões de compra,
geralmente por revisores com pouca ou nenhuma experi-
ência real com os produtos ou serviços que estão sendo re-
visados” (Zhang et al. 2016, p. 457) (Tandoc Jr.; Lim; Ling,
2018, p. 4, tradução nossa)3.
Uma dificuldade para nosso estudo de jornalismo em língua
portuguesa decorre de uma diferença com a língua inglesa que
possui dois termos para referir-se à desinformação: misinforma-
tion e disinformation e, habitualmente, traduzimos a ambas pelo
mesmo termo de desinformação, embora a primeira possa ser
3 No original: “So what makes fake news fake? If news refers to an accurate account of
a real event (Kershner, 2005), what does fake news mean? News is supposedly —and
normatively— based on truth, which makes the term “fake news” an oxymoron. The
word “fake” is often used interchangeably with words such as copy, forgery, counterfeit, and inauthentic (Andrea, 2016). The Oxford Dictionary defines “fake” as an adjective
which means “not genuine; imitation or counterfeit.” A study about detecting fake web-
sites distinguished two types: “spoof sites,” which imitate existing websites, and “con-
cocted sites,” which are “deceptive websites attempting to appear as unique, legitimate
commercial entities” (Abbasi et al. 2010, p. 437). A study about fake online reviews also specified the role of intention in defining what is fake. The study defined fake reviews “as
deceptive reviews provided with an intention to mislead consumers in their purchase
decision making, often by reviewers with little or no actual experience with the products
or services being reviewed” (Zhang et al., 2016, p. 457)”.
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traduzida precisamente por mal-informado e, a segunda, por de-
sinformado (no sentido de deformação).
Conforme Tandoc, Lim e Ling (2018), o termo misinformation
pode referir-se ao “compartilhamento inadvertido de informa-
ções falsas” (situação a), enquanto o termo disinformation se refe-
re ao “desenvolvimento e compartilhamento deliberado de infor-
mações conhecidas por falsas” (situação b). Portanto, na situação
a (mal-informado) há um relativo desconhecimento da gravidade
do compartilhamento da notícia falsa e na situação b (desinfor-
mado ou deformador) há o desejo assumido de disseminá-las.Outra dificuldade com a literatura científica decorre de que igual-
mente em inglês há distinção entre fake News (notícia falsa) e false
News (notícia falsa), uma precisão que ainda não foi incorporada
no debate praticado no Brasil e em língua portuguesa.
Nessa perspectiva, inseridas no horizonte dos problemas da polí-
tica democrática, as notícias falsas devem ser vistas como sintoma
de um fenômeno orquestrado que se inicia com o ataque à credi-bilidade das instituições credenciadas a definir o que é verdadeiro
e o que aconteceu, culminando na “admissão de uma epistemolo-
gia tribal de que verdade e falsidade são relativas aos interesses
da nossa tribo” (Dourado, Gomes, 2019, p. 24). Além e aquém do
jornalismo, estão entre os propagadores de relatos pretensamen-
te verdadeiros, mas efetivamente falsos, personalidades públicas,
da arte ou da política, por exemplo, que o fazem deliberadamente
para distorcer a realidade e com isto obter ou promover ganho
eleitoral ou a adesão às suas ideias, por mais estranhas, ou, no
limite, pandemoníacas que possam parecer ou resultar.
A pandemia na periferia e a construção do pandemônio
Estudar postagens veiculadas em plataformas de mídia social
implica reconhecer o lugar central, já aludido, que tais plata-
Ada Cristina Machado Silveira; Camila Hartmann; Bruno Kegler
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formas ocupam no debate público hodiernamente. Acolhe-se
o argumento, defendido por Van Dijck, Poell e De Waal (2018),
de que a coletividade, os valores e espaços públicos vêm sendo
minados em prol da consolidação de uma intensa conectividade
privada. Contornando as instituições, as grandes empresas de
plataformas – convém destacar as integrantes do chamado “Big
Five”: Alphabet-Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft
(Van Dijck; Poell; De Waal, 2018, p. 4) – servir-se-iam de mode-
los de negócio e coleta, distribuição e armazenamento de dados
bloqueados ao controle democrático.
Isso torna-se potencialmente perigoso quando grande parte dos
serviços (públicos e privados) hoje ofertados depende de infra-
estruturas técnicas e digitais fornecidas por empresas de plata-
formas. E o jornalismo não escapa à regra. A plataformização da
atividade jornalística é correlata à complexidade da situação co-
municativa articulada pelo processo de midiatização, na qual os
atores e instituições que conformam o campo midiático operam mediante constantes reconfigurações de práticas, normativas e
estruturas. Tais questões são relevantes ao se analisar matérias
jornalísticas veiculadas on-line.
Em seu mais recente livro, García Canclini alude para a preva-
lência das aplicações digitais sobre as instituições, enfatizando o
enfraquecimento destas durante a crise neoliberal. As desigual-
dades crônicas do capitalismo aprofundar-se-iam mediante o
uso neoliberal das tecnologias, haja vista que as oportunidades
para “[...] horizontalizar a comunicação, ampliar a distribuição
de bens culturais e incentivar a participação cidadã em decisões
públicas” (García Canclini, 2020, p. 13, tradução nossa)4 teriam
sido negligenciadas durante o processo de convergência digital
multimídia, conduzido quase que integralmente por grandes
empresas. Tem-se um cenário propício à “descidadania” (des-
4 No original: “[…] horizontalizar la comunicación, extender la distribución de los bienes
culturales y propiciar la participación ciudadana en las decisiones públicas”.
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PANDEMIA X PANDEMÔNIO
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ciudadanización), em que “nossas opiniões e comportamentos,
capturados por algoritmos, estão subordinados a corporações
globalizadas. O espaço público se torna opaco e distante” (García
Canclini, 2020, p. 10, tradução nossa)5.
Van Dijck (2019, On-line) sumariza que “a plataformização da
sociedade refere-se à inextricável relação entre plataformas on-
line e estruturas societais”. A partir dos dados produzidos du-
rante a interação do usuário com a plataforma, os algoritmos re-
alizam a personalização de preferências, desejos e necessidades
individuais, através da comparação de padrões históricos de da-
dos, individuais ou agregados. É um processo de análise prediti-
va, que consiste em antecipar escolhas e tendências, sugerindo
o caminho para a continuidade da interação. No Facebook, por
exemplo, a comparação entre as linhas do tempo de diferentes
usuários pode revelar a representação de realidades opostas
para o mesmo fato.
A mercantilização desses dados pode servir à proliferação de
relatos falseados sobre os fatos, as notícias falsas (Dourado; Go-
mes, 2019), e à desinformação, operando-se numa lógica quanti-
tativa de visibilidade e de relevância que colidem com os valores
públicos que regem a prática jornalística. Ilumina-se, em espe-cial, a possibilidade de inflar a visibilidade e assim distorcer a
relevância de um tema ou a hegemonia de uma opinião, apoian-do-se na criação de perfis falsos e na ação de robôs.
É ilustrativa, nesse sentido, a ordem judicial emitida pelo Supre-
mo Tribunal Federal (STF), no dia 24 de julho de 2020, deriva-
da de ação conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes e que
derrubou contas ligadas a apoiadores do Presidente Jair Messias
Bolsonaro em plataformas como Facebook e Twitter. A decisão é
integrante de ação emitida pelo mesmo ministro dois meses an-
5 No original: “Nuestras opiniones y comportamientos, capturados por algoritmos, quedan
subordinados a corporaciones globalizadas. El espacio público se vuelve opaco y lejano”.
Ada Cristina Machado Silveira; Camila Hartmann; Bruno Kegler
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tes, quando da ordenação de busca e apreensão contra os acusa-
dos de propagarem relatos falseados sobre os ministros do STF6.
Entre os atingidos pela decisão, estão Roberto Jefferson (PTB) e
os empresários Luciano Hang (Havan) e Otávio Fakhoury.
Nessa lógica, pode-se compreender que, muito distante de me-
canismos neutros e restritos à funcionalidade da plataforma, há uma ação opaca de definidores das regras do jogo, proces-so que conduz à reflexão sobre como a (in) compreensão dos fatos influencia cenários eleitorais e impacta sobre o próprio
sistema democrático, como um todo. Ou, no caso em tela, como
podem potencializar os efeitos da desinformação no combate
à pandemia.
Diante desses aspectos, compreende-se porque, no ecossistema
das plataformas, Van Dijck, Poell e De Waal (2018) sinalizam
para o tensionamento da concretização da função do jornalismo de porta-voz do interesse público, conflito que reside na rela-
ção entre, de um lado, a independência jornalística e a cobertura
abrangente da notícia e, de outro, o processo de produção e dis-
tribuição de conteúdo orientado por dados. Assim, os padrões
tecnológicos e os modelos econômicos passam a concorrer para
moldar os valores da atividade jornalística.
Porém, ademais da questão operacional que relaciona linha edi-
torial e interesses econômicos da chamada “cultura de cliques”
do jornalismo de plataforma, permanece desatendida a questão
da presença, representatividade e interesses dos mais vulnerá-
veis e o jornalismo em mutação.
6 Disponível em: bit.ly/39OFj3K. Acesso em: 30 jul. 2020.
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PANDEMIA X PANDEMÔNIO
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Análise da cobertura noticiosa da pandemia e pandemônio
A semiótica material apresenta-se como uma abordagem
metodológica profícua para observar as novas relações pro-
postas pelo jornalismo de plataforma. Ainda que avance em
direção às materialidades, ao que é tangível pelos sentidos,
coaduna com premissas tradicionais da semiótica. Um indi-
cativo dessa adjacência é a influência do clássico Greimas no
trabalho de Latour (2012), projetado a partir de uma pers-
pectiva mais alargada. Akrich e Latour (1992, p. 259, tradu-
ção nossa) explicitam o avanço ao apresentarem seu conceito
de semiótica: “[...] é o estudo da construção de ordens ou da
construção de caminhos e pode ser aplicada a configurações,
máquinas, corpos e linguagens de programação, assim como
a textos [...]”7.
As pesquisas acerca da semiótica material vinculam-se intrin-
secamente ao desenvolvimento da teoria ator-rede (TAR), que
pode ser entendida como uma abordagem daquela. Nas palavras
de Law (2009, p. 141, tradução nossa), enquanto “[...] uma famí-
lia díspar de ferramentas da semiótica material, sensibilidades
e métodos de análise que tratam tudo no mundo social e natural
como um efeito gerado continuamente das redes de relações em
que estão localizados”8, a TAR descreve “[...] a promulgação de
relações material e discursivamente heterogêneas que produ-
zem e reorganizam todos os tipos de atores [...]”9, englobando
objetos, máquinas, seres humanos, animais, organizações, ideias e arranjos geográficos.
7 No original: “[...] is the study of order building or path building and may be applied to
settings, machines, bodies, and programming languages as well as texts [...]”.
8 No original: “[...] is a disparate family of material-semiotic tools, sensibilities, and
methods of analysis that treat everything in the social and natural worlds as a continu-
ously generated effect of the webs of relations within which they are located”.
9 No original: “[...] the enactment of materially and discursively heterogeneous relations that produce and reshuffle all kinds of actors [...]”.
Ada Cristina Machado Silveira; Camila Hartmann; Bruno Kegler
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TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
Isso posto, exemplifica-se a narrativa de vulnerabilidade pre-
sente na noticiabilidade sobre a periferia durante a pandemia.
Cabe destacar que a narrativa é recorrente não apenas em maté-
rias que versam sobre o caos que se instauraria nos espaços pe-
riféricos, como também naquelas que tratam de iniciativas das
classes populares para conter o contágio do novo coronavírus.
A matéria “Coronavírus: 92% das mães nas favelas dizem que
faltará comida após um mês de isolamento, aponta pesquisa”
(Guimarães, 2020) baseia-se em dados de uma pesquisa reali-
zada pelo Data Favela e pelo Instituto Locomotiva com mulheres maiores de 16 anos, com filhos, moradoras de 260 favelas em
todos os estados brasileiros. O destaque, como consta na man-chete, é para o percentual de entrevistadas que afirmam a possi-
bilidade de suas famílias passarem fome diante da manutenção
do isolamento social a longo prazo. O texto destaca que a divul-
gação da pesquisa integra uma campanha para arrecadar recur-
sos a serem distribuídos para mães das favelas em todo o País e
questiona a postura do poder público em não implementar um plano nacional específico para prevenção e combate à pandemia
nos espaços periféricos.
Observa-se, nesse sentido, que a percepção negativa da realida-
de da pandemia se incrementa ao passo que a parcela entrevis-
tada é pobre e feminina. Uma pesquisa Datafolha publicada no
dia 29 de junho aponta que 47% dos brasileiros têm muito medo de contrair o novo coronavírus. A proporção de pessoas que afir-
ma ter muito medo é maior entre os mais pobres (51% contra
36% entre os mais ricos), mulheres (53% contra 41% dos ho-
mens), e moradores da região Nordeste (52%) (G1, 2020).
A matéria “‘Somos excluídos’: prevenção ao corona ‘esquece’ fa-
velas sem saneamento” (Ferreira, 2020) destaca os problemas
enfrentados por moradores das favelas cariocas de Acari e do
Complexo do Alemão no combate à pandemia, especialmente
pela falta de saneamento básico. O texto traz citações de repre-
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sentantes das favelas e de um médico infectologista e professor
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ademais, aponta
dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, do IBGE, e
de outra realizada pelo Instituto Trata Brasil; ambas retratam
a precariedade do saneamento no município do Rio de Janeiro.
A matéria “Favela de São Paulo vira exemplo em ações contra o
coronavírus” (Rede Globo, 2020b) enaltece ações desenvolvidas
em Paraisópolis para conter o avanço do novo coronavírus. A
rede dos presidentes de rua, formada pelos moradores, tornou--se responsável por monitorar as infecções e verificar aquelas
pessoas que perderam sua renda por conta da pandemia. Segun-
do a matéria, é a partir de doações, vaquinhas pela internet e do
voluntariado que a comunidade tenta driblar a crise.
Os exemplos analisados dão a ver a construção de um padrão
noticioso em que a vulnerabilidade periférica é representada
desde um viés excludente. Ocorreria uma responsabilização
do outro que não tem condições de enfrentar o coronavírus. A
noticiabilidade em acordo à perspectiva dominante tem como
referencial a classe média das capitais brasileiras que em sua
maioria contorna a pandemia. O periférico segue sendo estig-
matizado.
Diante disso, postagens em plataformas de mídia social entre-
gam a emergência do pandemônio. Dentre os materiais que vêm
sendo produzidos e veiculados, percebeu-se a recorrência de
publicações que mostram linhas do tempo. Comumente, as li-
nhas articulam declarações de Bolsonaro com a progressão tem-
poral e a evolução do número de mortes e de casos no Brasil. A
seguir, elencam-se alguns exemplos.A figura 1 foi postada no Twitter por George Marques, jornalis-
ta e especialista em Comunicação Política, que compartilha em
suas redes os bastidores do Congresso Nacional.
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Figura 1 – Twitter, 29/4/2020.
A figura 2 foi veiculada no Facebook por Matheus Albino, econo-mista e doutorando em Demografia pela Universidade Estadual
de Campinas.
Figura 2 – Facebook, 29/4/2020.
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A figura 3 é uma postagem do Senador Humberto Costa (PT) no
Facebook.
Figura 3 – Facebook, 8/5/2020.
A figura 4 foi veiculada no Facebook por Julio De Carvalho Pon-
ce, um perito criminal, bioquímico e farmacêutico.
Figura 4 – Facebook, 2/6/2020.
A figura 5 é uma postagem da GaúchaZH, um portal de notícias
mantido pelo Grupo RBS, no Instagram.
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Figura 5 – Instagram, 7/7/2020.
Como indicam os exemplos, as linhas do tempo sugerem uma
escalada de incremento de problemas em dimensões diversas,
como fome, saúde, pobreza e desemprego, materializando a
construção do pandemônio. Outras postagens corroboram tal
construção; demonstra-se na sequência.A figura 6 é uma postagem do The Intercept Brasil no Instagram, agência de notícias que se mantém através de financiamento
coletivo e que tem se destacado nas mídias sociais pelo traba-
lho investigativo desenvolvido. Explicitando o posicionamento
da agência sobre a conduta de Bolsonaro frente à pandemia, a
postagem anuncia que o discurso irresponsável do Presidente
teria se disseminado na periferia carioca, que estaria contra as
medidas de prevenção do vírus.
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Figura 6 – Instagram, 26/3/2020.
A figura 7 é uma postagem do Deputado Federal Marcelo Freixo
(PSOL-RJ) no Instagram que agrupa várias fotos com manchetes
de jornais internacionais tradicionais que criticam o posiciona-
mento do Presidente brasileiro durante a pandemia. Na legenda,
Freixo assevera: “Bolsonaro é um risco para o planeta e quem
diz isso não é a oposição, é o mundo inteiro”.
Figura 7 – Instagram, 29/4/2020.
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A figura 8 é uma postagem da revista Cult no Instagram que trata
da pauta paralela do governo durante a pandemia. A legenda cita
acobertamentos do Presidente e seus ministros, que estariam se
aproveitando deste momento para realizar suas próprias pau-
tas. Enquanto isso, “as vítimas que lutem”, diz a legenda.
Figura 8 – Instagram, 25/5/2020.
A figura 9 é uma postagem do jornal digital Poder360 no Twitter
que traz uma foto de Bolsonaro segurando uma caixa de medica-
mento, a cloroquina, e apontando-a para uma ema. A foto reper-cutiu nas redes de mídia social, gerando polêmica e ressignifica-
da especialmente desde a ironia ou o deboche.
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Figura 9 – Twitter, 23/7/2020.
Considerações finaisO presente texto está sendo finalizado num momento estimado
como de escalada da pandemia no mundo e ainda em ascensão
da curva de ocorrências no Brasil. O Presidente Bolsonaro, de-
trator tanto da ciência como do senso comum, teria sido con-
vertido no noticiário internacional no dirigente máximo de um
mundo infernal. Na análise aqui realizada, as linhas do tempo
estudadas, assim como a profusa circulação de notícias falsas fa-
zem referência à gritaria e à confusão produzida. Uma questão
da chamada do dossiê para o qual produziu-se o presente texto e
que pode ser respondida neste momento refere-se às narrativas
sobre a pandemia que circularam e circulam nas mídias sociais.
O tensionamento da abordagem noticiosa sobre a periferia no
que tange aos desdobramentos da pandemia nos espaços peri-
féricos evidencia a experiência jornalística com narrativas estig-
matizadas de vulnerabilidade. Conforme documentou-se, a gui-
nada na visibilidade noticiosa conferiu status (momentâneo) à
Ada Cristina Machado Silveira; Camila Hartmann; Bruno Kegler
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ascendente “nova classe média”. A análise permite expor as con-
tradições estabelecidas no que já se havia insinuado como uma
virada na noticiabilidade, em que as classes populares passavam
de objeto da notícia à condição de leitores, dado o incremento de
seu poder aquisitivo. A crise econômica dos últimos anos sepul-
taria tal projeto e a mídia de referência, a par de diversos outros
modelos de mídia corporativa de menor expressão econômica,
enfrentaria uma dramática crise de legitimidade pela emer-
gência do fenômeno das notícias falsas. Um conjunto de aspec-
tos que expõe a fragilidade de uma ordem noticiosa embasada
numa perspectiva distanciada da ampla maioria da população
brasileira e corresponsável pelas limitações cognitivas apostas
ao debate público.
Uma série de fatores responde sobre consequências pande-
moníacas do governo federal. O fenômeno das fake News e a
promoção de atitudes de negacionismo certamente adensam a
complexa e dramática condição dos brasileiros na pandemia de
Covid-19. As altas taxas de contágio brasileiras fazem de sua po-pulação um cenário justificável como laboratório para teste de
vacinas. Um elemento do pandemônio ainda não considerado,
assim como a polêmica em torno da prescrição da cloroquina e
outras medicações para tratamento da doença.
Depois do exposto, cabe indagar se o Brasil, sob o comando do
“Capitão Cloroquina”, personagem imaginário que se presta aos
mais hilários exercícios de charge pelo planeta, poderá reinven-
tar-se e renovar o projeto de nação.
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Recebido em 30/07/2020
Aceito em 30/10/2020