TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
Sobre Cocares e Máscaras: Estratégias
das Lideranças Indígenas em Manaus no
Enfrentamento à Covid-19
Luciano Cardenes*1
Deise Lucy Oliveira Montardo**2
Resumo
Manaus, capital do Amazonas, foi uma das primeiras cidades brasileiras a
se tornar epicentro da pandemia do Covid-19. Entre os meses de março e
abril, os índices de adoecimento e morte foram altíssimos e causaram o co-
lapso do sistema de saúde. Como no restante do mundo, a pandemia ressal-
tou problemas que já existiam. No caso de Manaus, a população indígena
que habita a cidade e seus entornos sofreu um impacto muito grande e atra-
vés de suas lideranças e associações teve uma reação também forte. Neste
artigo apresentamos aspectos da presença indígena na cidade de Manaus.
Em seguida descrevemos, brevemente, algumas das associações indígenas
da cidade de Manaus e estratégias por elas desenvolvidas no momento da
explosão dramática dos casos da doença no estado do Amazonas.
Palavras-chave: Povos indígenas. Manaus. Covid-19. Resistência. Etno-
grafia em contextos digitais.
1 Doutor em Antropologia Social. Professor do Curso de Pedagogia Intercultural para
Professores Indígenas do Vale do Javari e pesquisador associado ao Núcleo de Estudos sobre Etnografia & Educação Escolar Indígena na Amazônia da UEA. Membro do Núcleo de Políticas Territoriais na Amazônia (NEPTA-UFAM). E-mail: lucscardenes@gmail.com
2 Doutora em Antropologia Social. Professora da Universidade Federal do Amazonas. Pesquisadora do Instituto Brasil Plural. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Maracá, estudos sobre arte, cultura e sociedade. E-mail: deiselucy@gmail.com
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On Cocares and Masks: Strategies of Indigenous
Leaders in Manaus to Confront Covid-19
AbstractManaus, the state capital of Amazonas, was one of the first Brazilian cities to become the epicenter of the Covid-19 pandemics. Between March and April, the rates of infection and death soared, causing the collapse of the health system. As in the rest of the world, the pandem-ics highlighted already existing problems. In the case of Manaus, the indigenous population living in the city and its surroundings felt a very great impact and, through their leaders and associations, react-ed strongly. In this article, we present some aspects of the indigenous presence in the city of Manaus. Then, we briefly describe some of the indigenous associations of the city and the strategies they developed at the time of the dramatic explosion of Covid-19 cases o in the state of Amazonas. Keywords: Indigenous. Manaus. Covid-19. Resistance. Digital ethnog-raphy.
Sobre Cocares1 y Máscaras: Estrategias de Liderazgos
Indígenas em Manaus para Hacer Frente a Covid-19
Resumen
Manaus, capital de Amazonas, fue una de las primeras ciudades brasileñas
en convertirse en el epicentro de la pandemia de Covid-19. Entre los me-
ses de marzo y abril, las tasas de enfermedad y muerte fueron muy altas y
provocaron el colapso del sistema de salud. Como en el resto del mundo,
la pandemia destacó los problemas que ya existían. En el caso de Manaus,
la población indígena que habita la ciudad y sus alrededores sufrió un gran
impacto y, a través de sus liderazgos y asociaciones, también tuvo una
fuerte reacción. En este artículo presentamos aspectos de la presencia in-
1 Adorno indígena de plumas que usan los indígenas como símbolo de liderazgos o jerar-quía en algunas regiones de la Amazonía.
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dígena en la ciudad de Manaus. A continuación, describimos, brevemente,
algunas de las asociaciones indígenas en la ciudad de Manaus y las estra-
tegias desarrolladas por ellos en el momento de la dramática explosión de
casos de la enfermedad en el estado de Amazonas.
Palabras clave: Pueblos indígenas. Manaos. Covid-19. Resistencia. Etno-
grafía en contextos digitales.
IntroduçãoUma das grandes maravilhas da história das Américas é a ine-xistência comprovada de epidemias e pandemias até o desem-barque dos europeus no continente. Por outro lado, a partir daí, essas foram as causas principais da depopulação dos povos na-tivos. Números altos, muito altos, nestes últimos cinco séculos. Muitas também foram as estratégias desenvolvidas pelos povos
indígenas para resistir. Daiara Sampaio Tukano, em sua dissertação de mestrado, apre-senta alguns itens das violências sofridas pelos povos indígenas, levantados pela Comissão Nacional da Verdade. Entre eles figu-ram os casos da introdução deliberada de doenças e da omissão
diante de epidemias. Em suas palavras:
Em 1967, o Relatório Figueiredo, denuncia a “introdução deliberada de varíola, gripe, tuberculose e sarampo entre os índios” CNV, 2014.” E em outro parágrafo ela menciona, “- Omissões nas políticas de saúde para os povos indíge-nas, desvio dos recursos pela corrupção política, falta de fiscalização e silenciamento diante de grandes epidemias causadas propositalmente por não indígenas. “Em 1987, em plena epidemia de malária e gripe, trazida pela invasão de garimpeiros, o então presidente da Funai, Romero Jucá, alegando razões de segurança nacional, retira as equipes de saúde da área Yanomami. (Sampaio, 2018, p. 36).
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As críticas dos indígenas à cosmologia dos não indígenas é abun-
dante e certeira. Poderíamos citar aqui muitos discursos dos quais temos testemunhos. Por exemplo, a obra de Kopenawa e Albert (2015), o livro a “A Queda do Céu”, que tem desobstruído a grande invisibilidade a qual os povos indígenas têm sido rene-gados no Brasil. Outro livro, também publicado por uma grande editora, é o “Idéias para adiar o fim do mundo”, de Ailton Krenak (2019). Ambos traçam uma crítica ao sistema capitalista, sob a ótica das visões ameríndias, com todos os desdobramentos des-tas, sob o viés ecológico e moral. Essas críticas estão presentes em relatos de muitos pesquisa-dores, artistas, e outros profissionais que escutam de seus in-terlocutores indígenas tais avaliações. Os Guarani, por exemplo, figuram em várias etnografias do século XX avisando a iminên-cia do final do mundo. Montardo (2009) ouviu esta crítica feita pelos Guarani no Mato Grosso do Sul, referindo-se aos karai, não indígenas, como tavy, loucos, por tirarem a cobertura vegetal da terra. As árvores que dão vida à terra. Sem elas a terra morre”. Os Huni Kuin, povo amazônico, em sua filosofia de vida, atribuem: a maior parte das doenças ao fato de comermos animais. As pessoas adoecem porque a caça e os peixes, mas também al-
gumas plantas que consumimos e outros seres que agredi-mos, ou com os quais interagimos, se vingam e mandam seu
nisun, dor de cabeça e tonteira que pode resultar em doença e morte (Lagrou, 2020, n.p.) Lagrou explora essa visão de mundo, nos ajudando, através da ecosofia Huni Kuin, a entender o fenômeno do novo coronavírus. A antropóloga relata como seus amigos Huni Kuin a informaram
de que essa pandemia se trata de nisun, antes de que ela tivesse acesso às notícias sobre o contexto do aparecimento da doença na região de Wuhan, na China. Nessas notícias, segundo ela, a nar-rativa científica mais aceita do momento “atribui o novo corona à passagem do vírus de uma espécie de morcego (horseshoe bat) que vive nas florestas chinesas para o ser humano” (Lagrou, 2020,
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n.p.). Ressaltando que esta transferência de agentes patogênicos dos animais para os humanos acontece quando o ambiente dos animais é invadido e /ou estes estão em stress.
Não é o fato dos humanos comerem caça a causa das epi-demias. As epidemias são o resultado do desmatamento e da extinção dos animais que antes eram seus hospedeiros simbióticos. As epidemias são também o resultado de uma relação extrativista das grandes cidades com as florestas. Elas surgem nas franjas das florestas ameaçadas, nos in-terstícios da fricção interespécie e de lá são rapidamente transportadas para o mundo inteiro através de caminhões, barcos e aviões. E não é somente a caça cujo stress causa pandemias, outros animais também sofrem e causam doen-ças. Estes são prisioneiros de outra área intersticial entre a floresta e a cidade, a área rural do grande agronegócio ali-mentício, notória para o surgimento de novas gripes viru-lentas que podem virar pandemias. É nas grandes criações industrializadas de galinhas e porcos confinados que surgi-ram há alguns anos a chamada ‘gripe suína’ e outras que fo-ram um prenúncio do vírus que observamos hoje. (Lagrou, 2020, n.p.).
Lagrou nos alerta para que escutemos os povos que conhecem essa
multiplicidade de seres que nos habitam e suas teorias de interre-
lacionamentos entre estes e todos os outros. Teorias que falam de
respeito e convivência.
Ao redor do planeta, a pandemia tem deixado mais evidentes as
desigualdades que já existem, oriundas dos processos coloniais e
do capitalismo selvagem, na sua roupagem neoliberal. Em Manaus,
metrópole industrial, incrustada no meio da floresta amazônica, te-
mos as situações mais variadas, muitos bairros sem nenhum sanea-
mento, lacunas enormes no atendimento à saúde e uma população
indígena enorme. Sobre estes que vamos tratar. Os indígenas que
vivem na cidade de Manaus e algumas das estratégias adotadas por
estes diante da pandemia de Covid-19 que teve um ápice na cidade
nos meses de março e abril de 2020.
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Nosso objetivo é apresentar, brevemente, algumas das associa-ções indígenas da cidade de Manaus e estratégias por elas de-senvolvidas no momento da explosão dramática dos casos da doença no estado do Amazonas. Importante salientar que não foi feito um levantamento exaustivo. Buscamos apresentar o cenário etnográfico produzido com base nas principais pesquisas realizadas sobre os povos indígenas na cidade de Manaus e que somamos às redes de contato que es-tabelecemos ao longo de nossa trajetória antropológica. Deste lugar, voltamos nossa atenção às lideranças de associações, es-tudantes, pesquisadores e antropólogos indígenas. Desta forma, limitamo-nos às situações que estiveram no âmbito de nossas
redes de contatos. Em nossa metodologia, iniciamos nossa incursão no trabalho etnográfico em contextos digitais (Parreiras, 2011), buscando aprender mais sobre o que tem sido chamado de uma antropolo-gia do digital por Horst e Miller (2012) ou de pesquisa no campo da cibercultura (Segata e Rifiotis, 2016), tomando os espaços das redes sociais – do facebook, do instagram e das lives nas platafor-mas de streaming – como uma extensão de nossas interlocuções, em territórios marcados por construções socioculturais, políticas, bem como de narrativas e relações de poder e de disputa, intensi-ficadas pelas dinâmicas da pandemia de Covid-19. As redes sociais – o facebook, o instagram e o youtube, entre ou-tras – tornaram-se territórios digitais indígenas ocupados e pro-duzidos pelo protagonismo dos povos ameríndios, isto tanto por lideranças quanto por organizações indígenas que publicaram opiniões pessoais de caráter público, veiculando mídias produ-zidas em seus cotidianos durante a pandemia, denunciando as invasões, reivindicando a proteção e desintrusão das terras indí-genas, exigindo o atendimento à saúde e clamando por socorro às instituições de proteção aos direitos humanos e à sociedade
civil mundial.
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Esses territórios digitais indígenas se caracterizaram pela ocu-pação dos espaços das redes sociais com as reflexões dos povos indígenas sobre a pandemia, como uma consequência da explo-ração ambiental, situando as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos ameríndios enquanto serviços prestados ao bem estar da humanidade.
Desde o momento em que as medidas de distanciamento social se ampliaram, agravando os problemas sociais já existentes, as redes sociais também foram ocupadas por denúncias da situa-ção de insegurança alimentar nas terras e comunidades indíge-nas. A partir daí, para além das discussões sobre cestas básicas, iniciam-se uma série de debates sobre a relação intrínseca da saúde dos corpos com a alimentação e o território que a produz. Lideranças e organizações indígenas produziram publicações, notas de repúdio, vídeos, imagens, lives, participaram de entre-vistas, campanhas de arrecadação online, shows beneficentes e reuniões institucionais junto aos órgãos do poder público e de defesa dos direitos humanos. No primeiro abril indígena online do País, a Articulação dos Po-vos Indígenas do Brasil (APIB) e a rádio Yandé2 transformaram as redes sociais em terra indígena, ocupando-a com memórias, histórias de luta e, sobretudo, com a música e arte indígenas, apresentando as performances do artista macuxi Jaider Esbell3, as canções de Djuena Tikuna4 e os diálogos com poetas, escri-
2 O Abril Indígena está disponível nas várias redes sociais: https://radioyande.com/ ht-tps://www.facebook.com/radioyande/ https://www.facebook.com/apiboficial/ Acesso em 29 jul. 2020. 3 Considerado um dos expoentes da Arte Indígena Contemporânea, cujos trabalhos po-dem ser conferidos em sua rede social: https://www.facebook.com/jaider.esbell e em seu site http://www.jaideresbell.com.br/site/ Acesso em 29 jul. 2020.4 Jornalista, produtora cultural e cantora cujos trabalhos podem ser conferidos em https://djuenatikuna.com/ e https://www.facebook.com/DJUENA Acesso em 29 jul. 2020.
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tores, dezenas de lideranças, estudantes e pesquisadores indí-genas conduzidos por Daiara Tukano, Sônia Guajajara e seus
convidados. Pajés de várias etnias, como por exemplo os Yawanawa do Acre, utilizaram os espaços digitais para continuar produzindo suas práticas de espiritualidade, evocando a ancestralidade, os cânti-cos, os rituais, as defumações, os banhos, os chás e benzimentos, transmitidos para além das malocas e das fogueiras das casas de reza5.De maneira geral, os resultados apresentados neste artigo cor-respondem ao registro de uma situação social em andamento, em que luto e resistência se encontram inconclusos, da mesma maneira que a pandemia da Covid-19 no Brasil e no mundo.
1. Cenário etnográfico sobre os indígenas que vivem na
cidade de ManausSegundo o IBGE (2010)6, os dados censitários produzidos sobre o Amazonas indicam um estado brasileiro com uma população indígena de 183 mil pessoas, 64 povos indígenas, falantes de 53 línguas, vivendo em 163 terras indígenas regularizadas pela FU-NAI e com 206 unidades identificadas, mas sem nenhum proces-so de regularização.Na antropologia, o conceito de processo de territorialização nos possibilita fazer uma leitura de como grupos étnicos se organi-zam ao longo da história, ressignificando-a, atualizando os sig-nificados atribuídos às suas práticas tradicionais, produzindo
5 Como por exemplo Hushahu Yawanawá em live realizada no dia 25/04/2020, disponí-vel em https://www.facebook.com/100003094116314/videos/2855809484532161/ Acesso em 29 jul. 2020. 6 Dados disponíveis em https://indigenas.ibge.gov.br/ e https://cidades.ibge.gov.br/ Acesso em 29 jul. 2020.
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formas coletivas de existência, com a criação de organizações de representação político-administrativa, que atuam em unidades sociais como aldeia, comunidade, associações, união ou coorde-nação de povos indígenas. Conforme pontuou Oliveira:
A noção de territorialização é definida como um processo de reorganização social que implica: 1) a criação de uma nova
unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a constituição de meca-nismos políticos especializados; 3) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; e 4) a reelaboração da cultura e da relação com o passado (Oliveira, 2016, p. 203).
O resultado dos processos de territorialização, segundo Almeida (2008), são as territorialidades específicas, determinadas por relações sociais assentadas na solidariedade, na ajuda mútua, na passagem de sujeitos atomizados para agentes coletivizados, com capacidade de mobilização e de enfrentamento aos seus an-tagonistas, exigindo o reconhecimento e o direito ao território
enquanto comunidades tradicionais. Esses conceitos permitem compreender o Amazonas como locus de inúmeros processos de territorialização, alguns já consolida-dos enquanto territórios étnicos, tal como as terras e comunida-des indígenas com unidades territoriais de referência. Outros, objetos das lutas por meio de mobilizações pelo reconhecimen-to de direitos e das identidades étnicas a partir da atualização permanente de estratégias baseadas no modo de vida tradicio-nal nos espaços urbanos, tal como tem destacado os mapeamen-tos de diversas territorialidades específicas em Manaus7.
7 Há mais de 10 anos, o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, coordenado pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, tem se dedicado a pesquisa colaborativa junto a coletivos indígenas na cidade de Manaus, por meio das oficinas de mapas que registram as narrativas históricas, os processos de luta e a organização de territórios étnicos em Manaus. Disponível em: http://novacartografiasocial.com.br/fasciculos/ Acesso em 29/07/2020.
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Diversos povos e comunidades tradicionais têm produzido es-sas territorialidades específicas, sobretudo em Manaus e outros centros urbanos. Dos 817.963 indígenas que vivem no Brasil, 315 mil pessoas de 300 etnias vivem nas grandes cidades, o que segundo o IBGE (2010) corresponde a 36,2% da população in-dígena de todo o País. Entretanto, mesmo ocupando os espaços de prestação de serviço, os postos de trabalho dos distritos in-dustriais, os espaços das universidades e até mesmo alterando a estética territorial das ocupações irregulares e dos bairros peri-féricos da cidade, estas pessoas enfrentam práticas de invisibili-zação de suas existências. O censo do IBGE realizado em 2010 é um dos exemplos que nos permite refletir sobre as condições objetivas de vida dos indí-genas em Manaus, estimados em 4.040 indivíduos de 92 etnias, falantes de 36 línguas e vivendo em 62 bairros da capital ama-zonense. Os dados produzidos pelo IBGE em 2010 fizeram com que orga-nizações indígenas e pesquisadores como Teixeira e Mainbourg (2014) questionassem tais resultados. Na mesma época, o Dis-trito Sanitário Especial de Saúde Indígena (DSEI-Manaus) esti-mou atender uma média de 30 mil “indígenas aldeados8”, oriun-dos das comunidades situadas na área rural. Entidades de representação indígena como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e agências indigenistas como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) estimavam a população indígena na cidade de Manaus em números que variavam entre 10 e 20 mil pessoas, divergin-do, mas dialogando com os dados do censo de 2000, quando o
8 A categoria “indígena aldeado” tem sido utilizada no âmbito das políticas de saúde para os povos indígenas para delimitar o atendimento apenas a população que vivem em aldeias com território reconhecido ou em processo de regularização junto aos órgãos oficiais, tais como as comunidades da área rural de Manaus, localizadas no Baixo Rio
Negro e Rio Cuieiras.
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órgão recenseador federal identificou 7.894 indígenas vivendo na área urbana de Manaus9, contingente populacional maior do que o produzido em 2010. Bernal (2009), ao debruçar-se sobre os dados censitários da população indígena em Manaus, constatou problemas nos ins-trumentos e metodologias das pesquisas, além de traumas his-tóricos com a sociedade regional, manifestações de violência no plano simbólico e outras vinculadas ao preconceito étnico, que condicionam à invisibilização histórica e o silenciamento destes indivíduos no momento dos registros populacionais, procedi-mento de controle estatal responsável pelo ocultamento destes indivíduos na construção do imaginário nacional e no reconhe-cimento de suas identidades (Oliveira, 2016).Índios na cidade, índios citadinos, índios urbanos ou indígenas em contextos urbanos estão entre as várias categorias que surgi-ram no âmbito das produções acadêmicas sobre a presença e os fenômenos sociais produzidos por estas populações nas cidades. Desde a década de 1960, a antropologia brasileira tem se ocu-pado de analisar os fenômenos socioculturais implicados à cres-cente visibilidade indígena nos espaços urbanos. Bernal (2009) menciona que os estudos sobre áreas de fricção interétnica no Brasil, coordenado por Roberto Cardoso de Oliveira, no início da década de 1960, inicialmente com os Tikuna (Alto Solimões, Am) e Terena (MT), posteriormente composto por Melatti, La-raia e DaMatta, com análises etnográficas junto aos Krahô, Assu-rini e Gavião no Tocantins, demonstram que, nas contradições e pressões que sofrem no espaço urbano, estes povos processam estratégias de sobrevivência e atualização de suas instituições
9 Segundo Bernal (2009), em 1999, uma equipe de pesquisadores da Universidade Fe-deral do Amazonas publicou o relatório “Quando o mundo do índio é a cidade: migração indígena para Manaus”, fruto de pesquisa domiciliar realizada para construção de um censo da população indígena em Manaus, cujo dado produzido estimou 8.500 “índios urbanos”, expressão utilizada na época.
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sociais, das formas de organização política e nas manifestações culturais (Bernal, 2009).Na cidade de Manaus, os estudos sobre “índios citadinos em situação de proletarização” foram inaugurados por Romano (1982) e Fígoli (1985), que realizaram pesquisas etnográficas sobre o processo de organização étnica no momento em que os indígenas de várias regiões do Amazonas, entre os quais os Sateré-Mawé, espalhados em diferentes bairros e ocupações na periferia de Manaus, aglutinaram-se em torno de associações indígenas, como a Associação das Mulheres Indígenas Sateré--Mawé (AMISM), Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (AMARN) e o Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas (MEIAM). Essas organizações político-administrativas passaram a condu-zir a autoafirmação étnica, a busca por reconhecimento e inclu-são social, por meio de alternativas à geração de renda, como a produção de artesanatos e a criação de espaços de referência
para continuidade do ensino das línguas indígenas e demais ins-tituições culturais destes povos, conforme Bernal (2009), Almei-da e Santos (2009) e Santos (2008, 2016) analisaram. O período de consolidação das organização dos povos indíge-nas em Manaus foi objeto da pesquisa de Bernal (2009) e Silva (2001), entre outros das universidades Federal (UFAM) e Esta-dual (UEA) do Amazonas, que identificaram dados populacionais entre 10 mil e 30 mil pessoas. Além de dezenas de associações de representação política, principal estratégia de sobrevivência desses povos que vivem como trabalhadores informais, empre-gadas domésticas ou da venda de artesanatos, mantendo víncu-lo com seus territórios de origem e constituindo uma rede de acolhimento a indígenas oriundos do interior do Amazonas.A presença das populações indígenas na cidade tem se constru-ído a partir de fluxos dinâmicos de idas e vindas entre os ter-
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ritórios constituídos na Amazônia rural e urbana, como descri-to nas pesquisas de Onetti (2004), Rodrigues (2005), Oliveira (2007), Souza (2007, 2011), Santos (2007, 2015), Farias Júnior (2009), Santos (2008, 2016), Almeida e Santos (2009), Torres (et al., 2015), Andrade (2018), entre outros pesquisadores que atuaram em comunidades que se organizaram em torno de um ou mais grupos étnicos nos limites da Manaus urbana e rural. As pesquisas de Santos (2016) e Pereira (2016)10 sintetizaram informações produzidas nos últimos 10 anos sobre povos in-dígenas na cidade de Manaus, indicando entre 34 e 60 etnias vivendo entre os territórios na área rural e em pelo menos 51 bairros de Manaus. Constatando ainda a tendência de formação de comunidades pluritétnicas envolvendo falantes de pelo me-nos 19 línguas em 51 bairros da cidade de Manaus. Essas produções sobre populações indígenas em Manaus são essenciais para o entendimento do cenário que antecede a pan-demia do novo coronavírus no Brasil. Contudo, tratam-se de dados, análises e perspectivas sobre grupos étnicos que ain-da não foram apreendidas enquanto referências para as ações das agências do poder público, fato que se fez notar nas ações e, principalmente, na ausência destas, durante as situações de emergência da crise sanitária da Covid-19.
2. Uma Manaus Indígena
Estudos realizados por Freire (1994; 2004), Pinto (2006), Sam-paio (2006) têm se debruçado sobre o pensamento social e a historiografia amazônica, analisando os relatos de cronistas, de religiosos, de naturalistas, além dos documentos com depoi-
10 Produção realizada em parceria com a Coordenação das Organizações Indígenas de Manaus e Entorno, disponibilizada no site: https://www.indigenasemcidades.com/bi-bliografia. Acesso em 10/07/2020.
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mentos de indígenas que atestam a presença multifacetada e permanente dos ameríndios na cidade de Manaus.Ao revisitar a historiografia regional, Bernal (2009) relembra que em 1778, pouco mais de um século da criação cidade de Ma-naus, a população que ali vivia era de 220 índios, 34 brancos e 2 escravos negros. Citando ainda a utilização do trabalho de crianças indígenas como mão de obra e objeto do comércio pre-senciada pelo naturalista Alfred Wallace (1853) e, mais tarde, em 1875, a política civilizatória por meio da construção de obras públicas por trabalhadores indígenas enviados com esta finali-dade para a recém criada província do Amazonas11. Ao refletir sobre a presença indígena na história da cidade de Manaus, Bernal contribui para consolidar a ideia de que este es-paço sempre foi um território ocupado por indígenas:
Basta olhar os grandes prédios da cidade e pensar na quantidade de mão de obra necessária para a sua construção e sua manutenção; basta lembrar, tam-bém, do número de ocupações secundárias deman-dadas pelos colonos europeus e mestiços vindos do litoral e na área doméstica, ou nas atividades do rio: serventes, cozinheiros, construtores, portadores, pes-cadores, etc. Hoje, imigrantes voluntários em busca de trabalho e novas condições de vida; antigamente, escravos de um sistema econômico no qual a mão de
obra indígena era apenas um recurso natural a ser explorado: os índios sempre estiveram presentes na vida de Manaus (Bernal, 2009, p. 28).
A cidade de Manaus, que foi atingida e se tornou um dos primei-ros epicentros da pandemia da Covid-19 no Brasil, hoje é uma metrópole com mais de 2 milhões de habitantes. Diversas carac-terizações e historicidades poderiam ser exploradas, mas vamos
11 Cf. Bernal, 2009, p. 28.
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nos deter aqui apenas a uma rápida apresentação de três “espa-ços” urbanos distintos, todos marcados pela presença indígena. Uma Manaus urbanizada, construída ao redor de prédios públi-cos coloniais, como o Teatro Amazonas, de condomínios resi-denciais e prédios, das fábricas do distrito industrial, polo que nos conecta às promessas de modernização do capital, mas que ocultam os arredores que cada vez mais se agigantam e lutam pelo direito à vida nos espaços da urbe. A Manaus periférica, dos bairros sem saneamento básico, man-tida isolada por péssimas condições do transporte público e que se organiza por meio de ocupações de moradia, fenômeno que ocorre desde a implantação do distrito industrial de Manaus nos fins da década de 1960, de onde nasceram os bairros da com-pensa, da redenção, da Cidade de Deus e do Tarumã, entre tantos outros onde residem as populações indígenas. E a Manaus rural, situada no limite do urbano, nos fragmentos de floresta e nas beiras de rios que circulam a grande metrópole. Espaços onde vivem populações ribeirinhas, agricultores, comu-nidades indígenas e que sofrem pressão da especulação imobili-ária e do turismo, como por exemplo o curso do Baixo Rio Negro, onde está localizado o Igarapé do Tarumã e as comunidades do
Cuieiras12. A visibilidade da presença indígena nesses vários espaços da ci-dade de Manaus passou por muitas fases distintas. No final de década de 1980, os indígenas que estavam dispersos e individu-alizados construíram o processo de coletivização de suas lutas por meio da criação de associações e comunidades étnicas. Na
12 O turismo envolvendo povos indígenas na região do baixo Rio Negro e Rio Cuieiras tem sido objeto das pesquisas da socióloga Jocilene Cruz et al. (2019) que analisam os processos de territorialização destas comunidades e os conflitos envolvendo as unida-des de conservação. Disponível em: http://cipif.net/images/ANAIS%20-%20I%20CI-PIF.pdf Acesso em 30 jul. 2020.
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década de 1990, por meio das organizações indígenas, passaram a reivindicar o reconhecimento de suas identidades e, ao longo dos anos 2000, a cobrar políticas públicas diferenciadas para va-lorização cultural, geração de renda, educação e saúde. Nesse período entre 2005 e 2011, segundo a pesquisa de Santos (2012), houve a criação de um núcleo de educação escolar indí-gena na Secretaria Municipal de Educação da cidade de Manaus (SEMED). Na prática, isso possibilitou a contratação de profes-sores indígenas que atuam por meio de projetos pedagógicos especiais em espaços ou centros culturais, construídos por algu-mas dessas comunidades e mantidos pelo esforço de professores indígenas e de educadores indigenistas da agência municipal. Mesmo com a consolidação desse espaço na SEMED, ainda não há nenhuma escola indígena em toda a área administrativa da capital amazonense e o número de coletivos indígenas que de-manda e reivindica políticas públicas para a educação escolar indígena para a cidade de Manaus tem aumentado, tal qual os processos por reconhecimento de direitos étnicos diferenciados. Na década passada, o contexto político mais favorável aos direi-tos humanos e pautas das minorias étnicas também oportuni-zou a participação de indígenas na gestão pública, tanto nos es-paços de controle social como na gestão dos setores de agências públicas, como foi o caso da Fundação Estadual dos Povos Indí-genas (FEPI), transformada em Secretaria de Estado dos Povos Indígenas (SEIND) e finalmente reduzida à Fundação Estadual do Índio (FEI), alocada enquanto apêndice administro de uma pasta genérica13.
13 A pesquisa de Daniel Tavares dos Santos (2016) sobre a criação e extinção da Secreta-ria de Estado dos Povos Indígenas oferece uma análise da relação entre estados e povos indígenas, além de dados etnográficos sobre as tensões e conflitos sociais envolvendo indígenas na cidade de Manaus no ano de 2009.
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Na cidade de Manaus, as secretarias municipais de educação, saúde, assistência social, e seus respectivos conselhos, passa-ram a ter “coordenações” voltadas para o interesse dos povos indígenas. Isto se expressou em ações pontuais, que ofereceram oficinas de qualificação profissional, promoveram conferências sobre direitos indígenas, geração de renda, educação, valoriza-ção cultural e mapeamentos para políticas de assistências social. Um dos símbolos desse momento político dos povos indígenas em Manaus acontecia no centro histórico, na Praça da Saudade. A Feira “Puka’a - Mãos da Mata” era realizada durante todo o segundo final de semana de cada mês e contava com exposição e venda de artesanato, culinária, shows e outras atividades. Mon-tardo (2009, n.p.) registra que o site de “notícias da Prefeitura de Manaus dá ênfase no fato de que a iniciativa da realização da Feira é das associações indígenas e que são beneficiadas 40 famílias representando 17 grupos étnicos”. Nesse mesmo site era anunciado que no final de semana do dia 6 de junho de 2008, por exemplo, aconteceriam as seguintes apresentações musi-cais: “Ritual do Pajé”, junto com as danças e músicas tradicionais dos grupos Wotchmaücu e Bayaroá, na sexta-feira; no sábado, as apresentações de cinco grupos Miraigara, Magüta, Kocama e Munduruku, e, no domingo, os grupos Waranã-Mepyt, Mihehu, Inhaã-Bé, Mipinuncury, Waikihu e Aycunã da tribo Sateré-Mawé.Esse é um exemplo de um momento em que as Associações In-
dígenas estavam conseguindo interlocuções com instituições e promovendo propostas para obtenção de garantias básicas pre-vistas constitucionalmente, no âmbito da saúde, educação, sobe-rania alimentar e moradia. Cenário que começa a mudar com o aumento do conservadorismo na gestão pública e com respostas
violentas dos governos ao problema da moradia indígena na ci-dade de Manaus. O episódio traumático ficou conhecido pelas autoridades locais como “caso Carbrás”, quando um movimento popular formado
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por mais de 100 famílias, entre as quais estimavam-se entre 39 e 79 famílias indígenas, ocupou a área de 5.000m², conhecida como lagoa azul, no Parque São Pedro II, zona oeste de Manaus. As pesquisas realizadas neste contexto, entre as quais Almeida e Santos (2009) e Santos (2015), registraram os depoimentos dos indígenas que foram violentamente expulsos daquela área,
como foi o caso da indígena Sateré-Mawé, que estampou as ca-pas dos jornais, à época grávida e com o filho no colo, e foi co-vardemente golpeada em sua cabeça enquanto tentava sozinha conter o avanço tropa de choque da polícia militar14.Foi a partir desse episódio que alguns políticos locais, nas proxi-midades do período eleitoral, passaram a discutir que a solução para o problema da moradia indígena em Manaus seria a criação
de um grande parque indígena para abrigar o maior número de etnias. Segundo Santos (2015), as soluções da época especula-vam quanto a criação de um bairro indígena com áreas de co-mércio, lazer e afirmação cultural, que ao passo que resolveria o “problema indígena em Manaus”, facilitaria o controle por parte
do Estado. Contudo, Santos (2015) afirma que o problema daquelas famí-lias indígenas não foi resolvido. A demanda por terra se trans-formou em demanda por moradia. Os grupos foram alocados na fila de espera das políticas da Superintendência Estadual de Habitação (SUHAB-AM), engrossando as estatísticas das mais de 18 mil pessoas sem moradia naquele momento histórico da ci-dade de Manaus.
14 A fotografia de Luiz Vasconcelos, publicada no jornal Acrítica de 10 março de 2008, registrou o momento em que a indígena Valda Ferreira de Souza, entre tantos outros in-dígenas, enfrentava o batalhão de choque da polícia militar. Com a cara pintada, grávida, com uma mão ela segurava o seu filho e com a outra fazia barreira contra os escudos do batalhão de choque da polícia militar que executava ordem judicial de reintegração de posse, conforme destacou reportagem especial da agência de jornalismo independente Amazônia real. Disponível em: https://amazoniareal.com.br/uma-fotografia-ainda-po-de-mudar-historia/ Acesso em 30 jul. 2020.
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Na época, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), ao ser chama-da para intervir na proteção aos direitos dos indígenas, afirmou que dentro das prerrogativas da instituição não constava o aten-dimento aos “indígenas não aldeados”, categoria utilizada para
tratar aqueles que residem fora das terras indígenas demarca-das, nas cidades, seja em comunidades organizadas, seja disper-
sos nos bairros. Outras instituições governamentais, com apoio da mídia, de empresas de comunicação e grupos empresariais, levantaram suspeitas quanto à veracidade do pertencimento étnico desses indígenas, acusando-os de serem “falsos índios, descendentes de indígenas, índios misturados e outras categorias negativas”,
conforme pontuou Pereira (2016, p. 3) cuja pesquisa realizada junto à Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entor-no indicou pessoas de 34 etnias, falantes de 19 línguas, vivendo em 51 bairros da periferia, em terrenos irregulares, nas áreas de igarapés poluídos, sem água potável e saneamento, com infra-estrutura urbana precarizada e políticas públicas de educação e saúde, em lugares com fortes índices de violência urbana. Na última década o cenário dessa Manaus indígena tem sido marcado pela permanente luta no reconhecimento das identida-des, das línguas, das manifestações rituais, religiosas, artísticas, das territorialidades pluriétnicas e pela efetivação dos direitos
às políticas públicas constitucionais.
3. Estratégias de luta contra a Covid-19Associações indígenas têm conduzido as estratégias de sobre-vivência e luta dos povos indígenas em Manaus. Estas organiza-ções indígenas têm sido criadas por coletivos familiares, comu-nidades étnicas, por grupos ou lideranças indígenas que buscam o protagonismo político. Isso se expressa num número muito dinâmico de entidades que são criadas e que às vezes desapare-
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cem da arena política, como notou Tavares (2012) em sua etno-grafia sobre as organizações indígenas na Amazônia brasileira. As estratégias de luta que mapeamos a seguir, portanto, não al-cançam a totalidade de agentes indígenas que neste momento atuam no enfrentamento da Covid-19 em Manaus. Durante o período de pandemia, sobretudo no primeiro semes-tre de 2020, dedicamo-nos a acompanhar as publicações das redes sociais – facebook e instagram – organizando-as em uma planilha com as datas, o tema, os links de acesso às páginas das organizações e comunidades indígenas e um breve resumo do material publicado. Além das matérias jornalísticas em que os indígenas clamavam por ajuda e denunciavam a situação de in-segurança alimentar e a falta de atendimento médico por parte do poder público responsável pelo subsistema de saúde indíge-na (SESAI/Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena) e da rede básica do SUS na cidade de Manaus. Naquele período, também, realizamos alguns contatos por meio das nossas redes sociais e aplicativos de mensagens com obje-tivo de escutar o que as lideranças de algumas comunidades e organizações indígenas tinham a nos dizer e também no sentido de prestar solidariedade por meio das redes de apoio, do diálo-go com os comitês de enfrentamento à Covid-19 e nas campa-nhas de ajuda humanitária emergêncial com as quais tivemos
contato. O que destacamos abaixo são esforços na luta contra a fome gerada pelo súbito desemprego e fechamento dos espaços de trabalho e prestação de serviços dos indígenas em Manaus. A ocupação dos espaços das redes sociais para a criação de redes de solidariedade, de denúncia e de reflexão sobre as condições
de vida e as desigualdades sociais vividas pelos povos indígenas
na cidade.
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3.1 COPIME – Coordenação das Organizações Indígenas de
Manaus e EntornoA COPIME foi fundada no ano de 2011, por ocasião do III En-contro dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno, evento re-alizado com apoio do Conselho Indigenista Missionário que cedeu o espaço da chácara Xare, localizada na BR-174. Desde a sua criação, estabeleceu o protagonismo indígena como base da filosofia política das lutas pelo acesso à saúde e educação di-ferenciadas, além do direito ao trabalho e do reconhecimento
cultural das identidades étnicas dos indígenas que vivem nas
cidades. A COPIME se constituiu enquanto uma associação que reúne in-dígenas de diferentes etnias, vinculados a associações que re-presentam especificamente comunidades de uma etnia ou plu-riétnicas e famílias indígenas que vivem na capital amazonense, tanto na área rural pertencente à região administrativa da cida-de quanto em ocupações territoriais nos municípios da chamada região metropolitana15. Em 2011, 47 organizações indígenas na cidade de Manaus com-puseram as entidades de base da COPIME, além de outras 12 representando a população indígena residente no “entorno” da capital. Ao final de 2019, 105 entidades político-administrativas que representam famílias indígenas, comunidades territoriali-zadas em ocupações urbanas e associações localizadas nos bair-ros da cidade passaram a fazer parte das entidades associadas, aumentando o alcance das mobilizações e da visibilidade na úl-tima década.
15 Informações obtidas e consolidadas com base nas publicações de redes sociais e comunicações orais em palestras online. A categoria “entorno” é utilizada para indicar os indígenas que vivem nas áreas rurais da cidade de Manaus ou nos municípios que compõem a região metropolitana de Manaus – Rio Preto da Eva, Presidente Figueiredo, Itacoatiara, Careiro da Várzea, Iranduba, Manacapuru e Novo Airão.
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A COPIME tem como duas de suas principais lideranças indíge-nas do povo Sateré-Mawé, Icles Turi e Marcivânia Vieira, respec-tivamente presidente e vice-presidente da organização, que em parceria com outros indígenas são responsáveis pela elaboração do planejamento de manifestações públicas, requerimentos de representação judicial junto ao Ministério Público Federal, re-presentação política no diálogo com outras instituições do po-der público local, como as secretarias municipais de educação
e de saúde. No âmbito da Secretaria Municipal de Educação, em conjunto com os caciques e lideranças das comunidades indígenas situa-das em Manaus e nas comunidades da área rural, a COPIME tem acompanhado os processos de contratação dos professores indí-genas que atuam em projetos especiais de ensino da cultura e da língua indígena e também pressionado para que o órgão público execute e finalize as obras de construção dos centros culturais
para abrigar as atividades promovidas pelos professores indí-
genas. A judicialização de demandas baseadas nos direitos constitucio-nais também tem sido a principal estratégia da COPIME no que diz respeito ao acesso à saúde na rede básica, com atendimento diferenciado, conforme estabelecido pela legislação. Assim, essa organização indígena foi uma das entidades a assinar o termo de ajustamento de conduta da prefeitura de Manaus e que estabele-ceu um prazo para que a Secretaria Municipal de Saúde (SEMSA)
instituísse uma forma de acesso desses indígenas residentes em Manaus na rede de atenção básica, fato que se executou apenas na comunidade Tikuna do bairro da Cidade de Deus, visto se tra-tar de uma comunidade territorializada numa região onde há a existência de uma unidade básica de saúde, o que não ocorre nas demais comunidades em Manaus. Nos primeiros meses do ano que antecederam a pandemia, a COPIME continuou a ocupar espaços de controle social, como
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os conselhos municipais e estaduais de saúde, assistência so-cial e meio ambiente, além de fazer-se presente em audiências públicas e apresentando as reivindicações dos povos indígenas que vivem em Manaus. Desta forma, assegurou não apenas o seu protagonismo como entidade de representação, mas, no que diz respeito à saúde, garantiu junto à SEMSA a inclusão da popula-ção indígena de Manaus nas campanhas de vacinação, inclusive na imunização de H1N1.Durante a pandemia do novo coronavírus, os membros da co-ordenação da COPIME estiveram envolvidos nas atividades em cada uma das comunidades dos quais são membros efetivos. Assim, essa entidade manteve-se na cobrança das autoridades públicas quanto ao atendimento desses indígenas em Manaus e, tão logo a situação de insegurança alimentar se tornou uma realidade, iniciou uma campanha de arrecadação de alimentos e material de higiene. Em parceria com a Pastoral Indigenista e a Arquidiocese de Ma-naus, a COPIME imediatamente montou um ponto de arreca-dação no centro da cidade. Simultaneamente, passou a buscar ajuda dos parceiros que estabeleceu ao longo de sua atuação, inclusive cobrando publicamente a classe dos pesquisadores, que no início da pandemia ausentaram-se das ações de solida-riedade, mas que em pouco tempo passaram a compor comitês de ajuda humanitária. Com os crescentes pedidos de ajuda, não apenas dos indígenas que vivem na área urbana, mas ainda nas comunidades da área rural de Manaus, intensificaram o uso das redes sociais16, cons-truindo uma rede de ajuda solidária envolvendo universidades, grupos do comércio varejista, algumas secretarias de estado, doações de ativistas, indivíduos da sociedade civil e ONGs de
16 A principal rede social da COPIME é o facebook: www.facebook.com/profile.php?id=100009877891694 Acesso em 29 jul. 2020.
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outros países. Até a primeira quinzena de julho de 2020, a enti-dade estima ter atendido 15 mil indígenas de 105 comunidades, associações e famílias em situação de insegurança alimentar por meio da doação de cestas básicas de alimentos não perecíveis, frutas e tubérculos.Marcivânia Sateré Mawé foi a liderança cujo rosto, os brincos de pluma e o cocar têm sido vistos com bastante frequência nos territórios digitais. Ela participa de reuniões online de caráter institucional junto ao Ministério Público Federal, Frente Parla-mentar Indígena do Congresso Nacional, das lives promovidas por universidades, grupos de pesquisa, entidades de direitos humanos e de ação religiosa, oferecendo aos diálogos suas re-flexões que levam em consideração a permanente desigualdade social, a invisibilização histórica dos indígenas que sempre vive-ram nas cidades, inclusive no período em que estas eram territó-rios originários, trazendo ao debate da saúde os problemas das
desigualdades sociais. Outro rosto conhecido da COPIME é o de Icles Turi Sateré-Mawé, a liderança que desde o primeiro mês da pandemia tem atuado não apenas nas redes sociais, mas in loco, no enfrentamento da fome nas comunidades indígenas. Sempre de máscara, no mês de maior letalidade do vírus, ele substituiu seu cocar por um es-cudo de proteção facial. Desde o início da pandemia, por volta das 7h da manhã, há vo-luntários recebendo alimentos no centro de arrecadação da CO-PIME. Diariamente, essas arrecadações passam por higienização e armazenamento com o apoio de indígenas e aliados que aju-dam na entrega das cestas básicas nas comunidades indígenas. Turi Sateré-Mawé trabalhou em todos os esforços para a entrega dessas doações, buscando alcançar não apenas as comunidades com territorialidades consolidadas, como por exemplo os Tiku-na da Cidade de Deus, os Kokama do Ramal do Brasileirinho, os
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Sateré-Mawé das comunidades Yapirehyt na Redenção e Com-pensa, mas sobretudo para as famílias que estão espalhadas nos bairros periféricos da cidade, em comunidades sem território de referência ou sem organização político-administrativa.
3.2 AMISM - Associação das Mulheres Indígenas
Sateré-Mawé
Esta entidade de representação político-administrativa é formada
por mulheres Sateré-Mawé que vivem na cidade de Manaus e man-
tém diálogos permanentes com as redes de parentesco e de sociali-
dade dos territórios do povo Sateré-Mawé da região do Baixo Ama-
zonas. Conforme destacou a pesquisa do Projeto Nova Cartografia
Social da Amazônia (2008), ao perceber que, mesmo com diferentes
processos de organização sociopolítica e territorial, as comunidades
Sateré-Mawé Yapyrehyt e Waikiru (localizadas no bairro da Reden-
ção), Inhã-Bé e Mawé (no Igarapé do Tarumã-Açu), Waranã (Ma-
naquiri) e Sahu-Apé (Iranduba) mantêm relações complexas que
envolvem redes de parentesco, pertencimento étnico e memórias da
migração dos territórios de origem17.
Na década de 1990, Zenilda Freitas e suas irmãs iniciaram as pri-
meiras reuniões de mulheres Sateré-Mawé, criando em 1995 a As-
sociação das Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (AMISM)18, uma
17 Segundo o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (2009), o processo de ter-ritorialização do Sateré-Mawé em Manaus, Iranduba e Manaquiri tem ligação direta com a história de migração de Dona Tereza Ferreira de Souza que no final da década de 1960 chegou em Manaus com suas filhas, entre as quais Zenilda Aparício, fundadora da AMISM. 18 Segundo Onetti (2004, p. 07), a Associação das Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (AMISM) foi fundada em Assembleia Geral realizada na comunidade indígena Ponta Ale-gre, no município de Barreirinha, estado do Amazonas, no dia 20 de agosto de 1995. Na-quela ocasião, estiveram presentes representantes das Comunidades de Araticum, Bom Jardim, Vila Nova, São Miguel, Nova América, Mirituba, Simão, Molongotuba, Castanhal, São João, São Gabriel, Fé em Deus, Ponta Alegre, Nova Sateré, Guaranatuba, Manaus e
Parintins.
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organização indígena que ganhou destaque político nacional e inter-
nacional, principalmente com a discussão de temas referentes às mulheres indígenas e aos direitos humanos na Amazônia. Segundo Santos (2015), inicialmente a AMISM era coordenada por Zenilda Vilácio em conjunto às suas irmãs que também se constituíram enquanto destacadas lideranças femininas no âm-bito da socialidade Sateré-Mawé em contexto urbano19. Com o seu falecimento no ano de 200720, a entidade passou a ser co-mandada por sua filha, Regina Vilácio, cujos esforços para ma-nutenção se concentraram na geração de renda por meio do ar-tesanato e a permanente ocupação de espaços de visibilidade na cidade de Manaus, com a participação em feiras nos espaços públicos, eventos nas universidades, institutos de pesquisa, fa-zendo-se presente nos fóruns de reivindicação por direitos so-ciais junto à prefeitura de Manaus e outras agências do Estado
brasileiro. Regina Vilácio é conhecida pela defesa do artesanato produ-zido por ela e outras mulheres que compõem a AMISM, ofício que mantém também como forma de celebrar a memória das matriarcas Sateré-Mawé, responsáveis pela organização, estra-tégias de sobrevivência e protagonismo político na cidade de Manaus e nos municípios da região metropolitana.No primeiro mês de pandemia, em março de 2020, alguns indí-genas envolvidos nas atividades da AMISM apresentaram sinto-mas da Covid-19, na medida em que a cidade inteira de Manaus viveu a pandemia. A partir desse momento, Regina colocou em
19 O protagonismo das mulheres Sateré-Mawé tem sido objeto das pesquisas de Torres (2014), entre outros intelectuais orientados por esta pesquisadora entre os quais Reis (2010) e Nascimento (2010). 20 De acordo com Santos (2015), Zenilda Vilácio nasceu na comunidade Ponta Alegre no Rio Andirá, município de Barreirinha. Faleceu em 30 de julho de 2007, aos 47 anos. Foi uma das mais importantes lideranças Sateré-Mawé e participou da criação da Coordena-ção das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).
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prática os saberes acumulados no tratamento de doenças com base no uso da medicina tradicional, fazendo chás e defumações com as plantas, folhas, raízes e cascas que dispõe por meio dos cultivos que mantém na área de sua residência ou que acessa por meio de trocas junto a outras Sateré-Mawé e demais indíge-nas na cidade de Manaus, conforme notaram Felix (2007) e Ser-tã (2018).O autocuidado e o acolhimento por meio dos itinerários terapêu-ticos conhecidos pelos Sateré-Mawé têm sido utilizados como estratégia de sobrevivência aos efeitos biológicos causados pela Covid-19. Contudo, enquanto se protegiam, esses indígenas in-gressavam em uma situação de insegurança financeira e alimen-tar, uma vez que a venda de artesanatos, sua principal ativida-de econômica fora interrompida e, simultaneamente, homens e mulheres que atuavam como prestadores de serviço perderam
suas fontes de renda.
A necessidade de adquirir medicamentos indicados pela medi-cina ocidental para o tratamento da Covid-19 e a aquisição de alimentos os empurravam a uma situação de vulnerabilidade anteriormente superada pela organização coletiva. Assim, era necessário que a AMISM se reinventasse para que as famílias Sateré-Mawé resistissem a esta recente pandemia.
Enquanto os membros de sua família enfrentavam os sintomas da Covid-19, a filha de Regina, Samela Sateré-Mawé, estudante do curso de licenciatura em Biologia da Universidade do Estado do Amazonas, lançou-se como condutora do protagonismo da AMISM definindo a produção de máscaras respiratórias como uma estratégia de autocuidado e geração de renda, um item novo adicionado ao trabalho de produção artesanal deste cole-
tivo indígena. Para isso foi necessário um intenso processo de aprendizagem sobre o uso de máquinas de costura para aqueles que ainda não
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tinham prática com estes aparelhos, a escolha dos tecidos com base nas orientações dos órgãos de saúde, os procedimentos de proteção respiratória e higiene das artesãs e artesão envolvidos nesa modalidade de trabalho, somados ao entendimento da im-portância da proteção respiratória neste contexto de pandemia. Samela Sateré-Mawé tem sido uma das principais vozes da AMISM a ocupar os territórios digitais das redes sociais21. Por meio de publicações com textos, imagens, vídeos, ela também inseriu seu coletivo nas lives, participando de reuniões institu-cionais das agências de políticas públicas, atividades acadêmi-cas das universidades, grupos de pesquisa e de várias organiza-ções locais, nacionais e internacionais em que tem constituído canais de divulgação, denuncia e ajuda humanitária aos povos
indígenas. Concomitante a esse aprendizado, a AMISM passou a ocupar as redes sociais, divulgando o trabalho de transformar sementes, miçangas e fibras vegetais nos colares, pulseiras, brincos e anéis
com os quais estabeleceram a sua territorialidade e identidade étnica na cidade de Manaus, destacando as máscaras de proteção respiratória, descoradas com grafismos indígenas como o mais novo artesanato de sua produção, inclusive suscitando debates sobre os grafismos como uma produção artística e ancestral de inspiração livre dos criadores. Para além da divulgação dos trabalhos da AMISM, as redes so-ciais deste coletivo de mulheres também foi veículo de denúncia
ao descaso sofrido pelos povos indígenas que vivem na cidade de Manaus. Assim, a insegurança alimentar foi uma das pautas levantadas e que mobilizou novos e antigos parceiros que se so-maram por meio de compartilhamentos e se materializaram em
21 Entre as principais redes sociais utilizadas pela AMISM podemos citar o facebook: ht-tps://www.facebook.com/amism.sateremawe e o instagram: https://www.instagram.com/amism_sateremawe/ Acesso em 29 jul. 2020.
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doações de cestas básicas não apenas para esse coletivo, mas por meio deste, para outras famílias indígenas.
3.3 Wotchimaücü – Comunidade Tikuna no bairro Cidade
de DeusDe acordo com Cardenes (2018), os Tikuna habitam terras e co-munidades indígenas ao longo de todo Rio Solimões, incluindo a cidade de Manaus, capital do estado do Amazonas. As Terras Indígenas desse povo começaram a ser regularizadas a partir da década de 1980, no contexto de dramáticos episódios de violên-cia contra estes indígenas numa ação comandada por fazendei-ros e comerciantes locais que ficou conhecida como “o massacre do igarapé do capacete22”. Concomitante à luta pela terra, os Tikuna voltaram seus interes-ses aos processos de escolarização bilíngue. Assim, na década de 1990, tinham como principais pautas de luta a gestão territorial, a saúde e a educação diferenciada, mobilizando-se e se fazendo representar por organizações indígenas como o Conselho Geral da Tribo Tikuna (CGTT), a Organização Geral dos Professores Tikuna Bilíngues (OGPTB) e a Federação das Organização, Caci-ques e Comunidades Indígenas Tikuna (FOCCIT), além de tantas outras que foram identificadas no mapeamento das organiza-ções indígenas realizado por Tavares (2012).No ano de 2014, os Tikuna foram considerados pelo censo re-alizado pelo IBGE enquanto o povo indígena com a maior po-pulação em relação à demografia de outros povos do Brasil. O crescente contingente populacional desse povo é visível nas
22 Esse episódio de violência ocorrido na comunidade de São Leopoldo na foz do iga-rapé do capacete, por ocasião de uma assembleia dos Ticuna, foi registrado pelo Centro Magüta de Documentação (1988) e publicado sob o título “Rü aü i ticunagü arü wuʻi - A lágrima Ticuna é uma só”.
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cidades ao longo de todo o Rio Solimões e em Manaus, onde criaram uma comunidade e uma associação no bairro Cidade
de Deus.De acordo com a pesquisa de Clayton Rodrigues (2005), os Tiku-
na que vivem no bairro da Cidade de Deus inicialmente estavam organizados em sete família, totalizando 53 pessoas que migra-ram para a cidade de Manaus em busca de trabalho, escolari-zação, ascensão profissional ou simplesmente acompanhando
seus pais na vida na cidade grande. Numa das ruas do bairro Cidade de Deus, zona leste de Manaus, construíram o Centro Cultural dos Tikuna, sede da Associação, ao redor do qual vivem 12 famílias, totalizando 119 pessoas. De-vido ao sucesso de sua organização coletiva, a Associação da Co-munidade Wotchimaücü passou a ser composta por indígenas Tikuna residentes em outros bairros da cidade, hoje alcançando
algumas centenas de associados. Música e arte sempre foram as principais estratégias de afir-mação étnica na cidade de Manaus. O grupo Wotchimaücü, formado por mulheres e homens, apresenta-se em exposi-ções, feiras, atividades acadêmicas de escolas e universida-des, comemorações e protestos do movimento indígena em Manaus. Todas as mulheres desse grupo atuam na produção de artesanatos que são comercializados nas ocasiões de suas apresentações externas e no espaço do Centro Cultural Ti-kuna, localizado no bairro Cidade de Deus. O grupo gravou o disco compacto (CD) Wotchimaücü, que é vendido também nessas ocasiões (Lins, 2017).O Centro Cultural dos Tikuna é um espaço decorado com grafis-mos das cestarias, personagens e imagens do ritual de Wörecu, uma das manifestações culturais mais conhecidas deste povo. Esta comunidade também é base de referência sociocultural e política para outros artistas indígenas, como a cantora Djuena
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Tikuna, primeira artista indígena a se apresentar como prota-gonista e responsável pela primeira mostra de música indíg-ena realizada no Teatro Amazonas. Ela é irmã do jovem ator Anderson Tikuna, que além de participar de curtas-metragens, estreou como protagonista do filme Antes o tempo não acaba-va (2016)23. Os Tikuna da Cidade de Deus são uma referência em organiza-ção política e comunitária na cidade de Manaus. Com um núcleo da comunidade pequeno, a associação da comunidade Wotchi-maucu reúne mais de 400 Tikuna que vivem em outras zonas da
cidade. Por meio de sua organização, conquistaram o agendamento para indígenas na unidade básica de saúde com intermediação da SE-MSA. No período da pandemia, receberam vacinação e atendi-mento de uma equipe do atendimento municipal. Porém, pouco tempo depois, os moradores das residências no bairro da Cidade de Deus iniciaram a publicação de mensagens nas redes sociais pedindo ajuda em relação à situação de insegurança alimentar. Ainda em março, utilizaram as redes sociais24 para comunicar que estavam doentes e iniciou-se um processo de mobilização de parceiros, sobretudo com a doação de alimentos. No ápice da pandemia em Manaus, quando houve mais de 100 mortes no período de 24h, os Tikuna da Cidade de Deus tiveram o óbito do professor da comunidade, Aldenor Basque, natural de Benjamin Constant, egresso do magistério indígena da OGPTB25.
23 Lançado no ano de 2016, com Direção de Sérgio Andrade e Fábio Baldo, produzido no Brasil e na Alemanha, tendo como protagonista principal Anderson Tikuna. 24 A Associação da Comunidade Wotchimaücü utiliza o facebook como principal rede social. https://www.facebook.com/wotchimaucuacw Acesso em 29 jul. 2020. 25 Sobre a protagonismo Tikuna na conquista da educação escolar indígena básica e no ensino superior, ver: Cardenes, 2018.
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Foi somente após o período de perda de Aldenor e da recuperação
de saúde dos moradores do núcleo da Cidade de Deus que eles conseguiram iniciar seu processo de organização. Rapidamente lançaram uma vaquinha virtual para aquisição de remédios e ali-mentos. E pela repercussão da perda de um de seus entes que-ridos, passaram a receber ajuda de uma universidade particular que disponibilizou um ponto para higienização das mãos26.
3.4 Centro de Medicina IndígenaO Centro de Medicina Indígena Baseri Kowií foi criado em 2009 por esforços de uma família de indígenas Ye’pâ-masa (Tukano) da região do Alto Rio Negro. Naquele ano, o episódio envolven-do o acidente de uma jovem menina que havia sido picada por
uma cobra venenosa e removida da aldeia para o atendimento médico em Manaus colocou-se no foco das discussões sobre os direitos dos povos indígenas, não apenas ao atendimento dife-renciado, mas no respeito e reconhecimento de seus saberes e práticas de saúde. Diante da avaliação do quadro clínico da jovem Ye’pâ-masa, a recomendação médica era salvar a vida da criança mediante a amputação de um de seus membros inferiores. Este tratamento foi considerado inadequado pelos seus familiares, sobretudo os mais velhos que eram Kumü27, especialistas da medicina tradi-
cional no Alto Rio Negro e que propuseram um tratamento em conjunto com as práticas médicas para evitar a cirurgia que con-sideravam desnecessária, mas diante da incompreensão médica,
26 O ponto de higienização das mãos foi feito com base no modelo utilizado em alguns campos de refugiados atendidos por agências de ajuda humanitária, como o Alto Comis-sariado da ONU para Refugiados (ACNUR). Consiste num tambor de plástico de grande
volume com uma torneira uma pia instalada. 27 Kumü no singular e Kumuã no plural são os termos utilizados pelos Yepah-Masah para tratar os sábios especialistas em rezas, benzimentos e procedimentos de cura, popular-mente conhecidos como pajés.
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também foram proibidos de realizar suas práticas no hospital em que a jovem estava internada28. João Paulo Barreto, advogado e antropólogo indígena, conduziu seus parentes Kumuã até uma reunião entre Ministério Público Federal e a equipe médica responsável pelo tratamento. Em um vídeo de apresentação do Centro de Medicina Indígena29, ele afir-ma que o médico responsável os indagou sobre os motivos que os faziam achar que a cirurgia não deveria ser feita e, mas sem aguar-dar a resposta dos especialistas Tukano, afirmou que havia estu-dado oito anos de curso de medicina e que sabia o que era melhor para a menina, deixando a sala de reuniões e gerando indignação.Com o Ministério Público Federal advogando pela realização do atendimento dos Kumuã enquanto um direito constitucional, o hospital foi obrigado a permitir que a jovem fosse atendida pelos itinerários terapêuticos de seu povo. Na conclusão desse episódio, não houve necessidade de cirurgia de amputação e a criança se recuperou contando com o acompanhamento médico e xamânico. Segundo João Paulo Barreto30, aquele momento de indignação o fez pensar em “qual seria a melhor maneira de mostrar para a sociedade e para a classe médica como funcionam os conheci-mentos Tukano, como os Kumuã operam para curar as doenças e quais as concepções e técnicas para tratamento de doenças”. Estas questões o conduziram à pesquisa de doutorado em antropologia, a qual tem se dedicado no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Amazonas.
28 A jornalista Elaíze Farias tem se dedicado ao registro desse episódio desde o seu acontecimento em 2009, publicando alguns de seus trabalhos no site da agência de jor-nalismo independente Amazônia real. Disponível em: https://amazoniareal.com.br/centro-de-medicina-indigena-da-amazonia-e-mais-visitado-por-mulheres/ Acesso em 17 jul. 2020.29 Vídeo disponível no YouTube: https://tinyurl.com/y6faaeeb Acesso em 17 jul. 2020.30 Depoimento registrado no vídeo institucional do Centro de Medicina Indígena. Dispo-nível em: https://tinyurl.com/y6faaeeb Acesso em 17 jul. 2020.
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O amadurecimento das reflexões em torno do diálogo da medici-
na tradicional com a medicina ocidental logo se tornou ponto de articulação junto ao Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), que cedeu o prédio localizado no centro da cidade de Manaus para a sede do Centro de Medi-
cina Indígena31. O Centro de Medicina indígena passou a funcionar diariamen-te em horário comercial. Oferece o agendamento de consultas
com os especialistas em medicina indígena do Alto Rio Negro a preços populares. Comercializa produtos usados na medicina tradicional, como garrafadas, cascas, ervas, raízes, tinturas, po-madas e rapés. Além da venda de livros produzidos pelos pes-quisadores Tukano e artesanatos produzidos pelas mulheres do Alto Rio Negro, o espaço também é utilizado pelo grupo de músi-ca indígena Kariçu. E, entre suas atividades, promove a exibição de filmes sobre a temática indígena, eventos de gastronomia e
música indígenas. No mês que antecedeu a chegada da pandemia em Manaus, o Centro de Medicina Indígena suspendeu suas atividades para promover uma reforma realizada pelos seus colabores, incluin-do os Kumuã, que, apesar do trabalho extra, continuavam com as consultas ao público em horário reduzido. Em 24 de março, com o início da pandemia na capital amazonense, o centro de medicina suspendeu suas atividades até a liberação por parte das autoridades sanitárias. A suspensão das atividades do Centro de Medicina Indígena, en-tre as várias preocupações com a saúde, tinha atenção especial com os Kumuã, pois todos os indígenas que possuem conheci-
mento nos basese (benzimentos, rezas e cânticos) possuíam
31 O prédio localizado na rua Bernardo Ramos, centro histórico da cidade de Manaus, foi utilizado como sede de um dos primeiros projetos de comercialização de artesanato, a Yakinõ, cujo encerramento se deu ainda nos anos 2000.
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idade avançada. Assim, antes do agravamento dos casos em Ma-naus, esses indígenas mantiveram-se isolados em suas residên-
cias enquanto alguns decidiram voltar para as comunidades na região de São Gabriel da Cachoeira, Alto Rio Negro. Quando o Centro de Medicina Indígena teve problemas finan-ceiros para continuar mantendo seu espaço, iniciou uma série de parcerias com artistas organizando uma das primeiras lives entre os indígenas de Manaus. A live era um show que tinha por objetivo a arrecadação de doações financeiras e foi transmitida pelas redes sociais com ajuda de um artista musical32. Posteriormente, o coordenador do Centro de Medicina Indígena esteve envolvido em mais um movimento pelo reconhecimento das práticas de saúde. Com o adoecimento de Higino Tuyuka33, um sábio conhecedor da região do Alto Rio Negro, o coordena-dor João Paulo foi até a Ala de Internação Hospitalar Indígena do Hospital Nilton Lins para entregar um “medicamento tradicio-nal”, uma garrafa com água e benzimentos, mais uma vez sendo impedido, mas fazendo valer seus direitos.
3.5 O Parque das TribosParque das Tribos é o nome dado à ocupação urbana que inicial-
mente foi pensada como um bairro composto por indígenas de diferentes etnias e sinalizado como projeto modelo pela prefei-tura de Manaus, por volta dos anos de 2009 e 2010, no momento posterior à violência policial exercida sobre indígenas que ocu-pavam uma localidade conhecida como lagoa azul, no bairro da Carbrás, zona oeste da capital amazonense.
32 Transmitida pelo instagram e facebook do Centro de Medicina Indígena com apoio do DJ Vinicius Burlamaque Feder.33 htttp://taquiprati.com.br/cronica/1530-higino-e-a-pedagogia-tuyuka-espancando-a--dor? fbclid=IwAR0xnqbjhVah0oV-YQX1uXs2hLcnjQBTDTlWYVfEx5WrslDnjHpiR7RuWNM
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Localizado em área de preservação ambiental e de intensa es-peculação imobiliária, o Parque das Tribos se consolidou como território de referência para 700 famílias, de 35 etnias e falantes de 14 línguas. Quando a pandemia de Covid-19 se iniciou, atingindo os seto-res de prestação de serviços, praticamente todos os moradores do Parque das Tribos foram atingidos e ficaram sem os traba-lhos remunerados que permitiam os sustentos de suas famílias. O próprio artesanato, uma das principais formas de geração de renda das mulheres, também deixou de ser vendido. Isolados em casa, não tardou para que a insegurança alimentar os atingisse. Assim, ainda em março de 2020, os primeiros ape-los diante da perda dos trabalhos na prestação de serviços e da
impossibilidade da venda dos artesanatos foram os pedidos por alimentos e material de higiene. Nas primeiras semanas da pandemia, a liderança Vanda Witoto e sua mãe conduziram um grupo de mulheres para que produzis-sem máscaras de proteção respiratória. Com poucas máquinas de costura e, em princípio, com tecido de TNT, essas mulheres se re-vezaram na produção distribuída gratuitamente aos moradores.Porém, não demorou que os moradores do Parque das Tribos ti-
vessem sua saúde afetada pelos efeitos do coronavírus. Em suas casas, mantiveram-se em isolamento e sem atendimento médico enquanto os sintomas se agravavam. Nesse período, utilizaram dos conhecimentos e práticas de medicina tradicional disponí-
veis para o autocuidado. Sem orientação quanto ao autodiagnóstico dos sintomas que se agravavam e sem atendimento médico, recorreram à técnica de enfermagem Wanda Witoto, a única profissional de saúde do lo-cal, estudante de pedagogia da Universidade do Estado do Ama-zonas e funcionária da Fundação de Medicina Alfredo da Matta.
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Vanda Witoto foi a primeira profissional de saúde a atuar so-zinha, visitando seus vizinhos de casa em casa, aferindo-lhes a pressão arterial, medindo a temperatura, avaliando a oxigena-ção no sangue, orientando quanto às medidas de isolamento e conduzindo os casos mais graves para o atendimento médico nos hospitais de referência. Quando houve a necessidade de remoção de pacientes com sin-tomas graves, foi Vanda quem buscou ajuda do Serviço Público de Ambulâncias, o SAMU. Em uma das lives que participou, ela explicou que ao solicitar o serviço precisou ter paciência para explicar ao atendente que os indígenas que vivem na cidade não são atendidos pelo Distrito Sanitário Especial de Saúde Indíge-na de Manaus. Com a insistência de Vanda, o atendimento do SAMU resolveu coletar os dados de endereço para enviar uma ambulância ao local. Contudo, como o bairro Parque das Tribos não está georreferenciado e não possui ponto de referência34, o serviço comunicou a impossibilidade de atender sua solicitação. Assim, foi Vanda e seu esposo que conduziram pacientes com sintomas graves para os hospitais35. Vanda tem sido a principal liderança do Parque das Tribos a ocupar as redes sociais. Inicialmente, com os pedidos de ajuda, construiu parcerias com artistas locais, como a cantora Márcia
34 Quando os bairros não possuem endereço georreferenciado no mapa da cidade, os pontos de referência solicitados pelo SAMU são prédios públicos ou comerciais, inexis-tentes no bairro Parque das Tribos, localizado na área florestal do Tarumã, entre os limi-tes do aeroporto e afluentes do Rio Negro. Para algumas regiões localizadas às margens do Rio Negro, consideradas perímetro urbano e área rural de Manaus, a prefeitura dis-põe do Serviço Ambulatório Emergencial Fluvial, conhecido como “ambulancha”, com função de remoção de enfermos em situação de emergência.35 O episódio envolvendo o SAMU foi narrado em diálogo com as lideranças indígenas do Parque das Tribos. Nas entrevistas e pronunciamentos sobre a crise sanitária entre os indígenas, Vanda Witoto tem conservado essa denúncia como um dos fatos que expressa a realidade dos povos indígenas em Manaus. Cito como exemplo o diálogo com a Depu-tada Federal Joênia Wapichana, coordenadora da Frente Nacional Indígena de Combate à Covid-19 entre os povos indígenas.
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Novo, criadora da campanha vidas indígenas importam. No de-correr da pandemia, ocupou e produziu espaços nas redes so-ciais com artistas, acadêmicos, instituições públicas, participan-
do em alguns momentos da frente parlamentar de apoio à causa indígena da deputada federal Joênia Wapichana. Durante o agravamento da pandemia em Manaus e concomitante à crise política no Ministério da Saúde, Vanda e outras mulheres do Parque das Tribos protagonizaram um protesto em frente ao Hospital de referência ao tratamento de vítimas da Covid-19 em Manaus. Na ocasião da visita do ministro da saúde e sua equipe, o protesto fez com que o órgão federal sinalizasse para a cons-trução da primeira entre 18 Alas Hospitalares para indígenas no País. Além disso, a prefeitura de Manaus instalou temporaria-mente uma Unidade Básica de Saúde Móvel para atendimento
de indígenas no Parque das Tribos36. Como já mencionamos, as lutas pelo reconhecimento dos indí-genas residentes na cidade de Manaus são anteriores à eclosão
da pandemia que escancarou as desigualdades sociais e condi-ções insalubres em que estas populações vivem na área urbana. Infelizmente, muitas das ações que foram tomadas pelos órgãos públicos e parcerias privadas foram cessadas, assim que, midia-ticamente, o auge da pandemia foi considerado sanado.
Considerações FinaisFrente à situação de pandemia, as memórias dos povos indíge-nas foram ativadas, fazendo vir à tona experiências históricas, algumas que recuam num tempo distante, outras nem tanto,
36 Conforme avaliou e apurou a reportagem especial da agência de jornalismo indepen-dente Amazônia real. Disponível em: https://amazoniareal.com.br/coronavirus-como--um-protesto-de-tres-mulheres-indigenas-mudou-o-atendimento-de-saude-no-parque--das-tribos/ Acesso em: 07 jul. 2020.
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mas que fundamentaram as estratégias de resistência por meio de saberes e práticas socioculturais de autocuidado, com base na medicina tradicional e no enfrentamento político coletivo, promovendo respostas rápidas aos iminentes riscos aos quais estão expostos, simultaneamente com a pandemia de Covid-19
e com as claras políticas de morte do Estado brasileiro. Por meio de lideranças, de associações comunitárias e organi-zações indígenas de abrangência local, regional e nacional, os coletivos indígenas na cidade de Manaus fizeram parte da cria-ção de territórios digitais, não apenas ocupando as redes sociais, mas produzindo conteúdo, mídias, redes de solidariedade e de reflexão. Nestes territórios digitais, as reflexões indígenas expõem que os processos anteriores de invisibilização e negação de direitos submeteram estes povos a condições de vida à margem dos ser-viços mais básicos necessários à sobrevivência. A desigualdade social urbana na qual estão envoltos são antigas, diferentemente da pandemia do novo coronavírus, responsável por escancarar a situação dos indígenas na cidade de Manaus, conforme tem pontuado Marcivânia Sateré-Mawé, uma das representantes da COPIME.Como vimos, a cidade de Manaus foi constituída com a presen-ça indígena. Esta é invisibilizada, como aconteceu também no restante do Brasil, num apagamento violento, linguístico e cul-tural, que podemos considerar como etnocídio. O autossilen-ciamento das origens indígenas foi uma estratégia de sobrevi-vência, que tem sido modificada, em parte, nos movimentos por conquista de moradia e outros direitos, conforme apontamos. Muitas famílias vieram para Manaus, motivadas pelas promes-sas de uma vida melhor, com acesso ao atendimento básico de saúde, em busca da educação para os filhos, enfim, por várias razões, exercendo seu direito à mobilidade. Muitas delas man-têm uma circularidade com seus locais de origem, recebendo e
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servindo de apoio para outras famílias que seguem chegando em Manaus. A negação de direitos com base na ideia assimilacionista de que os indígenas que vivem nas cidades são menos indígenas, que perderam suas práticas socioculturais, tem sido atualizada por meio da categoria “índios desaldeados”, um movimento classifi-catório cruel e que alija estes povos ameríndios dos direitos con-quistados no Brasil, colocando suas vidas em risco no contexto
da pandemia.
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