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Fetichismo da desinformação na web:
uma pandemia agravada
Rodrigo Silva Caxias de Sousa*1
Patricia Valerim**2
Bruna Heller***3
Marcia Heloisa Tavares de Figueredo Lima****4
Resumo
Discute os conceitos de desinformação e práticas informacionais, apro-
ximando-os da noção de semiformação cultural (semicultura), tendo
como referência a Teoria Crítica da Informação e Comunicação. Defen-
de que processos de comunicação ocorrem segundo práticas sociais de
produção intencional de desinformação, segundo um circuito de pro-
dutividade que demanda do receptor/usuário a responsabilidade pela
checagem das informações. Atenta para funções que se multiplicam e podem ser identificadas em relação a diferentes atores sociais, dentre
os quais o Estado. Metodologicamente, trata-se de um estudo explora-
tório de abordagem qualitativa, através de uma triangulação metodo-
lógica, que consistiu em observação espontânea, seguida de análise de
conteúdo e interpretação hermenêutica de um corpus de 86 fake news
do site do Ministério da Saúde do Brasil. Os resultados permitiram a identificação de seis categorias emergidas da pré-análise. Na fase pos-
* Doutor em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCIN/UFRGS). Professor adjunto III do Departamento de Ciência da Informação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: rodrigo.caxias@ufrgs.br
** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universida-de Federal do Rio Grande do Sul (PPGCIN/UFRGS). E-mail: patricia.valerim@gmail.com
*** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universida-de Federal do Rio Grande do Sul (PPGCIN/UFRGS). E-mail: brunahellerbh@gmail.com
**** Doutora em Ciência da Informação pelo convênio Universidade Federal do Rio de
Janeiro/Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Professora perma-nente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCIN/UFRGS). Pro-fessora adjunto I do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: marciahelolima@gmail.com
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terior, foram analisadas cinco notícias, considerando-se a identificação
de aspectos operacionais e situacionais do governo em relação à dis-
ponibilização do conteúdo no site, relacionados às perspectivas ideo-
lógicas e religiosas que, supostamente, entram em contradição com o
propósito de esclarecimento dos cidadãos sobre a pandemia. Concer-
nente às cinco fake news analisadas, é prudente afirmar que o governo
brasileiro se valeu do site do Ministério da Saúde para desinformar e
violar o direito à informação.
Palavras-chave: Desinformação. COVID-19. Semicultura. Teoria Crítica
da Informação e Comunicação. Práticas informacionais.
Disisinformation’s fetishism on the web: worsened
pandemic
Abstract
It discusses the concepts of disinformation and informational practices,
bringing them closer to the notion of semiculture, having as reference
the Critical Theory of Information and Communication. It argues that
communication processes occur according to social practices of inten-
tional production of disinformation, according to a productivity circuit
that demands from the receiver/user, the responsibility for checking the information. Alert to functions that multiply and can be identified
in relation to different social actors, including the State. Methodologi-
cally, it is an exploratory study with a qualitative approach, through a
methodological triangulation, which consisted of spontaneous obser-
vation, followed by content analysis and hermeneutical interpretation
of a corpus of 86 fake news from the website of the Ministry of Health of Brazil. The results allowed the identification of six categories that emerged from the pre-analyzes. In the subsequent phase, five news items were analyzed, considering the identification of operational and
situational aspects of the government in relation to the availability of
content on the website, related to ideological and religious perspecti-
ves that, supposedly, contradict the purpose of clarifying citizens about the pandemic. Concerning the five fake news analized, it is prudent to
Rodrigo Silva C. de Sousa; Patricia Valerim; Bruna Heller; Marcia Heloisa T. de Figueredo Lima
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state that the Brazilian government used the Ministry of Health’s web-
site to disinform and violate information rights.
Keywords: Disinformation. COVID-19. Semiculture. Critical Theory of
Information and Communication. Informational practices.
Fetichismo de la desinformación en la web: una
pandemia agravada
Resumen
Se discuten los conceptos de desinformación y prácticas informativas,
acercándolos a la noción de semicultura, teniendo como referencia la
Teoría Crítica de la Información y la Comunicación. Sostiene que los
procesos de comunicación ocurren según prácticas sociales de pro-
ducción intencional de desinformación, de acuerdo con un circuito de
productividad que demanda del receptor/usuario la responsabilidad de verificar la información. Atentos a funciones que se multiplican y pueden identificarse en relación con diferentes actores sociales, inclui-
do el Estado. Metodológicamente, se trata de un estudio exploratorio con abordaje cualitativo, mediante una triangulación metodológica,
que consistió en observación espontánea, seguida de análisis de conte-
nido e interpretación hermenéutica de un corpus de 86 noticias falsas
del sitio web del Ministerio de Salud de Brasil. A partir de los resulta-dos fue posible identificar seis categorías que surgieron del preanáli-
sis. En la fase posterior, se analizaron cinco noticias, considerando la identificación de aspectos operativos y situacionales del gobierno con
relación a la disponibilidad de contenido en el sitio web, relacionados
con perspectivas ideológicas y religiosas que, supuestamente, contra-
dicen el propósito de esclarecer a la ciudadanía sobre la pandemia. En
referencia a las cinco fake news analizadas, es prudente señalar que
el gobierno brasileño utilizó el sitio web del Ministerio de Salud para
desinformar y violar el derecho a la información.
Palabras clave: Desinformación. COVID-19. Semicultura. Teoría críti-
ca de la información y la comunicación. Prácticas informativas.
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1 Preparando o olhar para o problema
O título deste artigo parafraseia um texto clássico da Teoria Críti-
ca, intitulado “O Fetichismo na música e a regressão da audição” (Adorno, 1991). Nesse texto, o autor aponta para a instrumen-
talização das interpretações estéticas, advindas das raciona-
lidades engendradas a partir da indústria cultural em relação
ao empobrecimento do gosto musical, em virtude da incorpo-
ração da dinâmica de produtividade capitalista ao processo de
formação cultural dos indivíduos. Esses processos semiformati-
vos são articulados de distintas maneiras, a partir dos aparatos
tecnológicos que incidem sobre a sociedade, conformando
práticas sociais no cotidiano do mundo da vida (Habermas,
1984; 1997).
De forma análoga, neste estudo, problematizamos o quanto
práticas (informacionais) de desinformação contribuem para a edificação de processos semiformativos, considerando a pau-
perização da informação como uma das novas égides confor-
madoras do capitalismo cognitivo. Essa discussão aponta para a conjuntura na qual ocorre uma escolha político-informacio-
nal, em que a categoria informação é relativizada, tendo como
marco desconstrutivo a retomada da polarização política em
escala global. Habermas apontava, em 1961, a relevância his-
tórica da discussão de informações sobre a coisa pública em
uma esfera pública que emergiu na Modernidade como fator
fundamental para a construção das democracias ocidentais. E percebia, naquele início de década, os riscos, que se confirma-
riam, da oligopolização dos meios de comunicação de massa. Nos anos 2000 vemos a discussão de uma esfera pública me-diatizada pelas plataformas eletrônicas. O que já era percebido
como problema, agora está ampliado para um contingente de
produtores anônimos com todos os riscos de produção e re-produção “espraiada” de informação não validada. Não mais
oligopólios de informação ao modo empresarial, mas uma rede
disforme de nós de informação.
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Ao depararmo-nos com a danificação e ruptura das formas de
produção simbólica de informações, buscamos compreender
que o uso indiscriminado de (des)informação com o propósito
de manipular e distorcer a opinião pública torna-se estratégia
preponderante. Como consequência, entram em risco a demo-
cracia, as mais honestas práticas informacionais e amplia-se o
abismo informacional, que se torna um dos determinantes do
alto número de mortes, tendo Brasil e EUA como exemplos ne-
fastos da prática de disseminação de fake news (Kakutani, 2018)
por diferentes agentes/atores sociais, dentro os quais os esta-
mentos de primeiro escalão do Estado. Especificamente em relação à pandemia e a COVID-19 (Ricard, Medeiros, 2020), podem ser observadas práticas informacionais de desinformação (Wardle, 2017; 2019; Wardle, Derakhshan, 2017) estabelecidas a partir da superestrutura estatal. Grande dificuldade há em verificar-se a veracidade e precisão
das informações neste período pandêmico, conforme relatam Mesquita et al. (2020), já que a desinformação se espalhou pelo mundo desde os primeiros casos do novo vírus. Nossa discussão
está aqui estruturada a partir de uma contribuição que busca
imbricar conceitos da Teoria Crítica da Informação aos estudos de práticas informacionais. Neste sentido, é necessário avisar
ao leitor a empreitada teórica anunciada. A desinformação com-preendida como produto cultural reificado1 se conforma como
categoria central.
1 Reificação origina-se da palavra latim res e significa coisa. Literalmente, significa “ob-jetificação” ou “coisificação”. O sentido positivo de reificação é usado quando conceitos abstratos são transformados em objetos de estudo na Filosofia, mormente, mas também
nas Ciências Sociais. O conceito está sendo empregado aqui em um sentido crítico mar-
xista, de um processo inerente às sociedades capitalistas que sobrevalorizam a produção
de “coisas”, em detrimento das relações humanas e sociais, podendo ocasionar a perda da subjetividade, da autonomia e da autoconsciência ao atribuir ao ser humano uma
natureza instrumental característica das mercadorias.
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Uma análise assim proposta requer que possamos compreender
que a fetichização da desinformação, em especial das fake news,
consiste tanto na depreciação dos conteúdos, da linguagem ado-
tada, dos elementos retóricos e argumentos de composição das mensagens, quanto na projeção de exacerbado sobrevalor às no-
tícias.
É imprescindível que se tenha uma ação imediata dos governos
frente à pandemia, visto que as autoridades de saúde pública
necessitam “buscar meios para combater o impacto que as in-
formações falsas estão causando, com vistas a perdurar até mes-mo quando a pandemia da COVID-19 terminar” (Fachin, Araújo, Souza, 2020, p. 3).
Segundo González de Gómez (1999), em quaisquer sistemas
de informação realizam-se “ações de informação”, todas, desde
os primeiros processos, marcadas pelo seu “caráter seletivo”. A
mais evidente, e primeira destas ações, é a chamada “seleção”
propriamente dita. Mas o caráter seletivo não é só o ponto de
partida do movimento processual daquilo que vai ser recebido
e entendido como informação em uma base de dados, um ar-
quivo, um portal. O caráter seletivo instaura e constitui todas
as demais fases do processo (qual descritor usar e qual a me-
lhor expressão de busca são exemplos das sucessivas seleções
nos processos que permitem o tratamento e a recuperação da
informação nos diferentes sistemas de recuperação da informa-
ção). De modo análogo, ao analisarmos não só a recuperação,
mas a produção de conteúdos para publicação em páginas da
web, podemos afirmar que as fake news consolidam-se através
de processos em que a desinformação é intencionalmente sele-
cionada e disponibilizada, caracterizando-se, no entanto, como uma patologia social (Targino; Cavalcante, 2020).
Como forma de confrontar discussões teóricas com manifesta-ções concretas identificadas na web, realizamos a análise her-
menêutica de fake news sobre COVID-19. A análise das notícias
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disponibilizadas e checadas pela equipe técnica do Ministério
da Saúde do Brasil em meio à pandemia são o foco do estudo.
Os resultados deste artigo são parte de um estudo exploratório--descritivo em razão de um estranhamento relativo ao conflito de interesses de ordem política e religiosa, identificados dentre
as notícias que compuseram o material empírico do estudo, ten-do em vista a discrepância entre as temáticas identificadas no
site do ministério e o propósito do canal de comunicação.
2 Práticas sociais de desinformação e semicultura
A compreensão das fake news como manifestações inusitadas
de desinformação acena para possibilidades de interpretações
em relação a distintos fenômenos sociais. A discussão conceitual
deste estudo está assim proposta: inicialmente destacamos os
conceitos de práticas informacionais e desinformação. O logro
da proposta, ao buscar aporte na Teoria Crítica da Informação e
Comunicação, posteriormente, os aproxima do conceito de semi-
formação cultural (semicultura). A convergência de tais concei-tos denota a necessidade de discussões em relação à conjuntura
de produção, uso e compartilhamento de informações falsas do
ponto de vista de sua legitimidade em quaisquer locus (Ciência ou
a esfera pública), na qual um circuito de produtividade de desin-
formações caracteriza-se por ações engendradas por diferentes
atores e agentes sociais. A necessidade de informação verdadeira e fidedigna é condição sine qua non para a vida boa aristotélica, em quaisquer esferas da vida humana, seja ela privada (indivi-dual), seja pública (social). Para Araújo (2017, p. 221)
[..] práticas informacionais constitui-se num movimento
constante de capturar as disposições sociais, coletivas (os significados socialmente partilhados do que é informação,
do que é sentir necessidade de informação, de quais são as
fontes ou recursos adequados) e também as elaborações e
perspectivas individuais de como se relacionar com a infor-
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mação (a aceitação ou não das regras sociais, a negociação
das necessidades de informação, o reconhecimento de uma
ou outra fonte de informação como legítima, correta, atual),
num permanente tensionamento entre as duas dimensões,
percebendo como uma constitui a outra e vice-versa.
A perspectiva acima apontada é fundamental para a construção
democrática, seja pelos movimentos diastólicos entre indivíduo, coletividade e sociedade; seja pela legitimidade e correção das
informações produzidas e compartilhadas na sociedade.
Considerando esses aspectos nos valemos do conceito de práticas informacionais proposto por Savolainen (2008), que as compre-
ende como os mecanismos que os indivíduos usam para promo-
ver seus empreendimentos cotidianos, baseando-se essencial-
mente em seus estoques de conhecimento como ponto de partida
para a produção e compartilhamento de informações e são postas
em movimento nas interações entre atores sociais, condicionados
por aspectos advindos e reverberados na estrutura social. Essas práticas informacionais são, como já o dissemos, seletivas
e fundamentadas em processos de composição de conteúdos e
inclusão, em quaisquer contatos sociais, mormente na constru-
ção de páginas na web ou portais ministeriais que são ofertados
ao acesso público que deveriam pautar-se pelo cumprimento da
obrigação de informar do Estado,
A fórmula “direito à informação verídica sobre os aconteci-
mentos públicos” defendida também por Carvalho (1994)
encontra apoio teórico em Kant desde 1795, em Habermas
(1997) que vê o Direito como força integradora e em Han-nah Arendt, na leitura de Celso Lafer (1991), para quem a
informação verdadeira tem força estabilizadora na Política, sobretudo nas democracias. (Lima, 2013, p. 16).
Entretanto, merecem destaque as formas alternativas de de-
preciação da informação, dos conteúdos e dos processos de co-
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municação, “as fake news não se constituindo apenas um erro jornalístico [...]. Elas têm um elemento adicional: a intenção de
enganar, e enganar com um propósito específico. Fake news são
a mentira intencional a serviço de alguma escusa” (Pinheiro, 2019, p. 88). Neste sentido, as fake news configuram-se como a
versão contemporânea da prática da mentira e do segredo (Bo-
bbio, 1996; Arendt, 1999), categorias analíticas adotadas por Lafer (1991) como contrárias ao direito à informação. As prá-ticas da mentira e do segredo obliteram o “juízo” (categoria de
Arendt) e as possibilidades de agir comunicativo no mundo da vida (Habermas, 1992), ambos fundamentais para o exercício de
uma racionalidade emancipatória e em busca de compreensões
que, pautadas na ética, se apresentam de forma comprometida. Neste sentido,
Hoje sabemos que nossa mente não é especialmente talha-
da para se comportar de maneira racional. Somos levados
espontaneamente a todo tipo de falácia lógica em nosso
pensamento: conclusões indevidas, crença na autoridade e, acima de tudo, viés de confirmação. Se acreditamos em algo,
nossa mente trabalha dobrado para valorizar informações que confirmem essa crença e invalidar informações que a contradigam. (Pinheiro, 2019, p. 90).
Outro aspecto comprometedor está relacionado à produção
excessiva de informações, a hiperinformação, em virtude do
abismo informacional advindo da impossibilidade de acesso
e compreensão dos conteúdos, fruto de interesses ideológicos (Targino, Cavalcante, 2020) que fundamentam e comprometem
a ética balizadora dos processos de comunicação.
Aspecto de não menos importância, diz respeito à atmosfera de
fetichismo atribuída à categoria desinformação. Isso, porque a
desinformação se articula atualmente como cerne de processos
comunicativos depauperados. A exacerbação do valor à desin-
formação, implica em práticas condicionadas pelo uso de dis-
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tintas linguagens, recursos hipermidiáticos, artifícios retóricos,
dentre outros aspectos. Como mencionado no preâmbulo de
nossas discussões, valemo-nos da noção de desinformação, in-
terpretando tal conceito segundo a perspectiva trazida por Flo-ridi (2010), Fallis (2015), Wardle (2017; 2019), que a percebem
como “engano intencional, informação imprecisa que pode en-
ganar as pessoas”.
É importante considerar que, conforme mencionam Ripoll e Matos (2020), no inglês existe uma subdivisão dos conceitos de
desinformação. Os autores Floridi e Fallis consideram apenas a
disinformation como o conceito que abarca a informação impre-
cisa com a intenção de enganar, diferente dos termos misinfor-
mation e mislead, conforme os autores explicam abaixo (Ripoll, Matos, 2020):
É importante perceber que a palavra ‘desinformação’, em
português, muitas vezes é usada enquanto a tradução tanto
de ‘disinformation’, como de ‘misinformation’, duas palavras
que são conceitualmente distintas na língua inglesa. Confor-me menciona Fallis (2010), ambas remetem ao contexto da
informação imprecisa/incorreta (innacurate) e enganosa/
ilusória (misleading). No entanto, misinformation corres-
ponde a um engano originado na fonte emissora de forma
não proposital (honest mistake), enquanto que na palavra
disinformation existe uma intenção consciente da fonte em
enganar (intended to deceive). O autor comenta que, sendo assim, é mais difícil identificar uma disinformation, já que ela é justamente produzida com a intenção de não ser iden-tificada como tal. (Ripoll, Matos, 2020, p. 97).
Diferentemente é necessário compreender vieses distintivos
em relação às perspectivas que consideram a produção da in-formação segundo intencionalidades excusas subjacentes. Neste trabalho, a desinformação será assumida como atitudes subjeti-
vas ou coletivas pautadas em ações que intencionam a pauperi-
zação do ato de informar, conforme evidenciam Ripoll e Matos
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(2020). Ademais, Starbird, Arif e Wilson (2019) compartilham
da perspectiva de que a desinformação se caracteriza como um conjunto de operações estratégicas que visa estabelecer formas
de manipulação nos ambientes online.
As operações de informação estratégica, e em particular
a desinformação, funcionam para minar a integridade
do espaço de informação e reduzir a agência humana,
sobrecarregando nossa capacidade de dar sentido às
informações. Elas, portanto, atingem o âmago de nossos va-
lores. E elas afetam coisas que nos importamos sobre, por
exemplo, encontrar informações que salvam vidas durante
um evento de crise, organização online para mudança polí-
tica e proteção dos espaços online contra intimidação e as-sédio. (Starbird, Arif, Wilson, 2019, p. 20:2, tradução nossa).
A desinformação e as fake news, muitas vezes, são compreen-
didas como construtos simplistas de informação que visam o
engano a algum receptor, mas assumem um escopo mais amplo
ao representar algo que os próprios indivíduos fazem cotidiana-mente (Starbird, Arif, Wilson, 2019). O fenômeno se caracteriza
através de dinâmicas e produtos pautados em racionalidades
instrumentais, que se articulam ao mundo da vida (Habermas,
1984), como a manipulação calculista (Starbird, Arif, Wilson, 2019), em razão do uso das tecnologias da informação como
forma deliberada e proposital de confundir a opinião pública (Kakutani, 2018), característica fundamental da pós-verdade.
A chamada “era da pós-verdade”, com todos os cuidados e pro-visoriedade da noção, trata-se de uma conjuntura em que fatos importam menos do que a opinião pública (D’Ancona, 2018),
uma vez que há uma forte tendência em acreditar naquilo que
catalisa reações sentimentais e emotivas em relação às pessoas.
Decorre desta perspectiva o sucesso das fake news como uma
forte arma para a desinformação: geralmente envolvem um
contexto em que se opõem bem ou mal, direita ou esquerda,
entre outros contrastes.
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Encontramo-nos diante de um impasse ético a ser desvelado, em razão de que o “[...] projeto ideológico subjacente ao avanço
das fake news ameaça o significado da ética da informação 2.0 junto ao imaginário social. Assim, é imprescindível enfrentá-lo como fenômeno social” (Targino, Cavalcante, 2020, p. 33). Para
que possamos avaliar o quanto o poder e as implicações das fake
news são compreendidas sobre a perspectiva adotada, podemos pensar como Starbird, Arif e Wilson (2019, p. 20:4), que enfati-
zam que a “desinformação é menos sobre o valor de verdade de
uma ou mais informações e mais sobre como essas peças se en-caixam para servir a um propósito específico” (tradução nossa). Especificamente em relação ao tema deste estudo, as fake news
elencadas no site do Ministério da Saúde, é necessário enfatizar
que essas manifestações de hiperinformação articulam compo-
sições de conteúdos que interseccionam política, religião e ide-
ologia. Defendemos o argumento de que a conjuntura articulada a par-
tir da pandemia demonstra que o governo brasileiro (ou parte
dele) optou por ações que se pautaram na racionalidade instru-
mental da desinformação. O predomínio de uma racionalidade
instrumental estruturou-se em razão de questões políticas que
se propagam na sociedade, estabelecendo práticas informacio-nais “confusionantes” (Sfez, 1992; 1996) em cadeia a partir de
um governo que engendra articulações que ora apresenta decla-
rações fundamentadas no cuidado das populações embasadas no saber científico, ora disponibiliza fake news (inverdades), ora
desmente-as, e outras vezes ainda onera o cidadão/leitor/usuá-
rio no confronto com outras fontes para a validação de informa-ções. É possível refletir também que há fortes indícios de quebra
de hierarquia e empoderamentos pessoais nos estamentos infe-
riores da burocracia.
Isso ocorre em razão de que as práticas informacionais se en-
contram imbricadas à lógica do capital, perdendo importância a
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informação diante dos subprodutos oriundos dos processos de desinformação e imprimindo à conjuntura da pandemia a sensa-
ção de desordem informacional (Wardle, 2017; 2019). Nesse contexto de desinformação surge a noção de infodemia,
termo que foi cunhado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para categorizar o excesso de informações que dificultam
o acesso a orientações sobre a COVID-19, compreendida como
uma dentre outras formas de desinformação (Organização Pan--Americana de Saúde, 2020). Essa produção concomitante de
informação e desinformação por parte de um mesmo emissor
sobre a doença e a pandemia gera um ambiente de incertezas e
um terreno fértil para a manipulação da informação com inten-
ções duvidosas. Poderíamos destacar, como Bobbio (1996), que
se forma um subgoverno. A suplementaridade de termos rela-
tivos às distintas formas de desinformação tem se consagrado
através da relativização da noção de verdade. A pertinência no
que se refere a discussões sobre a pauperização dos processos
comunicativos e na composição de informações falsas remete,
na atualidade, a ideia de pós-verdade como
sinónimo de mentira emotiva, esto es, la distorsión delibe-rada de la realidad con el fin de crear y modelar la opinión
pública e influir en las actitudes sociales. Una realidad en la que los hechos objetivos, las referencias fácticas, tienen menos influencia que las apelaciones a las emociones y a las creencias personales. (Olmo y Romero, 2019, n.p.).
Na mesma obra “Mudança estrutural da esfera pública”, Haber-mas já afirmava em 1961 que, na contemporaneidade, a verdade
é dependente da validação de argumentos racionais na esfera
pública. Como consequência de circuito de ações informacionais
seletivas que geram produtos ofertados para serem recebidos
e reconhecidos como informação, é propagada uma cultura na qual as formações discursivas, já desvinculadas das referências
éticas inquestionáveis das culturas tradicionais, encontram e
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ancoram sua aura de acreditação na autoridade científica, ao
mesmo tempo que se pactuam na esfera da Política como acor-dos. Neste contexto, a validação e o caráter de verdade da in-
formação passam a depender 1) de seu confronto com o saber legitimado pela Ciência e 2) da pluralidade de fontes de infor-
mações utilizadas pelo receptor/usuário/cidadão. A produção
e divulgação deliberada de fake news, de acordo com uma ra-
cionalidade instrumental, quebra o frágil sistema de crenças na
ordem de uma racionalidade democrática e claramente viola o direito do cidadão de receber informações fidedignas e confiá-
veis do Estado, que tem, por sua vez, a obrigação de informar (Seelaender, 1991). Lembremos que Giddens (1991) afirmava que a confiança é uma das categorias basilares para o funcio-
namento do Estado contemporâneo. O homem contemporâneo precisa confiar que outros seres humanos obedecerão a leis ele-
mentares de trânsito, por exemplo, até para atravessar a rua. Sem esta confiança prévia, de que outros seres humanos cum-
prirão as mesmas leis que obrigam a todos, não há por que sair à rua de modo pacífico.
O argumento de autoridade é uma falácia notória, mas é
dele que dependemos para que a vida em sociedade fun-cione. Confiamos nos cientistas, nos professores universi-tários, nos jornalistas, nos institutos públicos. Essa crença
nas autoridades é racional. Temos bons motivos para acre-ditar na ciência, no jornalismo etc. Eles existem num mundo
que erros de um são explorados por seus rivais, gerando um incentivo virtuoso. Seguem um método científico que
poderia ser reproduzido, trabalham segundo balizas e có-
digos de éticas profissionais que filtram os equívocos mais
grosseiros; são transparentes e estão abertos a críticas.
Mesmo assim, se alguém estiver decidido a acreditar que
as principais instituições da sociedade estão unidas num
megacomplô para enganar sistematicamente o cidadão co-mum, não há como provar de maneira definitiva que ela está errada. Um certo ato de fé - ou melhor, de confiança - é ne-cessário. (Pinheiro, 2019, p. 92-93).
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Essa confiança necessária à manutenção do contrato social advém, conjugada como outros fatores, da crença na forma re-
publicana do Estado moderno no qual a verdade se pactua e se estabelece com base em justificadas proposições ofertadas à discussão pública. Não há uma verdade a priori. A confiança
advém da crença em um “nós” que, aqui reunidos, construímos
a verdade que se postula publicamente sob crivos da razoabili-
dade a que todos concordamos nos submeter, sobretudo quanto à crença em um modelo de Estado cujos dirigentes são eleitos.
Dizendo de outra forma, a validação dessas informações requer que ampliações sejam realizadas no que se refere às formas de
interpretação de conteúdos quer na web, quer nas relações off-
-line no mundo da vida. Isso, porque o mencionado circuito cal-
cado no trinômio produtividade-checagem-validação compro-
mete as possibilidades e interpretações acerca de entendimento
de informações que circulam na esfera pública. Há uma inversão
ética, uma quebra cínica da obrigação de informar do Estado.
Produto dessa inversão ética que, na atualidade, de forma con-
tumaz, relativiza o cerne dos processos de comunicação, a de-
sinformação consubstancia a conformação do que pode ser
compreendido como semiformação cultural. A semiformação
implica na formação do indivíduo por meio da estandardização
da cultura, na qual bens simbólicos têm esvaídas sua aura e es-
sência cultural, em razão da incorporação da lógica do mercado
aos processos que os efetivam. Diante desse empobrecimento a
informação e as práticas informacionais são transformadas pela
lógica semicultural em meras mercadorias. Assim, os produtos
da semicultura servirão de conteúdo formativo para a sociedade
de massa. Este processo formativo denomina-se “semiforma-ção” (Iop, 2009, p. 21).
Tal conceito está em contraposição à busca de entendimento en-
tre os atores sociais, sendo a racionalidade emancipatória refe-
rência que alicerça a formação cultural amplamente discutida
pela Teoria Crítica como alternativa de libertação dos indivídu-
188
FETICHISMO DA DESINFORMAÇÃO NA WEB
TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
os. Neste sentido, as trocas infocomunicacionais são discutidas em nosso domínio e Araújo (2009) afirma
[...] que orientações marxistas se fundamentam na Ciência
da Informação a partir de contribuições oriundas da Teoria
Crítica da Informação. Isso ocorre em virtude de conside-rações ao “[...] conflito, a desigualdade, o embate de inte-
resses (grifo nosso) em torno da questão da informação – e
para tanto, buscará explicar os fenômenos a partir de sua historicidade (Araújo, 2009, p. 197).
Como destaca o autor, é do tensionamento entre distintos inte-
resses relacionados à informação que emerge as possibilidades
de concretização dos processos emancipatórios e o entendimen-
to entre os atores/agentes sociais sobre os atos comunicativos.
O embate de interesses desvelado a partir da produção, uso e
compartilhamento de informações se materializa em subprodu-
tos de informação, em razão de que a suplementação argumen-tativa de tais embates se edifica no âmbito das práticas sociais.
Isso, porque
Toda prática social é uma prática informacional (grifo nos-
so) – expressão esta que se refere aos mecanismos median-te os quais os significados, símbolos e signos culturais são transmitidos, assimilados ou rejeitados pelas ações e repre-sentações dos sujeitos sociais em seus espaços instituídos e concretos de realização (Marteleto, 1995, p. 92).
Alves (2019), no mesmo sentido, articula que com a desinforma-ção coloca-se em risco a autonomia dos sujeitos, embora a liber-
dade de informação, e consequentemente o direito à informação, esteja categoricamente defendida no artigo 5º da Constituição
Brasileira de 1988, incisos XIV e XXXIII, assim como em todo um conjunto de normas supranacionais representado pelas conven-ções e acordos dos quais o Brasil foi signatário (Cepik, 2000).
Rodrigo Silva C. de Sousa; Patricia Valerim; Bruna Heller; Marcia Heloisa T. de Figueredo Lima
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TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
O cidadão tem um direito-crédito de ser informado pelo Estado
com informações verdadeiras e mais do que o superado direito
a ser informado pela simples comunicação de fatos. O “direito ao
fato” envolveria um direito-crédito à explicação, no sentido de que seja necessária uma permanente “tradução” da complexifi-
cada gestão tecnocrática do Estado contemporâneo, tornando-se
inteligíveis ao homem comum (Seelaender, 1991). Em relação às
contribuições superestruturais, o Estado tem a obrigação posi-
tiva de informar e minimizar a circulação de desinformações, o que requer um conjunto de ações práticas que objetive a eman-
cipação informacional, o fácil acesso de informações, políticas
públicas de combate à desinformação, entre outros. Em meio à
pandemia da COVID-19, todos esses aspectos (ou a despeito de
que saibamos deles) têm sido utilizados pelos disseminadores
de fake news, direcionando o foco das notícias para interesses
circundantes à doença. Isso, porque as pessoas no mundo da vida encontram-se influenciadas por ambições e tensionamen-
tos que as conduzem a formas de comportamento padronizado
de forma instrumental. A checagem da informação se caracteriza como o conjunto de
procedimentos que busca analisar a qualidade e veracidade
de informações, de acordo com distintas práticas sociais. Atu-
almente encontramo-nos diante da ampliação e de uma nova
ordem não apenas relativa às atribuições, mas, sobretudo, aos atores sociais que as efetivam, visto que a verificação da desin-
formação se consagra como cerne de uma lógica comunicativa
que pauta a desinformação.
Isso implica que a produção, compartilhamento e validação da
informação se concretize como procedimentos efetivados por sujeitos, instituições e o governo. Targino e Cavalcante (2020), a esse respeito, são categóricos ao afirmar que o combate de
parcela do poder governamental às inverdades em diferentes
esferas concretiza-se como contribuição merecedora de apro-
vação uma vez que, pelo menos aparentemente, contribui para
190
FETICHISMO DA DESINFORMAÇÃO NA WEB
TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
processos formativos que visam o esclarecimento das coletivi-
dades quanto ao rechaço à circulação de desinformações e aos seus produtores, haja vista que ações de controle e classificação
normativa sobre a veracidade da informação emergem tanto no cenário do jornalismo quanto no da ciência (Oliveira, Quinan, Toth, 2020) como verdadeiras práticas de contrainformação.
Consideradas as questões desenvolvidas neste estudo, destacamos
que as decisões metodológicas realizadas em meio ao processo ex-
ploratório encontram-se apresentadas no tópico subsequente.
3 A triangulação metodológica
Estudo exploratório-descritivo, de abordagem qualitativa, que
analisou as fake news sobre a COVID-19 checadas e disponibi-
lizadas no site Saúde sem Fake News do Ministério da Saúde do Brasil, entre os meses de janeiro a junho de 2020.
Inicialmente realizamos buscas sobre fake news relacionadas à
COVID-19 na web. Dentre os sites e plataformas de redes sociais
observados, chegamos à webpage www.saude.gov.br, intitulada
“Saúde Sem Fake News”, que compõe o site do Ministério da Saú-
de. Deste modo, foi tomada a decisão de considerar as notícias
sobre COVID-19 arroladas no site do Ministério entre os dias 15 de abril e 31 de julho de 2020, compreendendo a importância
do órgão em relação ao esclarecimento e orientação ao cidadão.
A investigação é derivada de um estudo mais amplo que analisou
um corpus inicial constituído de 86 fake news. Fazemos referência ao corpus maior, com o objetivo de evidenciar de forma panorâmi-ca as primeiras análises, identificando e mensurando palavras dos
títulos das 86 fake news. Baseado em triangulação metodológica,
nos valemos das técnicas de observação espontânea (Gil, 1999), combinada à análise de conteúdo (Bardin, 2016) e interpretação hermenêutica (Gadamer, 2007). Em razão de tal combinação, a
Rodrigo Silva C. de Sousa; Patricia Valerim; Bruna Heller; Marcia Heloisa T. de Figueredo Lima
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TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
obtenção, a organização e a análise dos dados foram compostas a
partir de fases complementares. Esse procedimento foi realizado
através do uso do Software R, desconsiderando as seguintes ex-
pressões “novo coronavírus” e “coronavírus” (stopwords), devido
à recorrência dos termos na maioria das notícias.
A organização dos dados ocorreu através da composição de um quadro com a inserção do conjunto dos 79 hiperlinks das notí-cias em um editor de texto. Na sequência, foi realizada a inserção
no quadro da imagem correspondente a cada hiperlink para, de
forma visual, facilitar o início do processo de análise. Posterior-mente, no mês de junho, foram incorporadas mais sete notícias, sendo a última com data de 08 de junho de 2020. Em meio a esse processo, identificamos a retirada da notícia
(Figura 4) relativa ao uso da Cloroquina, além de uma dimi-
nuição considerável de publicações de notícias. A partir disso,
incluímos no processo metodológico a realização do acesso ao site do Ministério da Saúde duas vezes por semana, para verifi-
car a continuidade de publicações de novas notícias. Mediante à realização da leitura flutuante (Bardin, 2016) uma planilha do Software Excel 2013 foi criada, como forma de permitir o deta-
lhamento das análises em relação às peculiaridades e caracterís-
ticas comuns entre as notícias. Considerando que neste estudo
as decisões metodológicas são produtos de fases que se suce-
dem e que balizam decisões posteriores, desse corpus maior
foram escolhidas para análise hermenêutica cinco fake news, considerando-se a identificação de aspectos operacionais e si-
tuacionais do governo em relação à disponibilização do conteú-
do no site, relacionados às perspectivas ideológicas e religiosas
que, supostamente, entram em contradição com o propósito de
esclarecimento dos cidadãos sobre a pandemia.
Decorrente dos processos de análise e da releitura das notícias
emergiram categorias do fenômeno, que se encontram destaca-das no Quadro 1.
192
FETICHISMO DA DESINFORMAÇÃO NA WEB
TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
Quadro 1 - Categorias emergidas do corpus das 86 notícias
Categorias
Emergidas/
Descrição
Subcategorias/Descrição
Temática prin-
cipal
(Referente aos
assuntos iden-tificados nas
notícias)
CD - Causas da doença - Notícias que indicam fatores supostamente
responsáveis por terem originado a doença.
CP - Cura ou prevenção - Notícias relativas à cura ou prevenção re-
lacionadas à COVID-19.
DE - Danos ou efeitos - Notícias que indicam possíveis sequelas da
doença.
DM - Declarações do Ministro da Saúde - Notícias sobre pronun-
ciamentos dos ministros a respeito da pandemia.
FD - Fatos ou dados - Notícias que relatam acontecimentos ou mos-
tram dados relacionados à pandemia no Brasil e no mundo.
RC - Riscos ou formas de contágio - Notícias que apontam possí-veis fatores ou atitudes que fazem com que as pessoas sejam conta-
minadas pelo vírus que ocasiona a COVID-19.
Linguagem
adotada
(Maneira de
apresentar a
ideia da notícia)
FO - Formal - Pautada no uso culto de expressões em consonância
às normas gramaticais.
IN - Informal - Pautada no uso expressões do cotidiano, de uma for-
ma espontânea, quando não há rigor às normas gramaticais.
ND - Não disponível - Quando a notícia não foi disponibilizada pelo
Ministério da Saúde.
VIS - Visual - Pautada em elementos imagéticos, independentemen-
te da adequação às normas gramaticais.
Elementos de
composição da
notícia
(Recursos
midiáticos que
compunham a
notícia)
AU - Áudio - Recurso sonoro para gravar, transmitir e reproduzir
uma mensagem passível de ser ouvida por uma pessoa.
EM - Emojis - Símbolos que representam uma emoção, ideia, palavra
ou frase completa. Geralmente utilizados em conversas instantâneas
via dispositivos móveis.
IMF - Imagem/ Foto - Signos não verbais que utilizam componentes
visuais para transmitir uma ideia.
LI - Link - Endereço de um site, documento (ou um recurso) na web
(Internet).
ND - Não disponível - Quando a notícia não foi disponibilizada pelo
Ministério da Saúde.
TE - Texto - Conjunto de palavras que transmite uma ideia.
VID - Vídeo - Imagem em movimento que pode ser acompanhada
de som e texto.
Rodrigo Silva C. de Sousa; Patricia Valerim; Bruna Heller; Marcia Heloisa T. de Figueredo Lima
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TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
Categorias
Emergidas/
Descrição
Subcategorias/Descrição
Artifícios retó-
ricos
(Forma como
são compostos
os argumentos
das notícias)
AL - Alarmista - Utiliza-se explicitamente de argumentos que am-
pliam a proporção da notícia, que podem causar medo ou inquie-
tação.
JO - Jornalístico - Utiliza-se de argumentos característicos da lin-guagem jornalística.
NI - Não identificado - Quando não foi possível identificar o artifício
retórico adotado na notícia.
PU - Publicitário - Utiliza-se de argumentos com a intenção de per-
suadir em relação a produtos ou ideias.
RE - Reducionista - Utiliza-se explicitamente recursos que minimi-
zam ou instrumentalizam o assunto noticiado.
SA - Satírico - Utiliza-se de argumentos humorísticos e sarcásticos
como a intenção de criticar costumes, instituições ou hábitos.
SE - Sensacionalista - Utiliza de recursos em que há intenção de
causar impacto, de chocar a opinião pública, procura dar destaque
de importância ou de urgência a uma notícia.
Artifícios de
atribuição de
credibilidade à
notícia
(Relações que
buscam validar
o conteúdo)
AI - Autoridade Institucional - menções a organizações que têm competência técnica, científica ou política. Compreendem também fontes informacionais como jornais e periódicos científicos.
AP - Autoridade Pessoal - menções a indivíduos que possuem um título que confere competência técnica ou científica.
NA - Não se aplica - quando a notícia não menciona nenhuma forma
de atribuição de credibilidade à notícia.
ND - Não disponível - Quando a notícia não foi disponibilizada pelo
Ministério da Saúde.
Procedimento
de checagem
da notícia
(Maneira pela
qual a notícia é
reinterpretada
no que se refere
ao uso de fontes
e argumentos,
possibilitando
que a informa-ção seja valida-
da pelo leitor)
EX - Excluído - Quando excluída a totalidade do conteúdo da che-
cagem.
FU - Fundamentado - Composto por argumentos validados a partir
da menção explícita a fontes de informação nas quais podem ser en-
contradas informações adicionais, possibilitando o cidadão chegar a mesma conclusão de classificação da notícia como falsa ou verda-
deira.
NF - Não Fundamentado - Composto de forma instrumental, em
que os argumentos não são conclusivos e quando não há conteúdos
de fontes adicionais que validem o argumento estabelecido.
Fonte: elaborado pelos autores.
194
FETICHISMO DA DESINFORMAÇÃO NA WEB
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O critério de categorização empregado para a composição das categorias e subcategorias foi o semântico (Bardin, 2016), emer-gido com base no conteúdo explícito identificado em cada no-tícia. Ainda que o quadro acima seja produto de um percurso
metodológico, merece destaque que optamos por apresentá-lo, tendo em vista que se materializa como resultado da leitura flu-
tuante e da pré-análise do material.
4 Análise das notícias Nesta seção são apresentadas inicialmente interpretações re-sultantes da observação espontânea, da leitura flutuante e da
pré-análise. Tendo a intenção de explorar e elucidar o fenômeno,
explicitamos um panorama concernente a 86 fake news, arrolan-
do informações relacionadas às temáticas e à periodicidade das
publicações disponibilizadas no site do Ministério da Saúde. Em
uma segunda fase realizamos a análise hermenêutica das cinco
fake news.
As temáticas estão representadas através da nuvem de palavras,
que ilustra a incidência dos assuntos relativos ao corpus das 86
notícias. A ilustração evidencia uma preponderância de conte-údos relativos à cura ou à prevenção da doença, mais especifi-
camente relacionados à ingestão de alimentos naturais, bebidas
e substâncias supostamente imunológicas, tendo em vista que
estes temas ocupam posição central na Figura 1.
Rodrigo Silva C. de Sousa; Patricia Valerim; Bruna Heller; Marcia Heloisa T. de Figueredo Lima
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TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
Figura 1 - Nuvem palavras obtidas a partir dos títulos das 86 Fake News
Fonte: Dados da pesquisa (2020).
Em menor incidência, localizados à margem da ilustração (ter-
mos com fonte menor em tom azul claro), há uma pluralidade de
tópicos pontuais sobre a pandemia. Entremeado aos assuntos de maior incidência e de menor incidência, ou seja, adjacente à
parte central da nuvem de palavras, podemos observar referên-
cias ao governo, ao ministério, a ministros (grifos nossos) e a
outros elementos circunscritos ao cenário pandêmico.
De forma convergente às temáticas obtidas pela nuvem de pa-
lavras, apresentamos os temas emergidos da análise do corpus
das notícias por ordem de maior para menor incidência: cura ou
prevenção, dados sobre a pandemia, riscos ou formas de con-
tágio, causas da COVID-19, declarações de ministros, danos ou
efeitos da doença.
196
FETICHISMO DA DESINFORMAÇÃO NA WEB
TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
Após elencarmos as temáticas das fake news disponibilizadas no
site, mereceu atenção o fato de que, na medida em que o número
de contágio e mortes por COVID-19 aumentava no País, a quantida-de de notícias checadas pelo ministério diminuía significativamen-te. Causa um estranhamento a projeção de que a população tenha
parado de encaminhar as fake news para serem checadas pelo cor-
po de servidores do ministério, não somente referente à COVID-19,
mas também de qualquer outro tema relacionado à saúde, visto
que, enquanto isso, a situação da pandemia e da infodemia se agra-vavam no País, leva-se ainda em consideração que em 2020, no pe-ríodo de janeiro a junho, especificamente a respeito de coronavírus, totalizaram 86 notícias postadas e distribuídas conforme Quadro 2:
Quadro 2 - Incidências das notícias em diferentes mandatos dos ministros da saúde
Ministro Jan. Fev. Mar. Abr. Maio Jun. Total
Mandetta 16 28 27 6 - - 77
Teich - - - 6 - - 6
Pazuello - - - - 2 1 3
Total 16 28 27 12 2 1 86Fonte: elaborado pelos autores (2020).Vale destacar que depois de junho, somente no dia 17 de julho, uma
nova notícia com temática sobre a COVID-19 foi publicada, com ele-
mentos de apresentação completamente distintos do padrão que vi-
nha sendo adotado pelo site, não havendo mais nenhuma publicação
de notícia, mesmo que de outros temas sobre saúde, até o término das análises aqui efetuadas, no dia 15 de setembro de 2020.
Ainda sobre essas evidências, ressaltamos que o período em que houve diminuição no número de notícias verificadas pelo gover-no, conforme pode ser observado no Gráfico 1, coincidiu com as
trocas ministeriais que ocorreram entre 16 de abril (saída do ministro Luiz Henrique Mandetta), a substituição pelo ministro Nelson Teich, que permaneceu apenas 30 dias no cargo (até 15
de maio), e a posse do ministro interino Eduardo Pazuello (mi-
litar). É necessário enfatizar que essas trocas ministeriais ocor-
Rodrigo Silva C. de Sousa; Patricia Valerim; Bruna Heller; Marcia Heloisa T. de Figueredo Lima
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TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
reram fundamentalmente em razão de divergências entre os
ministros e o presidente, tendo em vista que o presidente Bolso-
naro defendeu abertamente a alteração no protocolo do sistema
de saúde para uso indiscriminado da cloroquina em tratamento
preventivo contra a COVID-19.
A interpretação da possibilidade de haver relação entre as tro-cas ministeriais e diminuição do número de notícias verificadas pelo site pode se valer do que Starbird, Arif e Wilson (2019) cha-
mam de operações estratégias de informação, que se constituem
em ações que visam a manipulação da sociedade, entre elas a
de viés político. Destacamos ainda que o período em que ocor-
reu a publicação do maior número de notícias checadas sobre
a pandemia foi na gestão do ministro Mandetta, circunscrita à
indicação da necessidade de realização do distanciamento social
no Brasil, por volta do dia 16 de março.
Gráfico 1 - Incidências de notícias verificadas pelo Ministério da Saúde
Fonte: Elaborado pelos autores (2020).
A respeito da diminuição da publicação de notícias checadas, des-
de a última troca ministerial, que compreende a saída do ministro
Teich e o ingresso no ministério do ministro Pazuello, ocorrida em maio de 2020, as grandes corporações midiáticas noticiaram
a redução da transparência de dados sobre a COVID-19 por parte
do governo brasileiro, no qual temos o seguinte destaque:
198
FETICHISMO DA DESINFORMAÇÃO NA WEB
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Em meio ao avanço dramático da epidemia do coronavírus
no país, Ministério da Saúde passa a dar menos destaque
a números de mortes e casos. Atrasos e ênfase em dados
“positivos” se tornaram rotina na pasta. [...] adotou uma
abordagem “otimista” em relação aos efeitos da pandemia,
dando ênfase ao número de recuperados. A divulgação dos
boletins com os mortos e contaminados, por sua vez, desa-pareceu das redes sociais da pasta. (Struck, 2020, s.p.).
As análises acima nos permitiram observar contradições no que se refere ao uso do site para fins que não caracterizam o
seu propósito, corroborando a lógica governamental que se
vale de distintos canais de comunicação para incitar disputas
ideológicas e político-partidárias em torno da pandemia, além
de causar desinformação pela ausência de centralização de in-formações. Para Han (2017, p. 21) “A política é uma agir estra-
tégico. Já por causa disso lhe é própria uma esfera oculta. Uma
total transparência iria paralisá-la”.
Em sequência à apresentação dos aspectos que englobam uma
perspectiva mais ampla observada no fenômeno, partimos para
a apresentação do resultado das análises referente às cinco no-
tícias que versam sobre peculiaridades referentes ao governo,
a perspectivas ideológicas e religiosas que orbitam no contexto
pandêmico e na produção de fatos alternativos2 que não neces-
sariamente estão relacionados à COVID-19. É preciso destacar
que as interpretações hermenêuticas consideraram as categori-
zações apresentadas na metodologia deste estudo para a com-
posição das devidas análises.
Entremeio ao corpus das fake news contabilizamos quatro ma-
térias, nas quais, supostamente, os interlocutores da mensagem
eram os ministros da saúde. Para além de esclarecer a população
2 Fatos alternativos foram mencionados por Kellyanne Conway, assessora do presiden-
te norte-americano Donald Trump, para explicar que a realidade individual se trata de “fatos alternativos”, ou seja, a forma como cada um interpreta os fatos (D’Ancona, 2018).
Rodrigo Silva C. de Sousa; Patricia Valerim; Bruna Heller; Marcia Heloisa T. de Figueredo Lima
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TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
sobre assuntos atrelados à COVID-19, percebemos que houve
uma intencionalidade do ministério em relação à escolha de no-
tícias que envolveram declarações de ministros. Essa ação evi-dencia uma operacionalização dos canais oficiais para garantir
uma espécie de blindagem em relação às decisões, discursos e
práticas informacionais do governo. De acordo com estudo de Ricard e Medeiros (2020), para validar essa estratégia, diferen-
tes formas de desinformação foram utilizadas pelo governo bra-sileiro para liderar uma cruzada contra recomendações científi-
cas e baseadas em evidências.Na Figura 2, elencamos a composição de duas notícias que apa-
rentam apresentar conteúdos semelhantes, mas que, no entanto,
utilizam recursos distintos. A imagem da esquerda é uma combi-
nação de áudio com a imagem do ministro Mandetta, e a imagem
à direita utiliza uma composição de texto e áudio, sendo que na
parte textual observamos o uso de uma linguagem informal para comunicar a mensagem. Tal variação engendra reflexões no sen-
tido de que os operadores estratégicos (Starbird, Arif, Wilson, 2020) articulam diferentes recursos para viralizar a desinfor-
mação, proporcionando um maior alcance das fake news.
Figura 2 - Fake news sobre declarações do Ministro da Saúde
Fonte: Ministério da Saúde (2020).
200
FETICHISMO DA DESINFORMAÇÃO NA WEB
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Com base no propósito do site do ministério, que é verificar a
veracidade de notícias que apresentam características de fake
news, relacionadas ao tema de saúde e que circulam nas redes
sociais, chama atenção o fato de que, duas das três fake news publicadas na gestão Pazuello, conforme Gráfico 1, referem-se à
desmentir declarações que teriam sido proferidas pelo próprio
ministro interino Eduardo Pazuello. Uma das notícias intitulada
“Mensagem do Pazuello no Twitter sobre Polícia Federal”, con-forme Figura 3, sequer faz menção à pandemia.
Figura 3 - Mensagem do Pazuello no Twitter sobre Polícia Federal
Fonte: Ministério da Saúde (2020).
Através do uso da linguagem informal, a notícia é elaborada a partir de uma mensagem publicada em um suposto perfil no
Twitter do ministro Eduardo Pazuello. Observamos na fake
news, o uso do recurso retórico alarmista, estruturado de forma que pode ser identificado no texto, incitações que transmitem
uma sensação de inquietude e temor, indicando que a polícia
federal estaria tolhendo a ação/opinião dos cidadãos (“pesso-
as de bem”) em detrimento à escória da sociedade (“corruptos, ladrões, traficantes, PCC”). Tal escolha de composição da fake
news remete-nos à polarização entre os que deveriam ter direito
Rodrigo Silva C. de Sousa; Patricia Valerim; Bruna Heller; Marcia Heloisa T. de Figueredo Lima
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TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
de voz na sociedade e os que não deveriam ter. Esse dualismo
(os bons e os maus) parece reforçar o argumento utilizado nas
fake news, ao ter a intenção de suscitar que o “fato” noticiado
ameaçaria a democracia.
Ademais, na notícia veiculada através de um perfil de rede social, verificamos a combinação de diferentes elementos como texto, imagem e link “@policiafederal”, que Ripoll e Matos (2020) ressal-
tam serem características presentes nos formatos de desinforma-
ção, pois assumem diversas formas de transmissão em adequação
às tecnologias e dinâmicas de comunicação que permeiam a so-ciedade. Entendemos que essa menção a um perfil institucional
tem como intenção credibilizar e validar o conteúdo.
A publicação dessa notícia no site do ministério evidencia nova-
mente uma reação por parte do governo no sentido de desmen-
tir um suposto posicionamento do ministro. Causa estranheza
essa priorização de temática de ordem política tratada como uma
questão religiosa e uma discrepância em relação ao propósito do
site que é o de informar, etimologicamente, pôr em forma, colocar
ordem no caos. O propósito de um site construído por agentes do
Estado é, também, ou principalmente, garantir a governamenta-
lidade (Foucault, 1979). Esse uso indevido da máquina estatal,
por parte do governo, demonstra a incorporação de uma racio-
nalidade instrumental nas práticas informacionais, nas quais as intencionalidades e fins de caráter ideológico preponderam em
relação à publicação e aos esclarecimentos sobre desinformação
relativos à pandemia que eventualmente circularam nas mídias vindas de outras fontes geradoras, jamais de um órgão com au-
toridade. Uma das consequências da veiculação e do reconheci-
mento de fake news originadas de dentro da máquina pública é a
sensação de desgoverno, ou subgoverno na expressão de Bobbio.
Correlacionado aos aspectos apresentados até aqui, constata-
mos que uma das notícias selecionada para este estudo foi pos-
teriormente excluída do site do ministério, Figura 4.
202
FETICHISMO DA DESINFORMAÇÃO NA WEB
TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
Figura 4 - Notícia excluída do site do Ministério da Saúde
Fonte: Ministério da Saúde (2020).
A notícia foi classificada como falsa (fake news) e havia sido pu-
blicada com o título “Cloroquina e hidroxicloroquina passam a
ser usadas no Brasil para combater coronavírus”. O procedimen-
to de exclusão mereceu destaque na Revista Época, enfatizando
que, instantes antes de realizar sua supressão, o governo federal
anunciou seu posicionamento quanto à ampliação da possibili-dade de uso da substância contra a COVID-19 (Amado, 2020).
Além desse detalhe, posteriormente o Ministério da Saúde ex-pediu, no final de junho de 2020, um Ofício Circular direciona-
do à Fundação Oswaldo Cruz, solicitando ampla divulgação do
tratamento precoce com cloroquina. Este acontecimento foi di-
vulgado pelas grandes corporações midiáticas como uma forma
do governo federal usar da credibilidade da instituição de pes-
quisa para promover a medicação, mesmo diante da decisão da
Organização Mundial de Saúde (OMS) em suspender os testes
com a droga, visto que não houvera resultados positivos quan-
to à sua eficácia no tratamento ou prevenção da doença. Ainda
corroborando com a politização evidenciada em torno da medi-
cação, contamos com a seguinte contribuição:
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TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
[...] os debates sobre a cloroquina se distribuem a partir de um conjunto discursivo em torno de um processo de polari-
zação política e politização da ciência atrelada à descrença sobre as instituições epistêmicas em que os sujeitos trans-
parecem a incerteza inerente da ciência e põem em dúvida a existência de consenso científico em prol de vieses ideo-lógicos e político-partidários (Araújo, Oliveira, 2020, n.p.).
Seguindo nessa linha ideológica, outro fator que pode ter ocasio-
nado a decisão pela exclusão da fake news do site do Ministério
da Saúde é que o texto faz menções ao governo norte-americano,
que é aliado estratégico do atual governo brasileiro, no qual, se-gundo Severo e Feres (2020, p. 11), “a política externa do Bra-
sil é, segundo o próprio governo, de alinhamento automático
com os Estados Unidos”.Por fim, a interseccionalidade entre religião e saúde também se
materializa como prática efetivada nas notícias. É possível iden-tificar na Figura 5 uma composição que contempla disposições
estratégicas de diversos elementos, tanto textuais quanto visu-
ais, resultando em uma estética que se assemelha a um cartaz,
e que se utiliza do recurso retórico publicitário, com o intuito
de persuadir pessoas a participarem de um evento milagroso
que segue a lógica da espetacularização. Tal espetáculo é repre-
sentado através da combinação de diversas imagens: (i) cena
bíblica (calvário); (ii) um homem com dedo em riste que passa
uma ideia de poder, de alguém prepotente e ditatorial; (iii) uma
mulher com braços abertos segurando um microfone, asseme-
lhando-se a uma postura artística/musical; e (iv) a imagem do
próprio coronavírus, que recebe este nome por sua forma re-
donda cercada por uma espécie de coroa.
204
FETICHISMO DA DESINFORMAÇÃO NA WEB
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Figura 5 - Fake news - O poder de Deus contra o coronavírus
Fonte: Ministério da Saúde (2020).
Somado a esses elementos, ainda observamos a adoção de lin-
guagem informal, ao fazer menção a seguinte expressão: “Venha porque haverá unção com óleo consagrado no jejum para imuni-
zar contra qualquer pandemia, vírus ou doença!”. Outro elemento
textual utilizado para compor o emaranhado de informação com-binada com as imagens já descritas é a citação de uma passagem
bíblica: “Ele enviou sua palavra e os curou, e os livrou da morte” - ‘Salmo 107:20’”. Tal citação da obra sagrada, embora seja apre-
sentada com uma fonte em tamanho menor, tenta conferir crédito
ao evento, e transmite a mensagem de que supostamente através
da fé as pessoas encontrariam a cura para a doença. No que diz respeito ao procedimento de checagem da notícia por
parte do Ministério da Saúde, o procedimento não foi fundamen-tado, visto que embora a equipe técnica tenha verificado a infor-
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mação, bem como atribuído a ela o selo de fake news, observa-
mos um certo descuido no momento da elaboração do texto que fundamenta a classificação do conteúdo. Em nenhum momento
o texto faz menção ao evento religioso, tampouco alerta para os
riscos das pessoas se guiarem somente pela crença para tratar a doença, leva-se em consideração o quanto simplificações dessa
natureza podem comprometer a compreensão da população a
respeito da gravidade da pandemia. Ademais, em nossa análise, identificamos que a mesma resposta foi usada para justificar a falsidade de diversas outras notícias,
que diziam respeito a outros eventos corriqueiros do cenário
pandêmico, demonstrando um desleixo, ao não desenvolver um texto específico relacionado ao tema da fake news. Kakutani (2018, p. 10) corrobora ao dizer que “o descaso pelos fatos, a
substituição da razão pela emoção, e a corrosão da linguagem
estão diminuindo o valor da verdade”. Dito de outro modo, o tex-
to elaborado pela equipe técnica é bastante padronizado, como
pode ser observado a seguir:Não compartilhe esse conteúdo, ele é falso! Até o momen-to não existe um tratamento específico para o Coronavírus
(COVID-19), existem apenas tratamentos experimentais em
avaliação. A cura dos infectados se dá pela própria respos-
ta imune do organismo, sendo que pessoas diferentes vão
ter uma capacidade de resposta diferente ao vírus. Algumas
pessoas não chegam a desenvolver sintomas, enquanto ou-
tras progridem para uma infecção grave e fatal. O tratamen-
to médico dos casos visa fornecer suporte para os pacientes
caso formas graves, com a administração de oxigênio por
exemplo, ou tratamento para complicações que possam
ocorrer, além de terapia sintomática para alívio de febre e
mal estar. As recomendações de prevenção para o coronaví-
rus (COVID-19) são:
• Lave as mãos com frequência, com água e sabão. Ou en-
tão higienize com
• álcool em gel 70%.
• Cubra seu nariz e boca com lenço ou COM O BRAÇO (e
não com as
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• mãos!) quando tossir ou espirrar.
• Evite contato próximo com pessoas resfriadas ou que estejam com sintomas parecidos com os da gripe.
• Quando estiver doente, fique em casa.
• Evite tocar nos olhos, nariz e boca com as mãos não
lavadas.
• Não compartilhe objetos de uso pessoal (como talhe-
res, toalhas, pratos e copos).
• Evite aglomerações e mantenha os ambientes ventilados.
Para saber mais sobre a doença, acesse: saude.gov.br/coro-navirus. (BRASIL, 2020, n.p.).
A lógica de composição textual da fundamentação da checagem
da fake news, que se eximiu de mencionar os rituais praticados
no evento, no nosso entendimento, pode ter relação com o po-
sicionamento ideológico e religioso do governo, principalmen-te personificado no presidente Jair Bolsonaro e destacado na
ocasião da posse em relação à primeira dama. A esse respeito, trazemos o pensamento de Walter Benjamin (2013) que defen-
de que a racionalidade do capital pode ser compreendida como
uma espécie de religião, que não se restringe somente à esfera
econômica, mas que transita por todos os campos da sociedade.
Finalmente, a proliferação das fake news em sua condição de pa-
tologias sociais da informação decorrentes de suas entranhas, a
exemplo da desinformação, constitui preocupação global, tendo
em vista que os discursos estão à mercê da vontade da verdade, em que “[...] a verdade se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo, de enunciação, para o próprio enunciado: para seu senti-do, sua forma, seu objeto, sua relação e a sua referência” (Fou-
cault, 1996, p. 15).
5 Roendo Discursos
Neste estudo compusemos um processo que buscou analisar, ex-
plorando inicialmente, a perspectiva panorâmica das fake news so-
bre COVID-19 arroladas no site do Ministério da Saúde do Brasil.
Rodrigo Silva C. de Sousa; Patricia Valerim; Bruna Heller; Marcia Heloisa T. de Figueredo Lima
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Assumida essa empreitada, nos propusemos a aproximar con-
ceitos advindos dos Estudos de Usuários de Informação a con-
tribuições da Teoria Crítica da Informação e Comunicação. Para
tanto, apresentamos os conceitos de práticas informacionais, de-
sinformação e semiformação cultural (semicultura), os compre-
endendo como elementos constituintes, indiciais, mas revelado-res da conjuntura de desinformação na qual estamos imersos
em meio à pandemia. Em virtude dessas aproximações, defen-
demos que a sociedade brasileira, especialmente, se encontra
diante de um dilema ético, em razão de que a publicização de
informações tendenciosas se consagra como inusitado circuito
de produtividade que reproduz a lógica do capitalismo.
O conteúdo transmutado em notícia é disseminado por meio de uma variedade de estratégias persuasivas, artifícios retóricos,
recursos hipermídias combinados, envolvendo distintas temá-ticas, formas de apresentação e destaque, variado conjunto de
signos linguísticos e imagéticos, referências a autoridades, den-
tre outros elementos que se constituem em marcas discursivas
que conferem aparente credibilidade às notícias.
A triangulação metodológica permitiu detectar e descrever tais
marcas que revelam que o Ministério da Saúde, para além de sua
função maior como órgão de Estado que é de “elaboração de pla-
nos e políticas públicas voltados para a promoção, a prevenção e a assistência à saúde dos brasileiros” (Brasil, 2020), vem pro-
movendo uma politização da doença, ao colocar em pauta conte-
údos que são fruto de um tensionamento entre Ciência, Política,
Economia e Religião, comprometendo o entendimento sobre a
pandemia e o combate à crise sanitária.
Esse processo de desinformação intencional tem, também, nu-ances de complexidade, porque diferentes sujeitos agem e dife-
rentes atores atuam na seleção e produção daquilo que virá a ser
disponibilizado, oferecido e recebido como informação em ra-
zão da necessidade de esclarecer a população sobre a pandemia.
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Com as redes sociais online, essas informações tendem se alastrar
ainda mais rapidamente. Esse ambiente faz referência a um enor-me aumento de informações não confiáveis sobre o coronavírus,
a pandemia, bem como engendra sua multiplicação exponencial
e incontrolável. Mais uma vez recorrendo à metáfora da rede: é
(quase) impossível desatar os nós da mentira de uma fake news.Longe de qualquer dúvida, uma política desinformacional – mo-
delada quer por racionalidade instrumental, quer por irraciona-
lidade, quer por desrazão (por loucura ou maldade) exemplar-
mente demonstrada por práticas discursivas desinformacionais
(e deformantes) – adoece a sociedade e a democracia, solapa a credibilidade nas autoridades políticas, arruína, enfim, os prin-
cípios éticos sobre os quais se pauta a representação dos pode-
res constituídos e as crenças no sistema democrático que tenta construir, há mais de três séculos, o sempre inacabado projeto
da Modernidade. Valemo-nos de Foucault como guia crítico dos
discursos da Modernidade e de Habermas como memória dos
princípios que regem este processo inacabado.
Como forma de compreendermos os estranhos conteúdos entre
fake news arroladas pelo governo brasileiro, optamos pela aná-
lise triangulada com recursos de três técnicas que, ao descrever,
desvelam e revelam. E, face a esta análise qualitativa (sempre uma análise, porque está longe de ser a única e definitiva), os
discursos onipotentes têm sua fragilidade revelada. Discurso
em vários níveis: do factual ao supostamente factual; da menti-ra consciente ou subliminar, sempre veiculador de mitos. Nada mais fizemos do que descrever tais discursos em sua efemeri-
dade de escrita de um tempo que há de passar, elevando-os à
categoria de monumentos exemplares para a história de um dis-curso, no futuro. Os sujeitos desaparecem e os discursos onipo-
tentes aparecem em seu lugar.
Encerramos este artigo parafraseando o autor anônimo da in-
trodução de conhecido fascículo da Revista Tempo Brasileiro
Rodrigo Silva C. de Sousa; Patricia Valerim; Bruna Heller; Marcia Heloisa T. de Figueredo Lima
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dedicada ao filósofo. Quem o escreveu? “Pouco importa!” - diria
Foucault. Para este prefaciador anônimo, quanto às estruturas discursivas: “descrevê-las já é roê-las por dentro” (Apresenta-ção, 1996, p. 13).
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