TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021

A cidade-lar e o lar-cidade: conexões
entre público e privado no uso de

videoconferência para eventos artísticos,
reuniões de trabalho e aniversários

Robson da Silva Braga1

Resumo
Em 2020, durante o isolamento social de combate à Covid-19, o am-
biente doméstico despontou como uma extensão da cidade por meio
das materialidades das tecnologias de comunicação e informação, numa intensificação da confusão entre público e privado que vem sen-do consolidada na contemporaneidade. As reuniões remotas amplifi-caram um processo de exposição da intimidade que já vem se conso-
lidando com as redes sociais desde o início dos anos 2000. Com base nisso, este artigo analisa de que modo grupos de pessoas têm utilizado ferramentas de videoconferência em substituição aos encontros reali-zados antes da quarentena na cidade de Fortaleza, capital que, em mar-
ço de 2020, chegou a ser a mais afetada do Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde. Como recorte, analisamos o uso de três ambientes
virtuais (1. lives de apresentações de artistas; 2. reuniões remotas de trabalho; 3. e comemorações virtuais de aniversário) com base em dois procedimentos principais: a) observação participante feita pelo pes-quisador; b) e entrevista semiaberta com cinco moradores de Forta-leza. Os eventos analisados foram realizados por meio de plataformas como YouTube e Instagram (no caso das lives de artistas) e por meio
de plataformas de reuniões virtuais, a exemplo de Jitsi, Zoom e Skype.
Palavras-chave: Espaços urbanos. Encontros virtuais. TICs. Interações
virtuais. Pandemia

1 Professor do Instituto de Cultura e Arte (ICA) da Universidade Federal do Ceará (UFC), estando lotado no curso de Jornalismo. Doutor em Comunicação e Informação pela Univer-sidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com pós-doutorado em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: robsonsilvabraga2@gmail.com.

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The city-home and the home-city: connections
between public and private in the the usage of

videoconference to artistical events, professional
meetings and birthday happenings

Abstract
In 2020, during the social isolation to combat Covid-19, the domestic en-
vironment emerged as an extension of the city through the materialities of communication and information technologies, in an intensification of the
confusion between public and private that has been consolidated in con-temporary times. The remote meetings amplified a process of exposing in-
timacy that has been consolidated with social medias since the early 2000s.
Therefore thus, this paper analyses how people have used videoconference tools substituting urban encounters occurred before the quarantine in For-taleza, capital of Ceará, city that had been, in March 2020, the most affected one in Brazil, according to the Brazilian Department of Health. We analyzed
the usage of three virtual spaces (1. lives of artistical performances; 2. re-mote professional meetings; 3. and virtual birthdays’ celebrations) based on two main procedures: a) participant observation made by the resear-cher; b) and semi-structured interview done with five inhabitants from Fortaleza. The analysed events took place on YouTube and Instagram (spe-cifically about lives of artistical performances) and on platforms of virtual
meetings, such as Jitsi, Zoom and Skype. Keywords: Urban environments. Virtual spaces. ICT. Virtual interac-
tions. Pandemic.

La ciudad-hogar y el hogar-ciudad: conexiones entre lo
público y lo privado en el uso de la videoconferencia

para eventos artísticos, reuniones de trabajo y
celebraciones de cumpleaños

Resumen
En 2020, durante el aislamiento social para combatir la Covid-19, el espacio doméstico emergió como una extensión de la ciudad a través

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de las materialidades de las tecnologías de la comunicación e informa-ción, en una intensificación de la confusión entre lo público y lo priva-do que se ha consolidado en la época contemporánea. Los encuentros remotos amplificaron un proceso de exponer la intimidad que se ha ido
consolidando con las redes sociales desde principios de la década de 2000. Con base en esto, este artículo analiza cómo grupos de personas han utilizado herramientas de videoconferencia para sustituir reunio-nes celebradas en la ciudad de Fortaleza, capital de Ceará. En marzo de 2020, esta ciudad se convirtió en la más afectada de Brasil, según datos del Ministerio de la Salud. Analizamos el uso de tres espacios virtuales (1. presentaciones de artistas en lives; 2. reuniones de trabajo a distan-cia; 3. y celebraciones virtuales de cumpleaños) en base a los siguien-tes procedimientos: a) observación participante realizada por el inves-tigador; b) y entrevista semiabierta con cinco residentes de Fortaleza. Los hechos analizados se llevaron a cabo a través de plataformas como YouTube e Instagram (en el caso de lives hechas por artistas) y a través
de plataformas virtuales, como Jitsi, Zoom y Skype.
Palabras clave: Espacios urbanos. Reuniones virtuales. TIC. Interaccio-
nes virtuales. Pandemia.

1. Introdução“Calma. Quando tudo isso passar, vamos poder estar juntos”. Dita quase como um mantra durante toda a quarentena de combate
à propagação do coronavírus1 no Brasil, em 2020, a frase aponta

1 O Ministério da Saúde brasileiro define os coronavírus como “uma grande família de
vírus comuns em muitas espécies diferentes de animais, incluindo camelos, gado, gatos e morcegos”. Em dezembro de 2019, houve a transmissão de um novo coronavírus (SARS--CoV-2) identificado em Wuhan, na China, causando a COVID-19, “uma doença causada pelo coronavírus, denominado SARS-CoV-2, que apresenta um espectro clínico variando de infecções assintomáticas a quadros graves”. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 80% dos pacientes com COVID-19 “podem ser assintomáticos ou oligos-sintomáticos (poucos sintomas), e aproximadamente 20% dos casos detectados requer atendimento hospitalar por apresentarem dificuldade respiratória, dos quais aproxima-damente 5% podem necessitar de suporte ventilatório”. Em: https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca (acesso em 10 nov. 2020).

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para uma definição cristalizada em nossa sociedade sobre o que seria “estar juntos”. Em tal definição, o espaço da cidade se de-senha em nossas mentes. Um lugar onde o encontro seria “efeti-vo”, “não mediado”, “verdadeiro”, parte de nossa “essência” como seres humanos que trocam energia corpórea. Afinal, seríamos todos nós pequenas partes de um todo social.“Imagens mentais” feito essas se confundem com a própria ideia de cidade, como aponta Olivier Mongin (2009). Ao longo do
período de isolamento social de combate à Covid-19, imagens acerca do espaço urbano despontaram nos discursos midiáticos,
nas redes sociais e em nossas mentes. Em meio a uma espécie de “saudosismo” acerca do espaço urbano, tido como tempora-riamente proibido ou inalcançável (tão perto, tão distante), o ambiente virtual foi se firmando como o local da “sociabilidade possível”, capaz de minimizar os grandes impactos econômicos e sociais causados pela crise sanitária que atingiu o Brasil em março de 2020 (Aguiar, 2020; Lourenço & Chiquetto, 2020; Be-zerra & Cunha Jr., 2020).Contudo, a “imagem mental da cidade”, ou seja, “a referência simbólica a um espaço urbano determinado, o sentimento de pertencimento a um tópos, se mantém e persiste mesmo no caso em que a cidade se desfaz, explode”, como considera Mongin (2009, p. 52).Para se firmar como alternativa às imagens sobre o que seria efetivamente o espaço urbano, empresas e usuários da rede
mundial de computadores tiveram de reformular antigas e criar novas ferramentas tecnológicas utilizadas para a interação coti-diana (G1, 2020; G1, 2020a; Bond, 2020).Do mundo dos negócios às atividades de entretenimento, tudo ou quase tudo precisou ser adaptado para aquilo que passaria a ser definido como “o novo normal”. Diversos memes replicados em mídias digitais a exemplo do Instagram fizeram referências

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às nossas interações com o espaço urbano. Nos veículos tradicio-
nais de comunicação e nas redes sociais também são constantes os discursos sobre uma questionável substituição do “mundo material” pelo “mundo virtual”, noção esta que desconsidera as materialidades (Lemos, 2010) das ferramentas tecnológicas, dos hardwares aos softwares, passando pelas próprias relações em si.
Ainda que parte das relações que estabelecemos no espaço urba-no se deem face a face, sem mediações tecnológicas, destacam-se em nossas interações no/com o espaço urbano a mediação do corpo (Bernard, 1995) e as mediações socioculturais (Martín--Barbero, 1997), que nos atravessam e acabam por conformar nossas experiências de cidade (Mongin, 2009). Neste sentido,
assim como computadores e seus programas, nossos corpos e o espaço da cidade também são mediações que não são substi-tuídas quando adicionamos novos ingredientes tecnológicos à
comunicação entre as pessoas.

Com os usos das novas tecnologias de comunicação e informa-
ção no espaço urbano, “uma nova modalidade de representação
se instaura, supondo outro espaço-tempo social (imaterialmen-te ancorado na velocidade do fluxo eletrônico e digital), e, por certo, um novo regime de visibilidade pública, na qual a lógica espetacular se amplia” (Rezende & Bredan, 2015, p. 23). Com base nisso, este artigo analisa de que modo grupos de pes-soas têm utilizado ferramentas de videoconferência em substi-tuição aos encontros realizados antes da quarentena na cidade de Fortaleza2, capital que, em março de 2020, chegou a ser a
2 A cidade de Fortaleza é uma das nove capitais brasileiras situadas na região Nordeste. É a capital do estado do Ceará e possui cerca de 2,6 milhões de habitantes, sendo a quinta maior cidade do Brasil. Pelo grande fluxo turístico, e comercial e por conta de eventos so-ciais que serviram de foco propagador do vírus, Fortaleza foi a primeira capital brasileira a ser afetada massivamente pela pandemia de Covid-19. Os governos estadual e munici-pal rapidamente adotaram medidas para conter o fluxo urbano e, assim, a propagação do

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mais afetada do Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde. Como recorte, analisamos o uso de três ambientes virtuais: 1) lives de apresentações de artistas; 2) reuniões remotas de tra-balho; 3) e comemorações virtuais de aniversário. Adoto, para isso, dois procedimentos metodológicos principais: a) observa-ção participante nos três ambientes investigados; b) e entrevista semiaberta com cinco moradores de Fortaleza.
2. O lar como extensão da cidade mediada tecnologicamenteAs tecnologias de comunicação e informação utilizadas por um grupo familiar para acessar outro núcleo familiar sem sair de
seus respectivos lares podem ser compreendidas como uma ex-tensão das ruas, por meio das quais transitam não só nossos cor-pos, mas as informações que carregamos conosco no transitar
de um ponto a outro. A tecnologia de comunicação e informação seria, neste sentido, a rede que nos conecta na cidade e com a cidade, como destaca Dornelles (2004).
Dito de outro modo, a tecnologia teria substituído a rua tem-
porariamente, durante o período de isolamento social, sendo utilizada para conectar indivíduos ou grupos sociais. Tal substi-tuição (da rua pela tecnologia de informação), contudo, só seria completa se o isolamento social tivesse sido completo, o que não foi o caso. E, para momentos normais (sem quarentena), o que
temos não é uma substituição, mas um modo complementar de fazer nossos corpos e nossos conteúdos circularem de um ponto a outro da cidade. Sim, nossos corpos também. Afinal, eles tam-

coronavírus. Em 20 de março, foi decretada quarentena na cidade. Devido ao aumento do número de casos e de mortes, foi instaurado lockdown (bloqueio total) em 8 de maio, medida que ficou em vigor por 20 dias. Com a redução progressiva dos números, o plano de reabertura foi instaurado em cinco fases, sendo a primeira em 1º de junho e a última em 20 de julho. Em 05/08/20, Fortaleza somava 43.423 casos confirmados e 3.733 mor-tes pela doença. Os números diários da doença reduziram drasticamente, mas ainda estão
proibidas atividades com aglomeração de pessoas, como bares, shows e aulas presenciais.

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bém são acessados (mesmo que virtualmente) por meio de câ-meras, microfones, imagens fixas, etc. Ao definir a internet como “incorporada”, “corporificada” e “coti-diana”, Christine Hine (2016) destaca as relações intrínsecas das nossas práticas virtuais com as atividades que vão muito além do ambiente digital, espraiando-se, por exemplo, pelo território da cidade e em todas as nossas práticas urbanas.Para a autora (2016, p. 16), diferentemente do ciberespaço dos anos 1990, os dados derivados do ambiente virtual hoje são “in-corporados” ao cotidiano das pessoas, sem que haja uma apar-tação precisa entre o que seria “online” e “offline”. Tais práticas virtuais se materializam em nossos corpos, “corporificando” emoções e sensações tal qual qualquer outra prática urbana, por exemplo. Por fim, a autora define a internet como “cotidiana”, sendo naturalizada como qualquer outra prática do dia a dia.Com isso, pretendo destacar não ser possível apartar as práti-cas digitais da “condição urbana”, definida por Olivier Mongin (2009, p. 29) como “um tipo de experiência da qual a cidade é [...] a condição de possibilidade”. A cidade seria, na definição do autor, um misto de mental e físico, uma vez que ela se materiali-za em estruturas urbanas, mas também é composta a partir das imaginações que depositamos sobre elas. Estruturas físicas aju-dam a conformar imaginários urbanos e vice-versa.Mongin (2009, p. 39) destaca, ainda, o caráter multidimensional da cidade, responsável por associar as esferas pública e privada, promovendo uma “experiência em espiral, circular e sempre re-troativa”. “A família e o habitar não têm sentido senão na abertu-ra que oferecem, graças aos limiares e às linhas fronteiriças que os delineiam e tornam possível que haja relações fora”.Por fim, não seria possível pensar na relação concreta que existe entre o lar (privado) e o espaço urbano (público) sem pensar so-

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bre a materialidade das tecnologias utilizadas para fazer a pon-te entre o primeiro e o segundo. A partir das reflexões teóricas apresentadas por Hans Gumbrecht na década de 1990, André Lemos (2010) reforça a importância de toda forma de comuni-
cação ser analisada sem desconsiderar seus aspectos materiais, responsáveis por alterar o modo como o sujeito social se coloca
em conexão com a rede.

Nesse sentido, poderíamos pensar tais redes como uma com-binação das materialidades tecnológicas e das materialidades do território urbano, compondo o complexo ambiente urbano--virtual por meio do qual os sujeitos compõem, juntos, uma rede
social.

3. Procedimentos metodológicosPara esta pesquisa, adotei três procedimentos metodológicos principais: a) observação participante feita nos três ambientes
virtuais selecionados3 (Hine, 2016), a fim de identificar algumas das características dos três espaços; b) entrevista semiaberta4 (Duarte, 2015) com cinco moradores de Fortaleza; c) e pesquisa documental sobre o cenário geral de pandemia em Fortaleza, no
Brasil e no mundo.

Inicialmente, eu não havia previsto entrevistas, limitando-me à observação participante de eventos nas três plataformas sele-cionadas. Eu estava partindo da percepção de que os sujeitos já
3 Christine Hine (2016, p. 15) destaca “três tipos de estratégias que ajudam um etnó-grafo a lidar com essas qualidades: abordagens móveis, multilocalizadas e conectivas ao campo; mapeamento, visualização e associação; e uso dos insights autoetnográficos a fim de maximizar a compreensão da internet como um fenômeno sensorial”.4 A entrevista semiaberta “parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teo-rias e hipóteses que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do informante” (Triviños, 1990, p. 146 apud Duarte, 2015, p. 66).

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me apareceriam nos rastros de interação deixados por eles nos três ambientes. Percebi, contudo, que seria delicado, em termos éticos, utilizar-me dos dados coletados em relação, principal-mente, aos aniversários virtuais e às reuniões remotas, uma vez que dificilmente eu conseguiria autorização para utilizar minhas observações como dados de pesquisa, mesmo garantindo o ano-
nimato das pessoas observadas e a omissão de informações de caráter íntimo ou confidencial.
Por conta disso, decidi incluir a entrevista semiaberta como modo de compreender, qualitativamente, como um pequeno grupo de pessoas percebiam as práticas urbano-virtuais que es-tavam experimentando durante a quarentena por meio dos três ambientes virtuais acessados. Surgia, agora, um novo desafio: a)
encontrar pessoas durante o isolamento social dispostas a res-ponder a pesquisa; b) e realizar entrevista mediada tecnologica-
mente, sem o contato face a face.Para encontrar respondentes, foi utilizado o método da bola de
neve5: foi pedido para que pessoas próximas ao pesquisador
indicasse um amigo para falar com o investigador por meio de áudios de WhatsApp sobre suas experiências com os três am-bientes virtuais durante a quarentena. Cheguei aos seguintes entrevistados: 1) João6, 63 anos, engenheiro civil; 2) Carla, 37 anos, funcionária pública; 3) Fábio, 35 anos, advogado; 4) Maria, 33 anos, professora universitária; 5) Pedro, 34 anos, profissional autônomo. Todos eles moram em Fortaleza e experimentaram, em níveis diferentes, os três ambientes virtuais investigados aqui.
5 “Essa estratégia resolve o problema de acesso de forma conveniente: pelo menos se conhece alguém que pode ser observado ou entrevistado, e pode-se tentar fazer com que este indivíduo o apresente a outros e seja seu fiador, desse modo deflagrando uma espécie de amostragem em bola de neve” (Becker, 1993, p. 155).6 Os nomes dos cinco entrevistados são fictícios, como modo de preservar as identida-
des dos respondentes.

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A partir do perfil simplificado de cada um dos entrevistados é possível identificar que os respondentes se limitaram a um es-trato socioeconômico médio de nossa sociedade. Além disto, quase todos eles são de uma mesma faixa etária. Os resultados da pesquisa, portanto, precisam levar em consideração essa li-mitação do perfil dos entrevistados, especialmente pelo fato de
todos possuírem acesso muito facilitados às tecnologias, além
de alto domínio de tais ferramentas.

Entre os softwares de reuniões virtuais mais utilizados, ao me-nos no mundo ocidental, destacam-se Skype, Zoom, Google Meet, GoToMeeting, Slack, Zoho Meeting, Microsoft Team e Jitsi Meet.
Na soma das principais funcionalidades de todos eles, destaco as seguintes: o compartilhamento da tela de um dos usuários;
compartilhamento de fotos, vídeos e documentos; escolha e tro-ca do administrador da reunião; edição colaborativa de arquivos durante a reunião; bate-papo (chat); gravação da reunião na nu-vem; e vinculação com outras plataformas que podem transmitir o conteúdo audiovisual ao mesmo tempo ou gravado, a exemplo
de lives do Instagram e do YouTube7.Ao menos nos Estados Unidos e no Brasil, o Zoom tem sido uma das ferramentas mais utilizadas em reuniões de trabalho, aulas do ensino básico ao ensino superior, eventos culturais, entre ou-tras atividades. O software está disponível nas versões gratuitas e pagas e, sendo utilizado, segundo seu site oficial8, por mais de
17 mil instituições educacionais de todo o mundo para aulas re-
motas ou híbridas.

7 Mais detalhes sobre cada software em: https://rockcontent.com/br/blog/software--para-reunioes/ (acesso em 09 jul. 2020).8 Em: https://zoom.us/pt-pt/education.html (acesso em 18 jul. 2020).

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4. Conexão da massa urbana por meio da liveDa varanda de um luxuoso duplex, no alto de um edifício resi-dencial no bairro Cidade Monções, zona sul de São Paulo, poten-tes canhões de luz iluminam parte da capital paulista, num es-petáculo que combina luz, fogos de artifício e som ultrapotente.
Todas as ferramentas são controladas de uma mesa repleta de botões, definida carinhosamente como “nave espacial” por seu
controlador: o DJ Alok.

É com enorme alegria que eu abro a minha casa pra rece-ber todos vocês nessa live tão especial. Eu peço licença, também, para entrar na casa de vocês nesse momento [...] Queria deixar claro pra vocês que eu não sou cantor, tam-bém não tenho uma banda, mas uma aliada que eu sempre tive muito forte na minha profissão é a tecnologia. E ela hoje, mais do que nunca, tá aqui presente nessa nossa live. Sabe esses fogos que vocês viram, o laser, a iluminação? Tá tudo sendo controlado aqui, pela minha nave espacial. En-tão, assim que eu aciono, tá tudo sendo gerido e sincroniza-do ao mesmo tempo. Esses efeitos que vocês viram aqui na
minha sala, o sinal vem de São Paulo, vai pro Rio de Janeiro e chega na casa de vocês (Alok na abertura da live realizada em 02/05/20).
Figura 1. Luzes partem do apartamento de Alok.

Fonte: https://www.instagram.com/alok/?hl=pt-br

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Transmitida ao vivo em 2 de maio de 2020 pela Rede Globo e pelo Multishow (ambos canais da rede GloboSat) e por canais no YouTube, a live já possuía, em agosto desse ano, mais de 14 milhões de visualizações somente pelo canal do Multishow no
YouTube9. No momento da transmissão ao vivo, uma câmera--drone mostrava os vizinhos se divertindo em suas varandas.
Nas ruas ao redor, centenas de fãs do DJ circulavam de carro. E, de Fortaleza, João, um engenheiro civil de 63 anos de idade,
assistia empolgado à live por meio do YouTube.Extremamente empolgado com o evento, João ligou para a filha, convidando-a para assistir ao show, o pai numa cidade, a filha em outra. Ela ficou sem crer na empolgação do pai com um espe-táculo de música eletrônica. Mas ele argumentou que o que lhe despertava aquelas boas sensações era a conexão do Alok com a cidade por meio do show de luzes e pelas imagens do drone que filmava os prédios ao redor. Portador de intensa energia vital, João diz sentir falta, nesse momento de quarentena, de estar em contato com a rua, o que parece ter sido suprido, em algum ní-vel e de modo efêmero, pelo jogo de luzes, fogos e sons sobre a
cidade de São Paulo. Para João, a live do Alok conseguiu algo até “mais grandioso” do que um show tradicional: a conexão com o
espaço urbano.

Taí, eu achei [a live do Alok] muito bem produzida. Achei
[interessante] a proposta dele de interagir com a cidade,

9 O número de acessos da live de Alok refere-se à soma de todos os cliques desde a trans-missão ao vivo até o momento atual. O evento não aparece no ranking mundial das lives com pico de acessos simultâneos durante a transmissão, que em 06/06/20 listava os seguintes artistas: 1) Marília Mendonça (Brasil), com 3,31 mi; 2) Jorge & Mateus (Brasil), com 3,24 mi; 3) Andrea Bocelli (Itália), com 2,86 mi; 4) Gusttavo Lima (Brasil), com 2,77 mi; 5) Sandy & Júnior (Brasil), com 2,55 mi; 6) Leonardo (Brasil), com 2,52 mi; 7) BTS (Coreia do Sul), com 2,31 milhões; 8) Marília Mendonça (Brasil), com 2,21 mi; 9) Hen-rique & Juliano (Brasil), com 2,06 mi; 10) Bruno e Marrone (Brasil), com 2,05 mi. Em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2020/06/06/interna_diversao_arte,861694/brasil-lidera-o-ranking-mundial-de-lives-no-youtube.shtml (acesso em 06 ago. 20).

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de botar aqueles canhões de luz pra cidade toda ver que ele tava fazendo aquilo. Ficou uma coisa diferente de um
show: ele se comunicou com a cidade. Num show, ele não se comunicaria com a cidade, se comunicaria com o público. Pra mim, em termos tecnológicos, foi a live mais fantástica que eu achei, porque foi um diferencial em relação ao show.
Mesmo não estando em São Paulo, eu me senti interagindo, conseguiu trazer essa energia (entrevista com João, enge-nheiro civil, 63 anos, em julho de 2020).

A fala de João sobre a “interação com a cidade” aponta para a “ci-dade do transeunte”, como define Mongin (2009, p. 63), “aquela onde se transita, traduz um desejo de exteriorização que se ex-prime por uma libertação, uma saída de si, uma saída de casa”. Ao refletir sobre a “cidade virtual”, o autor (2009) destaca a ex-plosão do quadro espaço-temporal provocado pela inserção das
novas tecnologias de comunicação e informação no espaço ur-bano. “Os lugares não desaparecem, mas sua lógica e sua signifi-cação são absorvidas pela rede. A infraestrutura tecnológica que
constitui a rede determina o novo espaço precisamente como as ferrovias definem as regiões econômicas na economia indus-trial” (2009, p. 234).
Destacada na mídia nacional e nas redes sociais virtuais por sua
inusitada conexão com o espaço urbano, a live de Alok parece ter mobilizado sentimentos do público em relação ao estar na cida-de, contato este que foi forçadamente limitado pelo isolamento social de combate ao coronavírus. Memórias e prazeres sobre o
circular pela urbe parecem ter sido mobilizados, sugerindo uma
espécie de saudosismo em relação ao tão perto e tão distante
espaço urbano.Lives como a do DJ Alok, no entanto, aparecem como um ponto fora da curva entre os demais shows virtuais realizados no Brasil durante a quarentena. Definidas pelos entrevistados como “mal necessário”, “é o que temos pra hoje” ou “um passatempo impor-tante na quarentena”, as transmissões ao vivo não aparecem nos

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discursos como equiparáveis aos shows tradicionais realizados em casas de shows, com público massivo.“[A live] é uma alternativa para os artistas, de monetização du-rante a quarentena”, avalia Pedro. “Não dá vibração, não tem a energia de um ambiente de show, a própria preparação pra ir pro show. [A live é] boa, mas parecida com a música que eu boto no YouTube. Podendo ir prum show, jamais vou optar por uma live”, reforça João. “Não se compara ao show, que é calor huma-no, todo mundo cantando junto a mesma música, são gotículas espalhadas, enfim… A troca com o artista não se compara, é algo imbatível”, define Carla de modo enfático.
5. Performances de “intimidade” nas reuniões remotas de
trabalho

Numa reunião via Zoom com 30 pessoas a gente pode es-colher qualquer dos quadradinhos e ficar ali examinando o infeliz, reparando em suas orelhas, seus óculos, suas ex-pressões. (Faça isso presencialmente e você vai soar como tarado ou serial killer. Ou serial killer tarado.)Antonio Prata. Zoom. Folha de S. Paulo10.Quando imaginaríamos poder acessar, com tanta frequência, o lar de nossos colegas de trabalho, mesmo daqueles com quem temos quase nenhum contato ou afinidade? Desde o início da quarentena de combate à Covid-19, essa tem sido a realidade de parte considerável dos trabalhadores de todo o mundo.Destacada por Antonio Prata em sua coluna na Folha de S. Paulo, tal reflexão aponta para um paradoxo que caracteriza a reunião virtual de trabalho: por um lado, a ausência do contato corpó-reo, não mediado tecnologicamente; e, por outro, o imaginário
10 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2020/06/zoom.shtml (acesso em 10 jun. 2020.

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sobre estarmos na casa de cada um, atentando para cada detalhe
capturado pela webcam.Nesse sentido, se considerarmos que a residência de cada um de nós compõe o território urbano, podemos, em alguma medida,
pensarmos nos encontros virtuais como uma extensão do nosso
acesso ao espaço da cidade. Quando se disseminaram ferramen-tas como Google Earth11, Google Maps12 e Google Street View13,
a realidade virtual proporcionada por tais softwares ajudou a al-terar sensivelmente a percepção sobre “estar na cidade”. Muitas vezes ignorada pelo senso comum, as materialidades das tecno-logias (Lemos, 2010) acabam por dialogar com as materialida-des do espaço urbano, ressignificando territórios urbanos, que se estendem das ruas e demais espaços públicos a espaços aces-
síveis virtualmente, a exemplo de ambientes privados expostos
cotidianamente especialmente por meio de redes sociais e, mais
recentemente, por meio das reuniões de trabalho e de outras práticas estimuladas pela quarentena. Há algum tempo, o ambiente residencial tem sido exposto à esfe-ra pública, especialmente por meio das redes sociais, numa de-sejada confusão entre público e privado (Sibilia, 2016). Com as
lives, o espaço doméstico passa a ser exposto exacerbadamente,
resultando em grande preocupação sobre como exibir a intimi-
dade.

11 Lançado em 2001, o Google Earth gera mapas bidimensionais e imagens de satélite que permitem ao usuário identificar lugares, construções, cidades e paisagens. Em: ht-tps://www.google.com.br/earth/ (acesso em 10 jul. 2020).12 Lançado em 2005, o Google Maps permite visualização de mapas e imagens de satéli-te, podendo o usuário montar suas próprias rotas e vincular tal ferramenta a aplicativos como Uber e Waze. O Google Maps incorporou o Google Street View. Em: https://www.google.com.br/maps/preview (acesso em 10 jul. 2020).13 Lançado em 2007, o Google Street View permite ver fotografias em 3D das principais cidades do mundo, possibilitando uma visão panorâmica de 360° na horizontal e 290° na vertical. O usuário pode escolher um endereço preciso e simular uma caminhada pelas
ruas do entorno.

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Tidos em geral como “intelectuais”, os jornalistas talvez tenham sido os precursores de um cenário doméstico culto, em que se
destacam estantes de volumosos livros. Com a propagação de tais imagens, piadas sobre a “encenação de intelectualidade” to-
maram conta das redes sociais.

Figura 2. Meme simula venda de estante falsa, de papelão, usada como cenário para
reuniões virtuais14.

Fonte: El País BrasilCarla demonstra, em sua fala, um encantamento que soa quase irônico em relação às bibliotecas particulares exibidas por seus colegas nas reuniões virtuais e por jornalistas ao entrarem ao vivo nos telejornais a partir de suas casas.
14 Em: https://brasil.elpais.com/icon_design/2020-05-03/a-historia-do-meme-que-se-tor-nou-realidade-ao-virar-o-produto-mais-absurdo-da-amazon.html (acesso em 12 jul. 2020).

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O ambiente dos meus colegas são “topzera”. Eu acho im-portante fazer a reunião num ambiente minimamente or-ganizado, porque estamos falando de trabalho. Ali é a sua imagem como profissional. Eu tenho cuidado também, ape-sar de achar que moro num lugar muito colorido e estou or-ganizando um ambiente minimalista. A minha preferência são pelos ambientes que mostram livros. A Cristiana Lobo e a Miriam Leitão [ambas jornalistas da Rede Globo] gravam
de suas bibliotecas particulares e é incrível (entrevista com Carla, 37 anos, funcionária pública, em julho de 2020).

Não é possível afirmar que sua demonstração de admiração pela “encenação de intelectualidade” é sincera ou se seria uma forma de fazer chacota com tal postura, visto que ela mesma não adota um cenário doméstico com livros em suas reuniões de trabalho. Fábio, por sua vez, critica de modo explícito os colegas que se utilizam de tal encenação de intelectualidade:
Todas as pessoas que eu conheço que participaram de reu-
niões, absolutamente todas, tiveram a preocupação com o ambiente, com a cenografia e, sobretudo, todas com biblio-tecas. Ninguém colocou outra coisa que não livros, livros, livros. Já querendo ir numa contramão disso, eu tenho uma biblioteca considerável, mas, como era uma coisa que eu
não precisava mostrar, eu tive a preocupação de estar num ambiente limpo. Às vezes, meu fundo era uma parede com uma iluminação boa, a parede limpa, sem nada, no máximo com um quadro atrás (entrevista com Fábio, 35, advogado, em julho de 2020).Ao analisar as interações cotidianas face a face, Erving Goffman (2009) destaca que o indivíduo busca gerenciar a impressão que seus interagentes terão dele. Em tal jogo de cena, o ator social evidencia o que considera apropriado à sua imagem pública e omite aquilo que não valoriza a impressão que terão sobre ele.

“Estes fatos podem envolver segredos escusos bem guardados ou características negativas, que todo mundo vê, mas às quais ninguém se refere” (Goffman, 2009, p. 192).

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Em relação à efetividade do teletrabalho, as diferenças de percep-
ção parecem ter relação com o tipo de trabalho desempenhado. Trabalhos mais burocráticos pouco atravessados pela subjetivi-
dade das interações face a face foram descritos como atividades que obtiveram ganhos ao incorporar o trabalho remoto. O gover-no brasileiro, por exemplo, anunciou, em 30 de julho de 2020, a incorporação do teletrabalho ao serviço público federal15.

Eu me adaptei completamente [ao teletrabalho], é um di-visor de águas na minha vida profissional. Eu já tinha um
contato mínimo com a minha chefe. Com as reuniões virtu-ais, ficou quase zero. A relação de trabalho mudou, tá mais distante, e eu prefiro assim, com essa distância. Eu percebi que, no começo, essas reuniões [virtuais] eram longas, acho que pela falta de prática, e acho que elas foram ficando mais objetivas e mais efetivas, produtivas (entrevista com Carla, 37 anos, servidora pública, em julho de 2020).Há muitos impasses, contudo, em relação a trabalhos que de-

pendem de documentos impressos, de assinaturas constante de papéis e da própria estrutura dos ambientes profissionais.
Primeiro, eu me atrapalhei todo. [A ferramenta de reunião]
não dava certo, eu não conseguia interagir, eu tive um pro-blema do Gmail, enfim, não dava certo. Mas, assim, eu parti-cipei todo porque a minha função no meu trabalho é muito física, porque eu trabalho com alteração de projetos, então eu tinha que ter acesso a documentos físicos, com assinatu-ra [...]. Mas eu interagi demais [por telefone e pelo WhatsA-
pp] com os colegas e com os clientes. Mas tinha muita inte-ração [com os clientes] por visita, coisa que pelo WhatsApp não dá. A eficiência do trabalho diminui muito. Pode até ser uma coisa 1ue vai dar certo se virar uma rotina e se quebrar várias das burocracias (entrevista com João, engenheiro ci-vil, 62 anos, entrevistado em julho de 2020).

15 Em: https://radios.ebc.com.br/reporter-nacional/2020/07/governo-decidiu-incor-porar-o-teletrabalho-rotina-dos-servidores-publicos (acesso em 06 ago. 20).

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Em relação à educação a distância, a percepção de professores
sobre o teletrabalho costuma levantar maiores controvérsias.
Entre outras formas de interação humana, a educação formal
costuma demandar contato mais direto entre educador e edu-cando, do ensino básico ao superior. Talvez, por isso, parte consi-derável das universidades públicas brasileiras tenham rejeitado a retomada virtual das atividades letivas. Já parte considerável das faculdades particulares se adequaram ao ensino remoto,
comprando pacotes de ferramentas de ensino virtual, a exemplo
do Zoom.

Eu não gostei da experiência de dar aula assíncrona. O apli-cativo é muito bom, na verdade. O aplicativo tinha todas as
ferramentas: ele tinha uma lousa, eu podia gravar, eu podia
não gravar, eu podia colocar todos os alunos no mute, solici-tar câmera, gravar o chat, gravava a frequência… Então, as-
sim, o aplicativo era, na verdade, muito bom, a gente usou o Zoom, mas eu tive uma dificuldade muito grande em relação
à participação [dos estudantes]. Eu senti muita falta disso. Eu dou aula porque eu gosto, e eu senti que foi muito preju-
dicada a interação com os alunos [...]. Também foi uma nova experiência pra mim lidar com o erro, porque naturalmente você erra na hora da aula, normal, e aí o erro fica gravado. Eu cheguei a editar algumas vezes, mas não foi uma experi-ência muito boa nesse sentido, não. E mexeu um pouco com a minha autoestima, porque a única pessoa que eu via era eu. Os alunos mantinham a câmera desligada por causa da banda [larga], porque tornava a conexão mais instável. Não foi agradável pra mim ficar olhando pra mim (entrevista com Maria, 33 anos, professora universitária, em julho de 2020).

Tanto a fala de Maria sobre deixar erros registrados nas aulas gravadas como na fala de Fábio sobre aparecer à frente de estan-
tes de livros apontam para uma preocupação com a imagem pro-fissional. Se antes os símbolos domésticos eram mais recorren-tes nas relações pessoais não profissionais, por ser o ambiente da intimidade, agora passamos a expô-lo a pessoas com quem

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não temos intimidade necessariamente. Por outro lado, os am-
bientes domésticos não necessariamente estão sendo exibidos como eles seriam “de fato”, ou seja, não seria aquilo que Goffman (2009) definiu como “bastidor”, onde se armazenam adereços e se prepara para apresentações públicas, além de ser o espaço
para descanso e liberação de emoções e comportamentos ocul-tados no palco. O ambiente doméstico capturado pela câmera seria, na verdade, um palco que apenas performaticamente imi-
ta um bastidor.

6. Aniversários virtuais: celebrando a vida em meio ao caos“Vamos tocar a vida”, rebateu o presidente Jair Bolsonaro, em 6 de agosto de 2020, ao ser questionado sobre os números alar-mantes da propagação do coronavírus no Brasil, onde, naquela data, chegava-se a 98.644 óbitos e 2.917.562 diagnósticos de
Covid-1916.

Apesar de alguma demonstração de indignação em relação às desencontradas políticas públicas de combate à pandemia, a
população brasileira demonstrou desenvoltura para lidar com a crise sanitária, indo das lives de artistas às comemorações vir-tuais de aniversário. Um modo, talvez, de celebrar a vida mesmo
em meio ao caos.“Enervantes” é o adjetivo usado por Fábio para definir os ani-versários virtuais, que tendem a demorar muito mais do que os aniversários presenciais. Ele promete não participar mais de qualquer evento dessa natureza, porque “todo mundo fica condicionado a ter que fazer um manifesto elogioso ao aniver-sariante”.
16 Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/08/06/vamos-tocar-a--vida-diz-bolsonaro-sobre-pais-atingir-a-marca-de-100-mil-mortos-por-coronavirus.ghtml (acesso em 06 ago. 2020).

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Todos os entrevistados desta pesquisa apresentaram percepções muito semelhantes em relação aos aniversários virtuais. Para eles, tal evento seria um ritual enfadonho que acaba por provocar sensações opostas ao sentido original de “celebração à vida”.
Eu passei por aniversários que foram, assim, ok, legal, que foram aniversários com quatro pessoas na chamada. E pas-sei por aniversários que foram horríveis, [como] o da mi-nha irmã, que ninguém conseguia entender nada, a gente só juntou todo mundo, cantou parabéns, porque não dava pra
conversar, era todo mundo falando ao mesmo tempo, ca-chorro, criança, foi bem caótico. Eu não senti muitos ganhos nos aniversários (entrevista com Maria, 33 anos, professora universitária, em julho de 2020).A diferença pra mim é gritante, porque aniversário é justa-mente uma situação em que você quer reunir as pessoas de quem você gosta e comemorar o nascimento de alguém, e
é muito fria a chamada virtual. Estar longe num momento desse… A videochamada se tornou ainda pior, porque faz é você sentir mais falta de estar perto da pessoa, então talvez seja melhor é nem ter, manda uma mensagem de parabéns e pronto (entrevista com Pedro, 34 anos, profissional autô-nomo, em julho de 2020).Eu participei de dois aniversários virtuais, um chá-revelação e um chá de fraldas. Eu achei interessante, mas eu prefiro o contato físico. Eu acho que é bonito na medida em que você
demonstra pro aniversariante ter interesse, compromisso, bem-querer, porque você tá ali, ainda que virtualmente, mas prestando essa homenagem. Gostei, mas como medida ex-cepcional. É uma das coisas em que eu ainda preciso ter o ‘velho normal’ no quesito. Gosto de agregar, de estar com
as pessoas, de partilhar do bolo, da comida, acho tudo mui-to simbólico (entrevista com Fábio, 35 anos, advogado, em julho de 2020).Até mesmo a entonação da voz dos entrevistados demonstra certa irritação em relação aos aniversários virtuais. Parece ha-ver uma mistura de incômodos, que vão desde a irritação com o

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tumulto provocado pela soma de todos os microfones ligados ao mesmo tempo (o que não costuma ocorrer nas reuniões de tra-balho) até a obrigação de ter de deixar um depoimento que seja
atraente não somente ao aniversariante, mas a todos os demais
convidados. O incômodo dos entrevistados com as comemorações virtuais aproxima-se daquilo que Walter Benjamin (1980) definiu como adaptação do homem às constantes transformações tecnológi-cas que afetam as experiências na cidade moderna. Se tais ex-periências são definidas pelo autor como “experiências senso-riais”, vale destacar as mudanças que tais tecnologias provocam em nossas relações afetivas e os consequentes choques que este fenômeno nos provoca especialmente quando se trata de rela-
ções mais passionais, com amigos, familiares, etc. Neste sentido,
parece haver, entre os entrevistados, uma aceitação maior das relações mediadas tecnologicamente no âmbito profissional do que na esfera das relações afetivas, que demandaria uma cone-
xão mais imediata entre os corpos.

Considerações finais

Durante o isolamento social de combate ao coronavírus, a cida-de parece ter despontado em nossos discursos e práticas mes-mo quando não utilizamos o território stricto sensu da cidade. O ambiente doméstico surge como uma extensão da cidade por
meio das materialidades das tecnologias de comunicação e in-
formação.São, portanto, modos de materializar a cidade em nossos lares e de materializar nossos lares na cidade, numa intensificação da confusão entre público e privado que vem sendo consolidada na contemporaneidade. As reuniões remotas amplificam, assim, um processo de exposição da intimidade que já vinha se consoli-
dando com as redes sociais desde o início dos anos 2000.

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Por meio da observação dos ambientes virtuais e das entrevis-tas, foi possível identificar os modos como o lar é preparado para tornar-se público. A escolha dos elementos que serão cap-turados pela webcam, por exemplo, seria um modo de ajustar o privado ao público.Sobre a adesão aos três ambientes virtuais investigados, é pos-sível considerar haver uma maior aceitação do teletrabalho/das reuniões virtuais como ambientes a serem cada vez mais incor-porados à vida cotidiana, mesmo após a quarentena, a depender das especificidades de cada função ocupada pelo trabalhador. Já as comemorações virtuais de aniversários parecem ter sido rejeitadas pelos usuários, por proporcionarem encontros pro-tocolares que descaracterizariam radicalmente a “celebração da vida”, a “demonstração de afeto”.Por fim, as lives de artistas parecem ter sido aceitas pelo públi-co como alternativa financeira para os profissionais do entrete-nimento e como alternativa de entretenimento para o público durante a quarentena. Contudo, os respondentes demonstram recusá-las como substitutas dos eventos artísticos com a pre-sença do público massivo, que permitiriam trocas corpóreas não
mediadas pelas materialidades das tecnologias.

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