TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
Sucessos Escolares Improváveis e Teorias
Disposicionalistas da Ação: Trabalhando
Com Pierre Bourdieu e Bernard Lahire*1
Francisco Érick de Oliveira**2
Carlos Henrique Lopes Pinheiro***3
Resumo
Neste artigo, exploramos elementos que potencializam o sucesso es-
colar nos meios populares por meio da teoria de Pierre Bourdieu e
seus estudos sobre educação e reprodução social das desigualdades e
a análise dos sucessos escolares pela Sociologia em escala individual
de Bernard Lahire. Os dados empíricos foram coletados por sete ques-
tionários socioeconômicos e culturais e seis entrevistas individuais em
profundidade. Analisamos as trajetórias de escolarização de estudan-
tes negros cotistas e das camadas populares de uma Universidade do
interior do Ceará e apontamos a racionalização das rotinas, geridas
pela moral familiar que privilegia a formação escolar e a autoridade
dos pais e mães; apetência pela leitura e escrita; socialização em ativi-
dades artístico-culturais e esportivas; políticas públicas de educação e ações afirmativas; interiorização do ensino superior público; redes
afetivas e de incentivo engajado, entre outros.
Palavras-chave: Sucesso escolar. Camadas populares. Teorias disposi-
cionalistas da ação. Ingresso no ensino superior público.
* Fomento da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico
– 2018/2019.
** Doutorando em Sociologia na Universidade Federal da Paraíba. Bolsista da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Código de Financiamento 001.
Integrante do Grupo de estudos e pesquisas em Sociologia e relações raciais (HUN/UFPB).
E-mail: erick.oliveira2@outlook.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1691-3889.
*** Professor Adjunto do Instituto de Humanidades da Universidade da Integração In-
ternacional da Lusofonia Afro-brasileira – Bacharelado e Mestrado Interdisciplinar em
Humanidades. Pós-doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais, 2014. Doutor em
Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, 2013. E-mail: carlos.henrique@unilab.
edu.br. Orcid: http://orcid.org/0000-0003-1192-8800.
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SUCESSOS ESCOLARES IMPROVÁVEIS E TEORIAS DISPOSICIONALISTAS DA AÇÃO
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Unlikely School Successes and Dispositionalists
Theories of Action: Working With Pierre Bourdieu
and Bernard Lahire
Abstract
In this article, we explore elements that enhance school success in the
popular classes through Pierre Bourdieu’s theory and his studies on
education and social reproduction of inequalities and Bernard Lahire’s
analysis of school successes on an individual scale. Empirical data
were collected through seven socioeconomic and cultural question-
naires and six in-depth individual interviews. We analyzed the school-
ing trajectories of black and quota students from popular classes of
an inland University in Ceará and pointed out the rationalization of
routines, managed by family morality that privileges school education
and the authority of fathers and mothers; reading and writing skills;
socialization in artistic-cultural and sports activities; public education policies and affirmative actions; internalization of public higher educa-
tion; affective and engaged incentive networks, among others.
Keywords: School success. Popular classes. Dispositionalists action
theories. Access to public higher education.
Éxitos Escolares Improbables y Teorías
Disposicionales de la Acción: Trabajando Con Pierre
Bourdieu y Bernard Lahire
Resumen
En este artículo exploramos elementos que potencian el éxito escolar
en las clases populares a través de la teoría de Pierre Bourdieu y sus
estudios sobre educación y reproducción social de las desigualdades
y el análisis de Bernard Lahire sobre los éxitos escolares a escala indi-
vidual. Los datos empíricos se recolectaron a través de siete cuestio-
narios socioeconómicos y culturales y seis entrevistas individuales en
profundidad. Analizamos las trayectorias escolares de los estudiantes
negros y de cuota de las clases populares de una Universidad del inte-
rior de Ceará y señalamos la racionalización de las rutinas, gestionadas
Francisco Érick de Oliveira; Carlos Henrique Lopes Pinheiro
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por la moral familiar que privilegia la educación escolar y la autoridad
de padres y madres; habilidades de lectura y escritura; socialización en
actividades artístico-culturales y deportivas; políticas públicas de edu-cación y acciones afirmativas; internalización de la educación superior
pública; redes de incentivos afectivos y comprometidos, entre otros.
Palabras clave: Éxito escolar. Clases populares. Teorías disposiciona-
les de la acción. Ingreso a la educación superior pública.
Considerações iniciais
O objetivo deste trabalho é explorar a problemática dos suces-
sos escolares “improváveis” nas camadas populares com base
nas Sociologias de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire. Partimos
da questão: sob quais condições e experiências se constroem
disposições sociais de sucesso escolar nas camadas populares?
Iniciamos a exposição situando teoricamente nosso problema e
orientando nossas posições metodológicas a partir de um dos
trabalhos de Pierre Bourdieu sobre educação. O autor tem reco-
nhecida participação na investigação sociológica das condições
objetivas de sucesso e fracasso escolares nas classes e frações
de classe social, pois sua contribuição, apesar de situada no con-
texto de democratização e reformas do sistema de ensino fran-cês, ainda exerce influência na gramática e metodologias com
as quais a Sociologia explora o problema. Esse legado será re-
tomado por meio da obra “Os herdeiros” (Bourdieu e Passeron,
2014). Simultaneamente, reconstruímos os princípios do siste-
ma teórico que o autor desenvolve ao longo da vida, sobretudo
as noções de habitus e capitais, a fim de indicar suas potencia-
lidades e limites para os nossos propósitos (Bourdieu, 2012a,
2012b, 2013a, 2017).
No segundo tópico, explicitamos o percurso metodológico da
pesquisa e os dados iniciais coletados, esclarecendo como efe-
tuamos recortes empíricos e quais tipos de questionários e en-
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trevistas nos foram úteis. Com o questionário, mapeamos condi-
ções objetivas familiares como renda, escolarização, ocupação,
moradia e acesso a bens e mecanismos culturais e mídias diver-
sas, conceituando “camadas populares”, no intuito de indicar
propriedades comuns entre esse universo, posicionando-o de
forma relacional no espaço social. A partir disso, requalificamos nosso problema para, no terceiro
tópico, dialogarmos com a abordagem lahireana e um de seus
trabalhos sobre educação – “Sucesso escolar nos meios popu-
lares: as razões do improvável” (Lahire, 1997). Dentre outras
opções, escolhemos esse autor porque ele entra em frestas ele-
mentares da investigação bourdieusiana e se debruça sobre os
casos individuais daqueles que sucedem na escola apesar das
condições objetivas de possibilidade. Como na primeira seção, ultrapassamos essa obra a fim de explorar a sua abordagem em
escala individual (Lahire, 1997, 2002, 2004, 2018).
Com esse movimento teórico e empírico entre ambas as abor-
dagens e que, na nossa concepção, não se encerram como opos-
tas, pelo menos nesta atividade prática teoricamente orientada, finalizamos com uma seção em que apuramos nossas lentes de
análise para ver outras dimensões do social através da inves-tigação de narrativas biográficas (entrevistas individuais e em
profundidade) e do recorte de trajetórias. Para apresentação
nesse formato, sintetizamos variáveis que se manifestam na
maioria dos casos, buscando não desarticular as dobras sociais
de cada individualidade, mas demonstrar como essas dobras são processadas em cada configuração, ao passo que também
são recorrentes em outras. Destacamos redes afetivas, de apoio
insistente e resistente no processo de construção, atualização e
transferência de disposições sociais; elementos da moral fami-
liar; contextos e campos de contradição ou complementaridade disposicional; políticas públicas e ações afirmativas; e “estraté-gias” de mobilidade social. Por fim, tecemos considerações finais e indicamos a bibliografia pertinente.
Francisco Érick de Oliveira; Carlos Henrique Lopes Pinheiro
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Pierre Bourdieu e o passado feito corpo e práticas
Escolhemos dialogar com “Os herdeiros” de Bourdieu e Passe-
ron (2014) porque, nessa obra, o problema das desigualdades
escolares é tratado pela perspectiva das condições de existência
sobre as trajetórias. Esse trabalho é considerado como um dos
marcos da Sociologia da Educação por ter sido escrito em um
contexto de reformas e democratização do sistema educacional
francês das décadas de 1960 e 1970 e colocado em xeque os ide-
ais republicanos de igualdade de oportunidades e de justiça me-
ritocrática. O livro “A reprodução” (Bourdieu e Passeron, 1982)
também é de fundamental importância para compreender o ra-
ciocínio dos autores de forma mais ampla, com a problemática
do poder simbólico e dos mecanismos práticos de legitimação
da reprodução das desigualdades, mas compreendemos que,
para indicar a trilha que percorremos, a primeira referência é suficiente.
O impacto de “Os herdeiros” se situa tanto no âmbito das Ciên-
cias Sociais quanto do debate público da época. No primeiro,
predominava um otimismo funcionalista, como o inferido por
Durkheim (2011), de que a educação teria a capacidade de sus-
tentar os laços que mantinham a sociedade coesa e reproduzir
as funções sociais que permitiam a existência desse organismo.
Esperava-se superar os atrasos econômicos, o autoritarismo,
privilégios “(...) e construir uma nova sociedade justa (merito-
crática), moderna (centrada na razão e ciência) e democrática
(autonomia individual)” (Nogueira e Nogueira, 2012, p. 16). No
debate público, a obra causou desconforto por revelar a realida-
de “oculta” do ideal de igualdade e justiça por méritos, expondo
sua fragilidade por conta das disparidades sociais e culturais en-
tre estudantes.
Embasados por anos de pesquisa empírica (entrevistas, estatís-
ticas, enquetes e outros métodos), Bourdieu e Passeron (2014)
têm por objetivo reiterar como a origem social é determinante
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nas trajetórias escolares. As novidades do trabalho correspon-
dem ao esforço de construção de uma gramática propriamen-te sociológica, pela ênfase na influência familiar em termos de
socialização primária e proximidade com a Sociologia da Cultu-
ra. A prevalência de métodos quantitativos relacionava-se com
a legitimidade que o campo da Economia conquistara. Com a
Sociologia da Cultura, entretanto, eles puderam expor a inter-
pretação por meio de uma analítica que não resumia o mundo à
compreensão economicista, mas por processos de produção de
desigualdades simbólicas e culturais (Bourdieu, 2013a).
Ao conceber que os estudantes possuem bagagens culturais que
adquiriram antes da escola, eles antecipam boa parte dos elemen-
tos que serão fundamentais em obras posteriores, principalmen-
te, no sistema teórico bourdieusiano. Essas bagagens culturais
tomarão, aos poucos, o corpo conceitual de capital cultural, repre-
sentando as diferenças de origem que se tornam mais ou menos
rentáveis no mercado escolar. Um capital representa uma ener-
gia social fruto de trabalho passado acumulado e é instrumento
de poder. A noção de origem social, empregada para representar
condições socioeconômicas e culturais objetivas de uma classe,
fração de classe e por determinações de gênero (nessa obra, pelo
menos), propõe oposição direta à concepção vigente de que os
bons estudantes possuiriam dons intrínsecos. O conceito de capi-
tal cultural condensa experiências como viagens, cursos, visitas a
teatros e museus, diplomas, conhecimento sobre o funcionamen-
to do sistema escolar, das hierarquias entre instituições, cursos e profissões, etc. Dessa forma, pode se apresentar de forma objeti-
vada, institucionalizada ou incorporada (Bourdieu, 2016b).
As outras formas de capitais fundamentam a missão que os autores
empreenderam de alargar a problemática da educação para além da
economia, mesmo que só sejam integralmente exploradas ao longo
do tempo. O capital econômico, então, é concebido como diferentes
formas de produção e bens (terras, trabalho, máquinas, dinheiro e
outros bens materiais). O capital social seria aquele representado
Francisco Érick de Oliveira; Carlos Henrique Lopes Pinheiro
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pela participação em redes de relações sociais que abrem caminhos
para o acesso a bens e recursos no presente ou em potencial. Essas
redes se sustentariam e se reproduziriam por reconhecimento mú-
tuo e o volume desse capital estaria relacionado à possível extensão
delas e seus recursos. Haveria ainda o capital simbólico, concebido
como aquele com lógicas diferentes por operar pelo “fazer crer”. As-
socia-se ao prestígio exercido sobre um campo e pode se converter
em outros tipos de capitais (Busseto, 2006).
O volume do capital corresponde, de fato, ao que é mensurável. A
conversão implica na capacidade que o capital carrega, pela sua
espécie e volume, de produzir ou se transformar em outro. O ca-
pital cultural, por exemplo, pode ser fruto dos investimentos de
capital econômico ou até mesmo ser a sua matriz generativa, mas
isso não necessariamente implica conversão, e sim, subsídio. Os ca-
pitais social e simbólico possuem a capacidade de se converterem em outros, seja pela rede dos contatos influentes, seja pelo prestí-gio/carisma (Bourdieu, 2017). Por fim, o campo é compreendido
como um espaço multidimensional de posições relacionais no qual
se confrontam e se criam disputas por capitais e poder. Os campos
são compostos por princípios de diferenciação, distribuição de ca-
pitais e forças. Cada tipo possui certa autonomia em seus princípios
de hierarquização e organização e, ainda que possam se tocar, os
campos têm seus limites e delimitam a ação (Bourdieu, 2012a). Na
nossa investigação, nos valemos da compreensão dos capitais e dis-
posições valorizadas no campo da educação escolar formal.
Os “herdeiros” seriam aqueles que vivem a experiência escolar
de forma “natural”, porque naturalizada, encontrando condições
de trafegarem pelo sistema sem estranhamento e apoiando-se
na bagagem cultural de suas famílias, mais ou menos próxima da cultura legitimada socialmente, culta, reificada pela escola.
O capital cultural aparece nesses como saberes-fazer e saberes-
-dizer próprios ou correspondentes à cultura escolar. Suas pos-
sibilidades de sucesso se multiplicam se comparadas com os
“não-herdeiros”, ou desfavorecidos, aos quais a cultura escolar
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se apresentaria como cultura estrangeira, vivendo uma constan-
te experiência de aculturação, achando-se fracos e incapacitados
de acompanhar a aprendizagem, de apresentar as capacidades
tomadas como intrínsecas e, mesmo após formarem-se, não en-
contrarem o retorno dos diplomas1. Os herdeiros não são apenas
os escolhidos, mas também aqueles que podem reiterar pela es-
cola a sua capacidade de escolher.
Nesse ponto, podemos visualizar os primeiros indícios analíticos
do conceito de habitus. Ele condensa a compreensão que Bour-
dieu (2012a, 2013a) desenvolveu e aplicou empiricamente desde o princípio de sua aparição no campo sociológico, influenciado,
dentre outros, pelo polo da fenomenologia (interacionismo, etno-
metodologia), que concebia maior liberdade de ação e consciência
dos atores, e o polo do objetivismo, pela hermenêutica estrutura-
lista que concebia as práticas como estruturadas objetivamente,
promovendo um rompimento com o conhecimento imediato da
realidade. Aplicamos a metáfora dos polos no sentido de Alexan-
der (1987) e o movimento de pêndulo na problemática enfrentada
pelas teorias sintéticas. A síntese tenciona uma das mais clássicas
questões da Sociologia: a relação indivíduo e sociedade. Para Or-
tiz (1983), Bourdieu faz uma dupla translação teórica para propor
uma teoria praxiológica que não se encerre em nenhum dos polos,
mas que seja capaz de apreender a dialética entre eles. As práticas,
em seu sistema teórico, são condicionadas pelas estruturas sociais
e condicionantes dessas, pois é por meio da incorporação que os
agentes fazem do mundo social que as estruturas se reproduzem e
se atualizam. É na articulação dos conceitos de campo e habitus que
ele encontra a possibilidade de não encerrar a interpretação da rea-
lidade social, pois é contínua a relação dialética entre a objetividade
e subjetividade (modus operandi e não modus operatum).
1 Bourdieu (2017) trata em um dos últimos tópicos do capítulo 2 de “A distinção” sobre
essa questão, recuperando a problemática dos resultados prometidos e não alcançados
pela democratização da educação escolar. As frações de classes e gerações vivenciam um
sentimento de engano por seus investimentos não terem encontrado retorno.
Francisco Érick de Oliveira; Carlos Henrique Lopes Pinheiro
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As conclusões viabilizadas pela obra “Os herdeiros” indicam que
a escola das oportunidades iguais trata de modo semelhante pa-
trimônios sociais diferentes, e o resultado gerou crises e pessi-
mismo, pois além de multiplicar as desigualdades sociais, o sis-
tema, pelo reconhecimento que lhe era concedido, acabava por
legitimar as coisas como elas eram. Sucesso ou fracasso dava-se
por mérito e responsabilidade de cada um. O passado incorpora-
do como sistema de capitais e disposições que compõem um ha-
bitus familiar e de classe rege as práticas dos estudantes em sua
relação com a escola. Diferentes habitus e volumes de capitais
reagem de formas diferentes a estímulos supostamente iguais
e neutros. Como matriz determinada pelas condições objetivas
de existência e pela trajetória até o presente, o habitus condensa
analiticamente a compreensão de um agente que tem todas as
dimensões da vida e das suas práticas (ver, sentir, pensar, valo-
res, representações, etc.) regidas pelo passado incorporado, que
se transmite na socialização familiar de forma duradoura e se
faz corpo (comportamentos, posturas), atualizando-se no pre-
sente quase sempre em total consonância com a matriz.
Na seção seguinte, nos apropriamos dessas elaborações teóricas a fim de posicionar nossos interlocutores no espaço social e vi-
sualizar formas de transitarmos entre a problemática da repro-
dução social e dos casos “excepcionais”, esclarecemos alguns dos
procedimentos metodológicos.
Metodologia e dados iniciaisO universo empírico foi definido em quatro momentos. Solicita-
mos à Coordenação de Políticas de Acesso e Seleção de Estudantes
(CASE), vinculada à Pró-reitoria de Graduação da Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB),
dados referentes às vagas na edição 2018.1 do Sistema de Seleção Unificada (SISU) e um painel com a concorrência por curso. Em
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seguida, acessamos as listas de aprovação da primeira edição do
SISU, disponíveis no sítio eletrônico do MEC-SISU (SISU, 2018) e
entramos em contato novamente com a CASE portando duas lis-
tas referentes aos indicadores L2 e L62: candidatos autodeclara-
dos pretos, pardos ou indígenas de escolas públicas, tendo ou não
renda per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo – escolhe-
mos não fazer essa diferenciação de renda.
Formamos um universo de 42 inscritos, sendo 21 pessoas por lis-
ta. Dessa vez, tínhamos o objetivo de listar as matrículas efetivadas.
Com o retorno, tomamos ciência de que apenas 17 matrículas foram
efetuadas (10 para a categoria L2; 7 para a L6). Menos da metade dos aprovados chegaram à Universidade. Por fim, entramos em con-
tato com os 17 matriculados (10 homens e 7 mulheres) via Sistema
Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas apresentando a pes-
quisa e solicitando a participação no preenchimento de um questio-
nário socioeconômico e cultural online, bem como antecipando as
possibilidades de contato posterior para as entrevistas em profun-
didade (na perspectiva experimentada por Lahire (2004)).
O questionário socioeconômico e cultural foi constituído por 36
perguntas, objetivas e subjetivas, visando mapear propriedades
que posicionassem de forma relacional os indivíduos no espaço
social (Bourdieu, 2012b). Compreendemos como socioeconômi-
cas as características relacionadas à renda média familiar, ocu-
pação das/os responsáveis, condições de moradia e área de resi-dência, a forma de manutenção financeira durante a graduação,
a existência de vínculo empregatício atual ou anterior e as moti-
vações para o trabalho. A perspectiva cultural investigou a esco-
laridade da família, hábitos de leitura, frequência e/ou o acesso
a atividades culturais diversas, principais fontes de informação
2 Esses indicadores são mecanismos para a distribuição de vagas representados por le-
gendas. Além desses dois, outros indicadores adotados pela UNILAB são de a) ampla concorrência (A0), b) bonificação por ter cursado o ensino médio no sistema público (B730), c) indicadores para candidatos com deficiência (L9, L10, L13, L14) ou d) com
renda inferior a 1,5 salário mínimo (L1), etc.
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e frequência na utilização das redes sociais. Também antecipa-
mos informações individuais: idade, gênero, raça/cor/etnia, ci-dade de origem, estado civil, a possibilidade de possuir filhos/
as, o ano de conclusão do ensino médio, se houve ingresso ante-
rior no ensino superior, se permaneceriam ou e se concluiriam o
curso escolhido, se houve mudança de cidade de residência e se
haviam frequentado cursinho de preparação para o vestibular.
O roteiro das entrevistas foi semiestruturado de forma que o in-
terlocutor fosse estimulado a falar sobre sua experiência escolar e as configurações de sua família, revelando, aos poucos, outras das
diversas dimensões de sua vida, que também seriam exploradas,
sem dissociá-las do objetivo que elencamos e o recorte de trajetó-
rias. Mapeamos sentidos referentes à educação, eventos e pesso-
as marcantes em suas trajetórias escolares; depois, efetuamos o
mesmo movimento com relação à família, buscando compreender como se configurava aquele ambiente e como ele era percebido e
traduzido. Esses dois momentos eram aos poucos vinculados pela
própria narrativa do/a interlocutor/a, demonstrando a profunda
interdependência dessas dimensões. Outros ambientes foram ex-
plorados, como os das atividades culturais, artísticas, esportivas;
as experiências religiosas, políticas; percepções de si e dos outros
nas redes de interdependência, questões de raça/etnia, sexualida-
de, gênero, alimentação, roupas, entretenimento, etc.
As entrevistas foram todas realizadas em ambientes da UNILAB,
previamente agendadas, entre agosto e dezembro de 2018. Como
dependíamos integralmente da disponibilidade de cada um, fo-
mos somando todas as oportunidades que tivemos, seja de tre-
chos de 20 minutos, seja conversas mais prolongadas de 1 hora.
Retornamos até que o roteiro se esgotasse com cada um dos seis
interlocutores que aceitaram prosseguir com as entrevistas, pois,
dentre as sete pessoas, uma participou apenas dos questionários,
não prosseguindo para a fase de entrevistas. Gravamos todos es-ses momentos e os transcrevemos. Após as transcrições, codifi-
camos os elementos mais evidentes nas falas referentes às traje-
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tórias de escolarização e das configurações familiares, e também buscamos interpretar a influência de elementos mais dispersos, mas, ainda sim, significativos de alguma forma.
Os sete estudantes3 com os quais estabelecemos interlocução na
etapa dos questionários (Andressa, Bárbara, Cristina, Débora, Fábia, Mariana e José – todos nomes fictícios), pela perspectiva
bourdieusiana, devido às suas condições objetivas de origem e
existência socioeconômica e cultural, seriam melhor concebidos
como a exceção à regra. Bourdieu nos ajuda a posicioná-los no
espaço social em certa escala de análise e estabelecer níveis de
semelhança geral e distinções interindividuais, além de nos con-
duzir às perguntas que virão em seguida: o que faz a exceção?
Essa é uma questão apenas de metodologia?
A concepção de sucesso escolar que empregamos aqui, vale
ressaltar, se refere à longevidade escolar (Viana, 1998) dessas
trajetórias de escolarização que extrapolam a própria história
familiar, sendo essas e esse os primeiros a acessarem o ensino
superior. Não desconsideramos, portanto, as implicações dessas
condições objetivas sobre a “escolha” dos cursos; as condições
de permanência e conclusão; e as chances de sucesso no merca-
do dos diplomas. Apesar de haver muitas semelhanças, como as
que exploraremos a seguir, há níveis diferentes de escolarização
dos pais e mães, expectativas de permanência e aspirações de trabalho, assim como níveis variados de confiança e autoestima.
O grupo tinha entre 18 e 20 anos, formado por seis pessoas do sexo feminino e um do sexo masculino; todos solteiros, sem fi-
3 Nós não havíamos estabelecido critério de gênero para o recorte do universo porque
nos interessava mais, primeiramente, conseguir acessar os estudantes e conhecer sua
disponibilidade para a pesquisa, considerando a característica das entrevistas que lida-vam com dados biográficos. Portanto, o fato de que apenas um homem, dentre seis mu-
lheres, tenha se disposto a nos ceder informações é um dado consequente do processo
de pesquisa e que, até certo ponto, não interfere “diretamente” na pergunta de partida.
No desenvolvimento do problema, contudo, questões referentes a gênero são discutidas.
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lhos, sem ingresso anterior no ensino superior e oriundos de di-
ferentes cidades do norte cearense. Dentre esses, cinco pessoas
declararam-se pardas, uma preta e uma quilombola4. Andressa,
Bárbara, Débora, Fábia e Mariana concluíram o Ensino Médio
com 17 anos e ingressaram no ano seguinte no ensino superior.
José e Cristina concluíram o ensino médio com 18 anos. José con-
cluiu o ensino médio em 2017 e já ingressou no ensino superior.
Cristina concluiu em 2016 e esperou um ano para ingressar na graduação. Apesar disso, mesmo considerando a configuração
de camada popular, a maioria ingressou no ensino superior em
idade adequada, fortalecendo a hipótese de que essas camadas
desfavorecidas, apesar dos baixos capitais econômicos e cultu-
rais, desenvolvem “estratégias”, modos de socialização e integra-ção em oportunidades de longevidade que desafiam o que em
sentido macrossocial é inconcebível.
Nenhum dos grupos familiares costuma acessar os recursos cul-
turais, artísticos e/ou de entretenimento listados no questioná-
rio. Andressa, Bárbara, Débora e Fábia residiam na Zona Rural;
Cristina, José e Mariana na Zona Urbana. Todos moravam em
casa/apartamento próprio, com exceção de Mariana que esta-va em casa/apartamento ainda em financiamento. O número de
residentes em cada família estava entre quatro e seis pessoas.
Os pais de Andressa e Mariana são os únicos com Ensino Mé-
dio completo (tosador de cães; vigilante); os demais possuem
ensino fundamental incompleto (dois agricultores e um opera-
dor de máquina); o pai de Bárbara não tem escolarização for-
4 Mantivemos a autodeclaração como critério final, devido tanto à seleção pela Política
de Cotas, autodeclaração nos questionários e discussão sobre cor/raça nas entrevistas.
Cor está associada à raça no sentido proposto por Guimarães (2009, p. 46-47), como um
mecanismo de falseamento que, apesar de tentar substituir a noção de raça, apoia-se em ideo-
logias raciais preexistentes. Também é importante distinguir cor de identidade étnica e/
ou racial. A primeira pode vir, sim, sem qualquer tipo de conotação político-identitária
aparente, o que não exclui os fatores estruturais que potencialmente incidam sobre ela.
Identidades étnicas e/ou raciais concebem maior valor à construção de um “nós” coleti-
vo, do sentimento de pertença a um grupo social de referência, tais como as identidades
negras e quilombolas (Gomes, 2005).
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mal (agricultor). Além da mãe de Débora, que tem Ensino Mé-
dio completo e que trabalhou como professora (aposentada), e
da mãe de Mariana que não concluiu o Ensino Médio (dona de
casa), as demais possuem ensino fundamental incompleto (três
agricultoras e uma costureira); a mãe de Bárbara não tem esco-
larização formal (agricultora). As famílias de Andressa, Débora e
José mantinham-se com até um salário mínimo (R$ 954,00). As
famílias de Bárbara e Cristina tinham rendas provindas de Pro-
gramas Sociais e as famílias de Fábia e Mariana com até dois sa-
lários mínimos. Organizamos essas informações na tabela abai-
xo para visualizar o sentido que atribuímos à “camada popular”:
De todos, Bárbara foi a única que ponderou a possibilidade de
permanecer no curso e concluí-lo. Ela também era a única que
trabalhava, cuidando de uma criança pelas manhãs (com exce-
ção também de José que estagiou durante o ensino médio), e re-lacionava suas dificuldades de estudo diretamente com a impos-
sibilidade de conciliação das atividades. Segundo ela, foi sua a
escolha de trabalhar, mas tinha como horizonte ajudar na renda
da família. Ainda assim, é importante notar que, apesar dos or-
çamentos familiares apertados, os estudantes não declaram ter
tido introdução anterior em oportunidades de trabalho. Bárbara
e Mariana não mudaram de cidade: Bárbara por conta do tra-
balho e das responsabilidades em casa; Mariana por facilidade
de trânsito entre a cidade de residência e a Universidade. Todos
dependeriam de auxílio estudantil para se manter na Universi-
dade. À época, alguns ainda não tinham conseguido e sofriam
com o pouco que recebiam da família para os altos custos com
aluguel, alimentação, transporte, eletrodomésticos, móveis, arti-
gos de casa, entretenimento, materiais e equipamentos de estu-
do, saúde, roupas, etc. Com exceção de Mariana, que fez cursinho
online, nenhum deles frequentou pré-vestibular. Direcionamos,
então, nossa atenção para outras possibilidades de formação
para o ENEM e demais experiências de incentivo, talvez prota-
gonizadas pelas escolas.
Francisco Érick de Oliveira; Carlos Henrique Lopes Pinheiro
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TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
Tabela
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SUCESSOS ESCOLARES IMPROVÁVEIS E TEORIAS DISPOSICIONALISTAS DA AÇÃO
TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
Na sequência, construímos um debate com a perspectiva lahire-ana a fim de reconduzir nosso objeto de estudo. Propomos uma
mudança de escala de investigação, de métodos, do conjunto
de ferramentas analíticas e de possibilidades de exposição dos
dados, mas também seguimos tomando, quando úteis, as ferra-
mentas de Bourdieu.
Bernard Lahire e a Sociologia disposicional e
contextualista
Bernard Lahire entra em cena na Sociologia contemporânea como
um dos maiores críticos de Bourdieu, ao passo que permanece
seu seguidor. Sua agenda de pesquisa propõe uma Sociologia em
escala individual, levando em conta as variações interindividuais
e intraindividuais, consonâncias e dissonâncias, a sincronia e a
diacronia das disposições, competências, comportamentos e tra-
jetórias. Lahire tem lidado com a realidade social pelos detalhes.
Sua posição não é só uma crítica às tendências de totalidade, mas
uma posição epistemológica essencialmente diferente.
Os detalhes podem revelar o quanto o social está incorporado
em todas as dimensões da vida e, talvez principalmente, o quan-
to a Sociologia precisa explorar para conhecer as suas dobras –
uma metáfora bastante utilizada para representar como o social
se singulariza na pluralidade (ou se pluraliza na singularidade)
de um indivíduo. Levando o pensamento disposicional seme-lhante ao de Bourdieu aos lugares mais profundos que o desafio da biografia sociológica o permite, o autor tem, inclusive, enca-
rado de frente territórios pouco explorados no campo, como o
dos sonhos (Lahire, 2018). Descortinando fronteiras classica-
mente polêmicas na Sociologia, ele compreende que mesmo o
inconsciente mobiliza o social incorporado na forma de esque-
mas disposicionais para se manifestar, pois os sonhos são uma
continuidade das formas de expressão humana, ainda que em sua especificidade.
Francisco Érick de Oliveira; Carlos Henrique Lopes Pinheiro
423
TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
No âmbito da sua Sociologia da Educação, Lahire (1997), já acu-
mulando experiências na construção de sua própria teoria dis-posicional e contextualista, propõe que precisaríamos redefinir
nosso conhecimento sobre como se dá a socialização antes de
pressupor macrossociologicamente que, pela compreensão das
condições objetivas de possibilidade, se inscrevem trajetórias.
Exploraremos uma de suas obras fazendo conexões com a pers-
pectiva teórica que ele publica na sequência (Lahire, 2002) e nos ateremos a três problemáticas especificamente: a noção de “prin-
cípio gerador”, as concepções de “transponibilidade” e “transferi-
bilidade” e uma posição contextualista sobre as práticas.
Apesar da sistematicidade da teoria bourdieusiana e do impac-
to que ela causa sobre as condições da agentividade, Bourdieu
assumia as possibilidades de variações nas trajetórias. Ele con-
centrava essas potencialidades no próprio conceito de habitus
como matriz generativa e não de encerramento das práticas. O
modo como ele opera não seria mecânico, mas propriamente
criativo. Em “Os herdeiros” (Bourdieu e Passeron, 2014), os au-
tores levantam o caso dos destinos excepcionais e a necessida-
de de se estudar as causas envolvidas nesses “desvios”, por essa
razão, ele também nos segue em campo. Ainda assim, a posição
de Lahire (2002) não se conforma em conceber as falhas ou até mesmo as tomadas de posição da teoria bourdieusiana – afinal,
o autor investigava aquilo que se reproduz e como a reprodu-
ção opera – como um redirecionamento de objetivos ou de es-
calas de investigação. Isso seria apenas o começo. Os problemas
seriam também analíticos. A questão não seria de se investigar
casos excepcionais, tratando os demais como adequados à gra-
de objetiva da realidade social, mas tomar um outro modelo de
inteligibilidade teórica e metodológica. Todos os casos são sin-
gulares quando os contextos são precisamente compreendidos,
não apenas os excepcionais.
Na pesquisa sobre o “Sucesso escolar nos meios populares: as razões
do improvável” (Lahire, 1997), ele investiga os casos de 26 famílias
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SUCESSOS ESCOLARES IMPROVÁVEIS E TEORIAS DISPOSICIONALISTAS DA AÇÃO
TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
residentes da periferia de Lyon, na França. Ele conversa com crian-
ças de aproximadamente oito anos e seus responsáveis, professores e diretores, tomando notas etnográficas sobre cada contexto de en-
trevista, seja nas residências, seja nas escolas. Para imergir no cam-po, antecipadamente, ele definiu que investigaria a cultura escrita de cada configuração familiar, as condições econômicas e disposições
consequentes, moral familiar, as formas de investimento pedagógico e a autoridade familiar. Mais do que buscar traços influentes positiva
ou negativamente, Lahire compreendia seu campo empírico como
ele se apresentava, mesmo em sua ambiguidade.
O autor constrói a sua proposta considerando que as sociedades
se encontram imersas em relações mais complexas e diferenciadas,
nas quais os indivíduos têm se socializado em uma maior diversi-
dade de contextos, fazendo com que, por exemplo, a família tenha
“perdido” o monopólio da educação legítima. Para tanto, nessa pes-
quisa dos sucessos improváveis, Lahire investe atenção especial
no peso das socializações secundárias tanto quanto das primárias,
uma posição que já o afasta um pouco da teoria bourdieusiana e
tenciona a noção de habitus como “um” princípio gerador e homo-
geneizador das práticas. Se os contextos de socialização e condi-
ções de existência se tornaram mais heterogêneos, logo, as práticas
podem não se apresentar com tanta coerência quanto pela leitura
anterior. No lugar de considerar um “sistema” (inferindo coerên-
cia, circularidade), Lahire opta por utilizar a noção de patrimônios
individuais de disposições. Além disso, ele não trata os diferentes
momentos da socialização de forma separada. Seu principal alia-do na pesquisa é o conceito de configuração social de Elias (2014),
que propõe conceber a realidade social como formada por cadeias de redes de indivíduos interdependentes. Ao investigar biografias
individuais e familiares relacionando-as com a esfera educacional, o autor não divide as influências. Cada variável é tomada de acordo
com o peso relacional que tem e exerce quanto às outras.
Ele também põe em xeque a concepção de que a mobilização pe-
dagógica familiar é fator primordial de êxito escolar. De acordo
Francisco Érick de Oliveira; Carlos Henrique Lopes Pinheiro
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TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
com seus casos, quando os esforços existem, nem sempre apare-
cem como condição de êxito ou como fator automático; e quando
não existe mobilização, ela, em si mesma, não é tão determinan-
te. Há uma potencialidade de questionamento dos princípios de
“transponibilidade” e “transferibilidade” aqui, pois com a inves-
tigação, é possível inferir que mesmo pais ou mães com algum
nível de escolarização não conseguem transferir com facilidade
e automaticamente seus capitais e disposições à prole ou trans-
por esquemas de outros campos e contextos para o campo edu-
cacional; outros com menor bagagem cultural o fazem de forma
mais bem articulada. Isso exige um extenso e cansativo trabalho
de acompanhamento e dedicação, além de esquemas disposicio-
nais propriamente relacionados com as competências de trans-
ferência de saberes. Além, obviamente, de contextos que poten-
cializem a troca de disposições, como um ambiente afetuoso, de
comunicação, formas de autoridade, ou algo mais amplo como a estabilidade financeira da família, que não significa “riqueza”,
necessariamente, mas possibilidades de planejamento longevo
de metas.
Dessa forma, Lahire questiona o poder de determinação do pas-
sado, no sentido de que seria fundamental saber antes as con-
dições de sua inculcação e, assim, invocá-lo para compreender
as práticas e os contextos. É preciso investigar as condições de transmissão e transposição, os graus de força e fixação das dis-
posições e as possibilidades de atualização, além de tencionar a
coerência e/ou pluralidade dos princípios geradores e confron-
tá-los com as trajetórias e a aquisição de novas disposições. O
ator é, portanto, multissocializado e multideterminado, e uma
das formas mais coerentes de investigar suas disposições sociais seria por meio de longas entrevistas biográficas, buscando dar
conta de diversas esferas e jogos nos quais o indivíduo esteja po-
sicionado, ou interpelando-o em vários momentos de sua vida,
reconhecida como uma trajetória; a etapa seguinte se daria pela
composição de retratos sociológicos, “sintetizando” as articula-
ções possíveis entre as informações coletadas.
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SUCESSOS ESCOLARES IMPROVÁVEIS E TEORIAS DISPOSICIONALISTAS DA AÇÃO
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A ideia de patrimônio encontra-se com a problematização da
coerência dos contextos. O ator possuiria, então, um repertório
variado (ainda que não completamente fora das condições obje-
tivas teorizadas em Bourdieu) de disposições sociais e estas se-
riam ativadas de acordo com o contexto em que fossem reque-
ridas. Os patrimônios de disposições não seguem o indivíduo de
forma integral por onde ele passa, como uma grande bagagem de
inclinações, mas são requeridos na ação e no contexto da ação.
É no contexto que as formas adequadas são ativadas, ou, ainda,
tornadas contraditórias, enfraquecidas, atualizadas, fortalecidas,
adormecidas, entre outras formas de processamento. O contexto
é, portanto, o que permite falar de um passado incorporado, apto
a acionar as disposições sociais. Há também o desenvolvimento de concepções sobre a influência articulada das competências
(saber-fazer, habilidade) e apetências (paixão, vontade, interesse)
que, sendo diferentes de algo possivelmente mais profundo como
as disposições sociais, atuam como gatilhos.
Como se formam as disposições de sucesso escolar nas
classes populares?
Nesta última seção, por conta da profundidade de cada caso, fare-
mos algumas generalizações acerca das condições e experiências
mais evidentes em cada trajetória que nos permitam indicar quais as variáveis influentes na longevidade da educação formal desses
estudantes. É fundamental compreender que, no interior de uma trajetória específica, há um conjunto muito mais amplo e articulado
de elementos que se relacionam. A maneira como cada arranjo se
efetiva é profundamente diferente, pela pluralidade de como o so-
cial se individualiza e como cada experiência suscita e atualiza in-fluências disposicionais (intraindividual). Ao dissertarmos sobre os
elementos comuns, estamos apontando variáveis individualizadas,
mas que, de certa forma, com alguma semelhança, são interindivi-
duais. Em alguma medida, seguimos uma lógica temporal, iniciando
com elementos essenciais das primeiras experiências e condições,
Francisco Érick de Oliveira; Carlos Henrique Lopes Pinheiro
427
TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
e avançamos com contextos estruturais de oportunidades e orien-
tação, mas não os desarticulamos no argumento, apenas na escrita.
Uma das variáveis mais fortes em todos os casos se trata de uma
“postura de profunda crença” e investimento na escola como
oportunidade de mudança de vida. Sentidos semelhantes foram
observados por Viana (1998, 2005, 2009, 2011, 2012). Sendo
os pais e mães pouco escolarizados e tendo eles conhecido a
realidade pela ótica da ausência de “diplomas”, em sentido ge-
ral, a escola representa tanto um campo de salto para um futuro
diferente como uma das únicas promessas disponíveis. Portes (1993) e Viana (2005, 2012) pensaram esses significados pelo
seu valor simbólico; uma forma de ultrapassar os pais e suas
condições. Pelo viés geracional, cada geração realiza-se nas coi-
sas que autoriza nas seguintes.
Os incentivos tomam vários sentidos, seja “pra não ser dependen-
te de marido”, como nas falas de Andressa, aconselhada pela mãe
e pela avó; de Bárbara, constantemente instigada pela experiência
da sua mãe: “eu não quero que o que aconteceu comigo aconteça
com você”, e às vezes com um apelo mais profundo, de interde-
pendência: “Ela sempre fala ‘Bárbara, vai estudar. Me ajuda’. Que é pra poder ajudar ela, né? ‘Se ajuda também, que se tu ficar (sic)
parada no canto, tu não vai conseguir nada’”; de Fábia, orientada
pelas concepções que sua mãe tecia sobre a educação como um
meio de proporcionar “uma qualidade de vida. (...) o estudo leva
você a ter melhores condições de vida, a alcançar um bom traba-lho e ter uma boa condição financeira”; ou no caso de Débora que,
por ter mãe professora, viveu a imersão no campo escolar e suas
possibilidades de modo quase integral: “Ela [a mãe] levava a gente
pra escola. Até porque tinha, é... Mais Educação5. Então, a gente
5 O Programa Mais Educação foi criado pelo Ministério da Educação, em 2007. Tem o
objetivo de melhorar o acompanhamento pedagógico e a aprendizagem em língua por-
tuguesa e matemática no ensino fundamental. Também incentiva o desenvolvimento de
atividades de artes, cultura, lazer e esporte.
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SUCESSOS ESCOLARES IMPROVÁVEIS E TEORIAS DISPOSICIONALISTAS DA AÇÃO
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passava o dia na escola. De um jeito ou de outro, desde sempre, eu
passei o dia na escola”. Com a mãe professora, interpretando com
Bourdieu e Passeron (2014) e Lahire (2005), apesar de não pos-
suir tanto capital econômico, Débora pôde experimentar em seu
patrimônio disposicional forças que a diferenciavam dos outros
em sua fração de classe, aculturando-a com mais facilidade.
Essa variável é basilar e, talvez, se repita em todos os casos por-
que outro elemento muito importante está interligado: a moral
familiar, uma estrutura que sustenta os atos dela decorrentes,
que articula agência e passado incorporado ou experimentado
em alguma medida – aqui Lahire (1997) também é essencial.
Nos referimos às rotinas e valores cultivados na vida desses es-
tudantes no espaço familiar. Em José, isso aparece de forma mais
sistematizada, sintetizando tanto o efeito de trajetória (passado
e presente) quanto de rotinização da vida (passado feito presen-
te e orientação de futuro).
A minha mãe é de um interior do [cidade de origem] chama-
do [nome da localidade], e o meu pai de [cidade de origem
do pai]. Ambos os dois (sic) só foram até o quarto... quarto
ano, né, do ensino fundamental. É... sempre teve aquela his-tória, né, de que passaram dificuldades, no começo, tanto por
não ter escolaridade, não conseguir um bom emprego, mas formaram a família e quiseram colocar isso nos filhos, né.
(...) Mas isso foi desde pequeninho, sempre no intento “ah,
vai estud... vai ter que estudar”, “pra fazer isso, vai ter que es-
tudar”, “pra sair com tais pessoas, você primeiro vai ter que fazer o caderno de caligrafia”, essas coisas. Aí, sempre foi, des-de pequeno, é... essa influência. Sempre, sempre, sempre. Era
a igreja católica, não sou... eu era... não sou católico, mas...
mas... pequeno, era catecismo; catecismo, casa; era lição. Se não fizesse lição, não tinha brincadeira na rua. Então, isso
era (pancada na mesa) colocado mesmo, em casa.
Em Mariana, há semelhança em dois sentidos. A primeira segue a
mesma questão de a geração dos pais não ter tido oportunidades
hoje disponíveis. Assim, eles organizam a vida familiar em função
Francisco Érick de Oliveira; Carlos Henrique Lopes Pinheiro
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da vida escolar da prole. A principal frase da sua mãe é: “você só
estuda, então, faça isso bem”. A educação era o objeto central da sua casa, inclusive financeiramente. Mariana estudou em escola
privada até o oitavo ano do ensino fundamental. Lahire (1997,
p. 233), por exemplo, conceituou tais práticas como a criação de
“ilhas de luxo”; com Bourdieu e Passeron (2014), mais uma vez,
pensamos na potência distintiva de conhecer as regras do campo
escolar. Seus pais, com certa estabilidade de renda, a mantiveram no ensino privado já almejando os benefícios para que ela concor-resse a uma vaga no ensino médio profissionalizante. O segundo
elemento que gostaríamos de considerar refere-se à presença de
um pai leitor e constante estímulo pela compra de livros, conver-
sas ou mesmo pelo exemplo e postura para com a cultura escrita.
No caso de Débora, para além da imersão quase integral na
vida escolar, em sua narrativa, as disposições de escolarização
se expressam quando ela considera a experiência da irmã: “(...) ela
é obrigada a estudar. Ela tem consciência pesada se ela não tiver
(sic) estudando”. A consciência pesada transparece o efeito de roti-
nização das disposições sociais que, quando confrontadas, causam
esse mal estar; ameaçam as estimativas de futuro nos empreendi-
mentos possíveis do presente; é o passado feito corpo e práticas
no presente (Bourdieu, 2013a) que estaria sofrendo provocações
com relação à sua matriz. Além do mais, Débora tem incorporado
sentidos práticos que a permitem emitir julgamento sobre alguém
que recebeu incentivos semelhantes, além de julgar a si mesma. Na
narrativa de Fábia, algo semelhante reaparece como julgamento de
valor dela sobre si mesma e quanto aos colegas: “Na minha sala, era
pessoas muito dispersa (sic). (...) tanto é que só passou (sic) duas
pessoas pra universidade. Eu e outro menino. (...) O resto não
queria saber de estudar, não. Ia só pra ganhar presença; comer
a merenda”. E isso se estende até a sua irmã: “Ela não faz nada
mesmo, não (risos). Só parada. Não faz nada”.
A sua opinião quanto ao destino dos colegas e da irmã, por não
“moverem-se”, não agirem para conquistar algo, estarem disper-
430
SUCESSOS ESCOLARES IMPROVÁVEIS E TEORIAS DISPOSICIONALISTAS DA AÇÃO
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sos, mostra-nos um pouco de como ela vem incorporando dis-
posições inclinadas à escolarização como necessidade de ação,
construção de uma herança que ela não recebeu diretamente da
família. Os seus julgamentos sobre o conformismo dos outros
se assemelham ao caso de André, analisado por Viana (2009),
quando o mesmo reconhece que seus colegas e ele não possuem
herança, logo, não teriam nada para construir. Porém, André não
assume uma posição conformista, acreditando ser necessário (e
possível, inclusive) construir a própria herança.
Em todos os casos, ainda que com intensidades diferentes, as dis-
posições de escolarização são construídas em uma relação quase
que totalmente “ascética” com o mundo, no sentido de que nada
importa ou interrompe os projetos, pois, se a educação é a saída para a situação social em que os filhos se encontram, então, ela
deve ser o centro da vida. Percebemos também que, mesmo sen-
do de camadas populares, com pouco capital econômico (Busseto, 2006) disponível para a manutenção da vida, os filhos não foram
vistos como potencial força de trabalho, e sim, como estudantes,
integralmente (Nogueira, 2006). O fato de nenhum deles possuir filho(s) também é fator explicativo dessas estruturas, como suge-
re Lahire (1997). Os grupos familiares não são, de certa forma,
populosos, tendo no máximo entre quatro e seis pessoas. Bárbara,
Cristina e Fábia são oriundas de lares com essa composição. An-
dressa, Débora, José e Mariana, por sua vez, são oriundos de lares
que contêm entre três ou quatro residentes.
A autoridade familiar e a criação de rotinas para cada atividade
são percebidas por Lahire (1997) como possibilidades de estru-
turação de uma ordem cognitiva para organizar e gerir pensa-
mentos, disposições, horários e percepções sobre as regras nas
diversas esferas da vida. Essa autoridade controla os contatos
externos, as companhias, os espaços frequentados, criando,
além da seletividade de relações de socialização, disposições
ascéticas, que valorizam apenas certas atividades em função de outras. Configurações semelhantes foram importantes para os
Francisco Érick de Oliveira; Carlos Henrique Lopes Pinheiro
431
TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
trabalhos de Viana (2012, p. 435), que denominou como um fe-
nômeno no qual a “família [estava] fechada nela mesma”; e de
Cunha (2005), pela regulação dos deveres de casa.
Esses investimentos por meio da autoridade familiar e da regu-
lação das rotinas incentivam a criação de disposições de autono-
mia, bastante valorizadas pela escola e pelos/as professores/as.
Porém, existem ressalvas quanto às formas de emprego da auto-
ridade, que podem surtir um efeito contrário, de dependência da
vigilância constantemente próxima e não de autonomia (Lahire,
1997; Nogueira, 2006; Viana, 2009, 2012).
Para pensarmos o sentido de moral familiar de Andressa, pre-cisamos considerar o significado de família no contexto das Co-
munidades Quilombolas. Há uma relação de solidariedade que
extravasa os limites da família nuclear (tipo mais disseminado
e concebido pelas características de união estável, econômica
e socialmente legitimada/sancionada, com possível longa du-
ração), pois todos do grupo comunitário se tornam parentes. As disposições de Andressa foram tipificadas como de resistência –
disposições para crer, sentir e agir (Lahire, 2002) com esperança
e garra. Nos demais casos, também encontramos essa noção, mas
em Andressa a resistência tem ancestralidade (o vínculo com o
território, com a história da comunidade, com a identidade negra
e quilombola, etc.). Nessa conjuntura, o sentido que o grupo atri-
bui à educação tem também peso político e de retorno coletivo.
A – (...) a faculdade representa um futuro diferente, (...) por
exemplo: a minha mãe, hoje, ela não... não conseguiu termi-
nar os estudos. Então, ela... é muito dependente do marido
dela. Então, eu acho, a minha mãe fala muito da questão de...
de estudar, pra ir trabalhar, pra ter um futuro melhor, pra
não ser dependente de marido (...). Eu acho que eles veem
no estudar o ter um futuro melhor, conseguir um emprego
melhor e como conseguir se manter (...). E eu também vejo
a universidade como uma possibilidade pro futuro. E... não
só, também, no mercado de trabalho. Mas eu acho que a uni-
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versidade, em si, ela mesmo me faz crescer também como
pessoa. Perceber coisas que eu não percebia antes. Perceber
que eu não tenho que levar na brincadeira coisas que são sé-
rias. Que eu tenho que ser mais crítica em relação a algumas
coisas. (...) Então, hoje, fazendo [curso no qual está matri-
culada], conhecendo políticas públicas, futuramente, poder
me especializar e conhecer políticas públicas voltadas pra
comunidades tradicionais, eu acho muito importante. Acho
muito importante saber que as... as comunidades tradicio-
nais, elas têm o direito de ter uma educação diferenciada,
educação que eu não tive, que teria sido muito importan-
te. Eu acho que eu seria uma pessoa melhor. Uma pessoa
melhor em me conhecer, o meu território. Eu acho que essa
educação me faz conhecer essas políticas e talvez me façam
voltar pra minha comunidade e desenvolver nela poten...
um potencial que pessoas de fora não veem e que eu vou ver.
Com Lahire (1997) também consideramos importantes as ques-
tões em torno da leitura, pois a experiência familiar de relação
com a língua escrita pode favorecer ou facilitar a socialização
escolar, que se pauta, basicamente, sobre essa forma – e, nesse
sentido, mobiliza também diretamente a interpretação de Bour-
dieu e Passeron (2014) sobre quem pode ser eleito. O caso de Mariana é o mais evidente pela influência do pai. Mas, além de os
demais já terem desenvolvido empatia com a leitura e a escrita,
enfatizando esse rompimento com o patrimônio disposicional
familiar, Bárbara, Fábia e José indicaram que seu(s) irmão(s)
têm acesso às redes sociais, o que, de certa forma, requer o há-
bito de leitura e escrita. Andressa se posiciona pela associação entre dificuldade e estímulo familiar: “(...) eu tive dificuldade de
aprender a ler, aí depois que eu aprendi a ler, eu... comecei a ler
muito. (...) Minha mãe, minha vó e meu padrasto... eles sempre
falaram que eu era muito inteligente, que eu devia estudar (...),
pra ser diferente (...)”. Outros espaços também são invocados
como estímulo prático à leitura – para que a disposição se faça
corpo (Bourdieu, 2013a). A mãe de Débora, por exemplo, a in-
centiva: “Se você tá estudando, você tem que ler”. “Então, você
vai ler na igreja”.
Francisco Érick de Oliveira; Carlos Henrique Lopes Pinheiro
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Esses espaços de socialização secundária, pela perspectiva lahi-
reana (2002), têm tanto peso quanto os de socialização primá-
ria. Estamos falando de forma expressa da aquisição de capitais
culturais e sociais, não só da expectativa de transferência fa-miliar. Em Andressa, eles são exemplificados como experiências
intraescolares de leitura e escrita, apresentação oral sobre os
livros, de iniciação à docência, apresentações artísticas, teatrais
e, como no caso de Bárbara, mesmo que em menor intensidade,
de dança (“A caravana da cultura”). Fábia direciona mais para
as feiras de ciências, projetos diversos e de muito interesse
pela biblioteca escolar e pelo laboratório como fontes de pes-
quisa. Esses espaços preencheram a ausência de tecnologias da
informação em casa. De forma insistente, ela voltava para esse
ponto quando tecia críticas sobre a estrutura das escolas por
onde passou. Fábia também teve oportunidade de socialização
na esfera religiosa católica, por meio do catecismo, trabalho
pastoral, envolvimento com grupos de jovens, assumindo
lugar de liderança, inclusive, e com a experiência na renovação
carismática, por meio da Comunidade Católica Shalom. Nessa
ela pôde viajar e acessar mecanismos culturais, como shows musicais e redes de influência. Nessas experiências, nas quais
o irmão e a mãe também estavam presentes, ela relata ter rece-
bido orientações muito importantes da catequista e dos coorde-
nadores das outras pastorais. Reconhecer aprendizados sociais
também indica traços disposicionais em maturação. As orienta-
ções recebidas são processadas em um ambiente minimamente
preparado para que os pensamentos articulem noções e dire-
ções a serem tomadas.
Débora, além de estar imersa no ambiente escolar e ter expe-
rienciado muitas dessas oportunidades, convivia constantemen-te com os profissionais que fazem a educação formal. Isso signi-fica que a sua familiaridade com as regras do jogo (Bourdieu e
Passeron, 2014) e seus atores era muito mais intensa e extensa.
Ela se vê como boa “jogadora”: “assim... no todo, era boa; pra
excelente”. Seu senso prático (por efeito do capital cultural em
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estado incorporado – Bourdieu, 2016b) está tão minimamente
alinhado com esse contexto que ela não apenas age de acordo
com as regras correspondentes a esse campo, ela também se faz
saber que está bem posicionada. Além disso, como já destaca-
mos, ela fazia parte do grupo de liturgia da sua Igreja, fez balé,
teatro, artesanato de biscuit e aprendeu a tocar em grupos de flauta.
No caso de Mariana, além de experiências de canto na igreja, as
formas de incentivo “secundário” vieram das pessoas que lhe de-ram suporte durante as dificuldades. Ela considera que, por ter
estudado em escola privada, se sentia muito pressionada por au-mentar o seu “nível”. Por ter muita dificuldade de “acompanhar”
as turmas por onde passou, sua autoestima esteve constante-
mente abalada. No entanto, seus amigos e amigas foram grandes
incentivadores, inclusive, na universidade. Isso nos revela redes de influência complementares ao que ela já recebia em casa.
Além disso, há outros elementos importantes que ampliaram
as suas noções e as noções da sua família sobre a relação entre
escola e “sucesso”. Trata-se da proximidade com familiares que
já tinham conquistado o ensino superior e os informavam so-
bre as condições de possibilidade (Bourdieu, 2013a) do “mundo
com diplomas” – o capital cultural em estado institucionalizado
(Bourdieu, 2016b). O mesmo dado se repete em Flávia, que teve
a quem recorrer para conseguir informações sobre a universi-
dade e o potencial de cada curso ofertado; Débora, que tem uma
madrinha enfermeira; e José que relembra o caso de um primo.
Nesse sentido, um “mundo prático” torna-se visível, “como siste-
ma de estruturas cognitivas e motivadoras”, em relação e aliança
ao conjunto de disposições de escolarização que eles experimen-
taram, do habitus escolar, situando “probabilidades objetivas”
(Bourdieu, 2013a, p. 88). Os desejos podem encontrar terreno
para serem gestados através do conhecimento da existência do
que antes era desconhecido. As condições iniciais são muito in-fluentes, temos visto isso abundantemente, mas elas não são ir-
Francisco Érick de Oliveira; Carlos Henrique Lopes Pinheiro
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redutivelmente determinantes. As experiências se transformam,
as relações são acrescidas de elementos que antes não existiam
(Pereira, 2016).
José, além da esfera religiosa apresentada, dá ênfase à sua imer-
são na socialização esportiva, jogando futebol, o que lhe ajudou
a garantir uma bolsa no ensino privado. Segundo ele, essa opor-
tunidade foi fundamental para, na sequência, conquistar uma vaga no ensino médio profissionalizante:
(...) no último... no nono ano, no ensino fundamental, eu ga-
nhei uma bolsa e fui pro colégio particular. No último ano mesmo! Aí, teve a seleção da... da escola profissional, aí, no ensino médio, fui pra profissional. (...) Porque eu jogava
bola, aí eu ganhei uma bolsa pra integrar esse time. As Escolas Estaduais de Ensino Profissionalizante (EEEPs) tam-
bém são interessantes de visualizarmos como um campo novo
dos possíveis. Cinco dos nossos interlocutores passaram por
elas, e todos dão ênfase à rotina de exigências ou à imersão pro-longada de tempo escolar; à influência do curso na relação de
satisfação com o ensino médio; ao desenvolvimento da oralida-
de na apresentação de seminários; desenvolvimento da escrita;
pelo foco exacerbado no ENEM; e pelo lugar fundamental do
professor diretor de turma, que assume um trabalho diretamen-
te relacionado com as orientações e relações familiares – tanto
com Bourdieu (2013a, 2017) quanto com Lahire (2002, 2005)
podemos interpretar que esses estímulos criam e sustentam
disposições e capitais mais coerentes com a experiência escolar.
Para além de assumirmos que há, de fato, uma suposta qualida-
de superior de ensino nessas escolas, ou até mesmo dos casos
em escolas privadas, também nos atemos às percepções que os
interlocutores constroem sobre esses espaços, dos sentimentos
de diferenciação ao conforto com a infraestrutura das escolas.
Essas percepções atuam como gatilhos para a formação, conso-
lidação ou ativação de disposições coerentes com o sistema es-
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colar, além de estabilizarem afetos e esperanças, competências e
apetências (Lahire, 1997; 2002; Charlot, 2000; Nogueira, 2006).As EEEPs foram criadas para integrar formação profissional
para o mercado de trabalho ao mesmo tempo em que se habi-
lita os estudantes para concorrer a uma vaga na Universidade
(SEDUC, 2018). O Programa foi iniciado com 25 escolas, em 25
municípios e com a oferta de apenas quatro cursos técnicos. Pas-
sados dez anos de sua implantação e ampliação, o Ceará contava
com 119 escolas, em 95 municípios e com 52 ofertas de cursos
técnicos, totalizando 52.571 estudantes matriculados, 12% do
ensino médio em geral.
O Professor Diretor de Turma é um projeto que se baseia na pro-posta educacional portuguesa, tendo o objetivo de intensificar o
acompanhamento dos discentes em suas esferas individuais, da
carreira, da relação com os professores e com os pais. Os profes-sores são selecionados no corpo docente da escola a fim de as-
sumir a responsabilidade de acompanhamento e formação para a cidadania, da parte administrativa e perfil profissional de uma turma específica, além de atuar na base comum. Considerando
os relatos do nosso interlocutor e interlocutoras, tal iniciativa
desempenha um efeito perceptível nas trajetórias, pois possibi-
lita a aproximação dos pais e mães com a escola e vice-versa, por meio da centralidade das questões em um único profissional.
Nos pareceu, em certos momentos, que ao invés de seguir ali-
mentando o mito da não participação familiar na escola (LAHI-
RE, 1997), já que percebemos por meio desta investigação que
outras formas de participação são possíveis, as EEEPs assumem
um compromisso centrado em um professor mediador, seja por
necessidade de garantir a relação, seja como estratégia propria-
mente administrativa, político-pedagógica.
O lugar docente na mediação da relação positiva com a escola e
o saber não nos foi descrito apenas por meio do professor dire-
tor de turma, mas de outros professores, seja pela proximidade
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por vínculos de amizade ou “familiaridade” com os pais e mães
dos nossos interlocutores; pela admiração que eles desenvol-veram pela pessoa ou profissional; pelas áreas de atuação; seja por atitudes construtoras de percepções e sentidos de confiança
e afeto. De modo geral, no plano das experiências, relações de respeito, atenção, proximidade e/ou autoridade profissional se
apresentam como fatores na socialização de disposições e ca-
pitais. Esse acompanhamento não se encerra durante o tempo
escolar. Bárbara nos revela que, até depois de ter entrado na
Universidade, ao se encontrarem pelas ruas, suas professoras
mantiveram o discurso incentivador (reforço ao senso prático;
Bourdieu, 2013a) e a esperança de que o caminho trilhado trará benefícios.
Esse “outro” aparece nas trajetórias como um suporte. Quase
sempre é um professor, mas vimos que ele reaparece em vários
papéis ou até mesmo instituições. Contextos semelhantes foram
observados por Viana (1998) que nos apresenta, por exemplo,
o caso de Helena, uma aluna que estudou em uma instituição pública municipal considerada como de boa qualidade por influ-ência do tio, que era porteiro da instituição; por fim, conseguiu
ingressar em Medicina, na Universidade Federal de Minas Ge-
rais. Viana (2012) também investigou, em 2006, o caso de Regi-
na, no qual a sua mãe, que trabalhou a maior parte do tempo fora
de casa, acabou conseguindo que ela estudasse em um Colégio
Militar de Belo Horizonte, do quinto ano do ensino fundamental ao ensino médio. Regina foi a única filha que conseguiu, dentre
os quatro irmãos, fazer um curso superior.
Seguindo em dimensões mais estruturais das variáveis, também devemos considerar a influência da expansão interiorizada do
ensino superior público federal, por meio da UNILAB, e da reser-
va de vagas, pela Lei de Cotas. A chegada da UNILAB na macror-
região do Maciço de Baturité, interior do Ceará, tem represen-
tado um conjunto de oportunidades geradas que antes não se
consolidavam menos pela ausência de público capacitado com
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capitais para ingresso e mais pela distância e o número reduzido
de vagas, distribuídas entre mais duas Universidades Públicas,
como a Federal e a Estadual do Ceará. A expansão interiorizada
do ensino superior público no Ceará (e no Brasil), obviamente,
não pode ser romantizada se considerarmos a precariedade dos
investimentos e da consolidação dos projetos, mas, neste caso, a
UNILAB aparece de modo muito aleatório – para Pereira (2016),
seriam pontos de virada – na realidade desses estudantes que,
muito possivelmente, não conseguiriam ingressar e/ou perma-
necer em outro lugar.
Os recursos empenhados pela UNILAB em Assistência Estu-
dantil, portanto, assumem lugar central, pois no questionário já
conseguíamos visualizar que a maioria contava com essa assis-
tência, visto que as famílias não teriam condições de mantê-los
estudando. Quanto à Política de Cotas, mesmo que Fábia consi-
dere que entraria pela ampla concorrência6 e Débora não atri-bua nenhum significado à sua declaração de cor7, a política pode
ter sido fundamental para os demais; além do impacto que ela
tem gerado em escalas maiores, em nível nacional (IBGE, 2019).
Em todos os casos também observamos o fundamental prota-
gonismo das mães. Essas mulheres, independentemente dos
arranjos familiares, assumem centralidade na organização do-méstica, gerência das rotinas dos filhos, acompanhamento das
atividades escolares e extraescolares, estruturação da autorida-
6 “Acho que não influenciou muita coisa, não [ter se matriculado pela política de cotas].
Porque... se eu colocasse na ampla concorrência, né, pela minha nota, eu vi que eu tinha
passado também, mas... eu coloquei pela cota mesmo só pra (risos)... só porque eu era parda, né. Mas questão de influenciar...”.
7 “É mais pelo registro. Eu não... Eu me considero todas [as cores]. Porque até... desde a nossa origem, a gente é uma mistura de todos os povos. Até eu fiquei muito em dúvida
quando eu fui fazer a inscrição. Eu... “meu deus do céu, vou colocar o quê?”. Eu quase que coloco “não identificado”. Que tinha lá a opção. Por causa que na... na minha percepção,
eu não me encaixo num grupo, porque eu sou a mistura de todos. Por que que eu vou
dizer que sou só uma (sic)? Mas, pelo registro, tem escrito que é pardo”.
Francisco Érick de Oliveira; Carlos Henrique Lopes Pinheiro
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de familiar e dos laços de confiança, diálogo e afetividade. É um
dado interessante de ser percebido porque não encontramos
apenas famílias nucleares, consideradas como ambientes mais
propícios à criação de filhos bem-sucedidos na escola. Também lidamos com realidades geridas por mães solo e configurações
recompostas.
Considerações finais
Tratamos neste trabalho simultaneamente de um conjunto de
questões teóricas e metodológicas na perspectiva das teorias
de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire e de uma problemática do
campo da Sociologia da Educação que, como outros/as pesqui-
sadores/as, provocamos como sucessos escolares improváveis.
Trajetórias sociais ascendentes em educação nos contextos
desfavoráveis não representam apenas um problema de esca-
la de análise, mas mobilizam todo um esforço adicional de re-
articulação de conceitos e metodologias. Nesse ponto, a nosso
ver, Lahire e Bourdieu tiveram pesos semelhantes. Ainda que a
problemática dos sucessos escolares improváveis seja explorada
pelo primeiro, sua gramática e metodologias estão intimamente
ligadas ao segundo, por isso o retomamos constantemente na
seção anterior. Acreditamos que foi pela apropriação máxima
das orientações de cada um que a pesquisa se tornou possível.
Outra coisa que pode mantê-los atrelados tem relação com a te-
mática da dominação. Embora em Lahire o tema não seja explo-
rado amplamente, por meio de sua perspectiva metodológica e
ferramentas conceituais podemos visualizar como as camadas
populares incorporam os sentidos práticos referentes à edu-
cação e à escola e os desejos de ascensão social. Nesse ponto,
Bourdieu ainda tem força crítica e analítica, pois o jogo de repro-
dução das desigualdades não se encerra com trajetórias impro-
váveis em ascensão, visto que a lógica escolar sofreu, sim, algu-
mas transformações, mas sem grandes rupturas; ela apenas tem
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sido incorporada por outras camadas dentre as classes sociais.
Pensar nessa direção não elimina a capacidade de agência dos
atores sociais. Pelo contrário, viabiliza conceber empiricamente
como o espaço social se transforma e/ou se mantém por meio
dos elementos mobilizados e disputados pelos agentes em cada
um dos campos e suas forças, dando, em maior ou menor grau,
dinâmica às posições relativas que se disputam.
Vimos que muitos elementos têm potencial de mobilização de disposições de escolaridade longevas. Identificamos configura-
ções de moral familiar que mobilizam incentivos em forma de manutenção financeira e sacrifícios nos orçamentos, manifes-
tações de orgulho, troca de afetos, transferência de uma histó-
ria familiar, racionalização de rotinas, atividades, imposição de
regras, as idas até a escola e arguição de professores/as sobre
comportamentos e notas, as cobranças mais rígidas em casa,
proibições, etc. Também identificamos que há a interferência de um conjunto de políticas públicas educacionais e ações afirmativas que com-
plementa e torna ainda mais coerentes e possíveis as trajetórias gestadas nas configurações familiares que apresentamos em
primeiro plano. Visualizamos tais elementos pela consideração sobre as Escolas de Ensino Médio Profissionalizante no contexto
do Ceará, a instalação de uma Universidade Federal no interior
e suas políticas de assistência estudantil, programas e ativida-des extraescolares, e, por fim, a reserva de vagas por marcadores
étnico-raciais. A interdependência entre esses “dois” momentos
que expomos de forma separada pela didática escrita reanima o
problema quando abstraímos as trajetórias e tentamos pensar
em cenários com outras combinações. Ainda assim, o debate en-
tre Bourdieu e Lahire é fértil e encontra vários campos de reali-
zação teórica e crítica constante, tal como propomos.
Francisco Érick de Oliveira; Carlos Henrique Lopes Pinheiro
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Recebido em 09/12/2020
Aceito em 20/05/2021