Dossiê

TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021

Apresentação do Dossiê
Cidade, Mídias, Memória e Cotidiano em

Tempos de Pandemia

Nara Maria Emanuelli Magalhães*1
Valdir Jose Morigi**2

Este dossiê tem por objetivo refletir sobre o contexto de crise em decorrência da pandemia do novo coronavírus, em 2020. As recomendações sanitárias da Organização Mundial de Saúde (OMS) durante esse ano tiveram como foco principal o distan-ciamento físico, para evitar a propagação do vírus. Ou seja, a re-comendação de “ficar em casa” era a única medida de segurança, até que uma vacina pudesse estar disponível. O distanciamento físico trouxe enormes impactos na vida social, provocado pelo esvaziamento dos espaços públicos das cidades: aulas foram suspensas em escolas e Universidades, estabeleci-mentos comerciais, bares e restaurantes foram fechados, deslo-camentos através de transporte público e por serviços de aplica-tivos diminuíram drasticamente, e a circulação de pessoas nas ruas, praças e parques foi desaconselhada. O impacto econômico foi imenso: queda da produção de setores inteiros que depen-diam de circulação e concentração de pessoas. Além dos trans-

* Possui formação de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Comunicação (PNPD-CAPES POSCOM/UFSM), Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em An-tropologia Social (PPGAS/UFRGS), Doutorado em Antropologia Social (PPGAS/UFSC), Mestrado em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS), Graduação em Ciências Sociais (IFCH/UFRGS). Atua na UFRGS como Técnica em Assuntos Educacionais, na gestão e assessoria à gestão da educação superior, na área de avaliação institucional. Email: ma-galhaes.nara@gmail.com** Professor titular da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (FABICO) da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e docente permanente dos Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCIN) e do Programa de Pós-graduação e Museologia e Patrimônio (PPGMUSPA) – FABICO/UFRG). Pós-doutorado em Memória Social pela UNIRIO. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (2001). Bolsis-ta Produtividade em Pesquisa 2 CNPQ. Email: valdir.morigi@gmail.com

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portes, comércio de rua, feiras, trabalhadores informais e do comércio ambulante, também os espaços de cultura e do lazer foram afetados, vendo-se subitamente sem público. Nesse cená-rio, de ineditismo das circunstâncias do acontecimento, houve a inauguração de um novo mundo, sem precedentes: novos modos de viver o cotidiano, novas maneiras de trabalhar, novas formas de consumir e de manter o sustento para setores inteiros da eco-nomia, necessidade de desenvolver novos projetos e aperfeiço-ar mecanismos tecnológicos para viabilizar o trabalho remoto, formas novas de planejar, conceber e organizar o tempo, novos modos de convívio e novas sociabilidades foram sendo constitu-ídas. Salientamos que, durante esse período, as mídias tiveram uma centralidade na sociedade, pois elas possibilitaram a pro-dução e a circulação das informações em diferentes níveis. Em meio ao surto global do coronavírus, presenciamos a dissemi-nação de fake news, mas também foram divulgadas informações pertinentes e importantes com a finalidade de manter a popula-ção informada e seguir os protocolos das autoridades em saúde. Nesse panorama, emergem múltiplas narrativas sobre a pande-mia que se replicam socialmente no imaginário e na memória social. Nas narrativas midiáticas, por exemplo, que incluem di-versos dispositivos tecnológicos, a circulação de informações so-bre a doença se amplificaram através de compartilhamentos nas redes sociais. Divulgação de informações que espalham o medo, pânico social e insegurança. Além disso, informações educativas de como se cuidar e métodos de evitar a propagação da doença neste período também apareceram. Outras criações e informa-ções com caráter lúdico emergiram com força, demonstrando o grande potencial de criatividade e a importância do riso para en-frentar o enorme desafio (piadas, memes, charges entre outros). Nesse contexto, o dossiê se propõe a trazer reflexões diante dos impactos e enormes desafios trazidos pela pandemia. Queremos contribuir e ampliar o debate, encontrando respostas a algumas questões, entre elas: Como se expressa a valorização do contro-

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le social - é visto como negativo, positivo, perigoso, necessário? Como é visto e vivido o isolamento social em épocas de pande-mia, nos espaços da cidade? Que políticas públicas precisam ser criadas (adotadas) nas cidades em tempos de pandemia social? Carles Feixa, com “Uma geração viral? Adolescência e confina-mento” nos ajuda a pensar sobre esse controle na vida dos jovens isolados em Barcelona, Espanha. Traz reflexões importantes so-bre os significados, para os jovens, a respeito desse viver confi-nado durante a epidemia do novo coronavírus, e os significados de habitar, divertir-se e viver intergeracionalmente. Chama a atenção do leitor para algumas ideias centrais, como o rompi-mento das hierarquias nos aprendizados – entre pais e adoles-centes, professores e adolescentes, por exemplo – de modo que todos passam a aprender com todos nesse novo contexto. Outra abordagem interessante é a respeito da “juventudefobia”, que leva as autoridades políticas e sanitárias a responsabilizar os jovens pela propagação do vírus, ao invés de propor políticas públicas que lhes permitam viver em segurança. Por fim, des-taca a contribuição dos jovens para repensar as dicotomias que criamos entre on e off line, corpo e mente, contribuição essa que resulta em uma nova proposição para contemplar o vivido num espaço que agora pode ser considerado híbrido e que começa a ser denominado onlife.Já o artigo de Ada Cristina Machado Silveira, Camila Hartmann e Bruno Kegler, intitulado “Pandemia x pandemônio: o cotidia-no da periferia no noticiário”, discute a cobertura do cotidiano da periferia brasileira, considerando que esta pode ganhar uma dimensão ainda não explorada com o surgimento da pandemia de Covid-19. Considera que, diante da polarização política brasi-leira, a emergência sanitária permitiu à oposição cunhar a noção de pandemônio, como denominação aplicável as divergências na política pública de combate à pandemia. O artigo realiza uma análise empírica de matérias jornalísticas veiculadas on-line que exploram o (não) enfrentamento da pandemia na periferia bra-

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sileira e, também, um estudo de postagens em plataformas de mídia social, os quais resultam no imaginário de caos aplicável à noticiabilidade da periferia metropolitana. Discute um assunto atual e de grande preocupação para as democracias contempo-râneas: as fake news. Traz um aporte teórico bem fundamenta-do, com autores da Escola Critica, colocando-os em diálogo com autores de referência atuais.O artigo de Luciano Cardenes e Deise Lucy Montardo também aborda um cenário caótico na cidade de Manaus, desta vez ten-do como foco a população indígena na cidade. O texto recupera relatos e descrição da atuação de associações e lideranças indí-genas no enfrentamento da pandemia, trazendo também uma densa abordagem da literatura sobre a presença indígena na cidade de Manaus. A demonstração da presença indígena na ci-dade e a descrição das várias categorias utilizadas para pensá-la são fundamentais para a proposição de políticas públicas para esse público num contexto de enfrentamento a uma pandemia. O Dossiê tem continuidade com artigos que se perguntam: como as tecnologias de informação e comunicação auxiliam diante dessa situação inédita? Que narrativas sobre a pandemia circu-laram e circulam nas redes? Que imaginários foram reeditados neste contexto? Marina Leitão Damin e Alyne Fernanda Reis apresentam o artigo de intitulado “Da nostalgia ao futuro: o passado como memória afetiva da cidade na imaginação de um futuro pós-pandêmico”, aborda a cidade como um espaço de produção de memória, re-lacionando tempo, memória e nostalgia. As autoras identificam um possível ciclo de vida dos objetos digitais no Instagram, in-tegrando a memória como vetor responsável pela sua media-ção. O estudo foi realizado durante a pandemia de Covid-19, de março a julho de 2020, a partir das publicações da plataforma Instagram e dos filtros utilizados nas hashtag #tbtrj. A pesquisa demonstrou que nesse período as publicações com a #tbtrj re-

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presentam os lugares de memória da cidade do Rio de Janeiro de forma nostálgica, ancorado na memória afetiva dos usuários sobre a cidade, ao mesmo tempo em que foi possível perceber a projeção de um novo imaginário sobre ela após a pandemia.O artigo de Robson da Silva Braga, intitulado “A cidade-lar e o lar-cidade: conexões entre público e privado no uso de video-conferência para eventos artísticos, reuniões de trabalho e ani-versários”, analisa o ambiente doméstico durante o isolamento social de combate à Covid-19, mostrando como este espaço teve destaque a partir dos usos das tecnologias de comunicação e in-formação. Percebeu-se a diluição das fronteiras entre a esfera privada e a esfera pública, a partir das reuniões remotas realiza-das durante a pandemia. Elas ampliaram o processo de exposi-ção da intimidade iniciado pelas redes sociais desde o princípio dos anos 2000. Assim, o estudo mostrou que o modo como os grupos sociais se utilizam das ferramentas de videoconferência, que possibilitaram as reuniões virtuais em substituição aos en-contros presenciais realizados antes da quarentena na cidade de Fortaleza, tiveram plena aceitação e cada vez mais estão sendo incorporados à vida cotidiana dos cidadãos. Em “Fetichismo da desinformação na web: uma pandemia agra-vada”, Rodrigo Silva Caxias de Sousa, Patrícia Valerim, Bruna Heller e Marcia Heloisa Tavares de Figueiredo Lima debatem os conceitos de desinformação e práticas informacionais, avi-zinhando-os da noção de semiformação cultural, a partir da abordagem da Teoria Crítica da Informação e da Comunicação. Os autores defendem que processos de comunicação acontecem conforme as práticas sociais de produção intencional de desin-formação, de acordo com um circuito de produtividade que de-manda do receptor/usuário, a responsabilidade pela checagem das informações. O estudo utiliza abordagem qualitativa, através de uma triangulação metodológica, que consistiu em observação espontânea, seguida de análise de conteúdo e interpretação her-menêutica de um corpus de 86 fake news do site do Ministério da

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Saúde do Brasil. Desse universo, foram analisadas cinco notícias, as quais entram em contradição com o objetivo de esclarecer os cidadãos a respeito da pandemia, pois o governo brasileiro utili-zou o site do Ministério da Saúde para veicular desinformação e violar o direito à informação. Já o artigo “De las redes sociales a la mesa: La militancia del plato como nuevo hábito de consumo”, de Marina Poggi e Lucas Henrique Pinto, traz indagações, a partir do cenário da pande-mia global Covid-19, sobre como os produtos agroecológicos tiveram maior visibilidade ao mesmo tempo em que se ampliou a discussão acerca da soberania alimentar. A expansão dos usos das redes sociais virtuais, aperfeiçoadas pelas tecnologias de informação e comunicação, revitalizadas pela web fez com que as redes sociais assumissem novas dinâmicas sociais, toman-do diferentes formas e dimensões na vida cotidiana, inclusive na esfera pública virtual. O objetivo artigo foi mostrar como os hábitos de consumo alimentares pré-pandemia se altera-ram durante a mesma. Tendo como instrumento de pesquisa o questionário, foi possível verificar como as pessoas realizaram as escolhas dos seus alimentos, considerando as possibilida-des de acesso, conhecimento, etc. Os autores se apropriam dos conceitos de “agroecologia” e “periurbano”, para analisarem as práticas de consumo alimentar e o espaço estudado. A pesqui-sa centralizou no estudo de caso da cooperativa Pueblo a Pue-blo, uma iniciativa de marketing que se recomenda o consumo alternativo de alimentos saudáveis, além da sua distribuição a um preço justo e compatível com o trabalho digno. Assim, se evidenciam as consequências dos usos das tecnologias de informação e comunicação (TICs), através da comunicação di-gital na sociedade, uma vez que a divulgação de informações sobre a origem e produção de alimentos nas redes sociais pode auxiliar na construção de novas condutas e práticas capazes de promover autonomia aos cidadãos. Esse elemento é funda-mental na construção de vínculos sociais e de solidariedade, pois possibilita o empoderamento dos cidadãos. A escolha do

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que eles colocam no prato para se alimentar fortalece a ideia da soberania alimentar. Por fim, temos dois artigos que nos convidam a refletir a res-peito do modo como as fontes de informações ajudam na ins-crição de novas memórias no mundo que vivemos. Que novas memórias são construídas a partir dos desafios colocados pela pandemia, com o isolamento social? Que novas formas de inscri-ção essas memórias encontram? Como os sujeitos sociais criam novos significados para espaços públicos e privados, vivendo o isolamento social? Os dois últimos artigos deste dossiê nos aju-dam a pensar em respostas a essas questões. Um deles é o de Sonia Weidner Maluf, “Janelas sobre a Cidade Pandêmica”, que apresenta argumentos e cenários criativos para pensar o contexto de pandemia e desigualdade no Brasil, trazen-do a ideia das janelas como metáfora analítica de observação e experiência em tempos de confinamento: janelas de casa, jane-las das telas (de notícias e das redes sociais). Entre fragmentos de imagens e sons, manchetes e notícias, postagens nas redes sociais, a autora busca analisar os modos como diferentes po-pulações urbanas foram atingidas pelo vírus, em termos de adoecimento e morte; os modos como o Estado, com seus dife-rentes aparatos, agentes, serviços, ao mesmo tempo que deveria se destinar a construir políticas da vida, insiste em práticas de soberania e em políticas da morte; e, por fim, os modos locais de lidar com a pandemia, as práticas de cuidado do outro e de si, que configuram formas de resistência, em bairros periféricos e comunidades de algumas capitais do país. Já o artigo de Cora Gamarnik, Cecilia Vázquez e María Graciela Rodríguez, aborda através de imagens um evento bastante co-nhecido: o 24 de março na Argentina, seu significado político e as novas formas de registrá-lo e vivê-lo durante a pandemia. Em seu artigo, as autoras propõem uma reflexão acerca dos víncu-los entre memória, imagens e cidade, a partir de uma seleção

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de imagens que registraram o evento em 2020. Observam que nesse dia as cidades foram cobertas por cartazes caseiros e pe-quenos trabalhos artísticos fotografados por profissionais e ama-dores. Considerando a história dos lenços brancos das “Madres de la Plaza de Mayo”, que se tornaram símbolo de um movimento po-lítico, como uma ação pública e um sinal de identidade, de resis-tência e de reconhecimento. Destaca-se no 24 de março de 2020 a presença do lenço como uma marca, uma carga e uma proteção, através de um ensaio visual que permite vislumbrar múltiplas manifestações. Considerando um repertório de imagens como formas alternativas de exercitar a memória, as autoras propõem reflexões despertadas pela pandemia. As imagens selecionadas podem ser consideradas novas formas de registrar e manifestar uma memória, que podem vir a configurar novas memórias. Desejamos a todos uma boa leitura!Os organizadores.