Imigrantes Negros em Situação de Rua no
Reino Unido: A Hostilidade das Políticas

Públicas de Assistência e Saúde*1

Breitner Tavares**2

Resumo:
Para uma melhor compreensão da efetividade das políticas de assis-
tência social e saúde coletiva referentes às condições da população em
situação de rua na Inglaterra, apresenta-se neste ensaio uma metodo-
logia que privilegia uma análise mais descritiva das políticas públicas − com alguns marcos institucionais em relação à política imigratória e de assistência à saúde − e suas consequências quanto ao serviço de
saúde em tempos de Brexit. Apresenta-se, também, uma abordagem
metodologicamente qualitativa de uma instituição de acolhimento,
que permite compreender aspectos da sociabilidade da população em situação de rua em seu perfil transnacional, que mais recentemente sofre uma redefinição pelo viés da imagem estigmatizada do imigran-
te, sobretudo o de origem negra caribenha e africana acolhidos num
albergue em Leeds - Yorkshire.
Palavras-chave: Imigrantes. População em situação de rua. Negros.
Saúde. Reino Unido.

* Este artigo sobre população em situação de rua no Reino Unido foi realizado durante um período de pós-doutorado na Leeds Beckett University - Reino Unido em 2018.** Sociólogo e professor da Universidade de Brasília – Faculdade Ceilândia. Pesquisador
voltado a temas sobre relações raciais e juventude. Além disso, tem pesquisas com ênfa-
se interdisciplinar que envolvem os campos da saúde coletiva, metodologias qualitativas
e sociologia urbana. E-mail: breitner@unb.br

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IMIGRANTES NEGROS EM SITUAÇÃO DE RUA NO REINO UNIDO

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Inmigrantes Sin Hogar En El Reino Unido: La
Hostilidad De Las Políticas De Salud Y Atención

Resumen: Para una mejor comprensión de la efectividad de las políticas asistenciales so-ciales y de salud colectiva sobre las condiciones de la población sin hogar en
Inglaterra, este artículo presenta una metodología que favorece un análisis más
descriptivo de las políticas públicas -con algunos marcos institucionales en re-lación a política inmigratoria y de asistencia sanitaria- y sus consecuencias en
cuanto al servicio de salud en tiempos de Brexit. Posteriormente presentase un abordaje metodológicamente cualitativo de una institución de acogida, que permite comprender aspectos de la sociabilidad de la población sin hogar en su perfil transnacional, que más recientemente sufre una redefinición por el sesgo de la imagen estigmatizada del inmigrante, especialmente la población negra de origen caribeña y africana refugiada en un albergue en Leeds - Yorkshire.
Palabras clave: Inmigrantes. Población sin hogar. Negros. Salud. Reino Unido.

Homeless Immigrants In The Uk: The Hostile
Environment Of Health And Social Care Public Policy

Abstract: For a better understanding of the effectiveness of social assistance and collective
health policies regarding the conditions of the homeless population in England, this article presents a methodology that favours a more descriptive analysis of
public policies, with some institutional frameworks and their consequences as for the health service, and later on a methodologically qualitative approach of a host institution, which allows understanding aspects of the sociability of the homeless population in its transnational profile, which more recently undergoes a redefini-tion through the bias of the stigmatized image of the immigrant especially black Caribbean and African origin sheltered in a hostel in Leeds - Yorkshire.
Keywords: Immigrants. Homeless population. Black people. Health. United
Kingdom.

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Notas introdutórias: sobre as políticas de assistência e saúde
britânicas em relação à população em situação de rua

A vida em países desenvolvidos do hemisfério Norte, como o
Reino Unido, a princípio surge como uma redenção para muitos em busca de oportunidades. Contudo, os novos arranjos basea-dos na lógica nacionalista do Brexit restringiram boa parte de benefícios sociais e reacenderam o risco de vulnerabilidade e exposição à violência. Com isso, percebemos uma mudança de
paradigmas em que, outrora, restringia à esfera das antigas colô-nias britânicas em África, mas agora ocorre no interior dos pró-
prios países desenvolvidos. Isso tudo afeta diversos grupos, em especial a população em situação de rua, que possui um perfil
social multifacetário. Segundo os dados oficiais mais recentes, estima-se que aproxi-madamente 2.688 pessoas dormiam na rua em uma única noite no outono de 2020. Os dados mostram que esse número dimi-nuiu em 37% (1.578 pessoas) em relação a 2019, e 43% em re-lação ao pico em 2017, mas aumentou em 52% (920 pessoas) desde 20101.O Brexit (British exit) − ou “saída britânica”, em tradução literal − significa a retirada do Reino Unido da União Europeia e foi oficia-lizado em 2020, após 47 anos do país enquanto Estado membro
do bloco econômico. Durante esse período, houve dois plebiscitos para tomada da decisão, um em 1975, que votou contra a retirada, e outro em 2016, que decidiu favoravelmente pela saída. Esse fato refletiu na persistência de grupos definidos como euro-
céticos, alguns de caráter nacionalistas contrários à imigração e à
permanência do Reino Unido na União Europeia. Isso tudo ocorria quando David Cameron ainda era primeiro-ministro do país. Nos
quatro anos seguintes, sob o comando de conservadores como

1 Os dados são da Public Health England (2020).

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Theresa May, ocorreram várias negociações para a saída do Rei-
no Unido do bloco econômico, fatores que levaram o país a uma
divisão política que deixa suas marcas no atual governo de Boris Johnson. O presente primeiro-ministro negocia um adiamento da
separação das relações comerciais entre o Reino Unido e União Europeia enquanto durar a pandemia da Covid-19. De fato, os eco-
nomistas apontam o risco de um declínio na economia do país a médio prazo (Moss, Robinson, Watts, 2020).
Provavelmente, o Brexit terá um impacto na redução da imigra-
ção do espaço europeu para o Reino Unido. A exemplo disso, ob-
serva-se que, na última década, diversas reformas restritivas no
sistema de assistência social e saúde pública do National Health System (NHS) britânico atingiram, sobretudo, grupos de imigran-tes, muitos sendo de países do Leste Europeu, Caribe e continente
africano. Esses são fatores que discutiremos mais adiante.

A partir das informações supracitadas, questionamos neste en-
saio qual a efetividade das políticas de assistência e saúde volta-
das à população em situação de rua Negra no Reino Unido?Na obra “Os Condenados da Terra”, Frantz Fanon (2006) apre-senta um panorama sobre a dinâmica pós-colonial de elites na-cionais alinhadas com a dinâmica da exploração comercial e a
imposição de um modelo de desenvolvimento ocidental de es-tados nacionalistas africanos após a Segunda Guerra Mundial.
No contexto do colonialismo, um dos eixos centrais de sua nar-rativa está no uso de violência pelo colonizador com o objetivo de subjugar os povos originais. Da mesma forma, a descoloniza-
ção também teria necessariamente um componente violento, ao passo que pode transformar os povos colonizados em “homens novos”. De fato, a descolonização, em sua concretude, estabe-
leceu nos países em desenvolvimento uma separação por uma
linha racial e econômica, o que lançou vários povos africanos e caribenhos em uma profunda pobreza e exposição à violação de
sua humanidade. Nesse contexto, a subsequente migração de

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diversos povos afrodiaspóricos provocada em decorrência da violência da descolonização − essa que, por sua vez, é baseada em princípios ocidentais de dominação − tem como um de seus reflexos a vida precária em situação de rua no primeiro mundo.
Nos últimos anos, temos observado uma crescente no fenômeno
da população em situação de rua em níveis globais (Bainbridge, Carrizales, 2017). Outrora, esse fenômeno estava mais associa-
do a países mais pobres, como o Brasil, contudo, fatores estru-
turais na economia mundial têm provocado crises humanitárias
que têm disparado problemas na oferta de trabalho nas econo-
mias nacionais, inclusive em países desenvolvidos no hemisfério
norte, como a Inglaterra.

Em termos mundiais, temos sérias crises humanitárias, pois os fluxos migratórios ocorrem em países centrais. Milhares de pes-soas fogem de conflitos armados em seus países e sobrecarregam os serviços essenciais dos territórios de destino. Com isso, ficam esses indivíduos sujeitos à violência, como reflexo de uma necro-política (Mbembe, 2016). Em nível de saúde, temos um maior risco de adoecimento físico e mental frente às mudanças bruscas nas condições de vida. Dessa forma, a situação de rua se configura como um verdadeiro problema epidemiológico e seu fenômeno
deve ser compreendido face aos obstáculos globais, que são abor-
dados diferenciadamente pelos países, conforme suas políticas de
gestão dos serviços de assistência e de saúde pública.Atualmente, há no contexto britânico um aumento da vulnera-
bilidade social da população em situação de rua, especialmente daquela de origem Negra caribenha e africana − mais recente-
mente, de populações do Leste Europeu (Reisenberguer, 2010; Fitzpatrick, 2009). Compreendemos que se trata de um proble-ma relacionado ao conflito de classes sociais. Em outros momen-tos, a racialização seria o caminho mais trivial para identificação
dos problemas enfrentados em uma sociedade multicultural
como a Inglaterra, contudo, o ocidente estabeleceu a categoria

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“imigrante” como central para desumanização do não documen-
tado, do não ocidental, do não branco, entre outras variações. Com isso, diante do imigrante, surge a negação daqueles que
possuem ou não direitos efetivos de cidadania aos serviços es-
senciais como trabalho, educação e saúde.

No caso da Inglaterra, apesar de conhecida por ter construído
uma tradição de políticas voltadas ao bem-estar social, original-
mente presentes na oferta de serviços de saúde, educação e as-sistência social − outrora universalizados –, tem sido vista por
implementar medidas austeras de privação de liberdade. Para
citar um exemplo, há a lei Vagrancy Act 18242 (The Home of UK Legislation, 2020), criada no século 19 em pleno avanço da Re-volução Industrial, que criminalizava aqueles que se recusassem
a aderir ao operariado do novo sistema econômico industrial. Assim, eram atingidas as pessoas que ficassem em situação de rua ou que pedissem esmolas nos espaços públicos. Os condena-
dos poderiam ser encaminhados a trabalhos forçados, a prisão, a punições físicas ou mesmo a pena capital. Passados quase 200
anos de sua publicação, a referida lei continua em vigor. Diante
disso, cabe perguntar quem seriam os vagabundos enquadrados pela lei no século XXI? Certamente os imigrantes têm muito a dizer sobre essa objetificação.
De um modo geral, temos o conceito de homeless, que se aproxi-ma às noções de “sem teto” em países como o Brasil. As famílias sem teto no Reino Unido, uma vez cadastradas no sistema de assistência, são definidas como statutory homeless e têm direi-to a uma habitação social localizada em imóvel público; podem, ainda, receber um benefício semelhante a um aluguel social. Estima-se que há, aproximadamente, 68.170 pessoas inscritas em programas para famílias em situação de rua e 33.450 se en-contram em moradias temporárias subsidiadas pelo governo −
como o housing first (United Kingdom Government, 2020).
2 Em tradução livre: “lei da vagabundagem”.

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De qualquer modo, há pessoas que foram levadas a viver nas
ruas, seja porque foram despejadas, seja porque tiveram proble-
mas nas relações de trabalho e família. Normalmente elas estão sozinhas e sofreram a ruptura de seus vínculos sociais e afetivos,
fatores esses que as motivaram a dormir no chão duro das ruas. Habitualmente, essas pessoas são definidas como rough sleepers. Sejam os que enfrentam a dureza das ruas, sejam os em extrema pobreza, são definidos como core homeless. Além disso, no Reino
Unido trabalha-se com diferentes conceitos, o conceito de core
homeless
ou quasi rough sleeper. Ou seja, essas pessoas tran-sitam numa fronteira tênue em que a situação de rua “quase”
passa despercebida quando encontram abrigo em lugares como
barracas de camping, carros, transporte público, prédios, entre
outros não usuais para moradores de rua. Algumas vivem em
habitações temporárias, pequenas pousadas, hotéis, ou dormem
em sofás cedidos improvisadamente na casa de pessoas com
quem não possuem vínculo familiar. Eventualmente elas pos-
suem empregos formais e podem estar ou não vivendo em uma condição de extrema pobreza (Fitzpatrick, 2019).No Reino Unido, há diversas instituições filantrópicas que se de-
dicam a apoiar e promover ações assistenciais. Algumas delas
estabelecem parcerias com universidades e em projetos acadê-micos que buscam traçar levantamentos em nível demográfico da população em situação de rua, como a Crisis (Crisis, 2020). Contudo, assim como em outros países, há uma série de situações
que simplesmente não são registradas nos anuários estatísticos sobre a entrada e saída dos beneficiários dos programas assisten-ciais para os sem teto. Os dados oficiais do Parlamento informam que havia 4.677 pessoas em situação de rua (como rough slee-
pers
) em 2019, mas essa informação é criticada por organizações que, ao utilizarem dados específicos das prefeituras municipais
(city councils), encontraram um número de 25 mil pessoas que
dormiram pelas ruas no ano passado (Fitzpatrick, 2019).

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O Reino Unido é conhecido por ter estimulado a imigração, es-pecialmente após a Segunda Guerra Mundial, quando há um
aumento da demanda por mão de obra para o desenvolvimento do país. Como um dos resultados dessa dinâmica migratória, co-
nhecida em alguns casos como Windrush (Lowe, 2018), temos
traços multiculturais, especialmente nas grandes cidades. As-sim, populações do Caribe, África, Ásia, Leste Europeu e, mais recentemente, imigrantes do Oriente Médio, compõem a gran-de maioria dos grupos. Todos eles estão em busca dos benefí-
cios sociais e de oportunidades comuns no continente europeu
(Tompkins, Wright, Sheard, Allgar, 2003; Fitzpatrick, 2012).

De um modo geral, a Inglaterra era conhecida por oferecer um modelo de acesso universalizado a serviços essenciais, como a
saúde, previstos no National Health System - NHS (Sistema Na-cional de Saúde) como parte de seu sistema de bem-estar social.
1. Impactos do Brexit e a nova política de hostilidade
frente à migração e à população em situação de ruaNos últimos anos, o Estado britânico instituiu algumas leis,
como o Immigration Act 2014 (The Home of UK Legislation, 2020b) e, posteriormente, o Immigration Act 2016 (The Home of UK, 2020c), que mudaram o acesso aos serviços do
NHS, agora também destinados aos imigrantes e aos visitan-
tes que não pertençam aos países da União Europeia e que
pretendem permanecer por mais de seis meses no país. Para
desfrutar do serviço, os imigrantes deverão pagar sobretaxas
durante a solicitação de vistos, além de serem obrigados a pagar o valor de 150% de cada procedimento em casos de internação. Caso haja recusa no pagamento, a situação de-
verá ser informada pelos agentes de saúde ao departamen-to de imigração Home Office, que se incumbirá de cancelar o
direito de permanência no país. Essa prerrogativa do agente de saúde agir com o poder de polícia migratória, assim como

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outras medidas criminalizantes, foram definidas como Home
Office hostile environment policy
. Elas ocorrem desde 2012 e
criaram, como sugerido, um ambiente hostil ao restringir a
universalidade do acesso aos benefícios sociais, especialmen-
te em relação aos imigrantes mais vulneráveis (Boyd, 2018).
Ademais, o compartilhamento de informações entre o NHS e o serviço de imigração Home Office criaram uma atmosfera policialesca de medo das instituições, que marginaliza os imi-
grantes, deixando-os em uma situação de maior vulnerabili-
dade diante das barreiras de acesso ao serviço de atenção à saúde (Weller, 2019). Alguns movimentos sociais questionam
tais vinculações, que desvirtuam o papel de cuidado da saú-de; um desses movimentos criou a expressão Docs not Cops3 (Docs don’t cops, 2020).
Diante da situação mencionada acima, os imigrantes precisam
comprovar seu status de permanência no Reino Unido, apresen-
tando documentos como carteira de identidade ou passaporte
sob pena de terem o atendimento no serviço de saúde recusado,
além do risco de serem enviados a campos de detenção para se-
rem posteriormente deportados.

As medidas tomadas pelo Care Act 2014 (The Home of UK Legis-
lation, 2020) instituem aos condados e municípios a responsabi-
lidade de ofertar o serviço de saúde, que passa a ser operado em
nível local e regional. Nesse contexto, os municípios que contra-tam os serviços de saúde promovidos por organizações sociais e
instituições privadas estão, em muitos casos, restritos apenas à
sua população residente.

Do ponto de vista macroestrutural, as crises internacionais e seus efeitos − observados a partir de 2015 (Cambridge Econometrics, 2018) −, assim como as expectativas em relação à recente saída do Reino Unido da União Europeia, nos fazem compreender que
3 Em tradução livre, “doutores, não policiais”.

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o Brexit interfere na escala descendente da mobilidade social. Com isso, o acesso ao financiamento imobiliário ou ao custeio
da subsistência de modo equilibrado a todos não é possível, o
que provoca, junto a outros fatores, o fenômeno do não acesso à moradia. Isso tudo fragiliza ainda mais a saúde dos indivíduos,
aumentando a população em situação de rua no país (Webster D. Briefing, 2018).

Desse modo, diante de um quadro de exclusão social, o Reino
Unido apresenta um traço marcante da população em situação
de rua a partir do empobrecimento de seus cidadãos nacionais
e de imigrantes. Essa população vive diante de uma linha racial
invisível que divide os que possuem acesso aos serviços essen-ciais e aqueles que vivem na marginalidade (Du Bois, 1999). A condição de desigualdade se reconfigura pelo discurso em torno de políticas públicas para imigrantes, materializada nessa linha
racial. Essa dualidade, recriada pela perspectiva da categoria imigrante, traz consigo um sentimento de não pertencimento
e de constrangimento em torno dos valores de uma identidade britânica nacionalista, calcada no imaginário da branquitude, definida como um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê
os outros, e a si mesmo, uma posição de poder, um lugar confor-
tável do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo (Frankenberg, 1999b; Piza, 2002).Fanon (2008) argumenta que, durante o processo de colonização histórica, se estabeleceram estruturalmente mecanismos de di-ferenciação social, que se traduzem numa dualidade racista em
relação ao negro, o que perdura até os dias atuais. Esse processo é definido por colonialidade, categoria entendida como uma di-nâmica nas relações de poder que naturaliza diferentes padrões
de hierarquias raciais, culturais, de gênero e de conhecimentos epistêmicos (Quijano, 2005). Portanto, o negro africano, agora subsumido à categoria de imigrante em grandes cidades britâni-cas, passa a ocupar uma categoria por vezes subalterna, mesmo após a passagem do colonialismo histórico.

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Dentre as várias formas dessa subalternidade, temos frequen-
temente, na apresentação de dados dentro de uma população geral, a invisibilidade e/ou a subnotificação de casos de pes-soas negras em situação de rua. Segundo o Censo de 2011, a população da Inglaterra é de aproximados 63 milhões de habi-tantes, sendo que 83% são brancos e 3% são negros. Contudo, essa proporção se altera significativamente no que se refere ao perfil étnico-racial das famílias cadastradas que estão em situação de rua no país. Nesse contexto, 62% são brancos, nú-mero abaixo de sua média populacional, e 14% representam a
população Negra. Dessa forma, ao compararmos os números, podemos inferir que a incidência do fenômeno demográfico da
população em situação de rua entre as famílias Negras é qua-tro vezes maior que a sua média populacional (Public Health England, 2020).
Esse fato decorre, dentre outros fatores, do racismo institucio-nal, que se materializa na forma de um determinante social da
saúde da população Negra (Gee, Ford, 2011). Estamos nos refe-rindo a um grupo que está sujeito à ineficácia de políticas públi-
cas reparadoras dessa assimetria, em termos étnico-raciais.

Além disso, no que se refere à existência de dados étnico-raciais sobre as pessoas que dormem na rua − os rough sleepers −, as informações estão restritas a Londres (Gov UK, 2018). A infor-
mação mais aproximada da questão étnica expressa apenas se o
indivíduo é estrangeiro pertencente ou não da União Europeia.
Nesse caso, não se sabe precisamente a raça/etnia nem o status de imigração desse imigrante. Fato é que podem ser de diversas
raças/etnias, podem ser refugiados, entre outras categorias de identificação. Compreende-se que a informação encobre uma série de dinâmicas do homeless no país. Por sua vez, no formulá-rio aplicado pelo governo para identificar os rough sleepers não
há qualquer relação com a raça e etnicidade do respondente, o
que causa um efeito da invisibilidade para a política pública no
quesito da promoção da igualdade racial (Shilliam, 2018).

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Fora de Londres, que possui dimensões muito maiores que as demais cidades do país, geralmente o acesso a benefícios assis-tenciais ocorre de modo regionalizado; nesse caso, os usuários
devem ter residido ao menos cinco anos nas cidades em que
buscam auxílio. Esse critério gera uma iniquidade interna que
restringe o acesso aos serviços para os que estão migrando in-
ternamente pelo país.

Assim, para os muitos que se arriscam a ir para regiões mais ao
norte do país, como Yorkshire, além de encontrarem temperatu-
ras mais baixas, se deparam com um acesso precário dos equi-
pamentos e serviços de assistência e saúde pública, restritos a
população daquela região.

2. Notas etnográficas de uma instituição: homens negros
em situação de albergados em Leeds - Yorkshire

Para tentar compreender um pouco mais esse cenário macro-
estrutural das políticas de saúde e assistência no Reino Unido, durante o ano de 2018, realizei uma pesquisa sobre o sistema nacional de saúde britânico − o NHS − em relação à população
em situação de rua. Decidi adentrar no nível da experiência coti-
diana de muitas dessas pessoas que dependem de auxílios para viver em moradias sociais, ou mesmo que estão “dormindo no chão duro das cidades” (rought sleeping). Para realizar esta pes-
quisa, de cunho mais qualitativo, passei a observar um partici-
pante nos espaços de circulação e em um albergue. Naquele momento, vivi durante quase um ano em Leeds, no Con-
dado de Yorkshire, considerada a quarta maior cidade do país, com aproximadamente 443.247 mil habitantes, chegando a 700
mil habitantes em toda sua região metropolitana. Portanto, Le-eds, localizada a uma viagem de 50 minutos de trem até Man-
chester, constitui um importante polo econômico no Norte do
país. No período da Revolução Industrial, Leeds foi fundamental

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para a produção têxtil, que era escoada por seu sistema pluvial
até Manchester e Liverpool. Atualmente, é uma cidade que atua de maneira relevante no setor de finanças. Em termos de ensino superior, possui aproximadamente 60 mil estudantes (15 % da população da cidade).
Ao longo de meu período em Leeds, contatei instituições pú-blicas e organizações sociais que, de alguma maneira, prestam algum tipo de apoio a esse grupo. Observei metodologicamen-
te durante meses e registrei parte do cotidiano de pessoas em situação de rua; passei um mês intensivamente dentro de um
albergue em meio a vários existentes em Leeds. No ambiente do albergue, apliquei questionários, entrevistei profissionais em atuação e conversei diversas vezes com os usuários. Essas con-versas, numa perspectiva etnográfica, eram direcionadas para aspectos biográficos das trajetórias individuais dos usuários
dentro da instituição (Flick, 2009; Bonsack, 2020).
Destaco que, em relação aos cuidados éticos, de acordo com a
prerrogativa comum no Reino Unido (University of Cambridge, 2020) e do Brasil (Ministério da Saúde, 2016), e em consonância
com a resolução 510 do CONEP, garanti o anonimato das institui-
ções visitadas, bem como dos usuários do albergue que conver-
sei ao longo da experiência.

Diariamente, numa simples caminhada pelas ruas, ainda que no
inverno mais rigoroso, é muito frequente encontrar no centro de Leeds várias pessoas − a maioria homens − dormindo em becos laterais ou deitados próximos a locais de grande circulação pe-
dindo dinheiro, comida ou dormindo em meio ao passeio públi-
co. Em algumas ocasiões, é possível observar membros da pre-feitura do City Council promovendo abordagem social aos que
se punham em calçadas e passeios públicos. Eventualmente, é
possível observar alguns sendo expulsos de lojas ou mesmo sen-
do presos por policiais por acusação de furtos a comércios ou pequenos supermercados. No fim do dia, muitos deles formam

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filas em adjacências próximas ao centro comercial de Leeds a fim de receberem alimento ou cobertores térmicos para supor-tarem temperaturas próximas de zero nas noites frias e úmidas. Durante a noite, diferente de outras cidades que só possuem
uma vida comercial diurna, Leeds ainda mantém características
de uma cidade tradicional, com seus passeios, calçadas, pubs e
restaurantes que proporcionam uma certa vida boêmia à cidade.

Apesar da estrutura urbana, devido à ausência de marquises,
poucos são os que vão permanecer nas ruas expostos às chuvas e ao vento; da mesma forma, bancos e áreas de viadutos também
são raros e inacessíveis. Para algumas pessoas em situação de rua,
o refúgio está em algumas ruas mais afastadas, nos fundos de áre-
as comerciais, embaixo de escadarias ou em viadutos. Alguns ain-
da resistem em dormir sobre o chão com seus cobertores.

3. O coração da rua dentro da Catedral de Santo Expedito
(CSE)Observa-se facilmente o quotidiano das ruas, parques, viadutos, comércios locais, bem como o fluxo de pessoas, o que revela a realidade da marginalidade no primeiro mundo. Após alguns
meses residente em Leeds, eu decidi me tornar voluntário numa instituição filantrópica anglicana que possui um espaço de aco-
lhimento para pessoas em situação de rua. A instituição era ad-ministrada por um padre anglicano e sua filha, e contava com
o apoio de uma equipe de administradores, técnicos, terapeuta ocupacional, um chefe de cozinha, um educador social e uma funcionária que coordenava a limpeza e organização das depen-
dências da instituição.A Catedral de Santo Expedito (CSE), localizada a poucas quadras
do centro de Leeds, possui um prédio onde comportam as depen-
dências da instituição, que funciona de modo distinto de outros
albergues e casas de passagem. Há uma porta de ferro com inter-

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fone e câmera. Adiante, há um balcão de atendimento e poltronas,
o que causa a sensação de estarmos na confortável recepção de
um hotel. Assim, apesar de um certo rigor no controle de entrada
e saída pelas portas com chaves magnéticas, não tínhamos a sen-sação do confinamento típico de instituições fechadas.Uma vez sendo admitido como voluntário, havia várias possibi-
lidades de emprego, desde trabalhar na recepção, passando pela limpeza e pela organização do espaço, ou trabalhar na cozinha sob a supervisão de um cozinheiro da equipe permanente do albergue. Como eu gostaria de conversar com os usuários, me
candidatei para trabalhar nas dependências do restaurante.

Nos primeiros dias de trabalho voluntário, fui recebido por uma das coordenadoras da instituição, Emília, que era psicóloga. Ela me apresenta pacientemente a região do refeitório e um peque-no balcão de madeira, onde é realizado o controle do acesso dos usuários. Adentramos a cozinha e ela me apresenta uma área de
cafeteria, onde são servidos, em um balcão, bebidas como chá,
café e água. Daí, voltamos à recepção principal, quando ela suge-re que eu fique na bilheteria.Uma vez designada qual seria minha função, Emília passa a me
instruir em relação aos procedimentos de distribuição de bilhe-tes de acesso ao restaurante. O turno é dividido em duas horas.
Eu deveria escrever o nome completo, informar o sexo, a cate-
goria de acolhimento e se era cidadão do Reino Unido ou não. A partir de 12 horas, era permitido o acesso geral de usuários; esse seria o horário de maior fluxo.O registro ajudaria a instituição a identificar quem era ou não
imigrante, fator que, em tempos de rumores de Brexit, se torna-va uma questão premente. Apesar de ser obrigatório o registro étnico-racial nos formulários do NHS desde 2015, no albergue,
que recebia pacientes em alta do hospital da cidade, não havia qualquer classificação racial ou étnica a respeito da origem dos

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usuários. Esse aspecto era simplesmente subsumido à categoria “migrante”. Da mesma forma, na Política Nacional só se faziam menção ao status de “europeu”, “não europeu” e “membro do Reino Unido”.
Sobre a relação das interfaces do trabalho assistencial com aten-
ção primária em saúde, eu tive a oportunidade de conversar com
outro voluntário, John, que me orientou sobre o preenchimento
dos formulários de frequência dos usuários do restaurante do albergue. Além disso, ele me explicou o significado de algumas siglas. Uma delas era o ONC (overnight hostage client), que de-
signava usuários que passariam apenas uma noite em um quar-to individual. A sigla COMP (compassion), por sua vez, era desig-
nada para internos em longa temporada, que tinham direito a um quarto individual. Normalmente, os vinculados à sigla ONC eram encaminhados pelo City Council; os COMP eram selecio-nados pela própria CSE. Essa modalidade somava até 15 inter-
nos, que normalmente passam meses até um desfecho de sua situação junto ao governo com a intermediação da CSE. Alguns desses usuários às vezes eram encaminhados de hospitais, mas ainda em processo de recuperação; esses também tinham uma sigla diferenciada, HALP, e ficavam temporadas mais longas em
quartos individuais, que poderiam ser adaptados conforme as
necessidades do tratamento médico. Quando os clientes vinham como ONC e HALP ficavam sob as expensas do governo.Outra categoria de usuários era designada pelo termo HUB, que
seriam aqueles acomodados em três quartos coletivos com até
oito camas cada. No HUB, cada usuário deveria candidatar-se no
dia seguinte para poder pernoitar novamente, assim como em muitos albergues convencionais. Caso haja alguma mulher, ela
é encaminhada para pequenas salas de atendimento individual, onde são improvisadas camas. Os HUBs só podem ser ocupados por homens ou mulheres exclusivamente. Os usuários do HUB devem deixar a acomodação pela manhã e podem realizar reser-
vas para o tempo que precisarem na recepção. Assim o albergue

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organiza suas atividades. Eu pude observar os quartos coletivos
e as salas de acolhimento improvisado, todos muito limpos. Por
outro lado, eu não cheguei a visitar a sala de acomodação indi-vidual do ONC.Essa variação de siglas estipuladas pelo albergue reflete sua ra-
cionalidade quanto à captação de recursos, que em parte, advêm de fontes públicas conferidas pela Câmara Municipal de Leeds. Assim, os albergados categorizados em ONC, COMP e HALP che-
gam ao albergue através de um encaminhamento da prefeitura e
recebem subsídios do sistema de assistência social (Social Care) e do sistema de saúde pública (NHS) para sua permanência. Já os
albergados na categoria HUB são atendidos por livre demanda
da população em situação de rua, desde que residam ao menos cinco anos no condado de Yorkshire; portanto, eles precisam
comprovar seu status de residência pregressa à situação de rua.O modelo de política de assistência à população de rua regio-nalizada não abrange pessoas definidas como andarilhas e tre-
cheiras, pelo fato de andarem por longos trechos de rodovias,
atravessarem o país ou serem imigrantes não documentados em
situação de rua. Para esses, o acesso se restringe ao restaurante durante o horário de almoço. O restaurante não recebe subsídio
público e, portanto, funciona a partir de doações de alimentos
de empresários locais, de religiosos e do trabalho de voluntários da cozinha – prestado, em boa parte, por ex-presidiários apren-dizes profissionais ou pessoas que já viveram nas ruas.
Em outras conversas com voluntários, John também me expli-
cou que os usuários internos e os que pernoitaram têm acesso ao refeitório em horário especial entre 11 e 12 horas. A partir de 12 horas, o público em geral tem acesso ao restaurante que ser-ve, em média, 100 refeições diárias. Assim, ele justificou que o
preenchimento do formulário do albergue, além de ter uma fun-
ção estatística no controle da produção dos alimentos, serviria para eventuais identificações de usuários frequentes, pessoas

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desaparecidas ou investigações policiais na busca de criminosos
foragidos da justiça.

Durante o voluntariado, percebi que eram comuns as queixas
dos usuários relacionadas a necessidades de algum acolhi-mento em termos de saúde dentro do albergue. Assim, após
algumas semanas, junto com a equipe responsável pela admi-
nistração criamos um questionário sobre algumas perguntas
elementares acerca da percepção de saúde e cuidado dos usu-ários do restaurante. Aplicamos por volta de 40 questionários no refeitório frequentado por aproximadamente 100 pessoas/
dia. As perguntas foram respondidas com o auxílio do entrevis-tador. Como respostas, obtivemos que, em termos raciais e de gênero, 60% eram homens brancos, 8% negros, 2% do orien-te médio; ademais, 8% das mulheres se identificaram como pardas (negras de pele clara). Em relação à faixa etária, 40% tinham de 18 a 35 anos, 45% tinham de 36 a 55 anos e 15% estavam acima dos 55 anos.
Em geral, todos são registrados em algum centro de saúde co-munitária (Community Health Centres), que dispõe de médicos
clínicos (general practitioner-GP). Atualmente, mesmo uma pes-
soa em situação de rua no Reino Unido tem direito de se regis-
trar em um centro de saúde, contudo, ele precisa comprovar seu status de cidadania britânica ou apresentar algum registro no
país. Essa tem sido uma prática mais recente como resultado de uma política anti-imigratória do Brexit. Nosso questionário re-velou que, em relação às dificuldades dos usuários para serem atendidos pelos centros de saúde, apenas 20% se queixaram que deixariam de buscar atendimento caso sua localização fosse
distante de sua residência. Essa reclamação se associa à princi-pal queixa de saúde física relacionada a alguma dor intensa nas pernas e pés (50%); além disso, 10% dos respondentes eram ca-deirantes. Um dos respondentes chegou a dizer que se os agen-
tes de saúde fossem rudes, também se sentiria desmotivado a
comparecer ao centro de saúde.

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A maioria (55%) informou que havia sido atendida por algum centro de saúde nos últimos 30 dias. Em torno de 30% não é atendido há mais de um ano. Em relação à utilização do serviço de urgência, 35% informaram que buscaram uma ou mais ve-zes o serviço em menos de um mês; os demais (65%) raramen-te buscaram atendimento de urgência nos últimos 12 meses ou mais. Por volta de 45% fazem uso de algum atendimento relacio-nado à saúde bucal ou atendimento oftalmológico.
Apesar da ênfase assistencial do albergue, eventualmente são
oferecidos alguns serviços de saúde através de parcerias com
instituições de ensino de saúde e voluntários em geral. Trata-se
de atendimentos na área de atenção primária a partir de terapia ocupacional, fisioterapia, oftalmologia, sala de curativo, exames de sangue, grupo de apoio a dependentes químicos e alcoólatras. Em torno de 65% dos usuários frequentam um ou mais desses
serviços de saúde. Em relação a questionamentos sobre como vai a saúde mental, em torno de 50% dos usuários alegaram que
estão sob alguma condição de sofrimento mental, considerada por eles como média ou às vezes insuportável. Dentre as res-
postas sobre os tipos de adoecimento mental, a depressão era a mais comum (em torno de 35%), seguida de quadros de an-siedade e raiva constantes. Dos respondentes, 30% informaram
não ter que passar por nenhuma situação de sofrimento mental. Em torno de 25% não souberam responder à pergunta.Como já mencionado, no Reino Unido há grande quantidade de pessoas em situação de rua; além disso, os dados trazem um perfil multifacetário dessa população. Muitos são cidadãos bri-tânicos empobrecidos e/ou incapacitados a exercerem uma ati-
vidade produtiva, especialmente no caso de homens velhos, que não conseguiram obter aposentadoria. Outros são imigrantes de
várias nacionalidades, que não conseguiram a devida inserção
no mercado de trabalho ou simplesmente adoeceram no longo caminho da integração, muitas vezes inviável dentro do imagi-nário do novo nacionalismo (Hiami, Steele, McKee, 2018).

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4. Algumas expectativas de imigrantes negros acolhidos na
Catedral Santo Expedito (CSE) Durante os períodos na CSE, convivi com alguns desses homens
e dessas mulheres que compartilharam um pouco de suas traje-tórias de vida em situação de rua. Basicamente, conversei com
homens negros, africanos e/ou afro-caribenhos. Diferente do
que se possa imaginar, a rotina de muitos dos usuários do alber-gue é bastante acelerada. Ao longo do dia, além dos breves 60
minutos para acesso ao almoço, alguns usuários estão ocupados em expedientes na busca por benefícios sociais aos quais têm
direito. Moradia, trabalho e saúde são os principais assuntos que os movem diante das incertezas diárias; essas incertezas estão conectadas a trajetórias migratórias, a ruptura nos laços fami-liares, a sentimentos de raiva e de tristeza. Eventualmente, entre
um chá ou uma rápida passagem pelos corredores do albergue,
ocorrem breves conversas, nas quais são compartilhados alguns
fragmentos dessa rotina acelerada.Numa das tardes no CSE, conheci um usuário português cha-
mado Paulo. Ele, homem negro de pais angolanos, tinha aproxi-madamente 35 anos e estava junto de sua amiga britânica, Sam, branca de uns 40 anos. Fui apresentado a eles pelo padre Rogé-rio. Paulo fica feliz em vê-lo, pois já havia sido um frequentador assíduo anos atrás, contudo, atualmente ele só aparecia de vez em quando. Segundo Rogério, sua principal dificuldade estava
no alcoolismo, que lhe impedia de ter um emprego regular. De
qualquer forma, ele me convidou a me sentar na mesa de Paulo,
que estava acompanhado da amiga. Somos apresentados e logo
passamos a conversar em português.

De um modo geral, muitos imigrantes possuem algum vínculo pes-soal a partir de parentes ou amigos que também migraram. A difi-
culdade para se manter em um emprego e a consequente exclusão
podem levar a uma condição de propensa vulnerabilidade a viver nas ruas. Além disso, as exigências por trabalho qualificado são

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muito acirradas e acabam por ser uma das principais justificativas
para o desemprego de imigrantes. Nessa situação, Paulo que tra-
balhava numa cafeteria da cidade, não consegue outro emprego e,
portanto, necessita de acolhimento assistencial para ter moradia.
Ele recebia um auxílio aluguel, que permitia que vivesse em um quarteirão próximo ao centro da cidade, conhecido por abrigar
várias pessoas em situação de rua. Paulo não tocou no assunto do
alcoolismo, tampouco era membro do grupo de álcool e drogas do
albergue. Semanas depois, ao reencontrá-lo, ele estava com uma bolsa com todos os seus pertences. Também estava alcoolizado e
demostrava bastante raiva em seus gestos e palavras duras:

Entrevistador - Como vão as coisas Paulo?
Paulo - Eu não estou nada bem, este país será sempre desa-
gradável pra mim.Para simbolizar o que se passava, ele ergueu uma bolsa tipo de

viagem que estava abarrotada com todos os seus pertences. Eu
me dei conta que Paulo realmente acabara de ser despejado. Ele estava desalojado e já demonstrava uma certa embriaguez; tal situação certamente justificava sua raiva. Eu ainda busquei
estabelecer alguma conversa, mas ele estava bastante irritado e indisposto. Naturalmente, não insisti e o deixei em paz. Mais
tarde, ele se inscreveu para poder dormir no HUB do albergue enquanto sua situação não se resolvia − apesar de sua condição
de europeu, que lhe conferia a prerrogativa de ser assistido pe-los benefícios da assistência social britânica.

***Numa certa manhã, conheci Daniel, um homem negro de 43 anos
que vivia no Reino Unido há oito anos como refugiado. Segundo ele, tinha esposa e dois filhos, um menino de 11 e uma menina de 8 anos. Sua companheira, de origem italiana, trabalhava como
costureira confeccionando roupas. Daniel veio da Eritreia tentan-do escapar de conflitos violentos que vivia em seu país. Ao men-

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cionar sobre sua rotina, na época, trabalhava na cidade de Hud-dersfield em meio período coletando material reciclável para uma empresa chinesa. Em seguida, ele sempre buscava o seu filho na
escola enquanto sua esposa estava no trabalho. Em meio a con-versa, ele diz do que gosta no país e um de seus sonhos:

Daniel - Meu sonho sempre foi ser veterinário e poder tra-balhar para cuidar de animais e ajudá-los. Gosto do Reino
Unido por não ver tanta violência como em meu país. Eu
também gosto muito do sistema de saúde, que é público.

Daniel se enquadra no grupo dos refugiados com o direito de
usufruir dos serviços essenciais de assistência social e de saúde
no Reino Unido, país que durante anos exerceu domínio sobre a Eritréia. Daniel, apesar de possuir família e fazer uso dos servi-ços de assistência no país, ainda se encontra após oito anos de
permanência em uma condição frágil que demanda cuidado de
serviços assistenciais.

***Akwasi e Azindoo eram dois homens negros de Gana, que es-
tavam como internos do HUB. Normalmente estavam juntos e
sempre se portavam de maneira discreta. Eles passaram por
mim, me cumprimentaram e sentaram-se logo ao lado. Daí, eu
lhes perguntei se poderia me juntar a eles, que aceitaram pron-
tamente. Eles perguntaram se eu não almoçaria e lhes respondi
que naquele momento ainda estava sem fome, pois tinha toma-
do café há pouco tempo. Eles acenaram a cabeça e em seguida
lhes informei um pouco sobre os meus objetivos, minha nacio-nalidade e algumas rotinas. Enquanto Azindoo se levanta para
buscar uma xícara de chá, inicio uma conversa com Akwasi.

Entrevistador - De onde vocês são?Akwasi - Somos de Gana. Eu estou aqui no albergue há mais de uma semana. De fato, eu estou no Reino Unido há 10

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anos. Eu já trabalhei na construção civil e como segurança
em casas noturnas. Mas, recentemente, eu perdi o emprego.
Além disso, eu preciso renovar o meu visto de permanência
no país, mas custa muito caro e não tenho dinheiro para pa-gar. O pior é que, para conseguir renovar o visto, precisava
estar empregado, contudo, para conseguir um emprego pre-
cisava do visto. Está muito complicada a situação.

Akwasi se encontrava numa espécie de paradoxo que o levara à
situação de rua por não poder se manter no país. Ele teve que se
apresentar como homeless para buscar algum encaminhamento
via assistência social.

Entrevistador - Como é a sua rotina no albergue?
Akwasi - Eu tenho que ir à prefeitura frequentemente para
reforçar que estou precisando de acolhimento para não per-
der o direito de permanência no quarto em que estou. Eu
tenho tido paralelamente consultas diárias em agências de
emprego e de moradia da prefeitura. Hoje à tarde, eu tenho uma visita num imóvel que pode ser disponibilizado para
moradia para mim.Entrevistador - Você tem familiares? Como é a sua relação
com sua família?
Akwasi - Até pouco tempo atrás eu era casado com uma mu-lher africana e que tem uma filha de 8 e um filho de 11 anos,
mas não estamos mais juntos. Daí, deixei a casa em que viví-
amos e vim para o albergue.

Akawasi, assim como muitos africanos, tem que lidar com as dificuldades de uma trajetória profissional em ocupações tem-porárias que não exigem qualificação. Além disso, a separação
conjugal e o abandono de sua residência o levaram a percorrer
os corredores do serviço de assistência para obter uma moradia
social. Desempregado, ele convive com o risco da eminente per-
da do visto de permanência no país. Isso lhe provoca uma gran-de ansiedade em meio às incertezas de acolhimento e direito
de obter uma ocupação remunerada. Durante a nossa conversa, Azindoo, o mais jovem, retornou à mesa.

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Entrevistador - Azindoo, há quanto tempo estava vivendo aqui no albergue? O que você fazia antes de vir para cá?Azindoo - Estou aqui há sete dias. Eu era universitário em
um curso de Saúde e Qualidade de Vida na Universidade de Bradford. Contudo, com a morte da minha mãe, acabei abandonado o curso após dois anos de iniciado.
Entrevistador - Você trabalha atualmente?Azindoo - Não. Eu era apenas estudante. Minha família não
tem como pagar pelas minhas taxas na universidade. Eu
recebia o subsídio do governo, que foi suspenso. Eu tenho
irmãs, mas não vivo mais com elas por falta de espaço na
casa onde elas moram. Todos os dias eu venho aqui comer e
em seguida eu saio para buscar moradia junto à prefeitura.
Hoje vou junto com Akwasi. Enquanto conversávamos, observei que Azindoo tinha uma cicatriz profunda no rosto e era bastante gago, mas creio que
isso não gerou um problema na comunicação, apesar de o rit-mo da conversa ser mais lento que o normal. De fato, ele faz parte de um grupo muito específico da população em situa-ção de rua, que normalmente enfrenta dificuldades na manu-
tenção dos vínculos familiares frente a problemas estruturais relacionados à saúde ou às finanças. Isso os leva a dormir nas ruas e a buscar acolhimento em albergues. Azindoo faz parte
de uma invisível população de rua jovem que está precaria-
mente vinculada como estudantes nas universidades. Muitos
desses jovens buscam apoio dormindo em sofás na casa de
amigos, até que não conseguem mais manter os gastos com a
vida universitária e decidem abandoná-la. Azindoo - Eu quero encontrar uma casa e depois voltar à
universidade para concluir os meus estudos.

Poucos instantes depois da nossa conversa, os dois se levantaram e saíram para visitar o imóvel disponível. Eu agradeci a compa-nhia e disse “vamos cruzar os dedos”, desejando boa sorte.
Dias depois, reencontro os dois ganenses no restaurante. Eles chegaram bem cedo, como de costume. Os cumprimentei e, de
certa forma, já parecíamos familiares. Eu me sentei com eles e
logo perguntei.

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Entrevistador - Como estão? Como foi a busca por uma nova
casa?Akwasi - Estamos bem. Caminhamos bastante pela chuva até chegar ao imóvel, que ficava a uns 40 minutos a pé da-qui. O apartamento é pequeno, com um quarto, sala e co-zinha, mas que atende as necessidades. Hoje mesmo vou
preencher os formulários para poder pagar o aluguel com
o subsídio do council (câmara municipal), que vai pagar por tudo. Eu também vou fazer as cópias das chaves e assinar o
contrato para providenciar a mudança.

Aparentemente Akwasi estava bem entusiasmado com a possi-
bilidade de deixar o albergue para uma moradia social enquanto reorganizava sua condição de cidadania no Reino Unido. O seu amigo, Azindoo, observava tudo atento, e ainda trocamos algu-mas palavras. Cheguei a perguntar como estava sua situação.

Entrevistador - E você Azindoo, o que pretende fazer?Azindoo - Eu estou aguardando alguma oferta de um apar-tamento para poder me mudar. De vez em quando eu tam-
bém visito uma de minhas irmãs.Azindoo ainda mantém alguns laços familiares, apesar de não viabilizarem o acolhimento desejado. Ele transita pela
porosidade de uma vida precária em que o leva a circular
entre ambientes como a universidade, a casa de familiares
e o albergue.

***

Na mesa ao lado, estava um homem negro chamado Paul. Ini-
ciamos uma breve conversa e ele me conta que nasceu no Reino
Unido, mas seus pais são de origem caribenha.

Paul - Estou morando na rua há uns três meses, na casa
de amigos, surfando no sofá... Antes de me mudar pra cá,
vivia com uma namorada, mas como o relacionamento não
ia bem, resolvemos terminar. Daí eu deixei a casa que era
mantida por ela. Na verdade, eu já vinha numa situação

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de desempregado durante alguns meses. Eu costumava
trabalhar numa farmácia e também já havia sido carteiro,
até que fiquei desempregado. Depois que perdi o emprego,
comecei a beber mais. Isso gerou maiores desentendimentos
no meu relacionamento. Assim, acabei decidindo ir dormir
nas ruas e, logo depois, a ir para a casa de amigos.Paul reflete o quadro mais usual da população em situação de

rua no Reino Unido. Enquanto ia dormindo de sofá em sofá na casa de amigos, naquilo que é definido no Reino Unido como sur-
fing sofa
, vivia invisibilizado frente aos dados oficiais acerca da população em situação de rua. Além disso, experienciava um flu-
xo de inseguranças como outros tantos que, volta e meia, termi-
nam em um albergue enquanto não conseguem se restabelecer e obter sua própria moradia. A perda de vínculos e o abuso de
álcool também são muito recorrentes para quem tem que dor-
mir no chão duro das cidades, especialmente nas estações mais
frias do ano.

***Numa outra ocasião, conheci Garai, um jovem negro de 21 anos
do Zimbabwe.

Entrevistador - Há quanto tempo você está no albergue?
Você está procurando uma casa para morar?Garai - Estou aqui há 3 semanas. Eu já fui ver alguns imó-
veis, mas não tenho direito ao subsídio da prefeitura (city
council
), porque tenho um emprego registrado. Os aluguéis de moradias individuais estavam em torno de 500 libras
mensais. Eu não tenho como pagar esse valor. É muito caro
pra mim. Eu trabalho à noite na área de tecnologia da infor-mação num depósito de distribuição de produtos compra-
dos via internet. Eu passo a noite preparando os arquivos
dos pedidos, que vão ser enviados a outras partes do país. Esse trabalho é muito cansativo, pois eu tenho que ficar acordado toda a noite organizando e preparando o mate-
rial. Durante o dia eu tento dormir um pouco, mas logo em
seguida preciso sair para buscar aluguel na cidade.

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Entrevistador - Onde você morava antes?Garai - Eu morava com meus pais, mas começamos a nos
desentender, até que me expulsaram de casa. Depois disso,
busquei ajuda no albergue onde fui aceito. Não gosto muito
de falar sobre esse assunto, me sinto incomodado.
Entrevistador - Tudo certo. Vamos mudar de assunto. De
que país você veio?Garai - Eu sou do Zimbabwe. Cheguei aqui quando tinha 15 anos. Eu frequentei o colégio onde aprendi noções de
informática que me ajudaram a conseguir um emprego de TI. Gosto dessa área, quero aprender mais. No Zimbabwe,
as pessoas vivem mais no campo sem ter muitos recursos. Isso provoca muitos conflitos e violência, por isso minha fa-
mília decidiu migrar para o Reino Unido para buscar mais segurança e liberdade. O povo lá também gosta de futebol,
assim como no Brasil. Vou ter que sair agora, para continuar
a procurar um aluguel mais barato.

Garai, assim como outros africanos, fazia uso do albergue de refu-
giados. Sua condição de vulnerabilidade não foi suprida, apesar
de sua chegada ao Reino Unido no período da educação básica. De fato, sua condição de permanência no país acirrou conflitos
familiares que levaram a deixar a sua moradia e permanecer em
situação de rua, mesmo possuindo um trabalho formal, que em muitos casos não é satisfatório no que se refere ao orçamento com gastos com moradia. A precarização da atividade produtiva configura uma perda gradual da estabilidade, aumentando qua-
dros de ansiedade que elevam ao risco de adoecimento mental
e à situação de rua.

Apesar de uma apresentação parcial das conversas e encontros
com os usuários ou clientes do albergue durante o período de
estada como trabalhador voluntário, em diferentes elementos de suas trajetórias foi possível acessar aspectos estruturais que
o racismo opera. Destaco o racismo contra negros no Reino Uni-do, desracializados pela categoria “imigrantes”, já que no caso
dos dados sobre população em situação de rua no país não se faz a contagem pelo quesito raça/cor/etnia. No entanto, apesar

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da ausência dessa categoria, a perspectiva antimigratória refor-
ça de modo efetivo uma linha de separação racial que limita aos
negros imigrantes ou não o acesso aos serviços de assistência.Fanon (2008), em sua discussão sobre o colonialismo, descre-
ve exaustivamente, pelo viés da psiquê no homem negro, os as-
pectos da sua negação enquanto sujeito. Nas passagens sobre
os usuários do albergue, se expressam diferentes aspectos dessa dinâmica de subalternidade. A situação de “não ser” dos homens negros que buscam apoios nos albergues reflete, em diversos as-
pectos, um racismo estrutural que imprime em seus corpos múl-tiplas rupturas dos vínculos sociais. Eles são acometidos − como no caso de Paulo − por doenças estigmatizantes, como o alco-
olismo, ou sofrem o despejo de sua moradia e não têm outros recursos, a não ser “surfar em sofás” a fim de evitarem o frio das
noites de inverno nas ruas, como é o caso de Paul.Outros, ainda que incluídos em atividades laborais, como Daniel e Garai, africanos refugiados, representam um grande contin-gente de trabalhadores precarizados em atividades como de ca-
tador de material reciclável ou atendente de central de envio de mercadorias; sendo assim, não conseguem escapar da vulnera-bilidade econômica e da pobreza. Azindoo e Akwasi, ambos des-
pejados em função de rupturas familiares, reencontraram nos vínculos identitários africanos a afinidade para buscarem jun-tos, cada qual a sua maneira, a retomada para suas trajetórias.
Nesse contexto, Akwasi representa um grupo completamente invisibilizado de estudantes universitários, que vivem em situ-
ação de rua por não conseguirem arcar com as taxas do sistema universitários britânico.
Considerações finais

A população negra em situação de rua no Reino Unido (como apresentamos nos interlocutores deste trabalho etnográfico)
enfrenta uma maior vulnerabilidade acerca do acesso aos be-

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nefícios sociais, restritos em tempos de Brexit. Isso os lança
numa subcategoria de cidadania, levando-os ao trabalho pre-carizado, à ruptura de laços afetivos familiares e, consequen-temente, ao adoecimento mental na condição de “não ser”. As-
sim, a efetividade das políticas de assistência e saúde voltadas
à população em situação de rua negra no Reino Unido se dá
de modo precário, sobretudo devido à hostilidade das políticas
públicas voltadas aos imigrantes, que afetam diretamente a po-
pulação negra no país.

De um modo geral, a tensão vivenciada dentro do contexto do
albergue expressa algo de dramático sobre a vida do homem ne-gro na Inglaterra que, em muitos aspectos, é reproduzida através da imigração. Para esses homens negros, lhes resta redefinirem seus corpos, agora institucionalizados em novas perspectivas, para reafirmarem sua existência enquanto seres humanos.A atuação limitada de albergues na condição de organizações so-
ciais captadoras de recursos públicos dos NHS ou do serviço de
assistência social é pautada pelas novas leis, que estabeleceram um ambiente de hostilidade contra os imigrantes – como obser-vado, neste estudo, em relação a africanos e a afro-caribenhos − e os privam do acesso aos serviços essenciais. No caso britânico,
como mencionado na primeira seção deste ensaio, constatou-se
que, diante das reformas no sistema de assistência e de saúde
que vêm ocorrendo nos últimos anos desde o plebiscito que de-
cidiu pela saída do Reino Unido da união Europeia via Brexit, fo-
ram criadas restrições ao acesso desses serviços, especialmente
para migrantes.

As reformas conhecidas como Immigration Act de 2014 e 2016,
respectivamente, assim como o Care Act de 2014, criaram um
ambiente de hostilidade para imigrantes, sejam eles recém-
-chegados, sejam mesmo aqueles que já estavam há décadas no Reino Unido e já se percebiam como cidadãos britânicos. Nesse
caso, todos foram surpreendidos de maneira hostil pelas medi-

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das restritivas e de controle do status de cidadania através do
corte ao acesso a serviços essenciais, como saúde e assistência
social, ou mesmo por ameaças de deportação pela polícia migra-tória.
Paralelamente a isso, para a população em situação de rua (rou-
gh sleepers
) que consegue comprovar seu status de cidadania e direito de permanência no país − definido atualmente pela per-manência prévia de no mínimo cinco anos −, ainda há o acesso
a alguns serviços, como os oferecidos pelo albergue em Leeds. Contudo, mesmo para esses usuários, é necessário que provem
que viviam no condado de Yorkshire quando entraram em si-tuação de rua; caso contrário, não podem acessar os serviços ofertados pelo albergue, custeados pelos repasses financeiros
da prefeitura da cidade. Isso tem como consequência uma re-gionalização do serviço de acolhimento, que prejudica aqueles
contingentes que migram de um condado a outro em busca de
oportunidades e apoio assistencial. Uma constatação óbvia durante a realização do trabalho de cam-po foi que passavam pelo refeitório do albergue muitas pessoas
que não precisavam de auxílio de saúde e de assistência, mas,
como não atendiam aos requisitos da nova legislação, acabavam
sem um acolhimento adequado, voltando a dormir sequencial-
mente na rua.

Portanto, no albergue em Leeds, as narrativas dos usuários en-trevistados − em sua grande parte, de homens negros africanos e caribenhos em busca de acolhimento − mostram um pouco
das nuances de um novo regime geopolítico estabelecido pelo
Brexit, que acentua, em meio a uma crise econômica crescente, formas de desigualdade que se reconfiguram em meio a grupos étnico raciais subalternizados.

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