Rotas Alteradas: Organizações Criminais,
Hierarquia e Território na Atual

Configuração do Mundo Crime na Bahia

Antonio Lima*1

Clóvis Roberto Zimmermann**2

Resumo:
O objeto deste artigo é analisar a formação, o desenvolvimento e a expan-
são, na Região Metropolitana de Salvador – RMS e no interior do estado,
de um mercado de drogas ilegais submetido ao controle de organizações
criminais locais, inter-relacionadas com grupos homônimos, originários
do Norte, Centro-Oeste e Sudeste do país. Trata-se de uma análise longitu-dinal, que abrange o período entre o final da década de 1990 aos dias cor-
rentes. Os resultados apresentados descrevem o desenvolvimento de uma
conformação organizacional hierarquizada, belicosa, com divisão funcio-
nal e de formato exclusivista, que se tornou preponderante, expandindo
suas redes comerciais nesse intervalo de tempo. No sentido de possibilitar a compreensão da atual configuração das dinâmicas organizacionais ile-
gais, territorializadas, belicosas e baseadas no recurso universal à violên-
cia, foram elencados seus elementos explicativos fundamentais, como o
recrudescimento de políticas punitivistas, o consequente encarceramento
em massa, a ausência de cobertura legal e institucional em áreas pobres e
segregadas e as transformações na lógica geral do mundo do crime, com a ampliação de uma rede nacional de fluxos criminais materiais e imateriais.
Palavras-chave: Drogas ilegais. Políticas punitivistas. Organizações
criminais.

* Universidade Federal da Bahia. E-mail: maiakoviski_175@yahoo.com.br
** Possui graduação em Sociologia e Teologia pela Universidade de Heidelberg na Ale-manha e doutorado em Sociologia - Universitat Heidelberg (Ruprecht-Karls, 2004). Atu-
almente é professor adjunto de Sociologia da Universidade Federal da Bahia e membro
do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da mesma universidade. Tem experi-
ência na área de Sociologia, com ênfase em Políticas Sociais, atuando principalmente nos
seguintes temas: teoria das políticas sociais, participação popular e direitos humanos.

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Altered Routes: Criminal Organizations, Hierarchy
And Territory In The Current Configuration Of The

Criminal World In Bahia

Abstract: The object of this article is to analyze the formation, development and expan-
sion, in the Metropolitan Region of Salvador - RMS, and in the interior of the
state, of an illegal drug market subject to the control of local criminal orga-nizations, interrelated with homonymous groups, originating from the North, Midwest and Southeast of the country. This is a longitudinal analysis, covering the period between the late 1990s and current days. The results presented
describe the development of a hierarchical, bellicose organizational structure,
with a functional division and an exclusive format, which has become predo-
minant, expanding its commercial networks in this period of time. In order to make it possible to understand the current configuration of illegal, territo-rialized, bellicose organizational dynamics and based on the universal recour-se to violence, its fundamental explanatory elements were listed, such as the
resurgence of punitive policies, as the consequent mass incarceration, as the
absence of legal and institutional coverage in poor and segregated areas and
changes in the general logic of the world of crime, with the expansion of a na-tional network of material and immaterial criminal flows.
Keywords: Illegal drugs. Punitive policies. Criminal organizations.

Rutas Alteradas: Organizaciones Criminales, Jerarquía
Y Territorio En La Configuración Qctual Del Mundo

Criminal en Bahía

Resumen:El objeto de este artículo es analizar la formación, desarrollo y expansión, en la Región Metropolitana de Salvador - RMS, y en el interior del estado, de
un mercado de drogas ilícitas sujeto al control de organizaciones crimina-
les locales, interrelacionado con grupos homónimos, originarios del norte, medio oeste y sureste del país. Se trata de un análisis longitudinal que abar-ca el período comprendido entre finales de la década de 1990 y la actuali-

Antonio Lima; Clóvis Roberto Zimmermann

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dad. Los resultados presentados describen el desarrollo de una estructura organizativa jerárquica, belicosa, con una división funcional y un formato
exclusivo, que se ha vuelto predominante, ampliando sus redes comerciales
en este período de tiempo. Con el fin de hacer posible comprender la confi-
guración actual de la dinámica organizativa ilegal, territorializada, belicosa y basada en el recurso universal a la violencia, se enumeraron sus elemen-
tos explicativos fundamentales, como el resurgimiento de políticas puniti-
vas, el consecuente encarcelamiento masivo, la ausencia de cobertura legal e institucional en zonas pobres y segregadas y cambios en la lógica general
del mundo del crimen, con la expansión de una red nacional de flujos crimi-
nales materiales e inmateriales.
Palabras clave: Drogas ilegales, políticas punitivas, organizaciones criminales.

IntroduçãoAté o final da década de 1990 não havia no estado da Bahia orga-
nizações criminais tais como as procedentes da região Sudeste do país, descritas pela literatura especializada (Amorim, 2004; Telles, 2010; Feltran, 2011; Barbosa, 2006). Em outros termos,
organizações criminais, hierarquizadas, fundamentadas em do-
mínios territoriais e em mecanismos bélicos, de segurança, de vigilância e de proteção não existiam no mundo do crime local.
Tanto na capital quanto no interior do estado, o comércio de ma-
conha era amplamente difundido e praticado de modo avulso
e independente. Nessa época, a comercialização era irrestrita,
aberta, dependendo apenas da disposição de quem se propunha
a comercializar. Essa mudança ocorreu na primeira metade dos anos 2000, quando tais organismos criminais, hierarquizados,
belicosos, com divisão funcional, comercialmente expansionis-
tas e exclusivistas se tornaram preponderantes, ampliando suas
redes comerciais, transformando a cocaína em sua principal
mercadoria.

A principal consequência dessa transformação foi o desdo-bramento dos conflitos por exclusividade comercial, pelo au-

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mento do controle exclusivo da atividade comercial ilegal e
pela construção de territórios de poder, que se espraiaram por áreas específicas do meio urbano e do meio rural. Houve um
alargamento de relações de poder e de controle sobre o vare-
jo de drogas ilegais, que foi constituído por meios informais e
regulado através da imposição e incorporação de um aparato
normativo informal. Essas organizações, criadas por lideran-
ças situadas de dentro e de fora do sistema prisional, passaram
a submeter o comércio varejista e atacadista de drogas ilegais
e se tornaram centrais na maior parte das atividades criminais
de todo o estado.

O objetivo deste artigo é analisar como se deu esse processo de
desenvolvimento e expansão, na Região Metropolitana de Salva-
dor – RMS, de mercados de drogas ilegais controlados por orga-
nizações criminais inter-relacionadas com grupos homônimos
originários do Norte, Centro-Oeste e Sudeste do país. Além dis-
so, demonstrar a centralidade do ambiente sociopolítico-insti-tucional e a dinâmica dos mercados de drogas ilegais enquanto pilares do desenvolvimento de tal configuração criminal sem
precedentes na região Nordeste. Este excerto tem igualmente por finalidade demonstrar como internos e egressos do siste-ma prisional local, em conexão com o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) e em parcerias com ven-
dedores avulsos e moradores de espaços urbanos segregados,
impuseram exclusividade sobre essa atividade ilícita e demar-caram âmbitos espaciais de exercício de poder no contexto da
Grande Salvador e do interior do estado da Bahia.

Os dados e os resultados apresentados neste artigo foram co-
letados por meio da triangulação de três técnicas de coleta (a
observação direta, a entrevista em profundidade e uso de arqui-vos). No período de três anos, foram realizados meses de ob-servação em três diferentes cidades, 36 entrevistas agendadas,
diversas entrevistas episódicas e análise de diversas fontes de
arquivos, públicas e privadas. Com base nesse inventário, foram

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articulados os esquemas teóricos relacionados ao objeto e aos
elementos factuais da atividade ilegal, como o seu desenvolvi-
mento em conexão com outras regiões do país, suas formas de
territorialidade, suas formas de regulação social dentro e fora
do seu espaço de atuação, suas fragmentações organizacionais e
suas formas de sociabilidade.

O trabalho de observação direta se deu com o estabelecimento
de residência em cada uma das cidades demarcadas no universo
da pesquisa. Foram observados por meses a conduta dos atores,
seus atos e suas práticas, os acontecimentos adstritos ao mundo do crime, as dinâmicas das redes de sociabilidade, as práticas das instâncias formais e informais de controle social, a dinâmica
das organizações criminais atuantes em cada um dos perímetros
urbanos, sua relação com o Estado e a sociedade. Nas organiza-
ções criminais, os indicadores estabelecidos na observação fo-ram os fluxos materiais (armas de fogo, munição, drogas ilegais, suprimentos e insumos) e imateriais (ideias, linguagem códigos, estatutos e símbolos), a hierarquia e disposição funcional, suas rotinas, conflitos e competições e os elementos constitutivos das
relações de poder estabelecidas em cada território.As entrevistas em profundidade foram definidas dentro de um universo composto por trinta e seis (36) no total, divididos em doze (12) para cada uma das três cidades da Região Metropoli-
tana de Salvador previamente delimitadas. Esse número de par-ticipantes por bairro foi subdividido em quatro (4) integrantes das organizações criminais, dois (2) comerciantes locais, dois (2) usuários de drogas ilegais, dois (2) residentes sem relação com
comércio legal ou ilegal e com consumo de algum tipo de droga e, finalmente, dois (2) policiais atuantes e lotados nas cidades a que pertencem os bairros periféricos definidos como objeto do estudo. Assim foi definido o perfil dos sujeitos da pesquisa e
as entrevistas, que foram gravadas, ocorreram em momentos de
menor tensão e de menor intensidade de competições violentas
e de fragmentação, de operações policiais e de visibilidade.

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Os documentos e arquivos, públicos e privados, foram perscruta-dos nas plataformas do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, nos Mapas da Violência, nos anuários da violência do
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e nos jornais
de circulação regional. Outras fontes de informações e de dados importantes foram a Secretaria de Segurança Pública (SSP) e a Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP) do estado da
Bahia. Não é escusado dizer que as informações que constam
nesses arquivos não correspondem necessariamente aos dados
coletados durante a observação direta em cada um dos espaços
urbanos. Foram, ao longo da pesquisa, necessários o exame e a
crítica, ou seja, o escrutínio dos dados levantados.

1. Fundação e fragmentação do comando da paz1Como dito acima, na Bahia, até no final da década de 1990,
não havia organizações criminais tais como as originárias do
Sudeste do país, como aquelas descritas pela literatura espe-cializada (Amorim, 2004; Telles, 2010; Feltran, 2011; Barbosa, 2006). Quer dizer, não existiam no mundo do crime local gru-
pos associados ao varejo e ao atacado de drogas ilegais, hierar-
quizados, baseados em domínios territoriais e em mecanismos de segurança, vigilância e proteção. O varejo de drogas ilegais
era praticado a partir da livre iniciativa de vendedores avul-
sos e independentes. Com o mercado de drogas disposto dessa
maneira, era permitida a concorrência livre, sem rivalidades,
e a manutenção da clientela estava associada à capacidade de
suplementação do produto demandado e às políticas de preços
e de qualidade.

1 Nesse momento, em decorrência de processo de fragmentação intraorganizacional do
Comando da Paz, uma disputa de poder entre as duas principais lideranças da organi-
zação, um grupo de membros e territórios dissidentes passaram a se autodenominar
Comando Vermelho, na Grande Salvador e no interior do estado da Bahia.

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Nesse período, a atividade varejista de entorpecentes possuía
uma dimensão de pequeno porte, dispersa em bairros da capital
e do interior. A maconha era o principal produto das pequenas
“bocas de fumo”, encontrado sempre em estado de escassez. Ar-quivos de jornais de relevância local e regional documentaram
apreensões de cocaína somente na segunda metade do século
XX. Essas ocorrências se deram principalmente em quatro bair-
ros de Salvador (Água de Meninos, Cidade Baixa, São Joaquim e Pilar). Contudo, apesar da introdução e da comercialização des-
sa mercadoria, a cocaína, o comércio de maconha permaneceu
sendo a atividade básica e principal do mercado de drogas local até o início dos anos 2000. Entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990, duas bocas
de fumo despontaram com a introdução da cocaína como pro-
duto proeminente, em dois dos espaços urbanos mais populares
e segregados da cidade de Salvador. Uma no Morro do Águia, no
bairro da Fazenda Grande do Retiro, e a outra no bairro da Engo-madeira, na região do Cabula. Ambas emergiram com o perfil de
organizações voltadas à atividade do comércio ilegal de drogas, mas com funcionamento bem diferente da conformação orgâ-
nica e funcional característica dos atuais organismos criminais
preponderantes e em atividade no estado. Essas novas “bocas de
fumo” se caracterizavam pelo estabelecimento de conexões com
redes de contatos em todo o país, por possuírem arsenal bélico
e por garantirem suplementação, abastecimento e reabasteci-
mento da demanda local.

Essas duas “lojas”2 pioneiras foram fundadas e geridas, respec-
tivamente, pelo ex-taxista Armando Alves da Silva, conhecido
como Ravengar, e por três cabulenses (Ronaldo Gama Santos, Márcio Santos Cavalcante e Alexandre Gallo), que assumiram
a atividade comercial ilegal, abandonada por um assaltante de
bancos, que, até aquele instante, era o principal vendedor avul-

2 Modo como os pontos móveis de varejo de drogas são chamados na Bahia.

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so da região do Cabula. Em concorrência pouco conflituosa, pe-
quenos centros de comércio de maconha irromperam na Cidade Baixa (área litorânea à Baía de Todos os Santos) e nos bairros
da Baixa do Fiscal, Uruguai, IAPI, Retiro, Bom Juá, Santa Mônica,
Pero Vaz, Caixa d’água, Pau Miúdo, Beiru, Liberdade, Cajazeiras,
Pelourinho, além de cidades da Grande Salvador e do interior.

Esses elementos descritivos das mudanças históricas do varejo
de drogas ilegais não explicam por si só a conformação atual dos
mercados de drogas baianos. Na verdade, o recrudescimento do
punitivismo e do encarceramento em massa no estado da Bahia, a partir dos anos 1990, lança luz mais intensa sobre esse fenô-
meno. Dados constantes na plataforma do SEAP3 demonstram a
centralidade do sistema de justiça criminal e a expansão de uma
estrutura de aprisionamento. De acordo com os arquivos cons-tantes na plataforma virtual desse órgão, entre a década de 1990 e o final dos anos 2000, foram construídos mais de 60% dos con-
juntos penais penitenciários do estado. Com isso, a disposição
espacial do sistema prisional, concentrada até este momento
entre Salvador e Feira de Santana, se capilarizou pelas diversas
regiões do interior.De acordo com Garland (2008), o recrudescimento do punitivis-
mo e a ampliação dos sistemas prisionais são fenômenos inter-
ligados e de dimensão internacional, que têm origem nos EUA e na Grã-Bretanha das décadas de 1980/1990. Conforme esse
autor, mudanças na organização socioeconômica, relacionadas à
desestruturação de políticas de bem-estar social, desenvolveram
um cenário reacionário de controle social dos pobres, marcado
por práticas punitivistas oriundas dos mais diversos campos da
sociedade, mas principalmente de suas legislações penais e dos seus sistemas de justiça criminal. Essas transformações influen-
ciaram políticas de controle do crime e de manutenção da or-
dem social nos mais diversos países e continentes. Nelas, estão

3 Secretaria de Administração Penitenciária do Estado da Bahia.

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enraizadas as transições nas práticas de policiamento, mais os-
tensivas, nas características das condenações, mais rigorosas, e
no tratamento direcionado às vítimas de crimes. Ou seja, nesses
fatores residem as raízes do encarceramento em massa.

Na Bahia, esse aumento da população carcerária desencadeou
nas práticas dos internos um discurso consciente sobre suas
condições ambientais e sobre o aparato institucional-legal. Al-gumas pesquisas sobre a questão (Lourenço e Almeida, 2013, p. 45-76; Lima, 2013, 2016, 2017; Conceição, 2015) demonstra-ram que, no final dos anos 1990, uma prática discursiva, com
o objetivo de garantir direitos fundamentais e de melhorar as condições de sociabilidade (pacificação) entre os internos do
complexo penitenciário da mata escura, resultou na criação de
uma comissão representativa. Foram agentes penitenciários, lo-
tados na Cadeia Pública e na Penitenciária Lemos de Brito, que
designaram o grupo representativo emergente pelo nome de
Comissão da Paz. Carlos Jazler da Costa, Genilson Lino da Silva e
César Dantas de Rezende foram os seus principais fundadores e
articuladores. No limiar dos anos 2000, as reivindicações por garantias insti-tucionais e por pacificação das interações, que fizeram emergir
tal comissão, se redirecionaram ao mercado de drogas ilegais e o
grupo se renomeou como Comando da Paz. A partir dessa reor-
ganização, o Comando da Paz, organização criminal de internos,
em parceria com homens em liberdade, egressos ou não, aderiu
a diversas modalidades de crimes. Adveio dessa metamorfose
um processo de imposição de controle e do exercício de poder
sobre espaços urbanos pobres e segregados através do recur-
so universal à violência. A banalização do uso de armas de fogo, como meio de solucionar conflitos, resultou na eliminação física
de vendedores avulsos e de donos de pequenas bocas de fumo,
que resistiram à associação compulsória ao movimento de de-
senvolvimento e de expansão do domínio do comércio de drogas
ilegais por organizações criminais.

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O Comando da Paz, porém, não se manteve coeso por muito tem-
po. Com a transferência de lideranças da Cadeia Pública para a Penitenciária Lemos de Brito, a dinâmica da organização sofreu alterações. Éberson Souza dos Santos, o Pitty, caracterizado por
seus pares como personalidade “autoritária e opressora”, gerou
dissensões em torno da gestão e da “convivência” social dentro
da estrutura do grupo criminal. Em função desse dissenso, Ge-nilson Lino da Silva, o Perna, identificando contradição em rela-
ção à cartilha do “pelo certo”, – código de conduta indicador do
“justo” e do “injusto” – criou a organização criminal rival deno-
minada de Caveira4. Essa fragmentação gerou uma explosão de
competições violentas por controle comercial e expansão terri-
torial nas ruas e nas unidades prisionais da Região Metropolita-
na de Salvador e do interior do estado. Com o desdobramento dos conflitos por exclusividade comercial,
o controle exclusivo da atividade comercial ilegal e a construção de territórios de poder se espraiaram por áreas específicas do meio urbano e do meio rural. Essas configurações urbanas, que
foram dominadas por grupos criminais, são verossimilhantes às descritas por Souza (2012, p. 39-112), como marginalizadas e
segregadas. Com efeito, por meio da guerra, o Comando da Paz
e a Caveira impuseram suas redes comerciais e de poder pela
Grande Salvador e pelo interior do estado. Nessa etapa de alar-
gamento de relações de poder e de controle sobre o varejo de
drogas ilegais foram constituídos meios informais, explícitos ou
tácitos, de regulação social através da imposição e incorporação
de um aparato normativo informal.

Outro fator determinante dessa nova fase de desdobramento
dos mercados de drogas ilícitas foi o processo de hierarquização
no interior das estruturas criminais, enquanto base fundante
de uma relação de autoridade e obediência, mas que, além da

4 Organização criminal extinta no início do ano de 2010, quando, a partir de uma de suas dissidências, teve origem a organização Bonde do Maluco (BDM).

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fundação desses fatores de coesão e estabilidade, implicou em
fragmentação, em disputas internas e expansionistas e em ci-
clos de retaliação. Em comparação com a literatura internacio-
nal, a análise de organizações criminais proposta por Schneider (2013) afirma que a estabilidade de um organismo criminal está
associada à complexidade de sua demarcação hierárquica. Es-
sas constatações e argumentações não se aplicam aos mercados
de drogas da Bahia, nos quais a consolidação do poder, da au-
toridade e da submissão pela obediência se tornou escopo de
dispersão, de beligerante expansão comercial por domínios de
mercado rivais, de política comercial exclusivista-hegemonista
e de constantes crises de identidade e de autoridade intraorga-
nizacional.

As dissidências fragmentaram as organizações criminais e de-
sencadearam o surgimento de novas organizações e novos domí-
nios de mercado. No Litoral Norte e no Agreste baiano, com forte atuação desde 2009, um grupo de operadores daquele mercado
de drogas, liderado por José Francisco Lumes5 (Zé de Lessa), ao
ganhar proeminência em relação ao grupo Caveira, adquiriu au-tonomia e, em 2013, se renomeou como Bonde do Maluco. Em
outra região do estado, o Recôncavo Baiano, o Primeiro Coman-do do Recôncavo (PCR), originário da cidade de Nazaré das Fari-
nhas, criado por Adílson Souza Lima, o Roceirinho, foi rebatiza-
do como Katiara. Essa mudança foi fruto dos rompimentos com
antigos fornecedores estabelecidos em Salvador e, ao mesmo
tempo, representou uma expansão comercial autônoma.

O Bonde do Maluco e o Comando da Paz, maiores organizações
do mundo do crime da Bahia, são também aquelas que mais de-
sencadearam disputas internas e, consequentemente, geraram
mais estruturas criminais emergentes. Na capital, na segunda metade da década de 2010, outras duas estruturas criminais ir-

5 José Francisco Lumes foi morto em operação militar no dia 04 de dezembro de 2019
no Mato Grosso do Sul.

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romperam dessas matrizes. Primeiro se formou o Bonde do Ajei-ta (BDA), sob o comando de Washington Davi da Silva, o Boca
Mole, ex-membro do primeiro grupo supracitado, que cumpre pena no complexo penal de Serrinha desde o ano de 2013. Final-
mente, Fagner Souza da Silva, o Fal, ex-membro das três pionei-
ras organizações criminais aqui descritas, e Thiago Adílio dos
Santos6, o Coruja, ex-integrante do Comando da Paz, fundaram o grupo Ordem e Progresso (OP), no Bairro da Liberdade, conhe-
cido pelos seus “grupos de ataque” intitulados Tropa da Ave, ou
do A, e Tropa da Coruja.

No cenário atual, o Comando da Paz e o Bonde do Maluco, estru-
turas criminais inconciliáveis, atuam com base em alianças ou
rivalidades em relação a todas as outras organizações do crime
em atividade no estado. A Katiara é tacitamente aliada da pri-meira; a segunda, que aglutinou a extinta Caveira, mantém riva-
lidades pontuais e disputas por expansão com o Bonde do Ajeita.
Essa rivaliza abertamente com o Comando da Paz e com a Katia-
ra. Já a Ordem e Progresso empreita ciclos de competição e reta-
liações principalmente com o Bonde do Maluco. Originaram-se
outros grupos que se autodenominaram, a partir de referências
regionais, de cidade ou de região, e a partir de referências per-
sonalistas, como nome de lideranças, porém, em geral, ou são ramificações ligadas aos cinco maiores grupos ou são iniciativas
relativamente independentes.

2. Conformação local e independência relativa

Para além dessas cinco principais organizações criminais, tanto
de caráter personalista como também de caráter regionalista,
persistem nesse mercado, por disjunções, algumas organiza-

6 Líder da organização criminal Ordem e Progresso, morto no dia 13 de agosto de 2020,
em Cabo Frio, Rio de Janeiro, em uma ação que envolveu integrantes do Comando Ver-melho (CV) e do Comando da Paz (CP).

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ções independentes da lógica e da conformação local. Trata-se
de estruturas de poder hierarquizadas, não demarcadas por
nenhuma denominação, nem signos representativos, senha ou
inscrição, opostas às políticas de expansão territorial e contrá-
rias às práticas de competições violentas. Em outros termos,
organizadas em torno da gestão comercial como mecanismo de
expansão dos seus recursos e que se estabeleceram dissociadas
da política expansionista territorial comum aos outros grupos
criminais. Ou seja, o objetivo central dos grupos independentes
é a expansão comercial, no micro e macro nível, como também
dos seus recursos materiais estratégicos e da absorção de uni-
versos cada vez mais extensos de consumidores.

No que tange à geopolítica nacional do mundo do crime, essa in-
dependência se mostra factualmente relativa, na medida em que
compartilham com os demais organismos do crime baiano as
mesmas fontes de abastecimento e suplementação, quais sejam
o Comando Vermelho, a Família do Norte e o Primeiro Comando da Capital. Quer dizer, comparando as organizações criminais
denominadas com as organizações criminais relativamente in-
dependentes, a diferença fundamental está demarcada pela as-
sunção, ou negação, de um ethos expansionista7 para fora dos li-
mites territoriais, por meio do recurso universal à violência. Por
outro lado, em comum, essas formações estão imbricadas nos mesmos fluxos de recursos materiais, rotas de abastecimento de
armas, drogas e insumos.

A singularidade desses grupos, que se abstêm das guerras cons-
tantes por apropriação e controle territorial, tem suas raízes

7 O conceito de ethos diz respeito a modos de ser e de agir interiorizados social e indi-vidualmente, estruturantes de instituições, de valores, de ideias e de comportamentos;
pode ser considerado o espírito, a essência estática e em ato de um tempo ou de um
lugar. Conjugado neste excerto à expressão “expansionista” se refere ao comportamento
reiterado e permanente das organizações criminais locais de, pelo recurso universal à
violência, buscar ampliar sua base espacial de dominação, de público consumidor e de
lucro.

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explicativas no processo histórico de suas formações. Desde o
ponto de partida de seu desenvolvimento e de sua estruturação,
o princípio fundamental desses organismos foi a construção de
centros de abastecimento regionais, englobando cidades e regi-
ões. Essa postura permitiu o desenvolvimento de vínculos fortes, quase sempre pacíficos e primordialmente mercantis, com os di-
versos atores criminais locais. Foi essa relação social amistosa que lhes permitiu a manutenção da distância relativamente se-
gura do ethos expansionista e de suas manifestações recorrentes
baseadas no uso da força e de armas de fogo. Mesmo munidas desse capital social, criaram aparatos de segurança, vigilância
e proteção nos seus perímetros de atuação, mas voltaram sua
agenda prática à gestão, à dominação local e à relação mercantil
com atores oriundos de quaisquer espaços urbanos e rurais. Em relação à dimensão geográfica do exercício de poder, a maio-
ria dos organismos criminais da Bahia se pauta na dominação e no controle territorial. Esse fato específico é demonstrativo de que os confirmados influxos à reorganização de poder, oriundos
de organizações criminais fundadas no Sudeste do país, territo-rializadas e não territorializadas, não são definidores da ampli-tude das dinâmicas endógenas aos mercados de drogas locais. Na verdade, essa dinâmica disjuntiva de operação e comercia-
lização tem suas raízes explicativas numa história dos próprios
organismos criminais, perpassados por sucessões, golpes inter-
nos, crises de representação, divisões constantes, retaliação e objetificação da hegemonia e do controle comercial. A literatura (Manso e Dias, 2018; Feltran, 2018) clarifica a con-formação da geografia e da geopolítica do mundo do crime no
Brasil, suas redes comerciais internacionais, fundadas na par-
ceria CV–PCC (Comando Vermelho - Primeiro Comando da Capi-tal), no período que se estende entre a primeira metade da déca-da de 1990 e o ano de 2016. No entanto, essa coalizão criminal de ampla dimensão não exerceu influência significativa em ter-mos de pacificação das competições violentas interorganizacio-

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nais deflagradas na Bahia desde a emergência de organizações
criminais no mercado de drogas local. Em outros termos, embo-
ra os grupos criminais locais suplementem suas estruturas ma-
teriais, drogas e armas, através, principalmente, de contatos de
criminosos cariocas e paulistas, o acordo de longo período entre esses últimos não representou guias normativas para a dinâmi-
ca do mundo do crime baiano.

A primeira organização criminal da Bahia, voltada para o con-
trole do mercado de drogas ilegais, o Comando da Paz, desde
sua fundação, contrata as suas mercadorias com o Comando
Vermelho. Como descrito acima, esse grupo se fragmentou e deu
origem ao grupo rival Caveira, que estabeleceu fortes conexões comerciais com contatos filiados ao Primeiro Comando da Capi-
tal. Apesar dessas fontes de suplementação nunca terem sido ex-clusivas, a chamada “irmandade do crime”, parceria entre flumi-nenses e paulistas, descrita por Amorim (2005), nunca foi capaz
de conter o banho de sangue em que mergulhou a Grande Sal-vador entre os anos de 2005 e 2015. Conforme dados do IPEA8,
nesse período, as taxas de homicídios por cem mil passaram de (20,9) para (39,5), ou seja, praticamente dobraram.
Na verdade, os mercados de drogas ilegais territorializados, que emergiram no limiar dos anos 2000, trouxeram consigo dinâmi-
cas e relações preexistentes – rivalidades originadas no interior
do sistema prisional – que se mantiveram na relação intraor-ganizacional. Porém, a origem das micro e macro dinâmicas da atual configuração dos mercados de drogas ilegais tem origem
no processo histórico de desenvolvimento de uma política ex-
pansionista e exclusivista, que, desde o início, tem, como seus
principais objetivos, a construção de hegemonia comercial e he-
gemonia do exercício de poder. A partir dessa lógica, baseada em
competições expansionistas e ciclos de retaliação violentos per-
manentes, os espaços urbanos controlados por grupos autode-

8 IPEA – Instituto De Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência. IPEA, 2018.

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nominados independentes são o pano de fundo de um comércio
ilegal de entorpecentes centrado na gestão e expansão dos seus
nichos de mercado.

3. Território e expansão

O estabelecimento de territorialidades9, compreendido como uma relação de poder exercida sobre a população, em âmbito
espaçotemporal, é a característica demarcatória dos mercados
de drogas ilegais do estado da Bahia. Cada estrutura organiza-
cional do crime, baseada num aparato normalizador informal,
impôs normas regulatórias à conduta dos sujeitos dentro e fora
dos seus limites espaciais de dominação. Com efeito, as práticas
e as relações sociais se conjugam a uma nova gramática do cri-
me, cujo fundamento é o controle comportamental no contexto
de um perímetro e período de tempo, que pode levar de meses a anos, dependendo da configuração das disputas intergrupais. Uma das análises de Souza (1995, p. 77–116) sobre territórios,
que pode ser utilizada na análise do contexto do comércio de drogas ilegais da Bahia, está especificamente relacionada a mer-
cados de drogas ilegais, diferenciando territórios contínuos e
territórios descontínuos.

No contexto dos mercados de drogas ilegais da Bahia, esse es-quema, que diferencia os âmbitos de dominação contínuos e
descontínuos, é perfeitamente aplicável, na medida em que a
baixa integração entre os mais diversos organismos criminais
impossibilitou a continuidade dos espaços de dominação. Ou
seja, esse fenômeno impossibilitou a formação de uma topogra-fia contínua e hegemônica de controle territorial, o que explica
9 Neste excerto, o conceito de “territorialidade” remete à obra do geógrafo Marcelo Lo-pes de Souza (1995, p. 77-116) que o designa como sendo determinadas formas de exer-cício de relações de poder no/sobre o espaço/população por período de tempo contínuo
ou intermitente.

Antonio Lima; Clóvis Roberto Zimmermann

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a ampla fragmentação e as disputas intraorganizacionais numa
dimensão bairrista, na qual apenas uma rua ou avenida separa
áreas de atuação de grupos criminais rivais. Na capital, os ca-sos dos bairros de Tancredo Neves (Beiru) e da Sussuarana são
exemplos profícuos do fenômeno da ampla descontinuidade,
nos quais organizações criminais rivalizam pelo domínio do
comércio de drogas.

Segregados, marginalizados e excluídos, esses espaços urbanos
foram rapidamente submetidos a uma ordem institucional in-
formal e ilegal. O desenvolvimento de territórios criminais se
deu em áreas sem a devida cobertura institucional-legal, com
escassas políticas públicas e com a falta de espaços de convivên-cia de populações pretas e pobres. Ou seja, a topografia dessa nova configuração do crime tem dimensões étnico-raciais, clas-sistas e geográficas. Em outros termos, oriundos de processos
informais de urbanização – excluídos existencial, sociopolítica
e economicamente – esses espaços populares e periféricos fo-
ram progressivamente submetidos à lógica de dominação e à
imposição de um aparato normativo ordenado numa estrutura
criminal. Numa palavra, tais redes estruturantes de dominação
decorreram, entre outros fatores, da carência de cobertura de
políticas públicas por parte do Estado, cuja presença é quase ex-clusivamente verificada pela ostensividade e belicosidade.
O fator de instabilidade dessa forma de domínio sobre o espaço
urbano é a política expansionista territorial praticada pela maio-
ria das organizações criminais. O ethos expansionista é a parte
principal dos fundamentos da política externa desses grupos
armados, que, com base de atuação em todo o estado, a partir
de objetivos hegemonistas-exclusivistas, estão em permanente
guerra e em ciclos de retaliações intermitentes. A assertiva de Schneider (2013), segundo a qual mercados de drogas instáveis
apresentam maiores índices de violência, encaixa sem arestas nesse caso. Refletindo essa relação, a interminável instabilidade que engloba a maior parte dos âmbitos espaciais de dominação,

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os mercados de drogas ilegais passaram a investir em mecanis-mos de segurança, vigilância e proteção, ampliando arsenais e
estabelecendo guaritas e seguranças diuturnamente.

O Bonde do Maluco se tornou a maior estrutura criminal do es-
tado, impondo, por meio de disputas armadas, o controle sobre
diversos territórios, em diferentes regiões. Na geopolítica das
competições violentas, o grupo disputa a hegemonia com as ou-
tras quatro maiores organizações do crime local. Suas bases se
espraiaram por regiões como a Grande Salvador, o Litoral Norte,
o Agreste, a Chapada Diamantina, o Centro-Norte, a Mesorregião
Nordeste, o Sertão, a Costa do Dendê, estendendo-se para fora da Bahia com conexões pelo estado de Sergipe. No caso específico
de suas redes de dominação na região da Chapada Diamantina, o
grupo constituiu hegemonia num contexto de descontinuidade,
de maneira que sua capacidade mercantil é predominante, e, na
maior parte dessa extensão territorial, é estável.

Em termos de dimensão e extensão dos domínios territoriais, o Co-
mando da Paz e a Katiara são, respectivamente, a segunda e a terceira
maiores organizações criminais em atividade no estado, que, além
de possuírem bases de dominação na capital, estão presentes em diversas regiões do interior. O Comando da Paz (CP) compete com o Bonde do Maluco (BDM) na Região Metropolitana de Salvador,
no Agreste, no Litoral Norte, no Centro-Norte, na Mesorregião do
Nordeste, no Sertão e por diversas cidades na região da Chapada
Diamantina, diretamente ou através de estruturas criminais
associadas, de caráter e de nominação regional ou personalista.
Por seu turno, a Katiara, que se uniu, a partir de um acordo de não
agressão com o Comando da Paz, estabeleceu suas redes comer-
ciais e de relação de poder entre a capital e o Centro-Norte, espe-
cialmente nas regiões de Feira de Santana e na região do Recôncavo
Baiano, nas chamadas áreas de maré.

Na capital, as duas últimas fragmentações das estruturas crimi-nais deram origem aos grupos Bonde do Ajeita (BDA) e Ordem

Antonio Lima; Clóvis Roberto Zimmermann

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e Progresso (OP). Com extensões de atuação menos amplas do
que as organizações criminais supracitadas, esses possuem ba-
ses de atuação por enquanto limitadas a Salvador, embora seus
líderes sejam responsáveis pela suplementação de armas, dro-
gas e insumos para diversas regiões. Numa parceria estratégica,
tem desencadeado competições violentas por expansão, tendo
como principal rival a organização Bonde do Maluco. As bases
de atuação e as competições violentas permanentes dessas es-
truturas criminais se estendem por bairros pertencentes às sub-
divisões administrativas soteropolitanas, como Cidade Alta, Ci-dade Baixa, Liberdade/São Caetano, Centro/Brotas, Subúrbio/Ilhas, Subúrbio Ferroviário, Cajazeiras, de Itapuã/Ipitanga, Ca-bula/Tancredo Neves, Pau da Lima e Valéria.
Essa geopolítica organizacional territorial não é permanente, sendo cada vez mais fluida e transitória, além de ser redisposta
ao longo dos anos de acordo com os interesses dos atores in-
seridos nesse cenário fragmentado. A guerra por expansão ter-
ritorial e por hegemonia comercial nesses mercados de drogas
ilegais transformou a instabilidade numa condição estrutural e
quase universal dessa atividade ilícita na Bahia. Em outros ter-
mos, o ethos expansionista e os ciclos de retaliação são os fatores
explicativos de competições entre organizações criminais, que,
em comum, têm a mesma fonte de abastecimento de armamen-
tos e de mercadorias. Ou seja, persiste, nas estruturas objetivas
do crime local, uma política tática para fora, na direção do Nor-
te, Centro-oeste e Sudeste, e outra política, bem diferente, para
dentro do perímetro estadual.

4. Fluxos entre redes criminais

As estruturas materiais e imateriais do mundo do crime cada
vez mais abrangem um universo muito maior e mais amplo
do que seu espaço de origem, de fundação. Com isso, drogas, armamentos, insumos, estatutos/aparatos normativos, esque-

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mas regulatórios, simbologias, assinaturas e senhas transitam
por uma tessitura de amplitude nacional e internacional, atra-
vés de práticas associativas e de absorção, impostas, muitas ve-
zes, na constituição de grupos e de forças de atuação no univer-
so criminal, pelo recurso universal à violência letal. Em outros
termos, no interior da rede do crime organizado (junção de instâncias legais e ilegais) recursos materiais e elementos sim-
bólicos e comportamentais, como maneiras de agir e maneiras de ser, estão em constante fluxo por suas extensas e variadas
conexões.A literatura específica tem demarcado os elementos peculiares e
gerais dessa transformação em toda a América Latina. Diversos autores (Ewig, 2017; Zúñiga, 2017; Sampó, 2017; Bagley, 2013)
vêm demonstrando a expansão dessas conexões internacionais,
redes comerciais, relações de poder e de sociabilidades crimi-nais nessa extensão regional. Os caracteres e as dinâmicas do
crime têm sido descritos como de dimensão continental. Nesse sentido, Zamora (2016) demonstra as disposições autoritárias que impõem novas dinâmicas sociopolíticas; Ortiz et al. (2013) apontam para as relações do universo criminal com instâncias formais, públicas e privadas, e com o sistema financeiro; Eché-veria (2015) identifica o polo de ação criminal no sistema prisio-nal; e Gil (2018) relaciona a expansão do crime organizado com
as ocorrências de violência letal.

Nessa urdidura transnacional, na qual são protagonistas orga-
nismos criminais brasileiros, as linhas de seus limites e frontei-
ras têm sido descritas e analisadas semelhantemente por Manso e Dias (2018) e Feltran (2018). No plano nacional, destacam a
atuação das organizações criminais oriundas da região Sudeste
do país, suas redes para dentro e para fora do território, com
potenciais associativos de diferentes níveis, domínio direto ou suplementação. Manso e Dias (2018, p. 333) apresentam dados
que mapeiam a presença do Primeiro Comando da Capital por cada estado da federação, caracterizando seu influxo numa gra-

Antonio Lima; Clóvis Roberto Zimmermann

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dação entre baixa e muito alta. O estado da Bahia, de acordo com esse esquema, está entre aqueles que estão sob influxo médio.
Embora a ascendência, nos mercados de drogas locais, das duas
maiores organizações criminais do país esteja numa gradação de grau médio, elas possuem importância tática na manutenção
do abastecimento e do reabastecimento das demandas comer-
ciais da atividade ilegal. Além disso, a conformação estatutária,
os modos de funcionamento e os esquemas práticos de ação fo-ram extremamente impactados pelos fluxos do crime entre ci-
dades brasileiras do Nordeste e do Sudeste. Esse impacto se deu
pela troca, entre organizações e regiões diversas, de elemen-tos materiais (drogas, armas, insumos) e imateriais (estatutos, aparatos normativos, signos, símbolos). Porém, no conjunto de geoestratégias locais, a configuração do mundo do crime local
permanece submetida, principalmente, a lógicas desenvolvidas
internamente e em decorrência do processo originário de estru-
turação dos organismos criminais nordestinos.

O Primeiro Comando da Capital, o Comando Vermelho e a Famí-
lia do Norte são as principais fontes de suplementação de entor-
pecentes e armamentos das principais organizações criminais
da Bahia. Assim, o Comando da Paz e a Katiara mantêm relações
comerciais com o Comando Vermelho e a Família do Norte. Por
outro lado, o Bonde do Maluco, o Bonde do Ajeita e a Ordem e
Progresso estabeleceram vínculos comerciais com o Primeiro
Comando da Capital. Essas fontes de suplementação são as mes-
mas utilizadas pelos grupos armados independentes, regiona-
listas e personalistas. Enquanto os organismos independentes
negociam diretamente com seus intermediários, a maioria dos
grupos personalistas e regionalistas abastece por meio de con-
tatos atacadistas, ligados às cinco principais organizações crimi-
nais no interior do estado.

Mesmo sendo a principal fonte de abastecimento dos merca-dos de drogas do estado, o PCC (Primeiro Comando da Capital),

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que opta prioritariamente pela gestão, pela não construção de territorialidades, não tem poder para pacificar ou unificar seus
clientes, que competem entre si, recorrendo frequentemente a
disputas armadas. A Katiara e o Comando da Paz, após alianças
estratégicas e rivalidades pontuais, formaram vínculos fortes,
como meio de proteção mútua, na capital, na região de Feira de
Santana e no Recôncavo Baiano. Como condição para essa asso-
ciação, a segunda estabeleceu que a primeira, que possuía múl-
tiplos contatos na região Sudeste do país, suplementasse suas
demandas apenas através do Comando Vermelho e da Família
do Norte. A política expansionista territorial, típica das organi-zações criminais cariocas (Zaluar, 1994, 2000), exerce autorida-
de dentro e fora dos limites do Rio de Janeiro.

Apesar das intermitentes disputas locais, no decorrer dos anos 2000, o Comando da Paz e a Caveira10 tinham trânsito comercial
com diferentes estruturas criminais brasileiras. O rompimen-to definitivo de vínculos comerciais entre o Primeiro Comando da Capital e o Comando da Paz ocorreu no ano de 2010. Nesse
ano, dois integrantes da organização criminal paulista saíram
de Mauá, trazendo consigo uma criança, chegando a Salvador portando uma carga de cocaína avaliada em R$100.000,00 para
ser entregue ao Comando da Paz. Camila Pedreira Frias e Jean
Carlos dos Santos jamais receberam o pagamento pelo produto,
nem voltaram vivos para São Paulo. Operadores do Comando da
Paz, sob a liderança de José Roberto dos Santos, Robertinho, com
aval de David Silva Vieira, o Gordo, recluso na época na Unidade Especial Disciplinar (UED), e o grupo de Daniel Santos Barre-
to, o Café, aplicaram um violento golpe na organização criminal
paulista.

Tudo fora previamente calculado e planejado. O casal foi seques-
trado, a criança que estava com eles foi abandonada no interior

10 Organização criminal extinta no início do ano de 2010, quando, a partir de uma de suas dissidências, teve origem a organização criminal Bonde do Maluco (BDM).

Antonio Lima; Clóvis Roberto Zimmermann

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de um veículo EcoSport, na avenida paralela em Salvador. Após
a simulação de um sequestro, atribuído à polícia, foi negociado um resgate pela quantia de R$50.000,00, o que foi prontamen-
te pago. No entanto, o casal foi executado e enterrado em covas rasas na Avenida Queira Deus, no bairro de Portão, na cidade de Lauro de Freitas. Naquela madrugada de 9 de maio 2010, eles foram levados a uma área ecológica, local esmo, de difícil acesso,
no qual, há quase uma década, se aplicavam sanções e se pratica-
vam seviciamentos diversos. Camila foi amarrada numa árvore,
enquanto o bando buscava Jean, que havia escapado. Ele foi cap-
turado minutos depois, escondido na fundação de uma casa em construção, nas proximidades da mata atlântica remanescente.
No decorrer da sessão de tortura, um microempresário foi obri-
gado a abrir sua loja de material de construção, de onde foram
levados cavadores, pás e enxadas. Tendo à disposição os instru-
mentos necessários à ocultação dos cadáveres, o grupo levou até o final as ordens que emanavam do interior da Penitenciária
Lemos de Brito. Moradores vizinhos ao local ouviram, como é
frequente, pedidos de clemência e gritos de dor. De acordo com
um dos sujeitos dessa pesquisa, e testemunha dos fatos, após a
consumação de estupros sucessivos e de sucessivos disparos de
arma de fogo, os operadores do mercado de drogas local calaram
as vítimas. No dia 23 de maio, os corpos foram encontrados em
estado de decomposição e toda a trama, objeto de cochicho en-
tre populares, começava a se tornar pública e ter um desfecho.

Antes de terminar o mês de maio daquele ano, o crime já estava
esclarecido. A par dos detalhes, o Primeiro Comando da Capi-
tal começou a cobrar dos seus parceiros comerciais atitudes em
relação ao Comando da Paz, que passou a ser o principal inimi-go dos paulistas na Bahia. No dia 28 de maio de 2010, Renildo
Santos do Nascimento, o Aladim, homem associado ao Comando
da Paz, foi encontrado enforcado em suas próprias roupas numa
penitenciária de segurança máxima em Catanduvas, no estado do Paraná. No dia 04 de junho de 2010, sete dias após ser pre-

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so em Aracaju, capital sergipana, José Roberto dos Santos, autor
intelectual do crime, foi encontrado morto numa das celas da Unidade Especial Disciplinar (UED) do Complexo Penitenciário
da Mata Escura. Algum tempo depois, Daniel Santos Barreto, o
Café, o principal executor do crime, foi assassinado enquanto es-
perava sua esposa nas imediações de uma igreja neopentecostal,
no bairro de Vida Nova, em Lauro de Freitas. A atual configuração do mercado de drogas no mundo do crime
local é, entre outros fatores, desdobramento dos fatos acima des-critos. Quer dizer, a morte dos integrantes da maior organização criminal do país por si só quebrou elos de confiança, feriu princí-
pios adstritos ao mundo do crime e economicamente resultou em um prejuízo de pelo menos R$150.000,00. A expansão organiza-
cional do Bonde do Maluco tem seus elementos explicativos em tais conflitos, já que, em decorrência das cobranças do Primeiro
Comando da Capital, muitos contatos comerciais foram obrigados
a migrar do Comando da Paz para a Caveira. Esse crescimento in-
voluntário do Comando Caveira desencadeou disputas internas entre lideranças antigas e os novos membros/associados pelo
comando da organização, situação que, pouco tempo depois, foi
responsável pelo surgimento do Bonde do Maluco sob a forte in-fluência de José Francisco Lumes, o Zé de Lessa.
5. Trânsito de estruturas imateriais

Pelas redes criminais estabelecidas entre estados e cidades
de todo o território nacional transitam recursos que ultrapas-sam as estruturas mercadológicas e econômicas. Quer dizer, as
trocas que são realizadas por malhas de transporte (terrestre, aquático, aéreo) abrangem mais do que a mercadoria em si, qual
seja, armas e drogas. Na realidade, por meio desses diversos
canais de comunicação, circulam modos de organização hierár-
quico funcionais, regulamentares, estatutários, simbólicos, que
possuem ascendência demarcatória, representando factualmen-

Antonio Lima; Clóvis Roberto Zimmermann

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te elementos informais de socialização, de coerção e de coação. Considerando os devidos contextos de formação e de suas dinâ-
micas de atuação, esses elementos imateriais aproximam diver-
sas organizações criminais brasileiras. Embora cada mercado de drogas possua suas próprias dinâmi-
cas, as primeiras organizações criminais brasileiras, descritas pela literatura específica (Barbosa, 1998; Zaluar, 2000; Dowd-ney, 2003; Amorim, 2004; Telles, 2010; Misse, 2011), foram fon-tes de influência em todo o mundo do crime no Brasil. Na Bahia, essa influência foi fundamental no desenvolvimento da atual
conformação estrutural criminal que prevalece no estado. Um dos fatores de maior relevância nesse processo foi a demarcação
de posição de autoridade intraorganizacional, o que estabeleceu
relações de hierarquia funcional, modos de imposição de regu-
lação e de sanções sociais e mecanismos de controle e expansão
territorial, baseados no recurso universal à violência, especial-mente os tipos definidos por Reuter (2009), ou seja, disciplinar
e de sucessão.

A violência disciplinar, meio estratégico regulatório, imposta
às condutas sociais, para dentro e para fora dos grupos crimi-
nais, portadora de capacidade coercitiva, foi fundamental para
o desenvolvimento da setorização ou divisão funcional nessas
organizações e para a formação de um aparato normalizador,
chamado de “pelo certo” no mundo do crime local. Através da
hierarquização das funções, produziu coesão intraorganizacio-
nal, reduzindo as possibilidades de dissensões e ampliando a
autoridade das lideranças estabelecidas. No decorrer do pro-
cesso de remodelação dos mercados de drogas ilegais da região,
o aparato normalizador estabeleceu regras comportamentais, com a definição prévia de sanções punitivas de ações que abran-
gem desde a agressão verbal ao homicídio.

O regramento como elemento basilar do mundo do crime é iden-tificado tanto no Brasil (Zaluar, 2000; Telles, 2010; Feltran, 2011;

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Misse, 2011) quanto no seu homônimo, as redes criminais de di-mensão internacional (Decker, 1996; Schneider, 2013; Fiorentini, 1999; Albanese, 2004). Na dimensão nacional, os aparatos nor-mativos criminais são essenciais na definição e na consolidação
de posições, de ganhos materiais e de estruturas de poder, que
abrangem desde associação de novatos até a sucessão de lideran-
ças, que é muitas vezes violenta. Numa palavra, os dados apresen-
tados neste excerto demonstram que os elementos impalpáveis
do crime, com seus arranjos contextuais, contingentes ou não, cir-
culam pelas mesmas vias de suas estruturas palpáveis.

Os signos e os símbolos demarcatórios são exemplos importan-tes desses trânsitos não materiais pelas redes criminais nacio-
nais. Na Grande Salvador e no interior do estado são notórias as
insígnias que demarcam as áreas de controle das duas maiores
organizações criminais. O Bonde do Maluco, representado pela
inscrição “tudo 3” e pela senha “é noiz”, explicita sua vinculação
ao Primeiro Comando da Capital quando o algarismo arábico 3 significa uma subscrição das 3 letras iniciais do nome da estru-
tura criminal originária do Sudeste. Por seu turno, o Comando
da Paz, associado ao Comando Vermelho, evidencia publicamen-
te a sua inscrição, “tudo 2”, vinculada à saudação e grito de guer-
ra hea, que demonstra seus vínculos fortes com os fluminenses.
Numa palavra, os elementos impalpáveis, os tipos de conforma-
ção e as estratégias de funcionamento, que são estruturantes
de atividades criminais, transitam e suplementam mercados de drogas pelas mesmas malhas e fluxos de suas mercadorias. As-
sim, modos operacionais, de hierarquização, de divisão funcio-
nal, de regulação social estão disseminados por todas as regiões
do país. Ou seja, organizações criminais, que operam em espaços
urbanos diversos, baseadas em fundamentos contextuais dife-
rentes, são conectadas por redes criminais muito mais amplas
do que seu espaço de atuação. Por meio das mais diversas vias
de ligação e de comunicação, o mundo do crime compartilha in-fluxos que moldam e remoldam suas dinâmicas por todo o país.

Antonio Lima; Clóvis Roberto Zimmermann

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Considerações finais

Este artigo descreveu a transição ocorrida no mercado de drogas
ilegais na Bahia, com a passagem do comércio varejista, a partir
da livre iniciativa de vendedores avulsos e independentes, mar-
cado por diversas formas de concorrência, sem rivalidades, para uma dinâmica contextual baseada em mercados de drogas hie-rarquizados, territorializados e belicosos. Essa configuração do
crime se desenvolveu no bojo de uma ordem institucional-legal
excludente, de uma política de exclusão sociorracial, segregacio-
nal e do recrudescimento de uma lógica punitivista do sistema
de justiça criminal. O amálgama desses fatores propiciou tanto
o controle do sistema prisional, depósito das consequências do
racismo estrutural e institucional, quanto o controle de áreas
de origem desses detentos, habitadas, tais quais as prisões, por
indivíduos excluídos existencial, social, econômica e politica-
mente. O fenômeno da exclusão, que marca essa conformação, é explícito, profícuo, de tal sorte que tanto os mecanismos típicos da violência oficial quanto o punitivismo do sistema de justiça
criminal são direcionados às classes populares.

A estruturação das organizações criminais se baseou em um mo-
vimento impositivo de territorialização. Assim, os grupos que se
desenvolveram se nominaram de acordo com a origem, a forma-
ção, a região, o nome de uma liderança, e constituíram espaços
de relações de poder, tanto dentro do sistema prisional quanto
em todo o perímetro estadual. A fragmentação dessas estrutu-
ras criminais engendrou múltiplas rivalidades, consolidando políticas expansionistas territoriais com fins hegemonistas e
exclusivistas. Embora possuam uma relação comercial com as principais organizações criminais do país, as dinâmicas internas
são um produto do processo de formação das estruturas crimi-
nais locais.

As territorialidades, constituídas pelas regras impostas por esses grupos, são relações de poder exercidas no âmbito espacial sobre

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populações negras e pobres, através do uso de arma de fogo e do
recurso universal à violência. Esses domínios territoriais, com ra-
ras exceções, são inconsolidáveis, descontínuos e instáveis, em de-
corrência das permanentes competições violentas por expansão.
O principal fundamento dessa geopolítica expansionista foram os
processos de partição que ocorreram por meio de antagonismos
entre lideranças, resultando em golpes e assassinatos, razão pela
qual os ciclos de retaliação são parte objetiva das disputas arma-das. Como aspecto da dinâmica interna, essa política de guerra por territórios não sofre influxo impositivo dos mercados de dro-
gas externos, que, no macro nível comercial, suplementam as de-
mandas dos organismos criminais baianos.

Esses territórios de atuação estão conectados na tessitura crimi-
nal mais ampla que abrange redes de cidades do Norte, do Centro-
-Oeste e do Sudeste do país. O Comando Vermelho, a Família do
Norte e o Primeiro Comando da Capital são as principais fontes
de suplementação de armas, de munições, de drogas e de insu-
mos das cinco maiores estruturas criminais originárias do estado. Apesar de exercerem média influência na geopolítica do comércio
de drogas na Bahia, as duas maiores organizações criminais do país são referências para a atual configuração do crime no estado.
Por meio de diferentes vias de ligação e de comunicação, estrutu-
ras organizacionais funcionais e estruturas estatutárias e simbóli-
cas foram assimiladas e aglutinadas a outros elementos, palpáveis
e impalpáveis, de dimensão contextual.

Assim, esses dados permitem a compreensão do desenvolvi-
mento dos mercados de drogas da Bahia, de sua disposição topográfica, de sua dinâmica operacional e funcional e de sua
posição nas malhas do mundo do crime que impactam sobre as
sociabilidades da maior parte da população do país. Essa socio-grafia representa, na mesma medida, uma empreitada no intuito
de demonstrar as teias que associam a ordem institucional-legal
e a ordem extralegal, ou seja, a complexidade das relações de
poder e de sociabilidade no mundo do crime. No caso do Estado,

Antonio Lima; Clóvis Roberto Zimmermann

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de suas estruturas emanam a violência oficial e o punitivismo, direcionados a geografias, a etnias e a origens sociais, ou seja,
direcionados a minorias qualitativas e quantitativas, às quais são submetidas por meio de instâncias de controle social formal.
Em suma, três fatores contribuíram para a consolidação dessa
nova conformação organizacional. Primeiro, as políticas puniti-
vistas, já praticadas na Bahia naquele período, ampliaram o uni-
verso dos encarcerados e a consequente formação e organização
de grupos de internos voltados ao apoio mútuo e a práticas cri-
minais dentro e para fora do sistema prisional. Segundo, o desen-volvimento de rotas e parcerias comerciais expandiu os fluxos materiais (entorpecentes, armas de fogo e insumos) e imateriais (estatutos, simbologias, etc.) entre organizações criminais em
solo nacional e internacional. Terceiro, a ausência de cobertura
legal e institucional em áreas pobres, segregadas, de urbanização
informal, de exclusão existencial, política, econômica e social, per-
mitiu o espaço urbano necessário para o desenvolvimento desse
tipo de territorialização de mercado de drogas ilegais.

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Recebido em 07/07/2021Aprovado em 07/12/2021