Mercados Ilegais e Dinâmicas Criminais:
Notas sobre as Transformações do
Tráfico de Drogas nas Periferias de
Fortaleza, Ceará
Clodomir Cordeiro de Matos Júnior*1
João Pedro de Santiago Neto**2
Artur de Freitas Pires***3
Resumo:
O presente artigo tem por objetivo explorar as transformações do mer-
cado de drogas ilegais associadas à atuação capilar de coletivos crimi-
nais nos bairros das periferias de Fortaleza, Ceará, Brasil. Através de
pesquisas realizadas em seis bairros da capital cearense nos últimos 17 anos e do cruzamento com dados bibliográficos, analisamos suas
transformações nas duas últimas décadas. Partimos das experiências
de sujeitos ligados aos mercados de drogas ilegais e, assim, propomos
uma compreensão de como elas se conectam a mudanças de diferen-
tes escalas. Em uma metrópole internacionalmente conectada, a diver-sificação da oferta de drogas ilegais nas periferias e seus respectivos
lucros materiais e simbólicos estimularam algumas das condições de
possibilidades para a conformação de novas maneiras de se fazer o cri-
me em Fortaleza.
Palavras-chave: Tráfico. Drogas. Facções. Periferias. Fortaleza.
* Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: clodomir.cordeiro@gmail.com** Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade
Federal do Ceará (UFC). Pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC) e do Laboratório de Estudos das Cidades e seus Conflitos (CITADINOS/UFMA). E-mail:
joao_santiago_33@yahoo.com.br*** Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS). Pesquisador do
Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC). E-mail: arturpires@alu.ufc.br
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Illegal Markets And Criminal Dynamics: Notes On
The Transformations Of Drug Trafficking In The
Peripheries Of Fortaleza, Ceará
Abstract:
This article aims to explore the transformations in the illegal drug market associ-
ated with the capillary action of criminal groups in the peripheries of Fortaleza,
Ceará, Brazil. Through research carried out in six districts of the capital of Ceará
in the last 17 years and crossing with bibliographic data, we analyze its trans-
formations in the last two decades. We start from the experiences of subjects
linked to illegal drug markets and, thus, we propose an understanding of how they are connected to changes of different scales. In an internationally connected metropolis, the diversification of the supply of illegal drugs in the peripheries and their respective material and symbolic profits stimulated some of the condi-
tions of possibility for the conformation of new ways of doing crime in Fortaleza.
Keywords: Traffic. Drugs. Prison gangs. Peripheries. Fortaleza.
Mercados Ilegales Y Dinámicas Delictivas: Apuntes
Sobre Las Transformaciones Del Narcotráfico En Las
Periferias De Fortaleza, Ceará
Resumen:
Este artículo tiene como objetivo explorar las transformaciones en el mercado
de drogas ilegales asociadas con la acción capilar de grupos criminales en las pe-
riferias de Fortaleza, Ceará, Brasil. A través de investigaciones realizadas en seis
distritos de la capital cearense en los últimos 17 años y cruzando con datos biblio-gráficos, analizamos sus transformaciones en las últimas dos décadas. Partimos
de las experiencias de sujetos vinculados a los mercados de drogas ilegales y, así,
proponemos una comprensión de cómo se relacionan con cambios de distintas escalas. En una metrópoli conectada internacionalmente, la diversificación de la
oferta de drogas ilegales en las periferias y sus respectivas ganancias materiales y
simbólicas estimuló algunas de las condiciones de posibilidades para la conforma-
ción de nuevas formas de hacer el delito en Fortaleza.
Palabras clave: Tráfico. Drogas. Pandillas. Periferias. Fortaleza.
Clodomir Cordeiro de Matos Júnior; João Pedro de Santiago Neto; Artur de Freitas Pires
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Introdução
A atuação de redes criminais na produção social do crime no
país tem sido registrada há algumas décadas, englobando um
amplo leque de relações entre agentes privados e públicos em
torno da oferta de mercadorias e serviços, legais e ilegais (Misse,
2011, p. 15). “Jogo do bicho”, “Comandos” e, mais recentemente,
as “Milícias”, alteraram ao longo das últimas décadas a cena cri-
minal brasileira, revelando decisivos obstáculos para a consoli-
dação da democracia no Brasil. Essas redes, com experiências
embrionárias no Rio de Janeiro dos anos 1980 (Coelho, 1987;
Zaluar, 2004), teriam estimulado a conformação de mercados
ilegais extremamente lucrativos e padrões de violência que se
disseminaram para grande parte do território brasileiro a partir
dos anos 1990 (Misse, 2011).Em São Paulo, mudanças estruturais, experiências de discrimi-
nação social e segregação territorial, políticas institucionais de
controle e encarceramento em massa e, entre outros processos,
maus tratos no interior do sistema correcional tornaram
possível a emergência de uma cena criminal capaz de articular
os bairros e as prisões da maior cidade do país ainda no início da década de 1990 (Biondi, 2010; Adorno & Salla, 2007). Nesse
momento, a privação de liberdade e as experiências de violência
no interior das instituições prisionais emergem como gatilhos significativos para a organização de coletivos criminais e seu es-
praiamento no sistema prisional e bairros periféricos da capital
paulista e demais cidades do estado1. Dias e Manso (2017) apontam que a atuação do Primeiro Co-mando da Capital (PCC) fora de São Paulo foi identificada ainda em 1990 em instituições penais do Paraná e Mato Grosso do Sul,
1 No dia 02 de outubro de 1992 a intervenção da Polícia Militar do Estado de São Paulo que buscava controlar uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo, o “Carandiru”,
resultou na morte de 111 detentos.
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estados fronteiriços que incorporam um lugar de destaque nas
rotas de mercadorias ilegais que atravessam o país2. Em um pro-
cesso nacional de replicação de políticas de segurança ostensi-vas de guerra ao tráfico, encarceramento em massa dos jovens
negros das periferias, transferências de presos entre estados,
condições degradantes das prisões e, entre outras situações, a
autonomia dos detentos no interior dessas instituições, as cha-
madas “facções” expandem-se pelo país, ainda em 2010, como um modelo a ser seguido nos 26 estados da federação e Distrito Federal (Dias e Manso, 2017)3.Diante da conformação de uma cena criminal que ganha forma
e destaque a partir da penetração capilar desses sujeitos nas
periferias cearenses em meados da década passada, sobretudo
a partir de 2014, o artigo tem por objetivo explorar alguns dos
processos associados às distintas fases de atuação das facções
em Fortaleza4, Ceará, Brasil. Em meio às transformações do
mercado de drogas ilegais nas periferias da capital no início
do presente século, sobretudo com a oferta de novos produtos,
redes criminais que atuavam há pelo menos quatro décadas no
estado passaram a estimular a conformação de novas maneiras
de se fazer o crime e engajar-se em atividades ilegais na capital
cearense.
Buscando contemplar os objetivos elencados para o artigo, dividi-mos o trabalho em três momentos. Inicialmente, buscamos explo-
2Para Nunes e Manso (2017) a presença mais ostensiva do PCC no Paraná (fronteira com o Paraguai) e Mato Grosso do Sul (fronteira com o Paraguai e a Bolívia) seria um fato significativo para a compreensão da expansão da organização e sua principal atividade lucrativa, o tráfico de drogas ilegais.
3 Levantamentos feitos por agências de inteligência ligadas ao governo federal apontam
a existência de mais de 80 gangues prisionais no Brasil, modelo que se tornou presente nas 27 unidades da federação (Nunes e Manso, 2017, p. 27).4A cidade de Fortaleza é capital do estado do Ceará, região Nordeste do Brasil, e
atualmente é a quinta mais populosa do país com cerca de 2.703.391 habitantes, segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para
2021.
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rar o percurso e procedimentos metodológicos que deram origem
aos dados apresentados no presente texto. Em um segundo mo-
mento, colocamos em evidência as transformações do mercado de
drogas ilegais nas periferias de Fortaleza no início dos anos 2000 e
sua importância para a capitalização econômica e política que anos
mais tarde tornou possível a capilaridade dos coletivos criminais nos territórios do tráfico da capital cearense. Em seguida, analisa-
remos, a partir das narrativas dos nossos interlocutores, algumas
das mudanças pelas quais passaram as atividades ligadas ao trá-fico varejista de drogas ilegais com o processo de capilaridade das facções nas periferias da cidade na última década. Por fim, nossas considerações finais realizam uma análise de conjunto acerca das
questões que buscamos explorar ao longo do texto.
1. Procedimentos metodológicos
O presente texto agrupa dados de pesquisas de três investiga-
dores que desde 2004, de maneira intermitente, realizam pes-
quisas em bairros das periferias de Fortaleza, Ceará. Produzidas
em diferentes momentos das últimas duas décadas, com espe-
cial ênfase para os trabalhos de campo realizados entre os anos de 2016 e 2019, as pesquisas, algumas elaboradas com a finali-
dade de compor trabalhos acadêmicos individuais e outras com
propostas coletivas, privilegiaram em suas múltiplas etapas um
olhar qualitativo sobre o engajamento de moradores das peri-ferias da capital cearense nas atividades do tráfico varejista de
drogas ilegais.
O planejamento da pesquisa mais recente se iniciou por meio de uma extensa pesquisa bibliográfica, documental e midiática
sobre os temas e questões envolvidos na compreensão do nosso
objeto. Para um segundo momento da composição do texto, tra-
balhamos com a interseção dos dados das etapas de campo rea-
lizadas em seis bairros da periferia da capital cearense durante
os anos que deram corpo a trajetória dos pesquisadores (2004
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e 2019)5. Priorizando informações e elementos relacionados
às mudanças nas maneiras de se fazer o crime na capital ce-
arense na última década, alguns traços das atividades ligadas ao tráfico varejista de drogas ilegais nas periferias de Fortaleza foram identificados e explorados.
Buscando aproximar-se do cotidiano dos moradores desses es-
paços, entre 2016 e 2019 realizamos, individualmente ou em dupla, conversações, registros etnográficos6 e entrevistas se-
miestruturadas7 com diferentes interlocutores, entre os quais aqueles que privilegiamos neste artigo, traficantes varejistas de
drogas ilegais, especialmente crack, cocaína e cannabis. Esses
procedimentos permitiram a tessitura de novos olhares sobre o
processo de “acumulação da violência” na capital (Misse, 2006)
e as dinâmicas históricas do tráfico de mercadorias ilegais e seus
arranjos nas periferias de Fortaleza, Ceará, nas duas últimas
décadas.
2. Transformações do mercado varejista de drogas ilegais e a
dinâmicas criminais em Fortaleza, Ceará, no início do século
Fenômeno pouco explorado ou tratado de maneira tangencial
nas tentativas de compreensão das dinâmicas contemporâneas
do crime em Fortaleza, Ceará, o comércio de mercadorias ilegais
nas periferias da capital e suas transformações ocupam um lu-
gar decisivo nas análises das condições econômicas, políticas e
sociais que tornaram possível a feição do nosso atual arranjo
criminal.
5 Buscando preservar a integridade física dos nossos interlocutores, os nomes dos sujei-tos, bairros e territórios que aparecem no texto foram substituídos por termos fictícios. 6 O registro etnográfico em contextos urbanos nos permite aprofundar experiências de organização, redes e interações sociais capazes de qualificarem o entendimento de ques-tões pouco capturadas em olhares “panorâmicos” (Diógenes, 2020).
7 As entrevistas semiestruturadas foram caracterizadas como situações permeadas por
momentos de apresentações formais, horários previamente acordados e aplicações de
enquetes semiestruturadas.
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A presença da produção da cannabis teria sido identificada em
cidades baianas e pernambucanas pelo inglês Richard Burton ainda no século XIX (Fraga, 2015). Nos anos 1930, como aponta
Fraga (2015):
[...] Jarbas Pernambucano, estudioso de questões sociais en-
volvendo o uso da maconha, revela a presença de plantios para fins de abastecimento dos incipientes mercados de Sal-vador e Recife, [...]. Nos anos 1950, em seu livro O Homem do
Vale do São Francisco, Donald Pierson descreve situações de
uso coletivo da maconha e de plantio em, pelo menos, cinco
localidades. (Fraga, 2015, p. 17).
Com presença significativa nos estados do Nordeste, a produção
da região do Polígono da Maconha8 teria sido responsável pelo
abastecimento de cerca de 40% da população brasileira entre
os anos 1980 e 1990 (Fraga, 2015), revelando traços da preo-cupação das autoridades nordestinas com o tráfico, consumo e
produção daquela droga nessa região do país. Historicamente abastecido pela droga que afluía das cidades do Polígono, o tráfico varejista das periferias de Fortaleza foi carac-
terizado durante anos pela oferta da cannabis do tipo “solta”9,
facilmente encontrada nas “bocadas” da cidade até o início dos anos 2000. Traficante varejista há cerca de 30 anos, Antônio
aponta que naquele momento:
8 O “Polígono da Maconha” abrange cidades localizadas nas divisas dos estados nor-destinos de Alagoas, Bahia, Pernambuco e Sergipe (Fraga, 2006) e o número de cidades
associadas à região varia de acordo com o órgão que o circunscreve e contabiliza.
9 A cannabis que era amplamente vendida nas periferias de Fortaleza passou a ser cha-
mada de “solto” a partir do processo de penetração de sua apresentação “prensada” nas “bocadas” da cidade. Nesse momento, a droga passa por um processo de ressignificação
entre os usuários locais, sendo associada a narrativas que articulam um conhecimento
sobre a composição de produtos que “vem da natureza” (o “natural”) e uma dietética e
cuidado de si (Foucault, 2003).
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[...] só tinha o “solto” pra vender. As “bocada” tudin só ven-
dia o “solto”. Podia ir em qualquer canto que tu não encon-
trava outra coisa! Aqui em casa a galera só vendia o “solto”.
A primeira “bala” (apresentação comercial do produto) que
eu vendi foi do “solto”. A galera pegava muito lá no trilho do Pio XII (bairro vizinho) com um cara lá que sempre tinha
de muita quantidade. Às vezes alguém ia atrás de pegar em
outros cantos, mas só quando era de quantidade. “Parada”
pequena, essas de vender todo dia a gente ia lá no cara do trilho mesmo. Até porque era diferente de hoje. Naquele
tempo a gente num tinha dinheiro pra nada macho! A galera
“gerava” 50 reais aqui num dia, amanhecia e ia lá pegar uma
“parada” de 50. Chegava aqui “desdobrava” esses 50 reais
em 100 “balinha” de 01 real. E assim a gente ia tirando o “de comer”. [...] (Antônio, 45 anos, traficante varejista, morador
de Pontamar).
O “solto” e suas “balas”, que marcaram durante muito tempo o
mercado de drogas ilegais nas periferias de Fortaleza, conec-
tam-se às experiências que caracterizaram: “estilos de uso” e
consumo de drogas (Zaluar, 2004); rotas regionais de circulação de mercadorias ilegais no Nordeste do país; e, para os objetivos
do nosso trabalho, um período no qual a economia predatória (Bourgois, 2010) em torno do tráfico nas periferias cearenses
não permitia, como apontam nossos interlocutores, o acúmulo de ganhos econômicos e políticos significativos, quando compa-
rados àqueles das próximas décadas10. O mercado do tráfico de drogas ilegais nas periferias de Forta-
leza passou por profundas transformações no início dos anos 2000, quando se desencadeou um processo de diversificação da
oferta dos produtos que circulavam nos bairros populares da ca-pital. No início dessa década a cocaína, de comércio antes restri-
to a determinadas áreas da cidade, o crack e a cannabis do tipo
10 Os comprimidos mais consumidos na década de 1990 nas periferias de Fortaleza,
segundo os interlocutores, eram a Artane e o Rupinol, localmente conhecidos, respecti-
vamente, como “aranha” e “ripinol”.
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“prensado”, apelidada em Fortaleza de “paraguaia”11 em alusão
ao suposto país de produção do novo produto, criaram as condi-ções de possibilidades para a mudança do perfil econômico dos traficantes varejistas da cidade, processo decisivo para o arranjo
criminal de tipo organizado que se capilariza nos territórios da
capital em meados de 2014. Explorando as mudanças associa-
das à penetração dessas drogas em Pontamar, Pedro, sobrinho
de um renomado varejista da comunidade, considera que:
[...] Na hora que estourou (chegou) o pó (cocaína) e a pedra
(crack) aqui nas áreas a galera melhorou tudin de vida! Tu
tinha que ver! A gente mermo que era envolvido não ga-
nhava muito dinheiro. Quando começou a rolar o dinheiro
a galera viu que dava certo e todo mundo se envolveu. O tio
no tempo mandou ajeitar logo a casa da vó e comprou um
monte de “barraco” (termo utilizado para referir-se a mo-
radia) aqui nas área. Macho, acho que hoje ele tem mais de
40 barraco aí na favela, tudo alugado. Os cara hoje tudo tem
suas casa boa, toda equipada. Tem carro e moto na garagem,
tudo na moral. Tá vendo aquele mercadinho ali!? É da minha
tia! A grana começou a rolar foi nessa hora. Aí que as coisa começaram a mudar de verdade. (Pedro, 42 anos, traficante
varejista, morador de Pontamar).
Conectado às rotas internacionais do tráfico de drogas ilegais,
residual ou não (Thoumi, 2014; Bourgois, 2010)12, e atendendo
as expectativas de altos lucros dos atacadistas e as demandas
por ganhos imediatos dos varejistas locais, o “solto” some das
11 Fraga (2006) aponta que “A maconha paraguaia entra no Brasil pelo Mato Grosso do Sul, pela cidade fronteiriça de Ponta Porã e por Dourados, proveniente de Pedro Juan Caballero
e Capitán Bado. Proporção considerável de maconha que ingressa no país vem pelo Rio
Paraná, cuja boa navegação (e corrupção) facilita a entrada” (Fraga, 2006, p. 101).
12 Thoumi (2014) considera que durante os anos 1990 a demanda mundial por mer-cadorias ilegais passou por transformações significativas, sobretudo devido à satura-
ção do mercado norte-americano, levando os produtores de drogas sul-americanos à
exploração de novos mercados consumidores e rotas alternativas para o escoamento
dos produtos.
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“bocadas” da cidade e em seu lugar passam a ser comercializa-
dos produtos que revelavam não apenas novas apresentações, cheiros e gostos, mas também uma rota do tráfico de mercado-
rias ilegais que se estabelece na região nesse período e, que mais
tarde, estimulará a tessitura de novas maneiras de fazer o crime
em Fortaleza. A identificação desse processo de diversificação da oferta de
drogas ilegais nas periferias de Fortaleza no início dos anos 2000
nos permite, inicialmente, observar que a atuação de redes cri-
minais no estado antecede o ano de 2014, quando uma série de
eventos espetaculares chama atenção da população local para o
“problema das facções” em nossa cidade13. O delegado da Polícia
Civil do Ceará, Francisco de Araújo Crisóstomo, considera que os
primeiros sinais de que o “crime organizado” atuava no Ceará
despontaram ainda em 1986, quando ocorreu um assalto a uma
joalheria em Fortaleza e um corretor de imóveis foi sequestrado
e assassinado14. Naquele momento essas ações foram associa-
das ao Comando Vermelho (CV), coletivo criminal originado no sistema penitenciário fluminense na década de 1970 (Ramalho,
1979; Coelho, 1987).
A atuação histórica desses sujeitos na conformação de um novo
mercado de drogas e em outras atividades ilegais no estado no
início dos anos 2000 nos permite um deslocamento interpreta-tivo capaz de redimensionar análises espetaculares e superfi-
ciais sobre esse fenômeno. Mais do que “inserções iniciais” ou
13 Ver “Crime organizado: um problema nacional que aflige o Ceará”. Disponível em
http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/policia/crime-organizado-um--problema-nacional-queaflige-o-ceara-1.1878935. Acesso em: 10 mai. 2021.14 Nos anos 1990, uma das mais icônicas lideranças do Comando Vermelho, Fernandi-
nho Beira-Mar, teria estado em Fortaleza para articular a inclusão do estado nas lucra-tivas rotas nacionais e internacionais do comércio de mercadorias ilegais. Ver “Guerra entre facção local e Comando Vermelho é motivada pelo tráfico”. Disponível em: http://
diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/policia/guerra-entre-faccao-local-e--comando-vermelho-e-motivada-pelo-trafico-1.1886687. Acesso em: 10 mai. 2021.
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“atividades inaugurais”, a visibilidade dos coletivos em terras
cearenses a partir de 2014 aponta para processos que tornaram
necessários a penetração desses coletivos, que agiam de ma-
neira duradoura no estado há algumas décadas15, nos bairros e
territórios da periferia de Fortaleza. Trata-se, nessa perspectiva,
de uma mudança nas formas de ação desses coletivos no esta-do, que a partir da centralidade das atividades ligadas ao tráfico
de drogas ilegais passa a penetrar os bairros pobres da cidade
e estimular o engajamento de jovens em atividades ligadas ao “crime negócio” (Zaluar, 2004). Através de uma série de confli-
tos que marcaram a última década em Fortaleza e cidades do in-
terior do estado, as facções criminais se capilarizam nos bairros
pobres da capital, imprimindo uma nova feição ao crime e à vida
nesses espaços. Se, por um lado, a identificação da diversificação do mercado de
drogas ilegais revela mudanças nas formas e lógicas de atuação
das redes criminais que atuam em Fortaleza, por outro, nos per-mite identificar a centralidade dessas atividades na mudança do perfil econômico, social e político dos sujeitos ligados ao tráfico
nas periferias da capital16. O novo e lucrativo mercado das dro-
gas alterou, juntamente com os hábitos e estilos de consumo dos usuários locais, os ganhos econômicos dos traficantes varejistas
que atuavam nos bairros pobres das periferias cearenses. Com a popularização do tráfico do crack, cocaína e, em menor escala,
cannabis do tipo prensada nas “bocadas” de Fortaleza, inicia-se
um processo de acumulação econômica que nas próximas dé-
15 A hipótese da intensificação da inserção do Ceará nas rotas internacionais do tráfico
de drogas a partir da década de 1990 está associada, em termos infraestrutural e logís-tico: à inauguração do novo Terminal de Passageiros (TPS) do Aeroporto Internacional
Pinto Martins em Fortaleza, em 07 de fevereiro de 1998; à instalação do terminal por-
tuário do Porto do Pecém na região metropolitana de Fortaleza, em março de 2002; e à
inauguração de um novo Terminal de Logística de Carga (TECA) em julho de 2009 no
aeroporto internacional do estado. 16 Situação corroborada pelos dados para o Ceará do “Relatório da Comissão Parlamen-tar de Inquérito destinada a investigar o avanço e a impunidade do narcotráfico”, Câmara dos Deputados, Brasília, 2000.
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cadas vai garantir, à custa de inúmeras perdas17, o acesso des-
ses sujeitos a bens de consumo, como casas, veículos e armas de
fogo, e posições políticas centrais no arranjo criminal que se de-senvolve de maneira gradual nas franjas da cidade. Nessa pers-
pectiva, uma década de atuação no renovado, lucrativo e arrisca-
do comércio varejista de drogas ilegais das periferias cearenses
permitiu aos grupos localmente enraizados acumularem meios
materiais e simbólicos que os capacitaram a participar de ma-
neira ativa das dinâmicas contemporâneas do crime na cidade.
As pistas sociológicas que emergem da análise das transforma-
ções do mercado varejista de drogas ilegais nas periferias nos
permitem, fugindo das análises de eventos espetaculares, por um lado, identificar as distintas fases de atuação das redes cri-
minais em terras cearenses, que necessita de uma maior capi-
laridade em sua etapa de desenvolvimento atual, e, por outro, compreender a importância do tráfico de drogas ilegais, sobre-
tudo a cocaína e o crack, nos processos associados a novas ma-
neiras de fazer o crime em Fortaleza. No rastro dessa narrativa, corroborada por nossos interlocuto-
res, os processos que tornaram possível o arranjo da cena cri-
minal cearense que ganha visibilidade através de uma série de
eventos a partir de 2014 associam-se a processos econômicos,
políticos e sociais que se desenvolvem no estado desde pelo menos o início dos anos 2000. A diversificação e ampliação da
oferta de drogas ilegais, a conformação de públicos consumido-
res assíduos e as altas cifras associadas a esse comércio permi-tiram a acumulação de bens materiais, consideração (Sá, 2010) e armas de fogo pelos traficantes varejistas das comunidades de
Fortaleza, estimulando as condições de possibilidades para que
17 O Mapa da Violência aponta que as taxas de homicídios contra crianças e adolescen-
tes (01 e 19 anos) em Fortaleza apresentaram na década passada dados alarmantes,
passando de 23,5 homicídios para cada 100 mil habitantes em 2012 para 267,7 em 2013. Disponível em: http://flacso.org.br/?publication=relatorio-violencia-letal-contra-as-
-criancas-e-adolescentes-do-brasil. Acesso em: 08 fev. 2021.
Clodomir Cordeiro de Matos Júnior; João Pedro de Santiago Neto; Artur de Freitas Pires
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mais tarde esses atores assumissem posições de liderança e con-
trole na estrutura hierárquica das redes criminais que conectam o estado às rotas do tráfico de mercadorias ilegais18.
3. Capilaridade das facções criminais nas periferias de
Fortaleza e dinâmicas do mercado de drogas ilegais após 2014 Entre o final da década de 1990 e o início do presente século as
gangues, atreladas às galeras dos bailes funk e seus respectivos ter-ritórios (Diógenes, 1998), entraram em um processo de decadência
como um dos catalizadores da juventude periférica fortalezense.
Uma parcela significativa desses jovens passou a compor, principal-
mente em posições de baixa hierarquia, a massa necessária para mover o lucrativo tráfico de drogas que ganhava uma nova forma
no início dos anos 200019. Em um contexto em que armas e drogas
(especialmente a cocaína, o crack e a cannabis “prensada”) tornam-
-se acessíveis à realidade das favelas de Fortaleza, muitos dos mem-
bros das gangues de bairro passaram a integrar as atividades vare-
jistas do comércio de mercadorias ilegais, estimulados pelos lucros materiais e simbólicos que o tráfico de drogas prometia. Incorporando muitos dos membros das antigas gangues, as qua-drilhas fragmentadas de traficantes varejistas de drogas, local-
mente enraizadas, conservaram e reatualizaram, de maneira
bem mais letal, as rixas históricas e demarcações territoriais das
gangues dos anos 1980 e 1990. Com o processo de capilaridade
das facções nas periferias de Fortaleza a partir de meados da década passada, a figuração fragmentada das quadrilhas de tra-
18 Cerca de uma década após a chegada do “prensado paraguaio”, no início de 2011, a
cannabis de tipo híbrida, nacionalmente conhecida como skunk, passou a ser comercia-
lizada com sucesso nas “bocadas” de Fortaleza e demais cidades do estado, revelando novas rotas e conexões do tráfico em Fortaleza.
19 Outros grupos ganham notoriedade nesse momento como articuladores dos jovens das periferias de Fortaleza, especialmente as turmas de pichadores (Santiago, 2011) e as
torcidas organizadas (Ribeiro, 2010).
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ficantes dos bairros populares da cidade cede gradualmente lu-gar, não sem conflitos, a um cenário no qual diversos grupos são
incorporados a uma mesma facção, relativizando pertencimen-
tos e alianças historicamente construídas. Para Paiva (2019), a passagem de uma figuração em que predominavam quadrilhas
criminais para um contexto no qual o crime faccionado passa
a ganhar destaque e centralidade aponta para transformações significativas nas maneiras de fazer o crime na última década na
capital cearense. Diante de uma cena criminal que coloca em destaque um pro-
cesso de acumulação social da violência (Misse, 2011) e sujeitos
conectados às redes criminais que atuam em Fortaleza20, pre-
tendemos explorar a partir desse momento as percepções de traficantes varejistas e usuários acerca dos impactos da atuação
das facções sobre as dinâmicas do mercado de drogas ilegais nas
periferias da capital.
3.1 Periferias, “guerras” entre quadrilhas fragmentadas e
tráfico de drogas
O início do século nas periferias de Fortaleza foi marcado por
uma cena criminal fragmentada, no qual as quadrilhas de tra-ficantes varejistas de drogas buscavam, por meio de inúmeros conflitos, ter acesso às altas cifras que passaram a permear o
comércio do “pó” (cocaína) e da “pedra” (crack) na capital ce-
arense. As disputas recorrentes pelo controle dos territórios do tráfico, como apontam nossos interlocutores, marcaram de
maneira sensível as dinâmicas do mercado de drogas ilegais nas
periferias de Fortaleza nesse período, estimulando a produção
de fronteiras materiais e simbólicas que separavam as ruas e co-
munidades dos bairros populares da cidade.
20 As principais redes criminais que atuam em Fortaleza são: a facção local Guardiões do Estado (GDE), a facção fluminense do Comando Vermelho (CV), a facção paulista do Primeiro Comando da Capital (PCC) e a facção do estado do Amazonas, Família do Norte (FDN).
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As “guerras” entre quadrilhas de varejistas localmente enraiza-das pelos territórios do tráfico ganharam vários contornos nas
narrativas dos moradores dos bairros onde realizamos nossas
pesquisas, chegando a durar cerca de uma década entre os tra-ficantes que atuavam nos conjuntos Getúlio Vargas e Carlos Ma-
galhães. Pango, “patrão” de um dos territórios do aglomerado
de comunidades do Jardim das Camélias, zona sul de Fortaleza,
aponta que a “guerra” entre as quadrilhas teria se iniciado devi-
do à luta pelo “trono” e pela “grana que começava a rolar solta”. Naquele momento todos os olhos se voltavam para Garrincha, traficante folclórico de um dos microterritórios do conjunto Ge-túlio Vargas que no início dos anos 2000 tornou-se uma figura
central no comércio de drogas e armas na cidade. Para Pango, a desenvoltura de Garrincha no exercício das práti-
cas criminais o permitiu expandir rapidamente seus negócios e
“[...] empregar em casa, comprou muita casa, em carro. Começou
a mandar em todo canto. Todo bairro tinha gente trabalhando
pra ele. As periferias quase tudinha do Ceará tinha gente traba-lhando pra ele”. Destacando-se como um dos principais trafican-tes de cocaína da capital, o traficante ganhou reconhecimento
e popularidade, inclusive em círculos policiais, como “um dos maiores traficantes do Ceará”. Sempre “fortalecendo” sua rede
familiar, especialmente irmãos e sobrinhos, o varejista galgou
gradualmente posições de prestígio nas relações sociais do
mundo do crime (Ramalho, 1977), tendo passado por diversas
instituições penais do estado ao longo de sua carreira criminal21. Em meio à centralidade e protagonismo da figura de Garrincha no bairro Jardim das Camélias, jovens traficantes de Carlos Ma-
21 A última prisão de Garrincha foi efetuada pela Polícia Federal em meados de 2012, quando transitava pela rodovia BR-116, próximo ao aeroporto de Fortaleza. Na opor-tunidade, o traficante foi preso ao recepcionar uma “mula” (pessoa que realiza o trans-porte da droga) que trazia cocaína de Manaus. Em dezembro do mesmo ano Garrincha conseguiu um habeas corpus do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e passou a responder
ao processo em liberdade.
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galhães, conjunto habitacional que também compõe o bairro,
recusaram-se a trabalhar para o “patrão” que dominava o terri-tório, alimentando um clima de conflitos que perdurou por uma
década. Liderados por Cassaco, então um jovem de pouco mais de 20 anos, os varejistas da comunidade passaram a intensificar suas atividades ilegais com vistas ao enfrentamento contra Gar-
rincha. “Trepados” (portando armas), os integrantes da quadri-
lha de Cassaco mataram três dos principais integrantes da qua-drilha de Garrincha, abalando a imagem de invulnerabilidade
do grupo e inaugurando um período de “guerra”, marcado por
ciclos de vinganças e revanchismos22. Durante os anos de “guerra” entre as quadrilhas fragmentadas, parte considerável da família de Garrincha, que vivia há décadas no conjunto Getúlio Vargas, e muitos integrantes da quadrilha
de Cassaco foram mortos, alimentando um clima de tensões e
inseguranças não apenas entre os moradores desses territórios,
mas também entre os varejistas de drogas ilegais que atuavam
nas periferias de Fortaleza23.
3.2 Facções, gestão das periferias e tráfico de drogas ilegais
Com o processo de penetração e atuação capilar das chamadas
“facções” nas periferias de Fortaleza a partir de meados da dé-cada passada, significativamente a partir de 2014, as quadrilhas fragmentadas de traficantes varejistas dos bairros da capital deram lugar, não sem conflitos, a um arranjo criminal em que
22 De acordo com Freitas (2010), essa “guerra” entre as quadrilhas da comunidade do Getúlio e de Magalhães, em diferentes momentos, alterou rotas de ônibus, suspendeu
aulas escolares e cancelou as tradicionais festas juninas entre os anos de 2005 e 2008.
23 No dia 22 de dezembro de 2012, duas semanas após conseguir um habeas corpus do STJ,
Garrincha foi executado a tiros de fuzil no quilômetro 152 da BR-116, em Russas, interior do
Ceará. Sua morte foi amplamente noticiada nos veículos de comunicação do estado e ganhou
repercussão por diversos dias nos programas policialescos, tamanha a dimensão de sua traje-
tória e lugar simbólico que ocupava no mundo do crime da capital cearense.
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passam a integrar uma mesma rede24. Nesse momento, um com-
plexo processo de rearranjo das relações e equilíbrios de pode-
res ganha forma em torno da superação, mesmo que aparente,
de desavenças históricas e “furos pesados” (erros graves) que
envolvem os moradores das comunidades da capital. Em meio
a uma nova gestão das periferias e dos mercados ilegais, media-
dos pela instauração de dispositivos tais como os “debates” (Hi-
rata, 201025; Feltran, 2010, 2012), o tráfico varejista local passa,
como apontam nossos interlocutores, a viver uma nova fase.
Em Pontamar, comunidade do bairro da Proteção, a penetração das facções e sua atuação na gestão dos conflitos locais foram apreciadas pelos varejistas locais como momentos significativos para mudanças na forma como as atividades do tráfico de drogas
ilegais eram experimentadas. Quando comparadas a períodos nos quais os conflitos e ciclos de vinganças entre as quadrilhas
fragmentadas eram rotineiros e persistentes, as representações acerca das dinâmicas do tráfico passam, sobretudo a partir de 2014, por transformações sensíveis. Para Pedro, traficante vare-
jista há duas décadas em Pontamar, a chegada das facções:
[...] mudou muita coisa! Naquele tempo (tempo das quadri-
lhas) a qualquer hora pudia chegar uns cara lá do outro lado
(referência a localização geográfica de uma quadrilha rival)
e querer tomar a “boca” da gente. O cara não tinha segurança
24 Nesse momento, moradores dos bairros populares de Fortaleza e veículos de comuni-
cação passaram a destacar a tessitura de “tréguas” e “acordos” que comporiam um perío-do de “pacificação” das comunidades e territórios do tráfico na capital. Ver em: “Facções em trégua: uma paz às avessas na capital”. Disponível em: https://www20.opovo.com.
br/app/opovo/cotidiano/2016/04/21/noticiasjornalcotidiano,3606170/membrosde-faccoessaopresosapospacificacao.shtml. Acesso em: 15 mar. 2018.25 De acordo com Hirata (2010), “os debates parecem ser um mecanismo que se dirige
regulando a lógica da vingança e seu ciclo perverso de mortes, ou seja, uma tentativa de
conduzir a decisão de uma maneira que não se permita que o efeito de auto-alimentação
de mortes se realize de forma arbitrária” (Hirata, 2010, p. 302). Para o autor, os debates,
ainda que com suas contradições e caráter extralegal, parece ser uma “recusa dos cami-
nhos que conduzem à morte, portanto uma forma de defesa da vida” (Hirata, 2010, p. 305).
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de nada, era só nós aqui mermo. Nós mermo passamo uma
“cara” (muito tempo) em guerra com um monte de gente.
Era ódio de morte! Eu mermo participei duns atentado e vi vários dos “pivetes” (jovens) aqui das áreas morrer. Num
dava nem pra vender a droga direito na rua! Toda hora o cara
tinha que tá ligado na polícia e nos “pilantra” (membros de
quadrilhas rivais) que podia querer tomar a “boca”. Agora
(depois da chegada das facções) a galera do bairro tá tudo
unida! Os cara daqui e do outro lado é tudo “3” (referência a facção local GDE). É tudo uma coisa só agora! (Pedro, 42 anos, traficante varejista, morador de Pontamar).
A atuação capilar das facções e suas formas de gestão dos terri-
tórios periféricos estimularam, como apontam nossos interlocu-
tores, um arrefecimento das tensões entre os antigos integran-
tes das quadrilhas e a diminuição do clima de insegurança que virtualmente ameaçava o domínio dos pontos de tráfico da cida-de. Contornando, mesmo que momentaneamente, conflitos his-
tóricos e profundos entre os moradores dos territórios das peri-
ferias de Fortaleza, as facções, através de ameaças, expulsões e
assassinatos, produziram algumas das condições de possibilida-
des para o exercício menos tenso, aos olhos dos interlocutores,
do comércio de mercadorias ilegais nas franjas da capital.
Conectando quadrilhas, muitas vezes do mesmo bairro, envolvi-
das historicamente em ciclos de vinganças e mortes, o perigo do
comércio de mercadorias ilegais parece se deslocar do “pilantra”
da quadrilha, possivelmente agora meu aliado, para o integrante da
facção rival. As ameaças imprevisíveis aos domínios dos territórios do tráfico parecem mais distantes da realidade dos jovens faccio-
nados, na medida em que as relações de “fortalecimento” mútuo
entre os integrantes das facções e um maior acesso a armas de fogo
associam-se à possibilidade de uma manutenção mais duradoura
das “bocadas” de Fortaleza e seus respectivos dividendos. Marqui-nhos, traficante varejista há cerca de 10 anos, pondera que:
[...] o negócio tá tudo loteado, a cidade todinha tá. Do mermo
jeito que tem o responsa pelas áreas, que “dá a letra” (con-
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duz) de como as coisa tem que “andar no certo” tem o resto
da “tropa” (termo para referir-se aos membros localmente
enraizados) que tem que tá na ativa também. Cada um tem
sua “responsa” (responsabilidade)! As “bocas” também, tá tudo loteada. A “boca” do Zé é do Zé, ninguém toma. Se ele fizer tudo de boa e ficar na moral ninguém deixa tomar não. Cada um na sua função. [...] (Marquinhos, 27 anos, traficante
varejista, morador de Pontamar).
A penetração e atuação capilar das facções nas periferias de
Fortaleza, possível por meio da arregimentação massiva dos jo-
vens moradores desses espaços, garantiram aos varejistas locais
direitos e obrigações que, além de mudar a profundidade dos
engajamentos individuais com esses grupos, proporcionaram
uma maior sensação de estabilidade aos sujeitos que ocupam posições privilegiadas nas redes que movimentam o tráfico. O
esquadrinhamento e “loteamento” das “bocas” e territórios da
cidade vinculam-se, sob essa ótica, a um processo que garan-te, por meio da resolução de conflitos que tendem a contornar
as práticas de assassinato, a minimização das tensões entre os
varejistas das periferias, ao mesmo tempo em que alimenta
relações de “fortalecimento” mútuo entre os membros das
facções espalhados pela capital.
Para os consumidores que costumavam frequentar as “bocas”
espalhadas pelas vielas e becos de Pontamar, o momento da pe-
netração capilar das facções nas periferias cearenses foi obser-
vado com muita perspicácia. Frequentador assíduo da “boca” de
Antônio há pelo menos 12 anos, Reginaldo pondera que:
[...] agora ando mais tranquilo lá no Pontamar. Antes eu até
tinha medo da galera mexer comigo ou me “dá um balão”
(enganar) quando eu ia pegar alguma coisa. Mas quando co-
meçaram a falar nesse esquema de facção eu fui na “boca”
e os cara me chamaram e disseram que agora era tudo di-
ferente. Eu pudia andar tranquilo por qualquer dos lados
da ponte (um rio separa duas partes de uma mesma comu-
nidade) que ninguém mais pudia mexer com ninguém não.
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Disseram até que se eu visse ou subesse de alguma coisa eu podia ir falar com eles que eles iam resolver. Deram o “to-
que” (um aviso) que as área tava na “responsa” (responsabi-lidade) do Coelho e que tudo tava de boa. Disse que a galera
pudia vir na favela sem medo. [...] (Reginaldo, 38 anos, usu-
ário de cocaína, frequentador de Pontamar).
Uma cena criminal permeada pel atuação capilar de facções cri-
minais nas periferias de Fortaleza permite não apenas o exer-
cício menos tenso de atividades ilegais e a possível longevida-
de dos domínios territoriais nas franjas da capital, pois, como
apontam os interlocutores da pesquisa, o arrefecimento dos conflitos entre quadrilhas fragmentadas permitiu aos consumi-dores de drogas da cidade frequentar os territórios do tráfico com menos receio e temor. Nesse momento, a possibilidade de
“levar um balão” ou sofrer algum tipo de ameaça à integridade física parece diminuir em meio ao controle exercido pelas fac-
ções e seus representantes sobre os territórios periféricos, seus
sujeitos e atividades ilegais. O arrefecimento dos conflitos interpessoais nos territórios do-
minados pelas facções parece, sob o ponto de vista dos varejis-
tas das periferias e consumidores que frequentam esses espa-
ços, ter atuado de maneira positiva para o desenvolvimento do
comércio de mercadorias ilegais e seus respectivos lucros nos bairros populares de Fortaleza. Sob essa ótica, a capilaridade
dessas redes e sua gestão têm permitido aos varejistas das áre-
as estudadas, a custa de profundos e mortais engajamentos, o
acesso regular a drogas que circulam pelas rotas nacionais e in-
ternacionais dominadas pelos grupos aos quais se conectam; a
capitalização econômica dos sujeitos “envolvidos”, alguns mais,
outros menos, a essas redes; o acesso a armas de fogo, que in-cidem diretamente sobre as dinâmicas de controle e conflitos dos territórios do tráfico; e, como apontado nas últimas linhas, a mitigação de algumas das tensões que envolvem, para trafi-
cantes e usuários, o comércio de drogas ilegais nas periferias de
Fortaleza.
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Considerações FinaisDiante da complexidade da atuação das facções criminais que se espraiam pelas cidades das regiões Nordeste e Norte do país, a partir das análises da atuação desses coletivos ligados ao tráfico
de drogas ilegais nas periferias de Fortaleza, apresentamos ao
longo do texto questões que serão retomadas para o aprofunda-mento e qualificação do debate.A primeira dessas questões refere-se à importância da identifi-
cação e compreensão das sensíveis mudanças pelas quais pas-
sou o mercado de drogas ilegais nas periferias de Fortaleza, Ce-ará, a partir do processo de diversificação da oferta de produtos, especialmente a cocaína e o crack, no início do século. Sob essa
ótica, as análises das transformações do comércio de mercado-
rias ilegais nas periferias da cidade sugerem, fugindo da análise
de eventos espetaculares, que a penetração e atuação de redes
e coletivos criminais na capital cearense se iniciam bem antes de 2014. Na última década o que parece ter mudado foi a lógica
de atuação desses grupos na cidade, iniciando-se uma fase que
necessita de uma penetração profunda e capilar desses sujeitos nos territórios do tráfico e periferias da cidade.
Uma segunda situação estimulante para a compreensão do ar-
ranjo criminal que ganha forma nas periferias de Fortaleza, e ou-tras cidades do Nordeste do país, gira em torno da necessidade
de um olhar mais atento aos processos de acumulação social da
violência (Misse, 2006) que permeiam esses espaços. Em meio
aos altos lucros associados à venda de cocaína e crack nas peri-ferias da cidade, integrantes das quadrilhas de traficantes vare-jistas desses territórios passam a compor as fileiras das facções que se capilarizam, através de inúmeros conflitos, nos bairros populares da capital. Nesse momento, a articulação de uma nova
gestão das periferias e atividades dos mercados ilegais estimu-
lou a transformação, como apontado por nossos interlocutores, das experiências e representações associadas ao tráfico varejis-
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ta de drogas ao estimular a tessitura de uma complexa teia de
ajustamentos morais, éticos e comportamentais.Por fim, a análise das características e mudanças dos mercados
de drogas ilegais que se desenham no início do século nas pe-riferias de Fortaleza revela de maneira significativa o papel e
centralidade dessas atividades para os processos de formação
e reprodução de coletivos criminais no tecido social brasileiro. Desenvolvendo-se mais cedo em alguns lugares, as lucrativas atividades do tráfico de mercadorias ilegais, especialmente com
o comércio da cocaína e do crack nas franjas das cidades, alte-
ram não apenas práticas de consumo de usuários espalhados pelo país, mas também o perfil econômico dos traficantes vare-
jistas das periferias das cidades brasileiras e suas maneiras de
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Recebido em 01/06/2021
Aprovado em 06/12/2021