A Estabilização das Representações
Criminais e Psicotrópicas dos Usuários e

dos Usos da Maconha no Brasil

Ivan Fontes Barbosa*1

Resumo:
Este estudo trata do momento em que uma cruzada médica e jurídica
no Brasil ganhou foro de política pública e acabou por consolidar no imaginário popular brasileiro a criminalização e a desqualificação dos
usuários e dos usos da maconha. Trata-se de um instante no qual ações
sistemáticas (cobertura da imprensa, convênios, campanhas, congres-
sos, publicações, etc.) amparam a cruzada moral promovida pelo dis-curso médico e sanitarista e contribuíram para fixar um conjunto de
práticas voltadas para a tentativa de diagnóstico e, subsequentemen-
te, prevenção e erradicação dessa prática. Os resultados da pesquisa
indicam que o processo de construção sistemática de um imaginário
que migra o uso da maconha do viés medicinal e farmacológico para o criminal e toxicológico tem início nas primeiras décadas do século XX.
Foi somente a partir das décadas de 1930 e 1940 que as imagens que desqualificam os usos e usuários da maconha começam a circular pela
imprensa brasileira com mais força e que ações e campanhas promovi-das pelo Estado brasileiro transformam essa prática em flagelo social.
É a partir daí que tem início uma outra forma de controle, o biopolítico,
sobre os elementos pobres e negros da sociedade brasileira.
Palavras-chave: Maconha. Discurso médico. Empreendimento moral.
Criminalização.

* Prof. Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFPB. E-mail: emivanfontesbar-
bosa@gmail.com

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DOS USUÁRIOS E DOS USOS DA MACONHA NO BRASIL

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The Stabilization of Criminal and Psychotropic
Representations of Marijuana Users and Uses in Brazil

Abstract:
This study deals with the moment when a medical and legal crusade in Brazil
gained public policy forum and ended up consolidating in the Brazilian popu-lar imagination the criminalization and disqualification of marijuana users and
uses. It is an instant where systematic actions (press coverage, agreements, cam-
paigns, congresses, publications, etc.), support the moral crusade promoted by
the medical and health discourse and contribute to establishing a set of practices
aimed at trying to diagnose and, subsequently, prevention and eradication of this
practice. The research results indicate that the process of systematic construc-
tion of an imaginary that migrates the use of marijuana from a medicinal and pharmacological perspective to a criminal and toxicological one, which began in the first decades of the 20th century. It was only in the 1930s and 1940s that images that disqualified the uses and users of marijuana began to circulate more
strongly in the Brazilian press and that actions and campaigns promoted by the
Brazilian state turned this practice into a social scourge. It is from there that ano-
ther form of control over the poor and black elements of Brazilian society begins.
Keywords: Marijuana. Medical discourse. Moral enterprise. Criminalization.

La Estabilización de Las Representaciones Criminales
Y Psicotrópicas de Los Consumidores Y Usos de La

Marihuana en Brasil

Resumen:
Este estudio aborda el momento en que una cruzada médico-legal en Brasil ganó
foro de política pública y terminó por consolidar en el imaginario popular bra-sileño la criminalización y descalificación de los consumidores y usos de la ma-
rihuana. Es un instante en lo cual acciones sistemáticas (cobertura de prensa,
convenios, campañas, congresos, publicaciones, etc.) apoyan la cruzada moral
que impulsa el discurso médico y sanitario y contribuyen a establecer un con-
junto de prácticas encaminadas a intentar diagnosticar y, posteriormente, pre-

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vención y erradicación de esa práctica. Los resultados de la investigación indican
que el proceso de construcción sistemática de un imaginario que migra el uso de
la marihuana desde una perspectiva medicinal y farmacológica a una criminal y toxicológica se inició en las primeras décadas del siglo XX. Recién en las décadas
de 1930 y 1940 comenzaron a circular con más fuerza en la prensa brasileña imágenes que descalificaban los usos y consumidores de marihuana y que las
acciones y campañas impulsadas por el Estado brasileño convirtieron esa prác-tica en un flagelo social. Es a partir de ahí que comienza otra forma de control, el
biopolítico, sobre los elementos pobres y negros de la sociedad brasileña.
Palabras clave: Marihuana. Discurso médico. Empresa moral. Criminalización.

1. Usos e representações sobre a maconha na primeira
metade do século XX

Quais os mecanismos que orquestram e disciplinam a interdição
de determinadas práticas culturais? O que faz um tipo de carne ser objeto de apreço ou interdição e proibição? Como explicar o
fato de que o uso de uma planta em um momento ser associa-
do ao comportamento violento e criminoso e em outro momento
prescrito como medicação? Esses fenômenos sociais traduzem os
dispositivos sociais de construção de uma gramática que orques-
tra as ações das pessoas. Não é na natureza da carne ou da planta,
e dos seus efeitos sensoriais sobre as pessoas, que encontraremos a resposta para as representações sociais que existem e circulam acerca delas. É um axioma da sociologia que todo fato social é ar-
bitrário, está inscrito na história e somente nela é possível enten-
dermos as relações de força que determinaram a emergência de
certas representações incorporadas sobre o mundo social. O sociólogo estadunidense Howard Becker (2008) ilustra a esse
respeito que os rótulos, sociologicamente falando, são sempre
construídos e estabilizados em processos políticos nos quais al-
guns grupos conseguem impor seus pontos de vista como mais
legítimos que outros. O desvio, ou a conduta tida como desvian-
te, não é um rótulo dado e inerente aos atos ou aos indivíduos

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que o praticam; ele é definido ao longo de processos de julga-
mento que envolvem disputas e formas de controle sobre o sig-nificado e imposição de certos hábitos e valores. A estabilidade,
entendida como resultante do processo de consolidação de um
empreendimento moral, é traduzida como um mecanismo em
que determinados valores e imagens sobre determinados fenô-menos são fixados, coercitivamente ou não, no imaginário de
determinada formação social. Ela traduz a hegemonia de certas
representações. Essas podem migrar de uma dimensão positiva
para uma negativa e vice-versa.

O caso da proibição da maconha no Brasil demonstra bem essa e
outras premissas sociológicas. Ao usá-lo para pensarmos as eta-
pas do desenvolvimento de uma regra e de sua prescrição, pode-
mos perceber as dimensões genéricas da imposição de normas
(formais ou informalmente constituídas) e acompanhar o seu mo-
vimento. Esse é presidido pelo modelo que implica a necessidade de identificação dos empreendedores, dos valores, do conheci-
mento produzido acerca do fenômeno interditado, dos interesses
envolvidos e a maneira como se processou a cruzada moral/legal. Os trabalhos de Luiz Mott (1986) e Elisaldo Carlini (1986) de-
monstraram que as imagens acerca do uso da maconha na tran-sição do século XIX para o XX orbitaram de uma finalidade tera-
pêutica a um ingrediente da conduta criminal. Se durante o século
19 no Brasil ela era prescrita para o combate da asma, insônia e catarros até a década de 1930 ela continuou a perfilar nos com-
pêndios médicos e nos catálogos de produtos farmacêuticos. O estudo de Mateus Nunes (2018) sobre a biopolítica do proibi-
cionismo da maconha em Pernambuco faz um inventário sobre
as dimensões terapêuticas dessa planta pulverizada pelos jor-nais até o início da década de 1930 em Recife. Segundo ele, a
maconha possuía diversas dessas propriedades. A composição envolvendo o extrato da planta era receitada para “conservar a
beleza” dos pés, era indicada para harmonização do corpo em

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caso de “vertigem”, tratamento da neurastenia, cura de casos de nervosismo intestinal e também indicada para sífilis. Esse tipo
de uso nesse período também foi constatado no estudo de Jorge Souza (2015, p. 76), que atestou que a maconha também era,
sob a forma de preparações médicas, substância
“de existên-
cia obrigatória nas farmácias”. O levantamento feito por Francisco Alves (2003) sobre as moda-
lidades de uso coletivo da maconha no Brasil na primeira metade do século XX aponta elementos que remontam à construção do
cenário em que se operou a marcha que interditou esse uso. Ao
apresentar a geografia nordestina do uso da diamba, a socio-grafia do consumo (setores populares) e os registros das práticas
de consumo comunal denominadas de grupos de diamba, o autor fornece alguns dos significados dos usos atribuídos pelas práticas
interditadas e ilustra como elas eram vistas naquele momento.

Vê-se no ritual coletivo da diamba um modo de comunica-
ção [...] o que ele comunica [...] é a valorização do comuni-tário em detrimento do individualismo [...] as expectativas
dos participantes dos clubes, quanto aos efeitos da diam-ba, são diversificados: euforia, alegria, disposição para o
trabalho, loquacidade ou estro poético. As agregações ma-
nifestam a polifuncionalidade do uso. Espera delas efeitos diversificados. Alguns ligados ao prazer, outros ligados ao
trabalho. Este é o caso dos pescadores sergipanos descritos
por Dória. Eles buscavam na maconha força para as lides marítimas (Alves, 2003, p. 100).

Mesmo sendo uma prática aceita e tolerada socialmente no Bra-
sil até meados de 1940, de um modo geral, as primeiras imagens
criminais sobre a maconha começam a aparecer, em escala mun-dial, no fim da primeira metade do século XIX. Pode-se apon-tar o estudo experimental feito em 1845 sobre intoxicação por maconha, pelo francês Jean Jacques Moreau (“Haxixe e doença
mental”), como um dos pioneiros desse fenômeno. Nesse traba-lho, assinala o médico sergipano Garcia Moreno [1946](1986), o

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autor buscou perceber a relação entre uso de haxixe e alienação
mental. O resultado conquistado foi o de que os efeitos do cânha-
mo possibilitam ao observador toda a ciência da loucura. Quem sentiu o efeito do haxixe, está lá escrito, já passou pela loucura. No contexto brasileiro, esse processo de estabilização das ima-
gens criminais sobre a maconha ganhou força e a repressão
sobre o seu uso e cultivo alçaram o status de política pública a partir dos fins dos anos de 1930. Foi o início da relação entre
ciência e moral no combate dos problemas brasileiros. Momento inicial de uma cruzada marcada pela edificação de conhecimen-tos e ações que foram criadas para oferecerem subsídios à guer-
ra contra a maconha.

Um dos elementos fundamentais utilizados pelos articuladores
desse processo foi o discurso sanitarista e higienista médico es-truturado por intermédio de um conjunto de estratégias profi-
láticas. A plataforma que orientou essa cruzada no Brasil foi, de um lado, os que afirmavam a ideia que o indivíduo deve exercer
completa responsabilidade pelo que faz e pelo que lhe acontece, não podendo descurar do autocontrole, de sua saúde física e de
seus deveres para com o trabalho e a nação e, de outro, a nada
sutil forma de associar o atraso da sociedade brasileira aos ne-
gros, aos mestiços e aos seus hábitos, que tangiam esses povos
para a incivilidade.

2. Uma sociologia para a proibição do uso da maconha no
BrasilÉ a partir do fim do primeiro quartel do século XX que, no Brasil,
as representações e os discursos acerca da maconha migram do viés farmacológico para o toxicológico e criminal. O uso corri-
queiro por alguns segmentos das classes populares passa a ser
uma variável a mais para pensar as incompatibilidades dos hábi-
tos desses setores ao advento do mundo desenvolvido. A maco-

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nha é um dos bodes expiatórios dessa mudança de coordenada,
sendo amplamente difundida como herança da cultura negra e
geradora de alienação mental e moral e criminalidade.

O processo de mudança das representações (desestabilização)
e construção de novas interdições (estabilização), conforme as instruções teóricas de Howard Becker (2008), parece sempre en-volver os contornos do que ele alcunha de “História natural das
proibições”, trata-se de uma forma de acompanhar o processo de
criação de novas classes de outsiders (interdição de determinadas modalidades de comportamento) a partir da identificação de al-
gumas condições necessárias para que esses processos ocorram.
Um empreendimento moral bem-sucedido tem como pré-requisi-
tos não somente a criação de um novo conjunto de conhecimentos
sobre determinado fenômeno e de correlatas regras, mas a cria-
ção de novas agências, que institucionalizam o empreendimento e permitem, finalmente, a sua estabilização por intermédio da
imposição de condutas por meio da coerção de uma força policial. Gilberto Hochman (1998) indica que o movimento sanitarista
brasileiro possuía uma enorme capacidade de persuasão nas primeiras décadas do século XX. O diagnóstico sobre as condi-
ções de vida e saúde dos brasileiros era trágico e indicava o des-
caso das elites e dos governos para com uma população pobre, doente e abandonada. Ao propalar, em 1912, a constatação de
que o Brasil era um grande sertão e um vasto hospital, a Liga
Pró-Saneamento do Brasil não só contou com o apoio de inú-
meros intelectuais como passou a reivindicar políticas de sane-
amento como instrumento de recuperação e integração do país.
Esse diagnóstico foi acompanhado de palestras e demonstrações
de ações de prevenção e educação higiênica, da apresentação de
estatísticas sobre o quadro sanitário do país, da escrita de livros
e artigos sobre o tema.

A medicina, aliada ao poder público, era fundamental
para operar essa transformação. A ciência, em especial a

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medicina, propiciaria um alívio para intelectuais que até então não enxergavam alternativas para um país que pa-
recia condenado dado sua composição racial (Hochman, 1998, p. 218).

A abordagem de Dominichi Sá (2009) fornece o registro de que os estudos sobre a medicina social, na transição do século XIX para o XX, apresentaram como pressuposto basilar a perspec-
tiva que entendia a medicina não apenas como conhecimento e prática científica relacionada à manutenção da saúde, mas como
discurso sobre a sociedade e programa visando a reforma social. Do mesmo jeito que Nina Rodrigues (2006), no estudo sobre
as coletividades anormais, apontava para a degenerescência da
mestiçagem como causa precípua dos desajustamentos sociais; Rodrigues Dória (1986) e uma plêiade de seguidores associa-vam parte desses desajustamentos mais explicitamente ao uso
da maconha. Constatou-se que a associação da maconha aos ne-gros, aos pobres, aos índios, aos indivíduos de “baixa espécie” e, por conseguinte, à criminalidade, se fez presente nessas falas e
esse pressuposto foi perseguido sistematicamente por todos os
envolvidos nessa cruzada moral. A esse respeito, a nossa hipóte-
se indica que o discurso sobre a maconha perpetuou e reforçou
o argumento que ainda ensejava estar na raça, nos hábitos e no
comportamento das classes populares a chave para entender-
mos nosso atraso. A análise de Jerry Dávila (2006) reforça essa intuição. Para ele, a
eugenia combinava bem com as ideias sobre raça defendidas pe-
las elites brasileiras, que admitiam a inferioridade dos pobres,
não brancos e, ainda assim, buscavam a possibilidade de recu-
perar essa população.

Era uma forma de superar o que eles percebiam ser as deficiências da nação, aplicando uma série de soluções científicas. Tratava-se de um nacionalismo eugênico, que

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congregou médicos, sociólogos, psicólogos, higienistas e an-tropólogos. Essas autoridades científicas procuravam vias em meio às políticas e as instituições públicas para aplicar
suas mãos curativas sobre uma população a quem costuma-
vam encarar com brando desprezo. Eles se agruparam, reu-nindo diversas disciplinas da ciência e regiões geográficas,
para criar programas de saúde pública e educação que se-
riam o campo onde iriam aplicar sua intervenção redentora (2006, p. 32).

Lilia Schwarcz (2002) acrescenta a esse debate que a cruzada
higienista buscou moralizar hábitos, orientar costumes alimen-
tares e higiênicos, dominar o desvio e evitar a degeneração.
Condenam-se casos de perversão sexual assim como disci-
plinam-se as práticas sexuais
. Da sociedade o que esperavam, enquanto guias, era a “passividade absoluta”. Aos médicos, com-petiam planejar reformas urbanas, além de perscrutar e classifi-
car a população entre doentes e sãos.O médico sergipano José Rodrigues da Costa Dória (1859-1938),
nascido na cidade de Propriá, é um dos nomes que mais se des-tacam na contribuição à campanha para a criminalização e asso-ciação do uso do que ele nomeava de “planta da felicidade” aos
setores populares e, principalmente, aos negros. Foi ele o articu-
lador inicial, em termos políticos e teóricos, do processo de cri-minalização da maconha no Brasil (Barbosa, 2019). Seu estudo, publicado em 1915, sobre a cannabis, acabou se tornando uma
referência para pensar os efeitos morais e psicotrópicos nos
debates que marcam a proibição e perseguição dessa planta ao
longo das décadas subsequentes, é considerado por Jorge Souza (2015) a principal referência do proibicionismo da maconha no
Brasil. Foi professor da Faculdade de Medicina da Bahia em um
momento em que ela estava voltada para o estudo da medicina legal com a “Escola Nina Rodrigues”. Como sugere Lilia Schwarcz (2002, p. 208), o “objeto privilegiado não é a doença nem o cri-
me, mas o criminoso”.

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Consoante Marcílio Brandão (2013, p. 706),
Esse médico foi conselheiro municipal de Salvador, deputado e governador de Sergipe (1908-1911), além de professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Pode-se afirmar, portanto, que gozou do prestígio de uma carreira profissional respalda-
da pelo Estado e pela ciência. Assim, não surpreende que suas
ideias tenham sido bem recebidas, ademais o artigo resultante de sua conferência de 1915 expressa a doxa científica segundo
a qual características somáticas separam os seres humanos em
raças, impactam seus comportamentos e atestam uma hierar-
quia de qualidades entre os diferentes grupos raciais.A primeira constatação feita por Rodrigues Dória [1915](1986)

foi a de que o uso dessa planta estava amplamente, e quase que exclusivamente, espalhado nos setores populares. Conforme in-
quérito realizado sobre o uso da maconha, os resultados alcan-
çados apontavam que o uso dessa substância era

(...) muito disseminado entre pessoas de baixa condição, em
sua maioria analfabeta, homens do campo, trabalhadores
rurais, plantadores de arroz, canoeiros, pescadores e tam-
bém nos quartéis, pelos soldados, os quais ainda entre nós são tirados da escória de nossa sociedade (1986, p. 34).

Era no Norte (que naquele momento englobava o nordeste) que o vício era disseminado, “produzindo estragos individuais e
dando por vezes lugar a graves consequências criminosas” (Dó-ria, 1986, p. 34).
Em suas investigações, o autor coligiu informações que revela-vam, em um primeiro momento, um uso ligado às dimensões hedonistas vinculadas à busca pelo prazer, alegria, alucinações. Constatou, também, a existência de usos associados à busca pela
disposição para o trabalho e para vencer o frio (no caso dos pes-cadores), para abrir o apetite, para dormir e com função excitan-
te e afrodisíaca. Consoante o autor:

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[...] sobre os órgãos sexuais parece exercer ação excitadora, que pode levar à grande lubricidade [...] esse efeito se estende às mulheres. O Dr. Alexandre Freitas [...] referiu ter visto uma mulher embriagada pela maconha de tal forma excitada que, no
meio da rua, não mostrando o menor respeito ao pudor e fazen-do exibições, solicitava os transeuntes ao comércio intersexual. As prostitutas, que às vezes se dão ao vício [...] quando fumam
em sociedade, entregam-se ao deboche com furor, e praticam entre elas o tribalismo ou amor lésbico (Dória, 1986, p. 31).

Se os efeitos da maconha sobre a volição e a moralidade passam
a ser elementos fundamentais aventados pelos estudos e pes-quisas realizadas à época, a indicação de sua origem percutia os ecos do racismo científico.

A raça negra, selvagem e ignorante, resistente, mas intempe-
rante, se em determinadas circunstâncias prestou grandes
serviços aos brancos, seus irmãos mais adiantados em civi-
lização, dando-lhes, pelo seu trabalho corporal, fortuna e co-
modidades, estragando o robusto organismo no vício de fu-mar a erva maravilhosa, que, nos êxtases fantásticos, lhe faria rever talvez as areias ardentes e os desertos sem fim de sua
adorada e saudosa pátria, inoculou também o mal nos que o
afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade precio-sa, e lhe sugaram a seiva reconstrutiva (Dória, 1986, p. 37).A atuação de Rodrigues Dória não se resumiu à construção do

conhecimento sobre os usuários da maconha em Sergipe. Ele
apresentou os resultados desse trabalho em um congresso cien-tífico pan-americano realizado em Washington, em 1915, além
de ter publicado diversos livros nos quais a questão da constru-ção teórica e científica da associação entre maconha e crime se faz presente (“O crime: suas causas, seus tratamentos” [1926], “Responsabilidade criminal: seus modificadores” [1929] e “O projeto de código criminal brasileiro” [1936]).
Outro importante precursor desse empreendimento foi o agrô-nomo paulista, ex-diretor geral do Serviço Florestal do Brasil,

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Francisco de Assis Iglesias (1889-1969). A botânica e a agrono-
mia, um capítulo a ser estudado nesse processo, foram elemen-
tos importantes dessa marcha. Ligado ao movimento sanitarista,
era amigo pessoal do Belisário Penna e Artur Neiva. A suposição
de que a maconha era uma planta da loucura e que seu uso tra-
zia graves consequências sociais está presente em seu trabalho intitulado “Sobre o vício da diamba” [1918].

Os fumantes reúnem-se ... colocam-se em torno de uma
mesa e começam a sugar as primeiras baforadas de fumaça
da Cannabis sativa. Depois de alguns minutos, os efeitos co-
meçam a fazer-se sentir. O indivíduo apresenta os olhos ver-
melhos. Os músculos da face se contraem, dando ao rosto expressão de alegria, ou dor; a embriaguez não tarda e com
ela o cortejo dos seus vassalos; o delírio aparece agradá-vel, dando bem-estar, trazendo à mente coisas agradáveis, vai aumentando, até à loucura furiosa que toma diversas
modalidades, segundo o temperamento de cada indivíduo. Uns ficam em estado de cama, em completa prostração; os outros dão para cantar, correr, gritar, outros ficam furiosos,
querem agredir, tornam-se perigosos. Os fumadores, depois
de curtirem a embriaguez, voltam ao estado normal. Isto no
começo do vício. Quando o indivíduo é um diambista habi-
tual, mesmo depois da embriaguez, tem aspecto e modos de idiota; é um homem à margem. O alcoolista, geralmen-
te, não quer ser tido como tal; mas, não faz muita questão
de beber álcool em plena sociedade; mas o diambista não; esconde o seu vício, vai fumar às escondidas, não quer que
saiba, nega-o sempre que é interpelado, a não ser que seja
um diambista inveterado, que idiotismo esteja apontando,
implacavelmente, para o seu miserável vulto: este é o fuma-dor de diamba (Iglésias, 1986, p. 45).

Outra descrição curiosa é a do médico maranhense Achiles Lis-boa, colhida por Iglésias. Em 1918, ele fez o seguinte diagnóstico:
há casos de fenômenos delirantes de violência extrema, com
impulsões criminosas, e de delírios persecutórios, com idéias
melancólicas, conduzindo ao sucídio [...] o abuso da diamba,

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porém, como se dá entre os nossos homens de trabalho que
analizo, deprime consideravelmente as funções nervosas, ao
ponto de levar a um verdadeiro estado de estupidez, no qual
se dissolve para assim dizer a personalidade moral. O indiví-
duo perde o brio, a dignidade, o sentimento de dever, e, inca-paz para todo o trabalho, não busca senão obedecer à tirania do seu vício execrando (Iglésias, 1986, p. 47).
Os remates de suas pesquisas não foram nada simpáticos.
Indicaram que esse vício nocivo ocasiona graves perturba-
ções de saúde e que podem ser traduzidos em alucinações que culminam em “alterações mentais que levam às vezes
ao crime ou ao suicídio”. Diante do quadro traçado, a sua sugestão é a de que “medidas enérgicas de profilaxia devem ser adotadas a fim de evitar as graves consequências da ex-tensão desse perigoso vício” (Iglésias, 1986, p. 51).

O médico sergipano Garcia Moreno [1945](1986, p. 61) mantém
as mesmas suspeitas levantadas por seus contemporâneos. Sem
conseguir dissociar a tese da relação entre maconha e crimina-
lidade, uma vez que vincula ela ao encorajamento a práticas de-
lituosas, suas palavras atestam incertezas acerca dessa associa-
ção. Conforme ele:

[...] sem atingir a gravidade do delírio furioso, como o amok
haxixanos malaios
, o maconhismo aparece na criminalidade
nordestina como causa de homicídios [...] nas investigações que fiz em Sergipe, não conheci caso algum de feitio tão
grave. O que é frequente é a polícia surpreender em furtos e roubos a maloqueiros, sob intoxicação aguda pela maco-nha [...] o sentimento de coragem e exaltação física forne-cido pelo tóxico explica que os malandros recorram a dois
ou três baseados, antes da aventura. Ouvi de comissários
que os chefes dos bandos de ratos cinzentos apelam para a
diamba como meio de eliminar os escrúpulos e a indecisão dos novatos, à pratica criminal. O extenso trabalho sobre a maconha construído pelo médico Décio Parreiras (1958), membro da Academia Nacional de Me-

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dicina e da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes,
alimentou esse processo de transformação do imaginário sobre a maconha ao indicar uma modalidade de crime especificamente
vinculada ao uso da maconha: o homicídio canábico. Segundo ele:

A grande periculosidade no assassinato, pelo indivíduo
lombrado, está na sua instantaneidade; na sua sem ne-
nhuma razão de ser; na ausência absoluta de motivo. Pode
dizer-se que o diambista reage esquizofrenicamente e mata
esquizofrenicamente. É a imprevisibilidade dos delitos, sem a menor discussão anterior, como vimos, recentemente, à noite, num crime cometido em plena Avenida Rio Branco,
por indivíduo, possivelmente, lombrado. É um lampejo epi-
lético ... Na alucinose (sic) canábica, o homicídio é praticado
com os maiores requintes de maldade; com absoluto san-
gue frio; é o gozo lúdico; matam por prazer, O criminoso, frequentemente, não foge; não reage; deixa-se prender e, às vezes, comparece ao enterro da própria vítima, como no caso do “Bola de Neve”, relatado em observação anterior, na capital sergipense (Parreiras, 1958, p. 265).

O médico Pedro Rosado (1958), em estudo apresentado no pri-
meiro Congresso Médico Amazônico em 1939, percutiu suas im-pressões sobre os efeitos do uso, em especial as que remetem à
disposição e apatia para o trabalho.O médico Oscar Barbosa (1958), que desde 1928, quando havia defendido no Rio de Janeiro a tese de doutoramento intitulada “Da prevenção do vício da diamba e de outros vícios sociais de-
gradantes”, havia contribuído para o debate sobre a criminaliza-ção da maconha, assim descreve a expansão do seu uso no Brasil
e os efeitos de seus usos:

O estado do diambanizado é do delírio, na desagregação das ideias, que flutuam sem nexo no cérebro do intoxicado,
tanto no mais circunspecto, como no mais cretino; da
perda da vontade, da incapacidade de refletir, passando

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dos momentos mais alegres aos de tristeza mais profunda, verdadeiro imbecil (Barbosa, 1958, p. 53).
O médico José Lucena é outro que faz coro ao discurso criminal
sobre a maconha que vai tomando corpo nesse momento.

O estudo do vício da maconha e seus malefícios, que já ins-pirou vários trabalhos nacionais como a memória de Rodri-
gues Dória e a tese de Iglésias deve preocupar a quantos no
nordeste brasileiro se interessam por higiene e medicina mental. A dita toxicomania se encontra com efeito relativa-
mente difundida em nosso meio. É corrente deparar entre
os fatos diversos dos jornais com notícias acerca de fuma-dores ou vendedores da planta (Lucena, 1958b, p. 207).

O destino da cruzada moral operada por esse discurso foi a bem-
-sucedida transformação dos usos e dos usuários de maconha
em criminosos, como atestou a construção do Código Criminal
Brasileiro da década de 1940. Foi um momento que encetou um conjunto de campanhas, ainda pouco investigado, rumo à cons-trução dos usos e dos usuários da maconha como flagelo social.
Esse empreendimento foi marcado por um conjunto de ações
organizadas por diversos setores da sociedade civil e política. Segundo Jorge Souza (2015, p. 81) foi na década de 1940 que as
estratégias de controle e repressão ao uso da maconha (e outros psicoativos) pelos órgãos de controle brasileiros “demonstra-ram uma forte atividade e conexão. Foram viagens de inspeção e intercâmbio, reuniões, conferências e produção de textos cien-tíficos que evidenciam o desenvolvimento do proibicionismo
brasileiro”.

Um importante passo desse processo de criminalização do uso da maconha (externamente pressionado pela necessidade de atender às exigências da convenção de Genebra de 1931 e inter-
namente pressionado pelo discurso sobre a maconha produzido

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DOS USUÁRIOS E DOS USOS DA MACONHA NO BRASIL

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no país) é dado com o Decreto n° 780, de 1936. Ele cria a Comis-
são Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE) subordi-nada ao Ministério das Relações Exteriores. De acordo com Jorge Souza (2015, p. 73-74), a criação dessa
comissão – que deve ser compreendida em articulação com a dimensão autoritária do período Vargas – significou a recepção
e consolidação da leitura médica sobre o uso de substâncias
psicoativas na forma do Estado brasileiro encarar o fenômeno e a “constituição de um órgão central dedicado exclusivamente à
problemática do uso de drogas
”.Conforme Jonatas Carvalho (2014, p. 17):

A CNFE, neste sentido, encaixava-se neste processo que procurou canalizar métodos cada vez mais sofisticados com
vistas a aparelhar os governos na condução de políticas que se destinavam à majoração da vida, isto é, à biopolítica. Nos primeiros anos de existência, a CNFE buscou legitimar-se como autoridade máxima na produção de leis, regulamen-tos e normas, na aplicação dos instrumentos fiscalizadores do mercado de importação e exportação de psicoativos,
além de se tornar responsável pela elaboração dos dados
estatísticos encaminhados ao Comitê Central do Ópio [...]
compôs um elemento pedagógico essencial para a internali-
zação do proibicionismo nos anos que viriam.

Dois anos após, como decorrência do trabalho desenvolvido por essa comissão, o Governo Federal baixou o Decreto-lei n° 891 de 1938, em que aprovava a fiscalização de Entorpecentes. O inciso XVI do artigo 1 do referido decreto perfila como entorpecente o
cânhamo — Cannabis sativa — e sua variedade indica (Câ-
nhamo da Índia, Maconha, Diamba, Liamba e outras denomi-
nações vulgares)
. O artigo 2 estabelece a proibição no território nacional do plantio, cultura e colheita e exploração por particula-
res de várias plantas entorpecentes. Já o artigo 29 preconiza a
internação obrigatória ou facultativa dos toxicômanos.

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Em se tratando de Nordeste, grande parte desse esforço foi aqui
realizado, tendo em vista o fato de que essa região era conside-rada a mais afetada. O médico Eleyson Cardoso (1946, p. 05), por exemplo, no preâmbulo do relatório apresentado ao Governo do Estado de Pernambuco, sugere a edificação de uma frente nor-
destina de combate ao uso da maconha, denunciando que todos
os estudos realizados no país e no estrangeiro são acordes em considerá-la como planta alucinatória, exaltadora das paixões e
das tendências, particularmente das criminais.

Naquele mesmo ano, a representação dos usos da maconha em
termos de catástrofe social ganha força. Em 1946, ocorre o
Convênio Interestadual da Maconha (CIM), com representantes
dos estados de Alagoas, Bahia, Sergipe e Pernambuco, e a per-
cepção da maconha como mal a ser combatido passa a ocupar a
sensibilidade da agenda da comissão.

O problema da maconha, tal como está situado, pode pare-
cer um assunto de somenos importância fora dos meios mé-
dicos e policiais especializados. É que o uso desse entorpe-cente ainda se conserva restrito as baixas camadas sociais, e
dentro destas, especialmente aos ladrões especializados em
arrombamento, capitães de areia, marítimos e meretrizes deste mesmo ambiente (CIM, 1946, p. 19).As medidas sugeridas nesse contexto materializam as instru-

ções morais vinculadas ao controle dos hábitos da população.
Eis as suas principais indicações:

destruição das plantações de maconha, limitada a sua pro-dução para fins médicos ou industriais; Medidas jurídicas de
revisão ou interpretação destinadas a consolidar legalmente todos os meios de repressão e profilaxia do maconhismo; in-
clusão nos congressos, semanas ou reuniões sobre psiquiatria, higiene e correlatos do tema repressão e profilaxia das toxi-
comanias, especialmente a produzida pela maconha; Estudo
e vigilância especial nos delinquentes contra a propriedade,
marítimos, prostitutas e presidiários; Criação, nas delegacias,

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de jogos e costumes ou congêneres, de um comissariado para a repressão das toxicomanias; intercâmbio obrigatório entre as C.E.F.E (atas, trabalhos, fichas de viciados, pesquisas); Divul-gação educativa e selecionada dos perigos das toxicomanias;
Internamento e tratamento, pena ou medida de segurança, co-lônias agrícolas para viciados e traficantes (CIM, 1946, p. 18).O prefácio à primeira edição da coletânea de estudos brasileiros

sobre a maconha, escrito pelo presidente da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, o médico sanitarista Roberval Cordeiro de Farias (1958, n.p.), ilustra o processo aqui descrito:
A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, ao
publicar a presente coletânea, tem por objetivo facilitar a di-
vulgação dos estudos sobre a maconha, oriundos de fontes
brasileiras [...] felizmente foi focalizado, ainda em tempo, o
vício da maconha, de modo a ser evitada entre nós a sua
disseminação, não tendo o seu uso conseguido ultrapassar
as classes sociais mais desprotegidas e ignorantes dos seus malefícios. Desde 1943, vêm sendo tomadas, pelo Departa-
mento Nacional de Saúde e pelos Departamentos de Saúde
dos Estados, bem como pelas Comissões Nacional e Estadu-
ais de Fiscalização de Entorpecentes, medidas cada vez mais rigorosas, a fim de evitar o aumento do vício produzido pelo
uso da maconha ou diamba [...] Isto nos traz a convicção de
que o maconhismo não se tornará um problema social entre
nós, se não esmorecermos nas medidas de repressão que vêm sendo exercidas e que será extinto com o mesmo êxito, como o foram as toxicomanias determinadas pela cocaína e
pelo ópio e seus derivados.O prefácio à segunda edição dessa mesma coletânea, escrito pelo

diretor do Serviço Nacional de Educação Sanitária (serviço cria-
do em 1941 e que tinha como atividade principal a divulgação de cartilhas, panfletos e ações voltadas para a educação em saúde) Irabussú Rocha (1958, n.p.), assume ainda um tom mais severo:

Nosso objetivo autorizando a publicação de “MACONHA”
pelo Serviço Nacional de Educação Sanitária é chamar a
atenção dos estudiosos e dos governos para o problema.

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Não é um problema nacional, é um problema mundial. Não é
um problema novo, ele se perde no horizonte do tempo. Mas aí está ele desafiando a nós todos que cuidamos da euge-
nia da raça
. [...] Considerá-lo à margem da lei, como é, com
uma intensa propaganda educativa, é malhar em ferro frio, seus viciados geralmente pertencem a última e mais baixa
escala social, são mesmo analfabetos e sem cultura. Prender os traficantes, é mister ingente e de resultados precários, tão extensa é a rede e a trama dos maconheiros. A publica-
ção deste livro levará ao conhecimento público a degrada-
ção a que se destina a humanidade. Cada leitor tenha em
mente a seriedade da situação e colabore pela persuasão e pela inteligência em benefício dos prisioneiros do vício.
É uma obra de mérito universal. Muitos povos no mundo
desejam a escravização de outros e lançam mão de todos os
recursos para despersonalizar o cidadão: a maconha ou ha-xixe é um deles. Procuremos defender estes infelizes como
defendemos a criança do mal que ameaça sua ignorância.
Procuremos mostrar-lhes que a despersonalização do indi-
víduo é a perda de todos os sentimentos que o nobilita. É a insensibilidade diante da prostituição da esposa ou filha; é
o assassínio frio, por motivo fútil, da mãe querida ou do ir-mão, é o latrocínio sem explicação, é a ameaça permanente à segurança da sociedade. Lutemos! Registrar e refletir sobre o processo de construção da maconha

como um problema público ao longo da história da sociedade
brasileira implica levarmos em consideração, antes de aventar-
mos as estreitas ligações de subordinação da política brasilei-ra às pressões externas, às especificidades de nossa formação e
como alguns elementos desse processo foram eleitos para com-por um conjunto de coordenadas que justificava a estruturação
desigual dessa estrutura social.

A vereda percorrida para entender esse processo de estabiliza-
ção das imagens criminais acerca dos usos e usuários da maco-
nha implicou, teórica e empiricamente falando, reconhecer, até
o momento, o surgimento de novas imagens sobre seus usos, as
dimensões ideológicas envolvidas na composição dessas repre-
sentações, os dispositivos políticos e discursivos constituídos

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para enxertar essas modalidades de controle e subjetivação e, a
partir de agora, as formas pelas quais elas se vulgarizaram.

3. A imprensa e a estabilização das imagens criminais e
psicotrópicas dos usos e usuários da MaconhaConsoante Max Weber (2002, p. 187), uma sociologia que tenha
como programa a imprensa deve investigar as relações de poder criadas pelo fato específico de que a imprensa torna público de-terminados temas e questões. Ela é um excelente indicador para
acompanharmos a sugestão e estabilização de certas represen-
tações sobre determinados fenômenos. Por seu intermédio, po-
demos ir percebendo como foi se dando a dinâmica de constru-
ção e manipulação das representações sobre a maconha que ela ajudava a desfazer ou estabilizar. Edward MacRae (2015) atesta,
nesse sentido, que a imprensa, traduzida nos jornais da época,
revela o impacto do proibicionismo na vida dos membros das
classes subalternas da Bahia e demais regiões do Nordeste.

O ponto de partida dessa cruzada no âmbito da imprensa, con-
forme instrui os alcances de nossos registros, limitados ao
acervo digital dos jornais Folha da Noite (SP), Folha da Manhã
(SP) e Folha de S. Paulo, é a década de 1940. Momento em que
a imprensa começa a pulverizar com uma maior regularidade notícias e manchetes relacionadas às dimensões criminais dos
usos e usuários da maconha. Esse cenário é o mesmo, como já
indicamos, em que as primeiras ações do Estado brasileiro no combate à maconha começam a ganhar materialidade. Os regis-tros coligidos para este trabalho remetem às décadas de 1930, 1940 e 1950.
A primeira informação encontrada acerca da restrição aos usos
dos componentes dessa planta foi na Folha da Manhã, do dia 11
de abril de 1930. Ela remetia a um comunicado do secretário Joaquim Rabello Teixeira, da Secretária de Serviço Sanitário do

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Estado de São Paulo, que informava sobre a proibição, em con-sonância com a lei 2.121 de 1925, das “drogarias venderem es-
pecialidades farmacêuticas ou fórmulas aprovadas tendo por
base o ópio, a coca e a cannabis indica e os seus derivados”
(Editaes, 1930). O primeiro registro encontrado da “guerra” contra a maconha
foi no jornal Folha da Noite, de 11 de junho de 1931. A reporta-gem nomeada de “A guerra aos fumadores de maconha” atesta
esse processo:

A maconha, um entorpecente cujos efeitos podem compa-
rar-se sob certos aspectos ao do ópio, foi sempre usada em
alguns estados do Nordeste, inclusive em Alagoas. Esse uso
é muito antigo, parecendo que foi herdado dos silvícolas pe-
los primeiros colonizadores. Na classe popular, os fumado-
res de maconha são numerosos. O abuso da droga produz alucinações e paraísos artificiais, o ópio e os efeitos sobre a
saúde são deploráveis. Agora, a polícia alagoana está empe-
nhada em uma séria campanha contra os fumadores de ma-conha, que é um produto da flora do Nordeste, abundante
em algumas regiões (Guerra, 1931, n.p.). Já a menção à primeira prisão por comércio de maconha se dá no dia 14 de julho de 1931, em uma matéria intitulada “Um inte-ressante caso de despronuncia”. O episódio remeteu à prisão do

comerciante e manipulador de ervas Dromero de Oliveira, em novembro de 1929, quando esse vendia 417 gramas de cannabis
sativa. Consoante a reportagem (Interessante, 1931, n.p.), ele foi “processado e pronunciado como incurso no parágrafo único do artigo 1º. Do Dec. 4.294 de 1921 que diz: vender, expor à venda
ou ministrar substâncias pelos códigos sanitários”.

Os jornais também estavam monitorando e registrando as movi-
mentações do governo no controle e monitoramento do uso da maconha. Em 20 de novembro de 1946, a Folha da Manhã lança
a seguinte nota:

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Viajando no avião da “Panair Brasil”, chegou hoje de Maceió, o sr. Roberval Cordeiro de Farias, diretor do Serviço Nacio-
nal de Fiscalização da Medicina e presidente da Comissão
Nacional Fiscalização de Entorpecentes. O sr. Cordeiro de
Farias, que esteve também em Aracaju e Salvador, foi ao nordeste a fim de tratar a adoção de medidas repressivas à
plantação de maconha, cujo comércio clandestino tem au-
mentado em grande proporção (Viajantes, 1943, n.p.).

Em 17 de março de 1947, o jornal Folha da Noite, em reportagem intitulada “Ladrões narcotizadores estão agindo em Niterói”, su-
gestiona o suposto poder sedativo da maconha e sua articulação
com práticas de natureza delituosa/criminal:

Narcotizadores estão operando em Niterói e S. Gonçalo, le-vando pânico às famílias residentes nos arredores de am-
bas as cidades [...] aproveitando-se de uma janela aberta,
os ladrões atiraram para o interior da casa um molho de
ervas em combustão. Em poucos instantes a fumarada fez
com que as pessoas adormecessem pesadamente [...] em seguida, de máscaras, os assaltantes fizeram uma limpeza (Ladrões, 1947, n.p.).

Em 23 de abril de 1947, a manchete do Jornal Folha da Manhã (SP), “Primeiros frutos da campanha policial contra viciados”, já
indicava os termos das ações que começavam a alçar o status de
regulares. Conforme os registros:

A delegacia de costumes, conforme noticiamos há dias,
iniciou uma severa campanha contra todos os viciados e vendedores de tóxicos, concentrando suas atenções no co-
mércio clandestino da maconha, esta terrível droga que,
transformada em inocentes cigarros, provoca a morte dos fumantes (Primeiros, 1947, n.p.).

No dia 12 de maio de 1947, a Folha da Noite (SP) estampou uma
reportagem que ocupou o destaque de mais da metade de uma

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folha com título: “Mais um vício terrível ameaça tomar conta da cidade: cuidado com a maconha, é um tóxico perigosíssimo” Se-
gundo suas instruções:

Os mortíferos cigarros entram pelo porto de Santos e são
vendidos a dez cruzeiros cada um. Na gíria dos viciados, são conhecidos como “fininho” e “baseado”. As maiores
plantações estão no sertão de Alagoas. No Nordeste, fu-
mam obedecendo a bizarro ritual. E, muita gente anda por aí baratinado pelo tóxico terrível. Dois médicos abalizados,
dos doutores Pernambucano Filho e Adauto Botelho, já es-
creveram, a respeito da maconha, as seguintes e impressio-
nantes observações que merecem a maior divulgação para
que todos se acautelem contra o vício que anda espalhado
pela cidade. Os efeitos da diamba são o seguinte: tomadas
as primeiras baforadas, o indivíduo apresenta os olhos ver-melhos, os músculos da face contraídos, dando a expressão
estranha ao rosto. A embriaguez vem logo, com o delírio
a princípio agradável, e vai aumentando depois, até uma
grande agitação que toma formas diversas conforme o tem-peramento do indivíduo. Uns ficam em completa prostra-
ção, outros cantam, gritam, correm, tornam-se agressivos e perigosos (Mais, 1947, n.p.).

Em 20 de julho de 1947, a Folha da Manhã publica, na íntegra,
um despacho do chefe do governo federal sobre as instruções em relação à repressão e combate ao uso da maconha.

Ao ministério da Educação para providenciar, através do
Serviço Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, a efeti-
vação de medidas sugeridas pelo seu diretor, devendo co-
ordenar as aludidas medidas com os serviços estaduais de fiscalização de entorpecentes, e com o Departamento Fede-
ral de Segurança Pública, articulando, assim, o combate ao
vício da maconha. Diante deste plano, aprovado pelo presi-dente da República, o combate ao uso do tóxico obedecerá
a duas fases: prevenção e repressão de âmbito nacional. Até
agora, eram feitos pela polícia campanhas esporádicas, de
pouco efeito, porquanto, sendo a maconha produzida no

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Norte, nada se fazia para impedir as plantações clandesti-
nas e seu contrabando para o Sul. Através do plano agora aprovado pelo presidente Dutra, a seção de tóxicos do DFSP
contará com investigadores permanentes, que deverão se
articular com as autoridades policiais do Nordeste, de onde provém e é cultivada a planta de que se extrai a maconha. As
comissões estaduais de entorpecentes, por seu turno, inten-sificarão a sua ação preventiva no sentido de extirpar esse mal social nascente (Atos, 1947, n.p.).

A partir desse processo, as colunas dedicadas a manchetes po-
liciais, comuns aos jornais, reservariam sempre um lugar para divulgar as ações policiais de combate à maconha e reiterar o seu caráter maléfico, moral e fisicamente falando. Tomemos o exemplo do ano de 1948. No dia 09 de janeiro, a coluna “Fatos Policiais” do jornal Folha da Manhã, em nota intitulada “Vendia
cigarros de maconha”, relata a prisão de Orlando Carvalho por estar com cigarros para comercializar (Vendia, 1948, n.p.). Em 08 de agosto a nota “Plantação de maconha interditada” ilustra o
subliminar processo de divulgação dessas novas representações
sobre os usos dessa substância.

Ao que informou o entrevistado, a reportagem, enérgica
campanha contra o comércio de entorpecentes está sendo
movida em Santos, tendo já sendo apreendida quantidade considerável de tóxicos. Fato curioso foi a interdição de
uma plantação de maconha que estava sendo cultivada em
um dos bairros afastados da cidade. Dali, saía a erva para
os viciados que adquiriam por preços elevados (Plantação, 1948, n.p.).

Na década de 1950, se dá a estabilização das imagens criminais sobre os usos da maconha e a figura do traficante e do viciado em maconha começa a perfilar o rol dos criminosos. Os apon-tamentos de notificações dessa natureza deixam de ser espo-
rádicos e passam a ser divulgados de forma mais sistemática. O combate às plantações e os registros de prisão de gente que

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comercializava maconha passam a compor quase que semanal-mente o universo das “notas policiais”. Essas imagens apresen-
tadas sobre os efeitos dos usos da maconha ganham fôlego com reportagens que associavam maconha à criminalidade. No dia 02 de maio de 1955, o jornal Folha da Noite, em nota po-licial, registra o depoimento do delegado Raimundo de Menezes sobre os suspeitos de uma tentativa de assalto: “acredita que to-dos os participantes sejam maconheiros, pois só assim se expli-
ca a fúria com que agiram, atirando em vítimas completamente indefesas, quando não as esfaqueando” (Maconha, 1955, n.p.).
Foi nesse espírito que o Jornal Folha da Manhã publicou uma reportagem intitulada “Maconha: erva do sonho e da morte”, no dia 15 de julho de 1955. No dia 16 de julho de 1955, o jornal Folha da Manhã publica
reportagem sobre a atuação de polícias no combate ao uso de Maconha entre os estudantes. De acordo com a matéria, “logo depois dos primeiros dias de trabalho, foi verificado que a disse-
minação do uso entre os estudantes da capital atingia um nível assustadoramente alarmante. Isto, inclusive, pode explicar em
grande parte o aumento da delinquência juvenil” (Disseminado, 1955, n.p.). No dia 27 de julho de 1955, as notas policiais do jornal Folha
de S. Paulo trazem o registro do depoimento do jovem Jurandir Celestino, de 20 anos, acusado de assassinar uma moça de 23 anos. Conforme as informações fornecidas pelo periódico, “o ho-
micida declarou que quando atacara a moça se encontrava em
estado inconsciente, uma vez que fumara um cigarro com maco-
nha. Por isso, segundo disse, ignorá-la tê-la assassinado”. Naque-
le mesmo dia, outra reportagem, cobrando uma ação conjunta do governo federal e estadual, exige que outras forças sigam o nobre exemplo da imprensa nessa “cruzada redentora” (Ação, 1955, n.p.). Ainda naquele mesmo mês, no dia 29, esse mesmo
periódico continuava a alimentar o imaginário com informações

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que indicavam essa leitura sobre o uso da maconha. Segundo
esse jornal, em reportagem acerca do debate da assembleia so-bre o “problema da maconha, os viciados tornam-se irritadiços, rixentos, brutais, e dessas disposições para o crime não vai mais
que um passo”. Um dado sobre o Jornal Folha da Manhã (09 de agosto de 1955),
que nos ajuda a entender a posição desses órgãos na dissemi-
nação de certos valores para a opinião pública é o relativo a um expediente intitulado “Campanhas da Folha”. Ele se destinava a “formar e desencadear sobre determinados assuntos, opinião pública suficientemente poderosa para forçar o governo a ado-
tar a solução reclamada pelo interesse público”. Dentre as tan-
tas campanhas encetadas pelo jornal, algumas versavam contra
a precária situação das escolas primárias na capital; acerca de violências policiais, destaca-se a destinada contra traficantes de
maconha.

Essas informações, com capacidade de inferência limitada, indi-
cam que o jornal foi coadjuvante no processo de espraiar para o
imaginário social essa escala de valores que alçou e associou a maconha a uma dimensão criminal e toxicológica. Pela prelimi-
nar sondagem operada na imprensa paulista na primeira me-tade do século XIX, foi possível perceber que ela foi estratégica nesse “natural” processo de constituições de certas interdições. Nesse sentido, a aproximação com a década de 1950 tem alimen-
tado a validade da hipótese que sustenta que esse processo foi
multifacetado e não só o discurso médico, o pensamento social,
as políticas públicas e as ações que criminalizaram essas práticas
foram responsáveis pelo bem-sucedido processo de interdição.
A imprensa, como importante vetor de formação da opinião pú-
blica, continuou a alimentar essas representações. Essa suges-tão é corroborada pela recente pesquisa de Jorge Souza (2015,
p. 94) que demonstra como a imprensa baiana, desde o início da década de 1950, “(...) montou uma imagem negativa do usuário

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de maconha com base nos termos do discurso proibicionista, privilegiando exclusivamente aqueles das classes subalternas”.
4. O legado dos contrassensos em torno da proibição dos
usos da maconha

As representações acerca dos usos da maconha não são estáti-
cas e a dinâmica do desenvolvimento dessas imagens está rela-cionada, notadamente, aos respectivos contextos históricos e as
relações entre os grupos em que neles estejam inseridos. Logo, embora os ambientes se modifiquem, a persistência de deter-
minados olhares acerca de certas práticas culturalmente recri-
minadas ou aprovadas é transmitida – ainda que haja um paula-
tino enfraquecimento – de geração para geração, e argumentos
e percepções tidas como legítimas cem anos atrás continuem a
vigorar e a determinar as práticas e atitudes das pessoas no que
tange ao uso e aos usuários dessa substância. Algumas das imagens que ainda sobrevivem em significativa
parcela da população são as tipicamente construídas e/ou refe-
rendadas por um tipo de discurso, preponderantemente médico, característico da primeira metade do século XX. São pressuposi-
ções que migraram as representações farmacológicas dos usos
e usuários dessa planta para o universo dos comportamentos
considerados de ordem patológica e criminosa.

A questão é tão mais relevante quando os estudiosos mais con-sagrados no cânone das ciências sociais brasileiras não deixa-
ram de entrever, nas suas observações sobre o Nordeste brasi-
leiro, um referendar as percepções que implicavam a associação do uso da maconha ao ócio e à vadiagem. É o caso de Gilberto Freyre [1937](2004, p. 41), que em estudo sobre a influência da cana na vida e na paisagem do Nordeste
brasileiro, atesta que o caráter sazonal da plantação da cana-de-

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-açúcar facilitou o desenvolvimento do que ele chama de cultu-
ras úteis. As que se podem chamar de entorpecentes, de gozo, quase de evasão, favoráveis àquele ócio e àquela volutuosidade:
o tabaco para os senhores; a maconha – plantada, nem sempre
clandestinamente perto dos canaviais – para os trabalhadores,
para os negros de cor a cachaça, a aguardente, a branquinha.Em outro momento Gilberto Freyre (2004, p. 176) indica que Ulisses Pernambucano estabeleceu uma contundente crítica à
leitura que pressupunha inferioridade biológica do negro, pro-
curando observar nos problemas de doenças mentais e nervo-sas, o seu aspecto social, os estímulos ou as influências de meios
e condições, vamos dizer, patológicas, de região. De acordo com ele, os pesquisadores do Recife daquele momento buscavam a
faceta social da psiquiatria, que deveria ser encontrada nas con-
dições regionais da vida, o papel predisponente do alcoolismo e da sífilis em certas psicoses, a ação do fetichismo, do baixo espi-
ritismo, da maconha, entre outras.

Outro grande cânone das ciências sociais brasileira, Câmara Cas-cudo [1954] (1998), reitera também a associação comum nesse momento acerca da maconha, ao afirmar que ela é um estimu-lante que dá a impressão de euforia, deixa forte depressão, a lomba, que só desaparece com superalimentação (p. 529). Logo
em seguida a associação não faz referência a seus efeitos, mas a sua relação com a vida delituosa, uma vez que segundo ele “a
[...] maconha é estimulante fumada pela malandragem para criar
coragem e dar leveza ao corpo [...] é mais de predileção dos gatu-nos e vagabundos” (p. 530).
Essas imagens estigmatizadas sobre a maconha indicam a densi-
dade do processo de suas construções ao longo de nossa história.
Elas alimentaram a marcha pela qual a interdição da maconha
foi operada no Brasil. Essa vereda não foi constituída apenas de
ideias e argumentos. Ela foi orquestrada a partir da articulação do
Estado brasileiro e suas políticas operadas ao longo desses anos.

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Conforme Jonatas Carvalho (2014, p. 18), a atuação da CNFE, es-
trategicamente recepcionada e publicizada pela imprensa bra-sileira, até a metade da década de 1970, enquanto engrenagem
capitaneada pelo Estado brasileiro em articulação com diversos
setores da sociedade civil, foi marcada pelo processo amplo de
conversão de diversos enunciados, médicos e eugenistas, em práticas discursivas direcionadas “à gestão da vida”.

Ancorado na racionalidade do estatuto médico-jurídico, a
CNFE construiu um ordenamento que constituía sujeitos criminalizados fixando e sistematizando os limites entre
a mania e a doença. A importância que essa instituição de
caráter governamental tem no estudo da história da crimi-nalização de psicoativos no Brasil é significativa, seja pelo
seu estatuto normalizador, ou pela incumbência de gestão e
governança da sociedade no que dizia respeito a psicoativos (Carvalho, 2014, p. 23).

Com essas anotações, oferecemos alguns elementos para contri-
buir para a compreensão de como as imagens criminais acerca
do uso e dos usuários da maconha foram estabilizadas ao longo das primeiras décadas do século XX. Elas fornecem alguns ele-
mentos que possibilitam a circunscrição da atuação do discur-
so médico, do Estado brasileiro e da imprensa sobre controle, a
partir da produção e estabilização de certas imagens, de deter-
minados comportamentos da população pobre e negra.

O destino dessa cruzada moral foi uma bem-sucedida recepção
da criminalização dos usos e dos usuários de maconha na cons-
trução do código criminal brasileiro da década de 1940. Foi um
momento marcado por uma campanha, ainda pouco investiga-da, rumo à interdição dos usos e dos usuários da maconha. Esse
empreendimento multifacetado foi marcado por um conjunto de
ações organizadas de diversos setores da sociedade política.

Os estudos desenvolvidos no cenário contemporâneo estão ras-treando como a imprensa, a atuação policial e a profilaxia médi-

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DOS USUÁRIOS E DOS USOS DA MACONHA NO BRASIL

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ca concorreram decisivamente para que essas imagens criminais
acerca do uso e dos usuários dessa planta fossem estabilizadas ao longo das décadas de 1950 e 1960. São longos instantes que consagram o êxito do empreendimento moral personificado na figura emblemática do Rodrigues Dória.
Referências

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Disseminado entre estudantes da capital uso de Maconha. Folha da Manhã, São Paulo, p.01. 16 de julho de 1955.
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Guerra aos fumadores de maconha. Folha da Noite, São Paulo, p.01. 11 de ju-
nho de 1931.
Interessante caso de despronúncia. Folha da Manhã, São Paulo, p.10. 14 de
julho de 1931.
Ladrões narcotizadores estão agindo em Niterói. Folha da Noite, São Paulo, p. 24. 17 de março de 1947.
Maconha: erva do sonho e da morte. Folha da Manhã, São Paulo, p.04. 15 de julho de 1955.
MACONHA. Folha da Noite, São Paulo, p.12. 02 de maio de 1955.
Mais um vício terrível ameaça tomar conta da cidade: cuidado com a maconha, é um tóxico perigosíssimo. Folha da Noite, São Paulo, p. 14. 12 de maio de 1947.
Plantação de maconha interditada. Folha da Noite, São Paulo, p. 16. 08 de
agosto de 1949.
Primeiros frutos da campanha policial contra viciados. Folha da Manhã, São Paulo. 23 de abril de 1947.
Viajantes ilustres. Folha da Manhã, São Paulo, p.04. 20 de novembro de 1943.
Vendia cigarros de maconha. Folha da Manhã, São Paulo, p. 03. 09 de janeiro de 1948.

Ivan Fontes Barbosa

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Artigos e livros:

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Botelho, Adauto e Pernambuco, Pedro. O vício da diamba. In: Maconha (cole-tânea de trabalhos brasileiros). Rio de Janeiro, Serviço Nacional de Educação Sanitária, 1958, p. 25-28.Cardoso, Eleyson. Relatório apresentado ao governo do Estado de Pernambu-
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Ivan Fontes Barbosa

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, Nº 55-56, 2002, p. 185-194.
Recebido em 14/06/2021Aprovado em 27/11/2021