A uberização do amor – aplicativos de
encontros em cenário tecnoliberal e

pandêmico

Larissa Pelúcio*1

Resumo:
Neste artigo apresento e discuto de forma ensaísta os impactos do
neoliberalismo conservador nas relações erótico-amorosas media-
das pelos aplicativos móveis para relacionamentos, os efeitos da cri-
se sanitária da Covid-19 na busca por parcerias e como a dimensão
afetivo-sexual encontra paralelos no presente com a esfera do trabalho
precarizado de motoristas e entregadores de aplicativos, a chamada
uberização do trabalho. Inspirada pelas proposições recentes da soci-
óloga Eva Illouz, busco o cruzamento entre capitalismo, afetos e a re-
lação entre sexo e tecnologia como componentes de uma nova forma
de (não) sociabilidade. Assumo que o amor é uma força política que se
encontra colonizada pelos discursos reiteradores do amor romântico.
Um tipo de amor alicerçado na desigualdade de gênero, no individua-
lismo e no consumo de emoções e produtos.
Palavras-chave: Aplicativos para relacionamentos. Uberização. Neoli-
beralismo. Amor romântico. Pandemia Covid-19.

* Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP – Bauru). E-mail: laris-
sa.pelucio@unesp.br. https://orcid.org/0000-0001-6212-3629

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A UBERIZAÇÃO DO AMOR

TOMO. N. 41 JUL./DEZ. | 2022

The uberization of love - dating apps in a
technoliberal and pandemic scenario

Abstract:
In this article I present and discuss in an essayistic way the impacts of
conservative neoliberalism for erotic-love relationships mediated by
mobile apps for relationships, the effects of the health crisis of Covid-19
in the search for partnerships and how the affective-sexual dimension finds parallels in the present with the sphere of precarious work of driv-ers and deliverers of apps, the so-called uberization of work. Inspired by the recent propositions of sociologist Eva Illouz, I seek the intersection
between capitalism, affections, and the relationship between sex and
technology as components of a new form of (non)sociability. I assume
that love is a political force that is colonized by the reiterating discourses
of romantic love. A type of love grounded in gender inequality, individu-
alism, and the consumption of emotions and products.
Keywords: Dating apps. Uberization. Neoliberalism. Romantic love.
Pandemic Covid-19.

La uberización del amor: las aplicaciones de citas en
un escenario tecno-liberal y pandémico

Resumen:
En este artículo presento y discuto de forma ensayística los impactos
del neoliberalismo conservador en las relaciones erótico-amorosas
mediadas por las apps móviles de relaciones, los efectos de la crisis
sanitaria de Covid-19 en la búsqueda de parejas y cómo la dimensión
afectivo-sexual encuentra paralelismos en el presente con la esfera del
trabajo precario de los conductores y repartidores de apps, la llama-
da uberización del trabajo. Inspirado en las recientes propuestas de
la socióloga Eva Illouz, busco la intersección entre el capitalismo, los
afectos y la relación entre el sexo y la tecnología como componentes de
una nueva forma de (no) sociabilidad. Asumo que el amor es una fuer-
za política colonizada por los reiterados discursos del amor romántico.

Larissa Pelúcio

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Daqui a pouco viro, youtuber
Porque tá faltando amor

Com quem faço amor
Parece que tô fazendo uber
(Uberização do Amor - Tutu & Natkym).

Da janela, a rua da Consolação parecia ainda mais decadente.
Pouca gente nas calçadas, lojas com portas de ferro baixadas, su-
jas de tempo e fuligem. As sirenes das ambulâncias mantinham
uma regularidade inquietante, soavam à peste. Os entregadores
montados em motos ou bicicletas pareciam mais solitários que
nunca. São Paulo estava impregnada de abandono. Todo mundo
parecia menos feliz em 20201, um ano de um longo déjà vu distó-pico. Vivíamos o que já tínhamos visto em filmes e séries. Vírus,
anomia, comunicação por meio de telas, teletrabalho, lives, Tin-
der, Ifood, um mundo novo e nada admirável.

[...] no auge da pandemia se observou, sobretudo, uma mu-
dança na paisagem urbana das grandes metrópoles brasi-
leiras. Em suas motos ou bicicletas, com caixas coloridas
penduradas nas costas, eles cruzavam ruas e avenidas para
realizarem suas entregas. Enquanto muitos se protegiam no

1 A partir da análise de 725 questionários disponibilizados online, Alex Primo procu-
rou avaliar como as interações online foram mantidas como forma de enfrentamento
do distanciamento social que inviabilizou os contatos presenciais durante o período de
isolamento social no Brasil devido à pandemia do novo coronavírus. Entre as questões, a
pesquisa procurou avaliar o “nível de felicidade” dos/das respondentes em comparação ao
período que antecedeu a pandemia e o consequente isolamento. À questão “‘De maneira
geral, como você se sente?” foram apresentadas as seguintes alternativas: “Muito triste”; “Triste”; “Nem triste, nem feliz”; “Feliz’; “Muito feliz”. Os resultados revelam um significa-
tivo deslocamento de “Feliz” ou “Nem triste nem feliz” antes do isolamento para uma con-
centração em ‘Nem triste, nem feliz’ e ‘Triste’ durante a pandemia (Primo, 2020, p. 196).

Un tipo de amor basado en la desigualdad de género, el individualismo
y el consumo de emociones y productos.
Palabras clave: Apps para relaciones. Uberización. Neoliberalismo.
Amor romântico. Pandemia Covid-19.

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teletrabalho, os trabalhadores de aplicativo flertavam com o
risco do vírus (Cannas, 2021, p. 209).

Risco esse que teve efeitos menos deletérios nos aplicativos de
busca de parcerias sexuais e amorosas.

A pandemia acarretou um salto no uso de aplicativos pelos
brasileiros entre 30% e 400%, dependendo da região do país, segundo dados da Pew Research. A intensificação das
medidas de isolamento encorajou as pessoas a buscarem
novas formas de se conectar e interagir.

No caso das plataformas de namoro, o cenário não foi di-
ferente. De acordo com o Dating.co, houve um aumento de
82% no namoro online global em março de 2020, quando
as medidas de isolamento entraram em vigor em diversos
países. Um relatório divulgado pelo Match Group – proprie-tário de aplicativos de relacionamento como Tinder, OkCu-
pid e Hinge – revelou que, no terceiro trimestre de 2020, a
companhia registrou 10,8 milhões de usuários pagantes em
seus apps de paquera em todo o mundo, um salto de 12%
em relação ao mesmo período do ano anterior.

Como resultado, a receita total da empresa cresceu 18%, para
US$ 640 milhões. O Inner Circle teve, no início da pandemia, um
aumento médio no número de matches e mensagens enviadas
de 99% e 116%, respectivamente. (Del Carmen, 2021, n.p.).

Naqueles dias, pensar em amor e sexo não era para mim uma
forma de escapismo, mas uma maneira de interrogar esse novo
mundo. O amor erótico é uma emoção capaz de estreitar as mar-
gens entre o subjetivo e o político, o íntimo e o coletivo. Daí meu
interesse de pensar como em meio à pandemia e ao cenário de
crescente precarização da vida, do trabalho e das relações so-
ciais, estamos lidando com nossos afetos. Como produto da cul-
tura, o amor romântico tem sido vivido em um campo de tensões morais, em um cenário social que desafia, ao mesmo tempo que
reforça, as utopias românticas modernas.

Larissa Pelúcio

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O amor e a sexualidade têm sido temas que vêm me seduzindo já
há algum tempo. Entre 2017 e 2019 desenvolvi uma pesquisa etno-gráfica online em três aplicativos para encontros amorosos-sexu-ais, me concentrando em relações heterossexuais a fim de compre-
ender como homens de três gerações diferentes estavam vivendo
experiências amorosas-eróticas em meio às profundas transforma-
ções sociais, culturais, econômicas e políticas pelas quais passamos nos últimos 20 anos no Brasil. Refiro-me às inflexões feministas, à
politização de temáticas identitárias, a uma série de políticas públi-
cas que colocaram em pauta discussões sobre gênero, sexualidade
e raça, além do acesso mais democrático à internet (Pelúcio, 2019).
Naquela imersão pelas redes dispersas do mercado dos afetos, as reflexões sobre masculinidades acabaram por revelar um regime de flexibilidade amorosa que busca referentes em um cenário so-
ciotécnico constituído “em uma era da abundância das escolhas se-
xuais providas pelos aplicativos de relacionamento”. De forma que
usuários e usuárias passaram a ter de “gerir suas escolhas, se dife-
renciar e inovar constantemente, tal como empreendedores em um
mercado de afetos” (Balieiro, 2021, p. 02).

Os aplicativos não criaram as relações ou as “pessoas dos aplica-
tivos”, mas eles passaram a fazer parte de uma vasta rede na qual
as mudanças sociais puderam ser operadas e (re)produzidas.
Entre essas, a emulação entre mundo do trabalho e dos afetos
amorosos e eróticos.

Os aplicativos móveis para fins de relacionamentos amoro-
sos/ sexuais integram um complexo campo no qual a dinâ-
mica da vida contemporânea é pautada pela aceleração do tempo, maior exigência no campo do trabalho e a sua fla-
grante precarização. Some-se a esse cenário um conjunto de
ansiedades que entrelaça esfera pública e privada, tais como
o aumento da violência urbana, as urgências emocionais re-
lativas aos anseios estimulados por diversos discursos que
nos convocam a sermos felizes, saudáveis, aventureiros/as.
Conformando as já muito discutidas transformações na es-
fera íntima da família e do amor romântico (GIDDENS, 1993;

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BAUMAN, 2004; ILLOUZ, 2009) essas demandas coadunam-
-se com as possibilidades emocionais ofertadas pelas novas
tecnologias, pactuando uma estreita relação entre estas e os
sentimentos. (Vasconcelos; Pelúcio, 2020, p. 16).

A comunicação digital respondeu bem a um cenário econômi-
co e social bastante amplo no qual o neoliberalismo se tornou
mais que uma resposta a uma nova crise do capitalismo, mas uma filosofia individualista que estimula a meritocracia, preca-
riza vidas e legitima a fragilização das instituições políticas que
deviam suportar nossa existência coletiva. Dessa forma, o neoli-
beralismo se tornou também um sistema cultural que constitui subjetividades específicas. No neoliberalismo a urgência se con-funde com eficiência.
Inspirada pelas proposições recentes da socióloga Eva Illouz,
busco o cruzamento entre capitalismo, afetos e a relação entre
sexo e tecnologia como componentes de uma nova forma de
(não) sociabilidade. O “não” está colocado entre parênteses para aguçar a reflexão sobre essa sociabilidade constituída pelas in-
certezas, pelos ideais neoliberais de autonomia e autogestão as-sentados em pactos fluídos que tendem a precarizar as relações.
Na primeira parte deste artigo discuto a uberização das relações
e as intersecções entre a dimensão macrossocial (política, social
e econômica) e a micro tessitura dos afetos. Aqui, a linguagem
das plataformas digitais aparece como metáforas arriscadas
para descrever a gestão contemporânea das relações amorosas-
-sexuais. Assumo o risco das metáforas, pois me parece que,
apegadas como estamos a um modelo do amor romântico que
já não responde e corresponde às transformações sociais, cultu-
rais, econômicas, políticas e tecnológicas do presente, precisa-
mos alargar nosso vocabulário descritivo e analítico na busca de
compreensão sobre essa dimensão fundamental da vida.

Fecho o artigo situando o debate nos tempos pandêmicos, as
tecnologias de comunicação no cenário tecnoneoliberal, mos-

Larissa Pelúcio

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trando como os aplicativos se adaptaram ao isolamento social a fim de atender diferentes demandas de consumo, incluindo os
emocionais. Arrisco um paralelismo entre duas formas de cone-
xão aos aplicativos, que chamarei de apps por vezes: a de quem
busca sexo, companhia, romance e dos que buscam sobrevivên-
cia como entregadores de aplicativos.

Não ofereço uma análise otimista do atual cenário amoroso-
-sexual, tampouco aposto em uma leitura obscurantista do pre-
sente e muito menos tecnofóbica. Procuro, sobretudo, provocar reflexões sobre esse novo regime de gestão dos afetos que en-
contra nas tecnologias digitais ferramentas, mas não exatamen-
te soluções para angústias que estão para além dos voluntaris-
mos dos indivíduos. Assumo que o amor é uma força política que
se encontra colonizada pelos discursos reiteradores do amor ro-
mântico. Um tipo de amor alicerçado na desigualdade de gênero,
no individualismo e no consumo de emoções e produtos.

Trata-se de um olhar crítico, em tom ensaístico, para o presente
neoliberal conservador e para seus impactos subjetivos na esfe-
ra que julgamos como a mais íntima: a de nossas escolhas sexu-
ais, emocionais e amorosas.


1. Chama um uber

São Paulo sem trânsito era diferente, mas não mais bonita. Aque-
le vazio estava cheio de desemprego2, de desamparo social e de
precariedades de toda ordem, inclusive emocionais. A pandemia
da Covid-19 e o isolamento social que ela implicou agudizaram
um fenômeno que já vinha crescendo: a uberização do trabalho.
Falemos um pouco sobre esse fato para que a metáfora prometi-
da no título deste artigo possa fazer sentido.

2 No final de 2020, o número de desempregados no Brasil chegou a mais de 14 milhões
(IBGE, 2020).

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Uber é hoje sinônimo de transporte individualizado sob de-
manda. Se deslocar de forma confortável, mais rápida e rela-
tivamente barata é uma tentação para habitantes de cidades
do Sul global, onde o transporte público tende a ser precário, ineficiente, insuficiente e caro. Do lado dos/das prestadoras/
es de serviços, “ser uber” ou “fazer uber” soou em um primei-
ro momento como uma possibilidade de “não ter patrão”, ser
dono do seu próprio tempo, ter liberdade para determinar o
tempo de trabalho e ser “parceiro/a” de uma grande empre-
sa internacional. Acredito que poucas pessoas que aderiram à
plataforma pensaram, em um primeiro momento, que iriam se
transformar em proletários digitais sem direitos trabalhistas
e trabalhando, no século XXI, o mesmo número de horas que
operários faziam no século XIX. Porém, a uberização só pôde
se realizar em um mundo pós-industrial, digital, conectado e
neoliberal.

A uberização refere-se às regulações estatais e ao papel ati-
vo do Estado na eliminação de direitos, de mediações e con-troles publicamente constituídos; resulta da flexibilização
do trabalho, aqui compreendida como essa eliminação de
freios legais à exploração do trabalho, que envolve a legiti-
mação, legalização e banalização da transferência de custos
e riscos ao trabalhador (...) a uberização remete também
aos modos de subjetivação relacionados às formas contem-
porâneas de gestão do trabalho e ao neoliberalismo (Laval;
Dardot, 2016; Dejours, 1999), que nos demandam uma
compreensão do engajamento, responsabilização e gestão
da própria sobrevivência, praticados e experienciados pelos
trabalhadores e trabalhadoras uberizados. (Abílio, 2020, p.
112-113).

As relações erótico-amorosas uberizadas exigem competências
emocionais múltiplas e disponibilidade para se lançar no mer-
cado dos afetos como empreendedoras/es que deveriam saber
administrar seus sentimentos e potencializar suas habilidades
emocionais.

Larissa Pelúcio

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Em meio a uma realidade frenética e tumultuada, acione o modo
mindfull3: esteja disponível para novas aventuras (ou para novos
matches, crushs4); não hesite e não pare; não se prenda a pactos
e não nomeie as relações, isso limita a sua experiência; seja livre,
mesmo que isso doa um pouco. Ironias à parte, e reconhecendo
que há prazer nesse regime de gerência emocional, tanto quanto
há exigências agudas de autogestão, tenho chamado esse tipo de
vínculo erótico de amor neoliberal.

No amor neoliberal, estamos na lógica do imediato. Um dos
pressupostos desse modelo estaria no pacto tácito de que nada se pactuará, apostando-se na fluidez e na flexibilidade. Eva Illouz chamou de “fim do amor”, ou de “não-amor”, essa falta
de uma estrutura narrativa clara, essa anomia, esse não-sei-que
sem nome e sem protocolo.

O “Não-amor” é um sinal de uma nova forma de subjetivida-
de onde a escolha é exercida tanto positivamente (querer, desejar algo) quanto negativamente (definir-se evitando ou
rejeitando repetidamente as relações, ser demasiado inde-
ciso ou ambivalente para desejar, querer acumular tantas
experiências que a escolha perde sua relevância emocional
e cognitiva, terminando repetidamente as relações como se quisesse se afirmar e a própria autonomia). O não-amor
é assim tanto uma forma de subjetividade - quem somos
e como nos comportamos - como um processo social que

3 Como escrevem Edgar Cabanas e Eva Illouz, “o mindfulness nos encoraja a crer que tudo
dará certo se acreditarmos em nós mesmos, formos pacientes, não julgarmos demais e
aprendermos a nos desapegar. Os treinadores de mindfulness instruem os clientes a se
concentrar em suas paisagens interiores e autênticas, aceitar o momento presente e os sentimentos autênticos, aproveitar as pequenas coisas da vida, definir prioridades para
seus interesses e ter atitudes positivas, despreocupadas e resilientes, independentemen-
te do mundo exterior”. (Cabanas; Illouz, 2022, p. 78).
4 O match significa combinação, combinar, em inglês e é utilizado pelo Tinder como termo
para sinalizar que houve interesse mútuo entre o casal. No Happn, o crush tem a mesma
função e significa esbarrar, trombar com alguém ou algo. Hoje em dia, no nosso novo léxico
amoroso-sexual, significa estar flertando, saindo, se envolvendo com alguém.

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reflete o profundo impacto do capitalismo nas relações so-ciais. Como os sociólogos Wolfgang Streek e Jens Beckert
argumentaram de forma convincente, o capitalismo trans-
forma a ação social - e, pode-se acrescentar, os sentimentos
sociais (Illouz, 2021, p. 31-32, tradução da autora)5.

Sem regulações claras, estamos todas e todos tateantes diante
de um novo regime de gestão dos sentimentos. Uma gestão que
é também algorítmica.

Nas nossas telas quando estamos logadas/os aos aplicativos de
paquera costumam aparecer aquelas e aqueles com quem temos afinidades digitais, que vão desde a proximidade geográfica ao gos-
to musical, passando por preferências culinárias e políticas6. Essas
são mapeáveis pelos usos que fazemos das mídias digitais a partir
das pistas que vamos lançando: as escolhas feitas dentro do próprio
aplicativo; os likes que damos ali e além; os perfis que seguimos no Instagram ou Facebook; as compras que fazemos no e-commerce;
as músicas que baixamos nos tocadores sonoros... Sabe aquela frase
motivacional que diz “nunca foi sorte, foi trabalho”? Podemos adap-
tá-la aqui para “nunca foi o destino, foram os algoritmos”.

Porém, “esses algoritmos começam a falhar quanto mais abstrata, mais complicada e complexa a pessoa é”, afirma a especialista em
5 No original: “Le « non-amour » est le signe d’une nouvelle forme de subjectivité où le
choix s’exerce à la fois de manière positive (vouloir, désirer quelque chose) et de ma-nière négative (se définir par l’évitement ou le rejet réitéré de relations, être trop indé-
cis ou ambivalent pour désirer, vouloir accumuler tant d’expériences que le choix perd
de sa pertinence émotionnelle et cognitive, mettre un terme à des relations de manière répétée comme pour s’affirmer et affirmer son autonomie). Le non-amour est donc en
même temps une forme de subjectivité – ce que nous sommes et comment nous nous comportons – et un processus social qui reflète l’impact profond du capitalisme sur les relations sociales. Comme les sociologues Wolfgang Streek et Jens Beckert l’ont affirmé
de manière convaincante, le capitalisme transforme l’action sociale – et, pourrait-on
ajouter, les sentments sociaux”.
6 Sobre afinidades políticas e a busca de parcerias em aplicativos de paquera vale conhecer
a pesquisa de Aristides Abel Bernardes (2021) intitulada “Deslize pro lado contrário da tua
orientação política”: emoções e polarização político-ideológica nas experiências afetivo-se-
xuais mediadas pelo aplicativo Tinder.

Larissa Pelúcio

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Inteligência Artificial, Inma Martínez, em entrevista ao jornal El
País (Jabois, 2021). Eles falham, também, quando o casal forma-
do pelo match ultrapassa os limites das conversas editadas, em
ambiente razoavelmente controlado dos aplicativos e ampliam a
interação entre si para incluir nela coisas e pessoas que consti-tuem o mundo offline: o garçom no bar, a melhor amiga, o filho, o
trânsito, a bebida, o cheiro. São elementos que podem impactar a
precisão algorítmica do match. A maneira como a pessoa tratou a
atendente, a forma como ela se comporta no trânsito, o jeito como ingeriu a bebida são imponderáveis que só o offline revela.
Esses imponderáveis, como a tecnologia, não são neutros. As
antipatias carregam marcas de classe, raça, gênero, religião, ge-ração, origem regional, local de moradia, para ficarmos apenas
com as variáveis que mais apareceram em minha pesquisa, já citada, como justificativa da quebra do encanto.
Culpar o aplicativo pelo insucesso dos encontros ou pelo catálogo pouco atraente de perfis não foi uma fala incomum entre os ho-
mens que colaboraram com minha pesquisa (Pelúcio, 2019). Jus-tificavam assim os insucessos e atribuíam suas frustrações ora às
mulheres “complicadas”, “interesseiras”, “sem noção”, ora ao pró-
prio aplicativo: “só atrai gente louca”, “não funciona”, “se você não
paga uma conta VIP você não vai se dar bem” (frases que recolhi
durante a interação com colaboradores da citada pesquisa).

Os aplicativos, independentemente dos desdobramentos amo-
rosos dos encontros ocorridos na plataforma, se darão bem.
Quero dizer, guardarão os dados das e dos usuários, aperfeiço-
arão as ferramentas do app, que poderão assim otimizar seus serviços, atraindo mais cadastros e refinando seus mecanismos de gerenciamento de perfis.
O gerenciamento algorítmico “é a possibilidade de traduzir mo-
dos de vida, relações sociais, trajetórias e desigualdades em da-
dos administráveis que produzirão e reproduzirão desigualdades

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e mecanismos de exploração do trabalho”, escreve Abílio (2020a, n.p.). Ainda que se refira ao universo laboral, a definição oferecida
pela autora convida a paralelos com a exploração emocional que
não é produzida pelo aplicativo, mas traduzida por ele.

A possibilidade de designar corridas para a favela para o moto-
rista negro e para o centro de São Paulo para o motorista branco,
como constatou Abílio em suas pesquisas, não é acidental. Esse
despotismo algorítmico também acontece nos aplicativos de
busca de parceiras sexuais-amorosas. A tendência será colocar
em seu radar as pessoas que atendem aos padrões mais hege-
mônicos. Com nossas “curtidas” vamos reforçando exclusões e
levando para a realidade das plataformas as mazelas estruturais
de uma sociedade profundamente desigual, crendo-nos, no en-
tanto, livres em nossas escolhas.

Em nome da liberdade, essas desigualdades passam desper-
cebidas e não são abordadas. Homens e mulheres, mas espe-
cialmente mulheres, se valem de suas psiques para lidar com
a violência e as feridas simbólicas que essas desigualdades
ocultam: “Por que ele está distante? “Estou mostrando-lhe
demais que preciso dele?”, “O que preciso fazer para chamar sua atenção?”, “Que erros cometi que o fizeram sair?” Todas
essas perguntas, feitas por mulheres e para mulheres, reve-
lam que, culturalmente, as mulheres heterossexuais se sen-
tem amplamente responsáveis pelo sucesso e pela gestão
emocional dos relacionamentos (Illouz, 2020, p. 26-27)7.

7 No original: “Au nom de la liberté, ces inégalités passent inaperçues et ne sont pas pri-
ses en considération. Les hommes et les femmes, mais surtout les femmes, puisent dans
leur psychisme les ressources pour gérer la violence et les blessures symboliques que
ces inégalités recèlent : « Pourquoi est-il distant ? » « Est-ce que je lui montre trop que j’ai
besoin de lui ? », « Que dois-je faire pour attirer son attention ? », « Quelles erreurs ai-je commises pour qu’il finisse par partir ? » Toutes ces questions, posées pour des femmes
et par des femmes, révèlent que, culturellement, les femmes hétérosexuelles se sentent
largement responsables du succès et de la gestion affective des relations. En revanche,
l’homosexualité ne transforme pas le genre en différence et la différence en inégalité, pas
plus qu’elle ne s’appuie sur une division sexuée entre travail biologique et économique,
comme celle qui caractérise la famille hétérosexuelle”.

Larissa Pelúcio

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Mesmo as relações homossexuais, que guardam um potencial
transgressivo, estão enredadas na reprodução dessas desigualda-
des. O médico cirurgião Vinícius Lacerda, em coluna para a revista
Carta Capital, avalia a experiência de muitos homens em aplicativos
voltados para o encontro sexual e/ou amoroso com outros homens:

Sob o pretexto de que é tudo questão de gosto, muitos não per-
cebem que podem estar sim escancarando seus preconceitos camuflados de “preferências”, atingindo diretamente aqueles que se deparam com perfis dizendo: não a negros, gordos, asiá-
ticos, nordestino, afeminados, assumidos (Lacerda, 2019, n.p.).Os perfis menos “competitivos” recebem menos likes, são, portan-

to, menos demandados, ainda assim tendem a ser aqueles que ao
serem acionados aceitarão a “corrida” para qualquer destino.

2. Gamificação do date

Quando os aplicativos móveis chegaram, já conhecíamos as re-
des sociais online e os chats (bate-papos) em plataformas diver-
sas. Já tínhamos passado pelos e-mails e fóruns; e experimenta-
do a interação em blogs e plataformas de notícias8.

Se a distração no ambiente trabalho, possibilitada pelas incursões imprudentes a sites de pornografia e a conversas digitais, tinha sido para poucos, o flerte por aplicativos e as trocas volumosas de
8 Dados da PNAD 2007 mostram que brasileiros/as das classes populares (C, D e E) não fizeram o mesmo percurso para o acesso à internet. A maior parte só começou a fazer
uso da comunicação digital por meio dos smartphones (PNAD 2013). Antes desse mo-
mento, porém, as lan houses proporcionaram o acesso à rede mundial de computadores
à população de baixa renda, sobretudo aos jovens. Em 2008, segundo o Comitê Gestor da Internet no Brasil (2008), 65% das pessoas das classes C, D e entrevistadas “afirmaram
que suas principais atividades na internet envolviam o acesso a sites de relacionamen-
to”, o que chamamos hoje em dia de redes sociais online. Disponível em: https://www.
infomoney.com.br/politica/ibope-classes-populares-tem-participacao-de-peso-no-uso-
-da-internet/. Último acesso em 30 set. 2021.

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conversas por celulares foram se fazendo cada vez mais democrá-
ticas após 20139. Aprendemos a nos alimentar de urgências.

A primeira vez que tive um match no Tinder foi em 2013. Estava
experimentando um novo campo de pesquisa, o que não me im-
pediu de sentir uma excitação de quem aposta. Escrevi no diário
de campo e depois em um artigo (Pelúcio, 2015, p. 81): “Parece
um jogo, e talvez seja”. No presente, essa sensação ganhou um
lugar conceitual nas discussões sobre a reestruturação do mun-do do trabalho, chama-se “gamificação”. O neologismo é claro,
transporta para o ambiente do labor a lógica dos jogos digitais. Ludmila Abílio discute como o termo gamificação (derivado do
inglês game) “vem sendo utilizado para nomear lógicas da ges-
tão do mundo do trabalho” (Scholz apud Abílio, 2019, p, 3). Esse
é um termo que expressa a operacionalidade de regras cambian-
tes que tornam o engajamento no trabalho arriscado e sem ga-
rantias. A produtividade é estimulada e conquistada por meio de regras que se apresentam como desafios para o trabalhador,
que envolvem premiações e, principalmente, a incerteza de se
alcançar o resultado perseguido (Abílio, 2019, p. 03)10. A gami-

9 Dados da Agência Nacional de Comunicações - ANATEL mostram que o número de
smartphones cresceu 99% no acesso à internet no Brasil entre 2013 e 2014. Já os da-
dos da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio relativa às Tecnologias Informáticas
de Comunicação, realizada em 2018, aponta que, de 2016 para 2017, o percentual de
pessoas que acessaram à internet por meio do celular aumentou de 94,6% para 97,0%.
Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-
-agencia-de-noticias/releases/23445-pnadcontinua-tic-2017-internet-chega-a-tres-
-em-cada-quatro-domicilios-do-pais. Último acesso em 19 set. 2021.
10 “Costa e Marchiori (2015, p.45) enfatizam que a gamificação pode ser entendida como
‘uma estratégia apoiada na aplicação de elementos de jogos para atividades non-game utilizada para influenciar e causar mudanças no comportamento de indivíduos e grupos’. Para Santinho (2018), na gamificação há a apropriação de três características básicas
dos jogos: recompensa, feedback, desafio. Em conjunto, tais elementos estimulam os jogadores que buscam atingir a recompensa quando cumprem os desafios propostos. Ainda conforme destaca o autor, a gamificação busca ‘aliar as inovações tecnológicas e o
estado cooperativo às técnicas modernas de gestão de pessoas’ (Santinho, 2018, p. 14)
como forma de manter os trabalhadores satisfeitos e produtivos dentro de um ambiente
estimulador e criativo”. (Bezerra; Mozzato, 2021, p. 5).

Larissa Pelúcio

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ficação está no mundo do trabalho, mas também na esfera dos
afetos erotizados.

Quando usamos aplicativos para encontros, jogamos. Há um fruir lúdico no deslizamento dos perfis, na avaliação solitária ou
em grupo que fazemos de cada usuário ou usuária. Rimos das
fotos e/ou descrições, sentimos uma certa superioridade mo-
ral em relação a algumas daquelas pessoas, fruímos prazer em
constatar por meio de matches e crushs que aquele perfil que
nos agradou também gostou do nosso “eu virtual”. Compensa-
ção! Premiação! Muitas vezes esse encontro de algoritmos se en-
cerra ali. Matches que nunca se realizam podem trazer frustra-
ção. Sem feedback, o fracasso parece ser nosso. Seguimos muitas vezes com perfis ativos em diferentes aplicativos, pelo jogo, pela
aposta, com uma certa esperança. Permanecer ali ou voltar a ati-var o perfil nos apps é seguir no jogo.
Na imersão nos aplicativos para busca de parcerias sexuais e/
ou amorosas temos a impressão de otimizar o tempo, de econo-mizar recursos financeiros e emocionais. Sem sair de casa ou do trabalho, temos acesso a um vasto catálogo de perfis. As recusas
não são publicizadas, doem na solidão da tela e podem ser ame-
nizadas pela permanência no jogo, o que pode dar a sensação de
que somos nós que estamos escolhendo, mais do que estarmos
sendo escolhidas/os.

Entramos em um ambiente de abundância imaginada, posto que,
de fato, as possibilidades concretas já mostraram que as opções para cada perfil cadastrado não são tão amplas como o número
de usuários inscritos na plataforma pode sugerir. Para “se dar
bem” nesse universo de ofertas, é preciso acionar lógicas orga-
nizativas, racionalizando a busca e gerindo o tempo para que se
faça o melhor investimento. Acumular capital sexual pode capi-
talizar experiências que permitirão que se tenha mais sucesso
e, desejavelmente, menos sofrimento em um mercado compe-
titivo que exige que se demonstre diversas habilidades emocio-

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A UBERIZAÇÃO DO AMOR

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nais. Entre estas, saber lidar com relações flexíveis, nas quais os termos fluídos escapam e confundem os agentes, exigindo, por outro lado, processos reflexivos que podem fomentar a ideia de uma individualidade autônoma, que não só dificulta os vínculos
duradouros como pode levar à autoatribuição pelo fracasso.

A partir da tecnologia lisa e deslizante das telas dos smartphones

vivenciamos a era do “laissez-faire” romântico, sintetizada
na expressão corrente do “estamos deixando rolar”, o slo-
gan dos amores neoliberais. A nova racionalidade neolibe-
ral impôs um novo ethos relacional, um ethos que passa
pela não pactuação dos termos da relação, dando origens a
recorrentes desencontros e reforçando assimetrias. O cená-
rio é de “precarização das relações amorosas”, expressão de
uma época que reforça o imperativo da busca constante por
novas possibilidades amorosas e sexuais enfraquece a pos-
sibilidade de construção de parcerias igualitárias (Balieiro,
2021, p. 04).Nesse contexto, afirma Eva Illouz (2020), as pessoas que são me-

nos apegadas, são também as que detêm mais poder. Sabemos
que, na maior parte dos casos, essas pessoas têm gênero, o mas-
culino; bem como cor, não são vistas como escuras; e classe, não
são pobres. As relações sociais que hierarquizam esses marca-
dores da diferença estão presentes também no campo amoroso
e erótico. O desejo não está desassociado das estruturas macros-
sociais.

No presente, a incerteza, como mecanismo sociológico, marca as
relações erótico-amorosas e implicam em sofrimento. Porém, na
economia política dos afetos, esse mecanismo da incerteza pro-
move uma distribuição desigual do sofrimento entre homens e
mulheres, assim como entre pessoas cisgêneras e transgêneras
ou entre heterossexuais e homossexuais.

Larissa Pelúcio

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3. Do amor romântico e outros demônios

O amor romântico associa-se a sentimentos arrebatadores que
levaram historicamente os indivíduos a colocarem seus senti-
mentos acima dos arranjos sociais e dos interesses dos grupos
familiares a que pertenciam. Nesse sentido, o amor romântico
foi transgressor, pois incitava ao rompimento de contratos eco-
nômicos e políticos que convinham mais a outros do que ao ca-
sal envolvido. Associado à liberdade individual, o amor românti-
co, no entanto, manteve-se heterossexual, relegando aos cantos
obscuros da sociedade, como prisões e sanatórios, o amor entre
pessoas do mesmo sexo11.

Formar o par amoroso heterossexual, a partir da ideia de esco-
lha individual movida por uma espécie de transcendência emo-
cional, associou-se à ideia de liberdade nos moldes do libera-lismo filosófico. O amor romântico fez parte do que Eva Illouz
(2020) chama de Modernidade Emocional. Para a autora, essa
virada emocional, não por acaso, inicia-se em meados do século
XVIII, juntamente com as mudanças promovidas pelo século das revoluções (Hobsbawm, 2015), pelo fim dos regimes absolutis-
tas, pela ascensão da burguesia e lutas operárias em meio à con-
solidação do capitalismo industrial.

A ideia de que o amor e o mercado estão relacionados não é nova.
Desde Friedrich Engels (2009), família (leia-se procriação/sexo
e relações desiguais entre gêneros) vem sendo relacionada à
propriedade privada (2009 [1884]) e essa à sociedade burguesa capitalista. Emoções, contratos e consumo fizeram do amor um
sentimento capaz de conectar o privado e o público, o íntimo
e o político, a vida doméstica ao mercado. Nos países centrais
do capitalismo esse matrimônio harmonioso se realizou já nas

11 Como já dito, aqui discuto relações heterossexuais, não tenho conteúdo empírico nem
aprofundamento teórico para alargar as análises aqui propostas para o amor e o sexo
não-heterossexual.

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A UBERIZAÇÃO DO AMOR

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primeiras décadas do século XX, quando a indústria cultural, já
vigorosa, uniu o lar ao romance.

O cinema, a publicidade, as revistas e os folhetins ofereceram farto material gráfico e onírico para alimentar a ideia de que
amar era consumir, e consumir era ser feliz. De forma que a co-municação como área específica de produção de saberes e sen-
tido foi fundamental para alimentar e sustentar o ethos do amor
romântico12.

O amor é uma construção social cambiante (Andrade, 2015, p.
38), que acompanha a modernidade, e como tal se insere como
tema desde a sociologia clássica, bem como da antropologia das emoções em suas abordagens contemporâneas. Aqui flerto
com a vertente contextualista dessa subárea. Nessa perspecti-
va, a dimensão micropolítica dos sentimentos se mostra como
tributária de relações de poder, pensadas a partir dos aportes
foucaultianos que tomam o poder como estratégia relacional
distribuída difusamente por todo tecido social.

O amor chega ao século XX como item cultural associado ao mer-
cado. Eva Illouz denomina essa fase do capitalismo de “escópico”.
Ver-se, mostrar-se, inspirar-se em imagens publicitárias, em íco-
nes do cinema, exibir-se, se deixar seduzir por promessas de fe-
licidade mercantilizada são alguns dos elementos que compõem o prazer escópico. “Este capitalismo escópico é definido pela ex-
tração do valor agregado do espetáculo e da exibição visual dos
corpos. É essencial entender como as mudanças na sexualidade
foram acompanhadas por novos instrumentos de poder cultural
implantados por empresas capitalistas” (Illouz, 2020, p. 80).

12 Eva Illouz (2009) nos oferece uma farta história da associação entre amor e mercado,
em seu livro “O Consumo da Utopia Romântica”, no qual procura entender como se deu o
encontro do amor com o capitalismo. Essa aproximação que costumamos perceber como
inusitada, quase espúria, está bem documentada pela autora, que mostra como veio se
dando essa fusão: a romantização dos bens de consumo e mercantilização do amor ro-
mântico (Pelúcio, 2019, p. 186).

Larissa Pelúcio

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As empresas miraram nas mulheres, pois o capitalismo, assim
como o regime patriarcal, do qual o primeiro não pode abrir
mão sem que precise reinventar mecanismos de controle e se-dução, opera mais eficientemente quando há desigualdade entre
os gêneros.

Das linhas de eletrodomésticos, passando pelos produtos de
toucador e higiene, àqueles que se relacionam com a moda, o
antienvelhecimento, o prazer sexual, às publicações de livros e
revistas com instruções prescritivas sobre como ser, estar, su-
perar, seduzir, se “empoderar”, o capitalismo escópico mirou em
mulheres de diferentes gerações, classes sociais, raças e nacio-
nalidades monetarizando nossos corpos, nossos desejos e mes-
mo nossas lutas13.

Na sociologia da ambivalência, com a qual trabalha Illouz, as mu-
lheres foram as que mais conquistas obtiveram com as profun-
das mudanças no regime erótico e conjugal ocidental que teve seu ponto de inflexão na década de 1970. Mas também foram as
mulheres aquelas que sofreram as maiores exigências implica-
das no regime erótico-liberal, o qual instituiu o sex-appeal como
capital fundamental para o bom desempenho no mercado dos
afetos, assim como individualizou a responsabilidade pela feli-
cidade amorosa, erotizou o consumo e fez do tédio um vilão a
ser combatido em nome do prazer. O gozo se tornou imperativo,
sem ele não há romance duradouro.

Entre as ambivalências do regime erótico liberal contemporâ-
neo encontramos a tensão entre duas lógicas: a da escassez e a
da abundância. A primeira é aquela que sustenta o amor român-
tico com ideias de “alma gêmea”, do “para sempre”, do “destino”. A outra nos lança em um mundo de supostas escolhas infinitas,
de aventuras e adrenalina, da não pactuação de contratos. Ló-

13 Vide as camisetas vendidas em redes como Zara com dizeres como “feminist”, “feminist revolution” ou a “popirização” de figuras como Frida Kahlo e Marielle Franco.

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A UBERIZAÇÃO DO AMOR

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gica que se afina com a mecatrônica do descarte, a qual rege as
buscas nos aplicativos móveis para relacionamentos.

A sensação de que somos livres para escolher (inclusive esco-
lher não escolher) confunde-se com a própria ideia de liberdade
e de direitos. Como em todos os mercados, o mercado dos afe-
tos também se estabelece como uma arena de trocas desiguais,
de modo que os bens simbólicos, jurídicos, corporais e mesmo
a aclamada liberdade de escolha não são distribuídos de forma
equânime (já falei disso há pouco).

Mesmo diante de incertezas sobre os relacionamentos (se os
queremos ou não, se estamos em um ou não, se o que temos
pode ser chamado de uma relação, se vale a pena continuar no
“game” ou dar um tempo), uma coisa parece se estabelecer no
campo das certezas: a aposta no par.

O par, essa utopia contemporânea (Illouz, 2013), vem sendo for-
mado sob a égide do individualismo crescente, do imperativo
da “liberdade” e do consumismo terapêutico. Esse par14 precisa conciliar relações significativas com o descompromisso, pois o
comprometimento com o descompromisso seria o que, parado-
xalmente, permitiria que houvesse uma relação. A relação boa
seria aquela em que as partes estão felizes e conseguem produ-
zir felicidade para si com a companhia do outro. Ainda que, via de regra, não saibamos definir o que seria essa felicidade.
“A felicidade não deve ser vista como uma abstração inócua
e bem-intencionada voltada para o bem-estar e a satisfação.
Também não deve ser concebida como um conceito vazio e
desprovido de vieses e pressupostos culturais, morais e antro-

14 Não estou desconsiderando outros arranjos para além do par, porém, o que tenho per-
cebido, ainda que de forma pouco sistematizada em minhas pesquisas, é que mesmo
quando as pessoas se dispõem a ampliar o número participantes dos arranjos sexuais e
amorosos ainda o fazem presos/as à lógica do par.

Larissa Pelúcio

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pológicos”. (Cabanas; Illouz, 2022, p. 63). No neoliberalismo, a
felicidade mostrou-se um projeto individual e, mais que isso,
individualista.

Como conciliar, então, o par, a vida a dois, quando aprendemos
a apostar na autonomia do sujeito como sinônimo de liberdade? Investindo no “aperfeiçoamento pessoal” (só para ficarmos com
uma resposta bem afeita ao nosso tempo). O que pode ser fei-
to, segundo alguns coachs pessoais15, “cuidando de si”, “focando
em seus interesses”, “mantendo-se positivo/a”. O caminho para
esse nirvana emocional não se faz coletivamente, nem mesmo
acompanhado/a, mas investindo em si.

Edgar Cabanas e Eva Illouz retomam os argumentos de diferen-tes teóricos/as a fim de mostrarem que as décadas de neolibe-
ralismos nos colocaram, em nível mundial, frente a cenários de
constantes incertezas e grandes inseguranças, não só nos cam-
pos econômico e social, mas nas dimensões cultural e simbólica,
contribuindo para a constituição de subjetividades marcadas
pela competitividade e pelo medo. De forma que o nosso “eu ver-
dadeiro” precisaria de uma bem alicerçada “fortaleza interior”
para sobreviver às cruezas de um tempo de violência crescente, instabilidade financeira, insegurança laboral e climática. “Uma
doutrina individualista que nos predispõe a escapar para a for-tificação de nosso eu verdadeiro, “parece surgir quando o mun-
do exterior se provou excepcionalmente árido, cruel ou injusto”
(Berlin apud Cabanas; Illouz, 2022, p. 76).

Jack Barbalet fez observações similares e ressaltou que, quando “as oportunidades significativas para influenciar
os processos econômicos, políticos e outros estão em bai-xa, as pessoas ficam mais propensas a tomar a si próprias

15 Fenômeno que Edgar Cabanas e Eva Illouz identificam com a crise econômica de 2008.
Para uma discussão mais aprofundada ver o capítulo 2 do livro “Happycrasia” (na biblio-grafia deste artigo).

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como centros de emoção”. Desse modo, ainda que não completamente novo ou específico dos tempos atuais, o
clamor por uma retirada em direção a nós mesmos parece
ter reacendido nos últimos anos, em especial no rescaldo
das mudanças econômicas e sociais desencadeadas em 2008. Como a socióloga Michèle Lamont afirmou recente-
mente, os indivíduos das sociedades neoliberais pós-crise
se voltaram à crença “de que precisam olhar para dentro
em busca da força de vontade necessária para se salvarem
e para resistirem à maré de declínio econômico” (Cabanas;
Illouz, 2022, p. 76-77).

Essa maré formou, em várias partes do mundo, ondas conser-
vadoras bastante agressivas. Temas relativos a direitos sexuais,
homossexualidade, transexualidade, equidade de gênero mos-traram, finalmente, todo seu potencial político, gerando contra-
discursos reativos.

Politicamente, a primeira década deste século mostrou que o
neoliberalismo e a democracia não formam um casal harmo-
nioso, ao contrário. Como analisa Luciana Ballestrin (2018), o
neoliberalismo constitui-se em uma força desdemocratizante16.
Trumps e Bolsonaros apareceram em muitas regiões do plane-
ta, de forma que a agenda de costumes alimentou os discursos
de empreendedores morais, mobilizando os debates nas ruas,
nas casas, no trabalho, no barzinho, na novela, no parlamento,

16 “No ano de 2016, em diferentes partes do mundo, pelo menos quatro eventos foram
capazes de questionar os limites da democracia representativa, liberal e ocidental. Na
Inglaterra, um plebiscito demonstrou a preferência majoritária dos ingleses pela saída
da União Europeia; na Colômbia, o referendo pelo acordo de paz com as FARC (Fuerzas
Armadas Revolucionarias de Colombia) foi rejeitado pela maioria; nos Estados Unidos,
uma vitória inesperada elegeu o empresário Donald Trump para a presidência da ainda maior potência mundial; por fim, no Brasil, um processo de impeachment foi aprovado para a destituição da ex-presidenta reeleita Dilma Rousseff, justificado em um contro-verso crime de responsabilidade fiscal. Cada qual à sua maneira, tais acontecimentos
evidenciam a emergência de discursos abertamente autoritários, anti-humanistas e
antidemocráticos; sua eventual legitimação pelo voto popular, partidos políticos e/ou
lideranças populistas; e, a utilização das instituições democráticas para a fragilização,
minimização ou ruptura da própria democracia” (Ballestrin, 2018, p. 149).

Larissa Pelúcio

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no aplicativo. E acreditem, isso tudo impactou fortemente as
relações erótico-amorosas. O político se tornou pessoal17.

Aristides Bernardo (2021, p. 20) documenta essa batalha entre
likes
e deslikes nos aplicativos de encontros “em um contexto de
extrema polarização política, partidária e ideológica”, mostrando
como posição política, valores religiosos e adesões partidárias passaram a compor os perfis de apresentação de usuárias e usu-
ários do Tinder (aplicativo ao qual Bernardo se dedicou), tornan-
do-se “um critério relevante para o estabelecimento de vínculos
afetivos e relações sexuais entre pessoas que buscam tais experi-
ências com a mediação do aplicativo de relacionamentos”18.

Ao reproduzirem, como era de se esperar, na esfera do roman-
ce as polarizações da arena pública, os aplicativos também se
tornaram um campo de tensões mais do que de tesões (me
desculpem o trocadilho inevitável). Ao menos ali, teoricamen-
te, poderíamos driblar desafetos e otimizar a busca por pesso-
as alinhadas politicamente com nossos ideais. O que pesquisas
mostram é que as “bolhas” e “câmaras de eco” formadas com
ajuda de algoritmos alimentaram mais ódios que amores19. O amor sempre foi político. O amor romântico fingiu não sê-lo,
quando de fato

foi mais uma das grandes transformações na vida privada
moderna, pois, juntou na mesma relação, o desejo sexual, o
casamento e a família, antes dissociados. E, num sentido, foi
libertador, pois, introduziu a atração singular, de indivíduo
para indivíduo, onde antes só havia a vontade da sociedade.
(Ferreira; Adelman, n.d., n.p.).

17 Em meu livro “Amor em Tempos de Aplicativos – masculinidades heterossexuais e a
nova economia do desejo” (2019) aprofundo essa discussão.
18 A coleta de dados feita por Bernardo se deu no âmbito da cidade de João Pessoa (PB), entre
abril de 2019 e março de 2020.
19 Para uma rica discussão sobre as tensões políticas nas redes ver Miskolci, 2021.

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Contemporâneo de uma sociedade que se industrializava e se torna-
va econômica e moralmente burguesa, o amor romântico parece não corresponder aos novos tempos de inflexão feminista, politização
das relações de gênero e de incertezas, disfarçadas pelo discurso ne-
oliberal da livre escolha. Seu potencial transgressivo foi domesticado
pelo mercado e perdeu-se na ilusão liberal da liberdade. A questão é
que ainda não inventamos nada tão poderoso para substituí-lo.

4. Tão solitária quanto um entregador de delivery na
quarentena

Em umas das regiões centrais de São Paulo, as panelas batiam
aos gritos. “Fora, fora”. “Genocida”. Eram os protestos ruidosos,
mas sem grandes efeitos, contra as medidas (não) tomadas pelo governo federal, encarnado na figura de Jair Bolsonaro, em re-
lação à pandemia da Covid-1920. Naquele 2020, ainda não sabí-
amos que entraríamos o ano de 2022 usando máscaras21 faciais
como proteção contra o coronavírus, nem que iriamos testemu-
nhar milhares de mortes ao dia causadas pela Covid-19, ocorri-
das nos primeiros meses de 202122, ou que Bolsonaro termina-
ria seu mandato, apesar dos gritos nas janelas.

20 Pesquisadoras e pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São
Paulo (USP), o Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário e a Conectas Direitos
Humanos analisaram 3.049 normas federais produzidas em 2020 e constataram que
houve intenção deliberada por parte do governo Bolsonaro em promover a dissemina-
ção do coronavírus. A pesquisa “Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Nor-
mas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil” traz no editorial de seu boletim 10 uma
linha do tempo na qual demonstram “a relação direta entre os atos normativos federais,
a obstrução constante às respostas locais e a propaganda contra a saúde pública pro-
movida pelo governo federal” em relação à pandemia (Cepedisa; Conectas, 2021, p. 2).
21 No estado de São Paulo a obrigatoriedade do uso de máscaras faciais em espaços abertos foi
suspensa em 09 de março de 2022 e no dia 17 do mesmo mês o uso foi suspenso também em
espaços fechados, com exceção de transportes públicos e em unidades médico-hospitalares.
22 “Covid-19 já matou mais brasileiros em 4 meses de 2021 do que em todo ano de 2020”,
matéria do Portal G1. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/
noticia/2021/04/25/covid-19-ja-matou-mais-brasileiros-em-4-meses-de-2021-do-
-que-em-todo-ano-de-2020.ghtml. Último acesso em 30 mar. 2022.

Larissa Pelúcio

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Em 2020 ainda não tínhamos vacinas, o que tornava o isolamento
social um imperativo. Foi também o ano em que mais baixamos
aplicativos quando comparado aos imediatamente anteriores23.

Em 2020, o Tinder registrou um aumento de 42% nas ati-
vidades de usuárias/os. Em 29 de março do mesmo ano,
quase no começo da quarentena espanhola, o Tinder superou
pela primeira vez os três bilhões de swipes24 em um só dia em
nível mundial, um recorde que, ao longo do ano, bateu outras
130 vezes. Além dessas ocorrências, os chats na plataforma
passaram a ser 32% mais longos. (Lorite, 2021, n.p.).

Essas estatísticas encontraram seu correspondente qualitati-
vo no termo jocoso “carentena”, uma contração entre a palavra
“quarentena” e “carência”. Mas o sentimento de solidão não es-
teve relacionado à pandemia e seus corolários como as medidas
de isolamento social. Segundo pesquisa desenvolvida entre os
quatro primeiros meses de isolamento social por Maurício Ho-

23 “Um levantamento da App Annie Intelligente analisou algumas mudanças de compor-
tamento durante o período da pandemia da Covid-19. Segundo a empresa de análise de
dados e estatísticas, houve um aumento expressivo no uso de aplicativos de saúde prin-
cipalmente nos quatro primeiros meses de 2021, ao comparar com o mesmo período em
2019”. (Fiore, 2021, n.p.). “Levantamento do App Annie Intelligence relata que o mundo
gastou US$ 32 bilhões (aproximadamente R$ 160 bi) em compras feitas em aplicativos
no primeiro trimestre de 2021. Isso indica um aumento de 40% em relação ao mesmo
período do ano passado. Foram US$ 21 bilhões faturados pela Apple e US$ 11 bilhões
pela loja da Google. Esses números ilustram o evidente efeito da pandemia no mercado
de aplicativos. Os três primeiros meses de 2020 foram o primeiro período da adoção
de medidas restritivas em boa parte do planeta. Em 2021, ainda com o isolamento em
vigor, os consumidores se viram cada vez mais obrigados a buscarem estímulos inter-
nos, como jogos, aplicativos de streaming de vídeo e plataformas de compartilhamento
social”. (Correia; Soares, 2021, n.p.). “O Brasil foi o país com maior número de instalações
de aplicativos de comércio eletrônico desde o início da pandemia, mostrando como as
restrições de isolamento social rapidamente colocaram o país como um dos mercados
mais cobiçados por empresas do setor no mundo todo. Segundo um levantamento da empresa de medição de performance de marketing digital AppsFlyer, 19% dos down-
loads de apps de e-commerce feitos via Android no mundo todo entre janeiro de 2020 e
julho deste ano aconteceram no Brasil”. (Reuters, 2021, n.p.).
24 É o ato de arrastar com os dedos na tela do celular para selecionar ou descartar perfis
nos aplicativos de paquera.

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ffmann, do Departamento de Neuropsiquiatria da Universidade
Federal de Santa Maria, não foram encontradas “evidências de
que o auto-isolamento e o distanciamento social aumentassem
o sentimento de solidão – pode ser que essas pessoas já se sen-
tissem sozinhas antes” (Revista Arcos, 2021, n.p.).

No entanto, na mesma matéria da Revista Arcos – Jornalismo Científico e Cultural (2021. n.p.),
um levantamento feito pelo Instituto Ipsos no início deste
ano [2021], os brasileiros são o povo que mais se sente soli-
tário na pandemia. A pesquisa, que ouviu 23 mil pessoas de
28 países, também revelou que 52% dos participantes do Brasil afirmaram que esse sentimento de solidão cresceu no
segundo semestre de 2020.

A pesquisa qualitativa realizada por Alcidésio Oliveira da Silva
Junior, Jeane Félix e Edvaldo Souza Couto (2020) apresenta de-
poimentos de homens gays jovens (entre 21 e 34 anos), usuários
do Tinder, que corroboram o sentimento de solidão apontado na
pesquisa citada acima. Um dos entrevistados reavaliou a impor-tância de ter relacionamentos fixos, pois durante o isolamento
social esteve muito carente. Sentiu mais falta de companhia para
compartilhar o dia a dia, conversar e realizar tarefas domésticas
juntos, do que de sexo. Da Silva Júnior, Félix e Couto concluem
que expectativas do amor romântico idealizado estiveram pre-
sentes nas falas de seus interlocutores de pesquisa, alimentadas
pelo clima distópico da pandemia.

A distopia da Covid-19 reavivou utopias, inclusive as românticas. Houve quem fizesse predições tão alvissareiras quanto ingênu-
as como aquelas expressas em discursos motivacionais de que
sairíamos melhores como seres humanos após o grande abalo
pandêmico. O que vimos, passados mais de dois anos desde que
a Organização Mundial da Saúde decretou estado de pandemia,
em 11 de março de 2020, é que a crise sanitária planetária agu-

Larissa Pelúcio

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çou desigualdades e nos lançou em uma profunda crise econô-
mica e existencial.

Hoje sabemos que não saímos nem melhores, nem mais român-
ticos. Aliás, os primeiros meses da pandemia impactou a vida
sexual de muita gente: “disfunção erétil, ejaculação precoce ou
retardada, falta de libido, falta de orgasmo, falta de desejo ou
falta de excitação sexual” foram sintomas apresentados por 802
entrevistados/as que integraram a pesquisa sobre desempenho
sexual de pessoas saudáveis durante os primeiros meses de iso-
lamento social (15 de março a 30 de junho de 2020)25.

Assistíamos o “coração vibrante de nossa civilização parar de
bater” (Illouz, 2020a, n/p26): comércios físicos fechados; voos
cancelados; fronteiras internacionais interditadas; aulas sus-pensas; filhos/as em casa; casas sem espaço para isolamento;
aumento de violência doméstica; colapso do sistema de saúde.

Com todo esse contexto de incertezas, não era de se causar
estranheza que a população iria sofrer com a angústia do
desconhecido. Quadro de ansiedade, depressão, são muito comuns, em situações dessa natureza. Dificuldades de rela-
cionamento, mudança na rotina do dia-a-dia, com as famílias
convivendo em casa, 24 horas por dia, impedidas do contato pessoal, dificuldades financeiras, com as pessoas perdendo a
capacidade de gerar renda, são fatores conhecidos como pos-
síveis causas psicológicas da piora do desempenho sexual,
entre homens e mulheres (De Souza, 2020, p. 16).

25 Do total de 802 pacientes entrevistados, 521 (68%) observaram diminuição do de-
sempenho sexual em algum grau. Essa queixa foi relatada em 479 (70%) pacientes do
sexo masculino, enquanto 42 (35,89%) mulheres do estudo queixaram piora do desem-
penho sexual. Entre os solteiros, a queixa foi mais frequente, 330 (63,33%), em relação
aos 191 (36,66%) dos pacientes casados. Entre os pacientes que observaram a queda do
desempenho sexual, 218 (41,84%) não tinham problemas sexuais anteriores à pande-
mia (De Souza, 2020, p. 16)
26 No original: “c’est le cœur battant de notre civilisation qui a été arrêté”.

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A UBERIZAÇÃO DO AMOR

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Íamos mal, mas os aplicativos iam bem, obrigada. Pesquisas
realizadas pelos próprios apps de paquera mostram que a for-ma de uso deles foi impactada pelo isolamento social. Intensifi-
cou-se o tempo de conversa no chat do próprio aplicativo, bem
como o número de mensagens diárias enviadas27. A troca de
material sexual como fotos e vídeos também cresceu, segundo
levantamento feito pelo aplicativo de origem francesa Happn. A
mesma pesquisa mostra que “54% dos brasileiros vivenciou um
término de relacionamento, indo na contramão da média global
dos usuários do app (46%)”.

Segundo a pesquisa, 21% dos brasileiros afirmam que o
amor simplesmente acabou no ano passado. Para 20%, a
pandemia contribuiu muito para isso, já que o casal pas-
sou a passar mais tempo juntos e isso trouxe problemas de
convivência. Mas os brasileiros não estão sozinhos. A média
global segue alinhada ao comportamento brasileiro: 48%
dos usuários gerais do app também viram o amor simples-
mente ir embora em 2020. (Happn, 2021, n.p.)28.

Se o amor foi embora, os aplicativos estavam ali para que a gente
pudesse pedir um delivery. Os aplicativos de paquera “bomba-
ram”, capitalizando com a crise.

Happn notou um aumento de 18% nas mensagens trocadas
pelo aplicativo; o The Inner Circle teve um aumento de 15%
nos matches e 10% nas mensagens enviadas; e o Par Perfei-
to registrou crescimento de 70% de novos usuários, um ga-
nho de 20% no tempo médio gasto no aplicativo e site 15%
de volume de mensagens trocadas desde o início de março
(Monteiro, 2020, n.p.).

27 “Os dados do aplicativo indicam que o número médio de mensagens enviadas por dia
aumentou 19% em comparação com o período anterior à pandemia, e as conversas são
32% mais longas” (Shearing, 2021, n/p).
28 A pesquisa foi realizada com mais de 5.300 usuários do app, em janeiro de 2021, em diversos
países onde o Happn funciona, como Brasil, Argentina, França, Itália, Dinamarca e Espanha.

Larissa Pelúcio

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A matéria da qual o excerto acima foi retirado intitula-se “Pan-
demia aumenta uso de aplicativos de relacionamento - Serviços
criam soluções para período de isolamento social e para o Dia
dos Namorados”. Em tempos de incertezas profundas, o merca-
do oferece “soluções”. O Inner Circle, aplicativo de origem ho-
landesa, ofereceu para a data romântica o “‘Delivery de Encon-
tro’, em que oferece 40 jantares a serem entregues para casais
em São Paulo para que aproveitem um jantar romântico virtual,
cada um em sua casa” (Monteiro, 2020, n.p.).

A “insustentável leveza do capitalismo” (Illouz, 2020a) propor-
cionou rapidamente recursos tecnológicos para que a solidão e o medo se tornassem clicks que geram dados, que se tornam mer-
cadorias, que ofereceram às e aos usuárias/os dos aplicativos
conteúdos emocionais para a gestão dos afetos durante o isola-
mento. Em troca oferecemos metadados comportamentais29. Os
dados jorraram de “nossos reservatórios emocionais” (Morozov,
2018, p. 166).

Enquanto a classe média pensava em amor e em pedir uma pizza,
não exatamente nessa ordem, os/as entregadores/as atendiam
a uma demanda crescente de pedidos por meio de aplicativos.

A Rappi, por exemplo, declarou um aumento de cerca de
30% das entregas em toda América Latina. No Brasil, isso
foi expresso no aumento de downloads de aplicativos de en-
tregas no período compreendido entre 20 de fevereiro e 16
de março de 2020, no importe de 24%, quando comparado
com o mesmo período do ano passado; o pico de 126% foi
no dia 06 de março, quando o Ministério da Saúde anunciou
a ocorrência da transmissão comunitária do vírus no país.
Esse cenário contrasta com a manutenção de longas jorna-
das acompanhadas de queda da remuneração dos trabalha-
dores do setor. (Abílio et al., 2020, p. 4).

29 Para uma discussão aprofundada é preciosa sobre esse tema ver Poell, Thomas; Nie-borg, David; Van Dijck, José (2020)

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Dados da pesquisa de Ludmila Abílio e colaboradoras, intitulada
“Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital du-
rante a Covid-19”, mostram que os entregadores (94,6% dos respon-
dentes são homens entre 270 questionários) estão em vários apli-
cativos (70,4% dos respondentes). Em minha experiência, essa foi
também a realidade dos usuários dos aplicativos de encontros. Ra-
ramente os participantes da pesquisa que desenvolvi (Pelúcio, 2019) tinham apenas um app baixado para fins de paquera. Nem por isso
tinham mais ou melhores experiências. Na verdade, muitos relata-
ram uma certa exaustão na gestão deles, sobretudo, se estavam mui-
to tempo sem macths e/ou crushs. Alguns passavam por uma espécie
de burnout afetivo provocado pela frustração com os encontros ou pelo próprio uso intensificado que faziam dos aplicativos. Sentiam-se
emocionalmente precarizados.

Dar mais likes ou prolongar a conversa nos chats dos aplicativos
enquanto se pedia algo para comer no Rappi ou Ifood pode ter
aplacado a solidão de muitas e muitos usuários de aplicativos.
Não sabemos ainda ao certo. O que já sabemos é que todos esses
pedidos não tornaram a vida dos entregadores menos arrisca-
das, nem o trabalho melhor remunerado. A indignidade de não
ter onde fazer refeições, urinar, descansar ou a possibilidade de
ter assistência social se acidentado reforça o abandono desses
trabalhadores por parte das empresas e do Estado.

Todas essas precariedades não estão circunscritas a um setor
da economia ou a certos tipos de mão de obra. Fazem parte da
lógica neoliberal. A mesma que passou a reger nossas relações
erótico-amorosas.

Sabemos também que a uberização do amor não se deu por causa
da pandemia ou dos aplicativos ou dos dois juntos. O que uberizou
o amor e o trabalho não foi o gerenciamento algoritmo dos servi-
ços ou dos encontros. Os aplicativos apenas servem, assim como
fomentaram, um sistema que tem na exploração seu alicerce mais
profundo e no ideal da liberdade seu discurso mais sedutor.

Larissa Pelúcio

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Larissa Pelúcio

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Recebido em 10/01/2022
Aceito em 17/05/2022