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Abandono, solidão e desistência do amor:
o racismo como elemento excludente de
mulheres pretas no mercado do afeto
Maria Chaves Jardim*1
Renata Medeiros Paoliello**2
Resumo:
O artigo trata das desigualdades e hierarquias existentes no merca-do do amor a partir do estudo de um público específico, as mulhe-res pretas, quando buscamos identificar qual a mágica social (Bour-dieu, 2004) que exclui essas mulheres do mercado do afeto. Em termos metodológicos, aplicamos questionários semiestruturados
pelo google forms e aplicamos presencialmente o mesmo questio-nário em um bairro popular de uma cidade do interior paulista. Os dados indicam o racismo como a mágica social que cria barreira no mercado do afeto; indica, também, que as tomadas de posição afeti-va dessas mulheres não se encaixam em nenhuma das quatro abor-dagens catalogadas por nós sobre o amor (amor líquido, amor ro-mântico, poliamor, amor confluente), chamando atenção para novas teorias que possam dar conta da vivência afetiva dessa população. Palavras-chave: Amor. Afetividade de mulheres pretas. Racismo. Mer-cado de casamento.
* UNESP –Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Faculdade de Ciên-cias e Letras. Campus de Araraquara. Araraquara –SP –Brasil. 14800-901. E-mail: maria.jardim@unesp.br. https://orcid.org/0000-0001-5715-1430** UNESP –Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Faculdade de Ciên-cias e Letras. Campus de Araraquara. Araraquara –SP –Brasil. 14800-901. E-mail: re-luz8@uol.com.br. https://orcid.org/0000-0002-0640-276X
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ABANDONO, SOLIDÃO E DESISTÊNCIA DO AMOR
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Abandonment, loneliness and giving up on love:
racism as an excluding element of black women in the
affection market
Abstract:
The article deals with the inequalities and hierarchies existing in the love market from the study of a specific audience, black women, when we seek to identify the social magic (Bourdieu, 2004) that excludes these women from the affection market. In methodological terms, we applied semi-structured questionnaires using google form and we ap-plied the same questionnaire in person in a popular neighborhood of a city in the interior of São Paulo. The data indicate racism as the social magic that creates barriers in the affection market; It also indicates that the affective positions taken by these women do not fit into any of the four existing approaches to love (liquid love, romantic love, polya-mory, confluent love), drawing attention to theories that may account for this population.
Keywords: love; affectivity of black women; racism; wedding market.
Abandono, soledad y abandono del amor: el racismo
como elemento excluyente de las mujeres negras en el
mercado del afecto
Resumen: El artículo aborda las desigualdades y jerarquías existentes en el mer-cado del amor a partir del estudio de un público específico, las muje-res negras, cuando buscamos identificar qué magia social (Bourdieu, 2004) excluye a estas mujeres del mercado del afecto. En términos metodológicos, aplicamos cuestionarios semiestructurados por for-mularios de google y aplicamos el mismo cuestionario en persona en un barrio popular de una ciudad en el interior de São Paulo. Los datos
indican el racismo como la magia social que crea barrera en el mer-cado del afecto; también indica que las posiciones afectivas de estas mujeres no encajan en ninguno de los cuatro enfoques catalogados por
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nosotros sobre el amor (amor líquido, amor romántico, poliamor, amor confluente), llamando la atención sobre nuevas teorías que pueden dar cuenta de la experiencia afectiva de esta población.
Palabras clave: Amor. Afecto de las mujeres negras. Racismo. Mercado de bodas.
Introdução
O amor é parte da sociabilidade humana desde sempre. Na Gré-cia antiga, Platão já entoava discussões acaloradas sobre o amor e a literatura também deu destaque a esse sentimento ou emo-ção, sendo “Tristão e Isolda” e “Romeu e Julieta” dois exemplos clássicos. Na literatura infanto-juvenil o amor tem destaque nos contos de fada, sempre com final feliz entre príncipes e prince-sas e foi popularizado no cinema hollywoodiano, que, aliás, aju-dou a consolidar o estilo narrativo de amor romântico (Rossi, 2013). As novelas brasileiras também popularizaram uma nar-rativa romântica sobre o amor (Souza, 2020) e colocam o amor como a missão última de vida (Jardim, 2019).Apesar de já presente nos clássicos da sociologia – tanto o amor Eros (afetivo-sexual), que estava nos clássicos alemães, como os
amores Ágape e Philia1, presentes junto aos clássicos franceses (Jardim e Souza, no prelo), somente na década de 1970 o amor começou a ser sistematicamente estudado pelas ciências so-
ciais2. Além das ciências sociais e da psicologia, o amor é objeto
1 Em texto de 2006, Vandenberghe define a tipologia de amor existente na filosofia grega: ágape, eros e philia. Na ocasião, o autor cria um quarto tipo, que seria o amor Interesse. 2 Com forte inspiração em Freud, a psicologia se adiantou na discussão. De acordo com Sternberg (1997), Reik (1944) construiu uma primeira teoria sobre o amor nos anos 1940 com forte influência da psicanálise freudiana. As ciências sociais passaram a pro-duzir nos anos 1990 sobre o tema, sendo leituras obrigatórias desse momento: Niklas Luhmann, “O Amor como Paixão” (1991), Giddens, “A transformação da intimidade” (1993), Pierre Bourdieu, “A dominação masculina” (2019) e o casal Beck, “O caos normal do amor: novas formas de relacionamento” (2001).
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de discussão na neurociência, o que demonstra a interdiscipli-naridade do tema (Raquel, 2021).Diante da importância do estudo do amor de forma científica, temos investido esforços na investigação do tema, revelando-o como uma construção social (Jardim, 2017, 2019, 2021, no pre-lo); e reivindicando que o amor seja consolidado como tema de estudos nas ciências sociais (Jardim, 2017; Jardim, Rossi, 2021). Nesse contexto, destacamos o artigo de 2017 (Jardim; Moura),
quando estudamos o mercado do amor em dois aplicativos para relacionamento afetivo, sinalizando a desigualdade existente nes-se mercado, já que mulheres fora dos padrões estéticos possuem menos escolhas (e muitas vezes não possuem nenhuma escolha) em contraponto às mulheres dentro dos padrões estéticos como as brancas, magras e de cabelos lisos. Na ocasião, questionamos a tese de Illouz (2011), sobre a abundância de afeto nos aplicativos, uma vez que nossa imersão no campo teria indicado que esse afe-to não é distribuído de forma igualitária para todos os consumi-dores de afeto do mercado, ou seja, independentemente da cor de pele, textura do cabelo, peso e nível de escolaridade, por exemplo. Concluímos, na ocasião, que não existia amor à primeira vista e muito menos livre mercado do amor, já que esse estaria susten-tado e sustentando valores do senso comum, os quais criariam barreiras aos consumidores desse mercado. No artigo que ora apresentamos, aprofundamos o argumento de que existem desigualdades e hierarquias no mercado do amor, a partir do estudo de um público específico, as mulheres pre-tas, quando buscamos identificar as barreiras que excluem essas mulheres desse mercado. Em outras palavras, queremos conhe-cer qual a mágica social (Bourdieu, 2004) que deixa mulheres pretas excluídas do mercado de casamento. A originalidade do artigo é, portanto, debater dois temas pouco usuais na pesquisa sociológica, o amor e o amor das mulheres
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pretas. Sobre o estudo da afetividade das mulheres pretas, Pa-checo (2006, p. 154) afirma que “a questão racial já mereceu a atenção de diversos intelectuais, mas pouco se falou da afetivi-dade do negro e mais ainda, cruzando as variáveis afeto, raça e gênero”. O mesmo argumento é compartilhado por Silva (2003) e Silva (2019) para quem a maioria de estudos sobre a raça no Brasil reconhece os efeitos contemporâneos do sistema colonial sobre a vida da população negra em matéria socioeconômica e política (Silva, 2019), mas que existe uma ausência de estudos que considerem a negação da liberdade da expressão das emoções dos povos negros, da sua subjetividade afetiva e da oportunidade de constituir e manter laços de família (Silva, 2003; Silva, 2019).Além da ausência de discussão teórica sobre o tema, a definição de nosso recorte empírico efetivou-se quando tivemos acesso a alguns dados estatísticos sobre matrimônios nessa população. No que se refere a casamento, o IBGE de 20103 mostrou - des-mistificando a ideia de miscigenação no Brasil - que 70% dos
casamentos no país ocorrem entre pessoas da mesma cor e que as mulheres pretas (à época, 7% da população) são as que menos se casam. Ainda segundo o IBGE de 2010, 52% da população feminina preta não vivia união estável, ou seja, era solteira, sendo que as mulheres pretas com mais de 50 anos estavam na categoria “celibato definitivo”, o que significa que nunca viveram um relacionamento estável. Lembramos que no IBGE de 1991, as mulheres brancas se casavam 11% mais que as mulheres negras (Petrucelli, 1990).O IPEA de 2013 mostrou, mais uma vez, que essas mulheres não possuem companheiro, quando pontua que 51,1 % dos lares brasileiros são chefiados por mulheres pretas. O protagonismo
3 O tema nupcialidade foi pesquisado no censo do IBGE de 2010, quando foi perguntado às pessoas sobre seu estado civil (se elas eram solteiras, casadas, separadas), sua idade, gênero e sua cor. Também se investigou se os casamentos eram feitos no civil, no reli-gioso, etc.
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da mulher preta já havia sido sublinhado por Florestan Fernan-des, em 1978, quando o autor percebe que a mulher preta seria a base para a sustentação da família negra e que, mesmo sozinha, chefiava a família econômica e educacionalmente4. Uma outra forma de perceber a afetividade de mulheres pretas é pelo número de mães solo. De acordo com os dados do IBGE de 2020, o Brasil tem 11,4 milhões de famílias formadas por mães solo, sendo que a grande maioria delas é preta, ou seja, 7,4 milhões5. Nessa mesma direção, o Mapa da Violência de 2015 demonstra que as principais vítimas de violência de gênero são as mulheres e as meninas pretas. Por fim, Carneiro (2017) informa que o levanta-mento na Secretaria Especial de Políticas para Mulheres para o ano de 2016 demonstra que 59,71% das mulheres que relataram casos de violência doméstica pelo Ligue 180 eram pretas. Para entendermos o conjunto de dados apresentados acima, so-bre as mulheres pretas, citamos Silva (2003, p. 01):
A situação da mulher negra no Brasil de hoje manifesta um
prolongamento da sua realidade vivida no período de es-cravidão com poucas mudanças, pois ela continua em úl-timo lugar na escala social e é aquela que mais carrega as desvantagens do sistema injusto e racista do país. Inúmeras
pesquisas realizadas nos últimos anos mostram que a mu-lher negra apresenta menor nível de escolaridade, trabalha mais, porém com rendimento menor, e as poucas que con-
seguem romper as barreiras do preconceito e da discrimi-nação racial e ascender socialmente têm menos possibili-dade de encontrar companheiros no mercado matrimonial.
4 Apesar das críticas que Florestan Fernandes recebe dos especialistas raciais, por con-siderar a sociedade a partir da questão da classe social e não da raça, o debate racial também pode ser notado no autor.5 Em nossas pesquisas em andamento sobre o mercado da reprodução assistida, temos encontrado um grande interesse pela maternidade solo e 99% das mulheres que procu-ram clínicas de reprodução assistida são brancas, o que também pode ajudar a entender o aumento de mães solo brancas na última década, conforme IBGE (2020).
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Considerando esse contexto, o objetivo do artigo é identificar a mágica social (Bourdieu, 2004) que faz com que as mulheres pre-tas sejam excluídas do mercado do afeto e, mais, que entendam essa exclusão como fracasso individual e como um problema de foro íntimo, tornando-se muitas vezes cúmplices da dominação que lhes é aplicada, no sentido de “trabalharem” (sem saber e sem querer) para reforçá-la. No caso estudado, essa cumplicida-
de acontece quando as mulheres aceitam relacionamentos sem compromisso (amantes, ficantes, sexo casual), não por desejo ou por liberdade sexual, mas, ao contrário, como forma de fugir da solidão afetiva que lhes é imposta.Entendemos mágica social a partir de Bourdieu (2004), para quem existiria um trabalho mágico e oculto no processo de interiorização de valores sociais, realizado em uma ação pe-dagógica poderosa, que conta com a cumplicidade de agentes e instituições, formando uma crença dóxica, ou seja, um pen-samento legítimo que, de tão interiorizado no inconsciente social, é visto como natural. Esse valor “natural” seria repro-duzido a partir de discursos e de práticas de agentes e ins-tituições. Ainda como marco teórico, o texto dialoga com os
achados empíricos da literatura que trata de amor e mulhe-res pretas, com destaque para Pacheco (2006, 2008, 2013) e Souza (2008), e, por fim, os dados empíricos da pesquisa são colocados em diálogo com as quatro abordagens catalogadas por nós sobre o amor: amor líquido, amor romântico, amor confluente e poliamor. Em termos metodológicos, fizemos uso de duas estratégias para coleta de dados: na primeira aplicamos questionários semies-
truturados pelo google forms, o qual foi respondido por 45 mu-lheres pretas. Ao constatar que, dessas 45 mulheres, apenas cin-co não possuíam diploma superior, aplicamos presencialmente o questionário em mulheres pretas sem diploma superior em um bairro popular, quando conseguimos 19 respostas, somando 64 questionários ao todo. O material foi tratado a partir da aná-
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lise do discurso de Pierre Bourdieu (2011)6, no sentido de que, além de olharmos os discursos, atentamos para algumas variá-veis do sujeito falante, como raça, idade, estado civil, ocupação/profissão, profissão do pai e da mãe, sustentando o discurso em uma trajetória social, uma vez que, para Bourdieu (2011), um discurso só pode ser entendido a partir da posição do agente social que discursa.O texto está dividido da seguinte forma: além desta introdução e da conclusão, é composto por uma seção na qual revisamos como o tema “amor e questões raciais” tem aparecido nas ciên-cias sociais; em seguida, mostramos as pesquisas inovadoras so-bre casamento e raça dos anos 1980/1990; e, finalmente, apre-sentamos e analisamos os dados da nossa pesquisa empírica.
1. O amor e as questões raciais no BrasilO estudo sobre o amor é algo novo nas ciências sociais. Rela-cionar amor, raça e gênero é ainda mais raro7. Em pesquisa no Scielo Brasil, não encontramos produção com a associação das seguintes palavras-chave: amor e mulher preta; amor e mulher negra; afetividade e mulher preta; afetividade e mulher negra. Em pesquisa ao banco de teses Capes, encontramos cinco resul-tados, sendo três da área das ciências sociais e dois da área da psicologia, como expomos a seguir. No ano de 2008 foram defendidas duas pesquisas que influen-ciam sobremaneira os estudos sobre afetividade e mulher preta no Brasil. A primeira foi a reconhecida tese de doutoramento de Ana Claudia Lemos Pacheco, intitulada “Branca para casar, mu-
6 O texto de Pierre Bourdieu “Célibat et condition paysanne”, de 1962, também inspira nossas questões. 7 No primeiro capítulo do livro “Casa Grande e Senzala”, Gilberto Freyre não fala de amor, mas de sexo.
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lata para foder, negra para trabalhar: escolhas afetivas e signi-ficados de solidão entre mulheres negras em Salvador, Bahia”, defendida na Unicamp.A pesquisa foi realizada com mulheres pretas em Salvador, na Bahia, a partir de dois grupos empíricos: o primeiro composto por cinco mulheres negras ativistas políticas; e o segundo for-mado por cinco mulheres não ativistas. Seus dados apontam que os corpos femininos são construídos historicamente e que o ato de amar não estaria isento das hierarquias sociais impostas às mulheres, sobretudo às mulheres pretas. As relações de domi-nação, portanto, determinariam as escolhas afetivas, quando as mulheres negras ficariam em desvantagem. Seus resultados in-dicam que há um excedente de mulheres negras solitárias, isto é, sem parceiros afetivos fixos e sem relações afetivo-sexuais es-táveis, quando comparados com mulheres brancas.Dois anos antes da defesa da tese, em 2006, Pacheco havia es-crito um artigo seminal sobre o tema, “Raça, gênero e relações sexual-afetivas na produção bibliográfica das ciências sociais brasileiras: um diálogo com o tema”, no qual retoma as teo-rias raciais existente no Brasil e conclui que a miscigenação vem sendo realizada mais pela preferência afetiva de homens negros por mulheres brancas ou mulheres de pele clara, do que de mulheres negras por homens brancos; que as mulheres negras são as menos preferidas para uma união afetiva estável pelos homens brancos e também pelos negros, perdendo na disputa matrimonial-afetiva para as mulheres brancas; como resultante dessa disputa haveria um excedente de mulheres negras solitá-rias, sem relacionamento afetivo. A autora aponta, ainda, que as negras perfazem a maioria (mais de 50%) entre as mulheres sol-teiras, viúvas e separadasÉ ainda da mesma autora o livro “Mulher Negra. Afetividade e Solidão”, de 2013. Nesse livro, Pacheco constata a existência de um processo histórico que desumaniza a mulher negra, posicio-
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nando-a como um sujeito sem sentimentos, animalizada, hipers-sexualizada, ou seja, um sujeito que não é digno de ser amado, nem de amar. Isso difere do que ocorre com a mulher branca ou socialmente embranquecida, associada ao padrão de bele-za, o que eleva o status de quem se relaciona com ela. A autora defende, com base em pesquisa empírica, que não se pode dissociar as categorias gênero, raça e classe ao buscar entender a vida afetiva das mulheres negras.A segunda pesquisa encontrada no banco de dados Capes é uma dissertação de mestrado, “A solidão da mulher negra: sua subje-tividade e seu preterimento pelo homem negro na cidade de São Paulo”, defendida na PUC de São Paulo, em 2008, de Claudete Alves da Silva Souza.Essa dissertação - que é recorrentemente citada e indicada para
leitura pelas militantes negras das redes sociais - tem como
argumento que as histórias das mulheres negras são permea-
das pela solidão e por sucessivos revezes nas lutas de resistência
contra as políticas de dominação escravagista, de segregação e
exclusão social e de assunção unilateral de responsabilidades fa-
miliares. Portanto, a lógica da sociedade patriarcal e escravista
parece ter delineado seus contornos com a apropriação do corpo
da mulher escrava e da exploração sexual do seu corpo (Souza,
2008)8. A autora nos lembra que na época da escravidão não
8 Visando relativizar um pouco as afirmações - de que as mulheres escravizadas apa-recem apenas na exploração sexual de seus corpos - lembramos que há toda uma produção em história social, desencadeada por Robert Slenes, que fala das famílias escravizadas no contexto da grande propriedade e indica outros papéis a essas mu-lheres. Também tem os contos de Machado de Assis e os relatos de suicídio e infan-ticídio de mulheres negras, como no romance Beloved de Tony Morrison. E muitos casos de famílias escravizadas, envolvendo ou não filhos ilegítimos do senhor, re-cebendo herança em terras e alforriadas, ou de sitiantes nas bordas da grande pro-priedade, tudo isso, e outras modalidades mais, constituindo “terras de pretos”, hoje reconhecíveis como remanescentes de quilombos. Portanto, apesar de Souza (2008) ter razão, a mulher preta aparece em outras abordagens na literatura, para além da questão da sexualidade.
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era dado a essa mulher o direito de ter a própria família (Sou-za, 2008)9.
O argumento que motiva Souza (2008) é que a solidão afetiva da
mulher preta tem origem na estrutura familiar; nesse sentido, quer
entender o que as mulheres negras solteiras têm em comum. Os re-
sultados da pesquisa indicam que as mulheres entrevistadas já nasce-
ram e cresceram com o racismo e o sexismo como sistemas cruzados
de opressão. Muitas das mulheres entrevistadas para a pesquisa nun-
ca vivenciaram relacionamentos fixos, duradouros e saudáveis. A
mulher negra, para Souza (2008), além de sozinha, é a maior vítima
da violência doméstica. A mesma autora argumenta que as mulheres
pretas têm o papel de provedoras do lar e da sobrevivência de seus
dependentes, uma vez que as famílias são formadas por mães solo e
pais desconhecidos. Seu argumento, do ano de 2008, está de acordo
com os dados do IBGE de 2013, os quais mostram que 51,1% dos
lares são chefiados por mulheres pretas. Dez anos depois dessas duas primeiras iniciativas seminais, te-mos a dissertação de mestrado de Amanda Raquel da Silva intitu-lada “A cor das relações: corpo, idade e afetividade na experiência de mulheres negras em um bairro de Natal/RN” (UFRN), de 2019. A pesquisa, de cunho antropológico, de Silva (2019) foi realiza-da com mulheres negras residentes em um bairro periférico de
9 Para aprofundamento dessa tese ver Sonia Maria Giacomini (1988), autora que trata das tensões relativas ao papel social e sexual da mulher negra escravizada no Brasil e argumenta que a vida privada ou vida familiar se apresentam como contradição na vida da mulher negra, por carregar a condição de “coisa” imposta aos negros naquele período, pois a constituição da família era inacessível a quem não possuía nem a si próprio. Nas suas pesquisas, a autora percebe que a expressão “família escrava” não aparece, mas, sim, expressões como “filhos de escrava” ou “mãe de escravo”, portanto, nada que reme-tesse à noção de família, que é veiculada somente sobre a relação da mãe e seus filhos, que ao menos se fazia presente pela necessidade fisiológica dos filhos com relação às mães no início de suas vidas. Todavia, com respeito a pais e irmãos, nada era citado, sendo a questão da paternidade inexistente. Mesmo quando relatada, a maternidade aparece no sentido de negação, retratando o afastamento dos filhos.
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Natal, Rio Grande do Norte, na faixa etária entre os 50 e 75 anos de idade. Com base em sua vivência com essas mulheres e com forte inspiração em bell hooks (2000), Silva (2019) defende que a escravidão levaria os negros a não se envolverem emocional-mente, evitando sofrimentos com uma possível separação. Nes-se sentido, esconder emoções e mascarar sentimentos passaram a fazer parte de uma aparente personalidade forte para as pes-soas de origem negra e, por outro lado, de uma postura segundo a qual mostrar os sentimentos teria se tornado uma bobagem. Essa forma de lidar com as emoções teria se mantido, após o fim da escravidão no Brasil, quando essas pessoas passaram a manter o controle das emoções e o afastamento do amor, que passou a ser vivido de forma pragmática, portanto além do amor romântico, “afinal, como alimentar afeto por outras pessoas em contextos nos quais era impossível prever se estariam ou não
juntos?”, questiona Silva (2019, p. 35). Na área da psicologia social, encontramos duas contribuições: uma de 2018 e outra de 2020. A primeira, “A cor do amor: o ra-cismo nas vivências amorosas de mulheres negras”, defendida
na Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, por Eliana Gamas Fernandes. Com base em pesquisa empírica, a autora demonstra que os esforços das mulheres negras para se encai-xarem nos padrões de brancura são evidenciados por meio dos relatos sobre alisamento e tintura dos cabelos, isto é, todas as participantes da pesquisa afirmaram ter passado por embran-quecimento estético para ter alguma visibilidade afetiva (Fer-nandes, 2018). A segunda pesquisa, de 2020, de Hênio dos Santos Rodrigues, in-titulada “Racismo sexual, despersonificação e preterimento
da mulher negra: o amor tem cor?”, defendida na Universi-dade Federal de Sergipe, argumenta que no “mercado dos afe-tos” do Brasil existe uma seletividade conjugal, e o dito “paraí-so racial” se transforma em inferno para aqueles que não estão dentro da lógica eurocêntrica que norteia as relações amorosas.
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Nesse contexto, mulheres pretas estariam excluídas do mercado de casamento. Em artigo sobre a solidão da mulher preta, as pesquisadoras da área da psicologia Mizael, Barrozo e Hunziker (2021) realiza-ram uma revisão bibliográfica com as palavras “solidão da mu-lher negra/preta” e “rejeição da mulher negra/preta”, não ape-nas no banco de dados Capes, mas também no google acadêmico e encontraram um total de oito pesquisas, sendo que, nessas, a solidão da mulher negra foi relacionada principalmente à falta de um parceiro, ao abandono parental e/ou do próprio parceiro e ao preterimento afetivo-sexual. Isso quer dizer que, se ampli-ássemos nossa pesquisa para a palavra solidão/rejeição da mu-lher preta/negra, teríamos uma maior produção. Apesar dessa discreta diferença, o que a nossa pesquisa bibliográfica, assim como a de Mizael, Barrozo e Hunziker (2021), mostra é que o es-tudo da afetividade das mulheres pretas está longe de se tornar uma agenda expressiva nas ciências sociais.
2. As primeiras iniciativas e os autores “clássicos” no tema É muito comum, nas pesquisas identificadas no item anterior, a existência de referências aos estudos inaugurais sobre o mercado matrimonial dos anos 1980/1990, os quais alertam para o fato de que as mulheres negras seriam as mais rejeitadas no mercado conjugal (Berquó, 1987; Moreira, S. Sobrinho, 1994; Petruccelli, 1991). Contudo, se antecipando no debate, na década de 1970, Florestan Fernandes (1978) já havia pontuado que o negro foi socialmente desestabilizado em todos os seus aspectos, inclusive afetivo-sexual. Para o autor, no plano sexual e afetivo, as mulheres negras sofreram a penúria, a humilhação e a infelicidade por ter relações amorosas transitórias, não estáveis. As suas experiências afetivas com homens negros e brancos seriam frutos da desorganização social do “meio negro”. Assim, prostituição, alcoolismo, poligamia e abandono seriam
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fatores anômicos do modo de vida dessa parcela da população. Desse modo, o abandono e a solidão entre as mulheres negras seriam frutos dessa tensão social que as associa ao sexo, às re-lações efêmeras, ao “amor físico”, afastando-as dos projetos de vida “conjugal” e, do nosso ponto de vista, do ideal de amor ro-mântico, perseguido pelas mulheres brancas.Sobre as referenciadas pesquisas dos anos 1980, destaque para o artigo “Nupcialidade da população negra no Brasil”, de Berquó (1987), que inaugurou essa agenda de pesquisa, quando a auto-ra analisou os censos dos anos 1960 a 1980 e constatou que, em comparação com as mulheres brancas, as mulheres negras eram
as que menos se casavam e constituíam o maior número de sol-teiras, viúvas e separadas; apontou, ainda, que as mulheres ne-gras se casam em idade mais avançada que as mulheres brancas, além de também fazerem parte da categoria mais propensa ao “celibato definitivo”, ou seja, daquelas que nunca tiveram um re-lacionamento afetivo (Berquó, 1987). Nessa direção, destaque também para a pesquisa de Petruccelli (2001), que fez uso dos dados do IBGE de 1991 para estudar o mercado de casamento e demonstrou que as mulheres brancas se casavam 11% mais que as mulheres negras. Na mesma direção, Silva (1987) demonstrou, em “Distância So-cial e Casamento Inter-racial no Brasil”, o maior número de mu-
lheres negras solteiras e a grande ocorrência de casamentos em que a mulher é mais clara que o marido, ou seja, o casamento do homem preto com a mulher branca, o que criaria uma defa-sagem no mercado de casamento para as mulheres pretas, por um duplo movimento: primeiro os homens brancos preferem as mulheres brancas; segundo, as mulheres brancas não escolhidas
por homens brancos passam a concorrer por homens pretos no mercado marital, reduzindo as chances de casamento das mu-lheres pretas, que competem em desigualdades, pois os homens pretos também teriam incorporado o padrão estético vigente como padrão legítimo, ou seja, o padrão da mulher branca. Para
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Oliveira (2019), diferente da mulher preta, o homem preto, ape-sar de carregar os estereótipos negativos, consegue se inserir mais facilmente no mercado de casamento. Devido ao excedente de mulheres brancas e à imagem atrelada ao homem viril, eles demoram mais a ficarem sozinhos e conseguem se relacionar mesmo após determinada idade.Uma outra forma de entender o interesse do homem negro pela mulher branca está em Fanon (2008), para quem a escravidão promove no negro o ódio por si mesmo, levando-o a se aproxi-mar do ideal branco, visto como superior. Sobre isso, em “Tor-nar-se negro” (1982), Neusa Santos defende que o emocional dos negros é abalado pelas ideologias dominantes e que, para sua ascensão social, os homens pretos tendem a se aproximar do ideal dominante branco nos relacionamentos, procurando mu-lheres brancas para o casamento. Isso faz com que os homens
pretos sejam mais propensos ao movimento de clareamento do que as mulheres pretas. Outra recorrência nos estudos sobre o tema é a citação da autora
bell hooks10 (2000), escritora feminista e militante das questões raciais nos Estados Unidos. Por fundamentar não apenas as pes-quisas acadêmicas no tema, mas a militância feminista negra nas redes sociais, colocaremos em tela seus principais argumentos. Para bell hooks (2000), a opressão sofrida pelos negros duran-te a escravidão, somada à exploração, criou condições emocio-nalmente difíceis para eles, comprometendo negativamente sua subjetividade e a capacidade de amar. Portanto, o amor, que, em princípio, seria espontâneo, passou por uma distorção e se tor-nou um ato de resistência para essa população.
10 É o pseudônimo de Gloria Jean Watkins, escritora norte-americana nascida em 25 de setembro de 1952, no Kentucky – EUA. O apelido que ela escolheu para assinar suas obras é uma homenagem aos sobrenomes da mãe e da avó. O nome é grafado em letras minúsculas, bell hooks.
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Em seus argumentos, hooks (2000) acrescenta que os negros dos Estados Unidos estabeleceram relações afetivas com base na brutalidade, reproduzindo suas vivências durante a escravidão. É como se houvesse um inconsciente social, baseado na violên-cia, fundamentando a forma de se relacionar com o amor. No Brasil, esse argumento aparece em Florestan Fernandes, no livro “Integração do Negro na Sociedade de Classe”, de 1978, quando o autor afirma que, completamente excluídos e discri-minados, os homens negros viam no ato sexual a única atividade prazerosa que podiam praticar durante o dia, já que o trabalho honesto estava bloqueado a muitos deles; e o ato sexual não vi-nha acompanhado de afeto e muito menos de compromisso com os filhos oriundos dessas relações sexuais sem vínculo afetivo. Segundo bell hooks (2000), a população negra passou a reprimir toda e qualquer forma de afeto como estratégia de sobrevivên-cia, uma vez que o racismo a levou a ter no ódio uma referência de afeto. Esse argumento é compartilhado por Fanon (2008), que afirma que o racismo é capaz de produzir no sujeito negro um sentimento de ódio a si e à sua negrura. No caso das mu-lheres pretas, que eram obrigadas a se deitar com seus donos, Gonzalez (1988) afirma que o amor, para a mulher escravizada, era um verdadeiro pesadelo.Em suma, pesquisas acadêmicas abordam o mascaramento das emoções pelos escravizados. Por exemplo, Florestan Fernandes (1978), Giacomini (1988) e Davis (2016) demonstram que a ex-pressão de sentimentos, seja dor, sofrimento, tristeza, alegria, paixão, animação, podia acarretar ainda mais punições no perí-odo da escravidão, motivo pelo que os escravizados passaram a ocultar suas emoções, fossem elas boas, fossem ruins. A revisão bibliográfica desse item nos permite concluir que, após mais de 100 anos do fim da escravidão no Brasil, estaria no inconsciente social dos povos negros uma relação na qual o
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amor é visto como necessidade suplementar e a sobrevivência material como necessidade primária. Portanto, concordando com Florestan Fernandes (1978) e bell hooks (2000), afirma-mos que, mesmo com a abolição da escravatura, os negros não ficaram imediatamente livres para amar, por pelo menos dois motivos: o primeiro, a dificuldade em lidar com as emoções, es-pecialmente a expressão do amor; o segundo a existência do ra-cismo na sociedade, que limita a entrada e o movimento dos ne-gros no mercado do amor e do casamento, especialmente para as mulheres pretas.
3. Amor das mulheres pretas: contato com o mundo socialPara coletar dados sobre o afeto das mulheres pretas, aplicamos um questionário pelo google forms intitulado “O amor como construção social: o caso das mulheres pretas”, que foi divulga-do pelas redes sociais entre 14 e 25 de fevereiro de 2022 e para o qual houve 45 respostas11. O questionário foi composto por 19 questões, com espaço para relatos sobre a vivência afetiva e sexual, assim como relatos sobre sucessos e fracassos afetivos. O que nos chamou atenção foi que, nessa primeira amostra, 40 mulheres tinham ensino superior.Nesse sentido, para acessar mulheres pretas sem ensino supe-rior, aplicamos o mesmo questionário de forma presencial em um bairro popular da cidade de São Carlos, estado de São Pau-lo, entre os dias 25 e 28 de fevereiro de 2022. A estratégia para aplicar o questionário foi bater de forma aleatória nas casas, acompanhadas por uma ex-aluna da Unesp de Araraquara, que é moradora desse bairro. Explicamos os objetivos da pesquisa
e que gostaríamos de conversar com mulheres pretas acima de 18 anos. Na ocasião, fomos bem recebidas por mulheres que se
11 Disponível em: https://forms.gle/RbhBqcdATCp5qLXk6
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autodenominavam pretas e também por aquelas que, apesar de ter a cor da pele preta, não se identificaram como tal e não se interessaram em colaborar com a pesquisa. No total, obtivemos 19 retornos nessa empreitada. Portanto, o corpus empírico des-te artigo é composto de 64 questionários, dos quais 24 foram respondidos por mulheres pretas sem ensino superior (19 na pesquisa presencial no bairro e seis na pesquisa pela internet) e 40 respondidos por mulheres pretas com ensino superior.
As mulheres que responderam ao google forms têm entre 22 e 60 anos de idade, são heterossexuais, solteiras, sem filhos; das 45 mulheres, apenas cinco não possuíam ensino superior. As
mulheres sem ensino superior que responderam a esse questio-nário têm entre 20 e 46 anos, são heterossexuais, possuem mais de um filho, em alguns casos de pais diferentes, são separadas/solteiras e não possuem o ensino médio completo.
Os temas que mais apareceram nos dois grupos estudados foram: sofrimento ligado ao racismo na infância e na adolescên-cia; casamento ou a falta dele e a relação com o fracasso afetivo; hiperssexualização da mulher preta; invisibilidade afetiva da mulher preta e relacionamentos abusivos. Abordaremos cada um deles a seguir, buscando construir uma narrativa da infân-cia à fase adulta. Não definimos hierarquicamente qual o tema é mais importante, pois existe uma combinação deles nos de-poimentos. Citaremos frases apenas para exemplificar e dar voz às mulheres, uma vez que o material coletado é denso e esses exemplos se repetem nos depoimentos.
3.1. Sofrimento ligado ao racismo: infância e adolescência
Todas as mulheres, sem exceção, relataram rejeição afetiva na infância e na adolescência, marcando sua subjetividade como uma mulher de pouco ou nenhum valor e de não merecimento de um final feliz amoroso. Em Jardim (2019), alguns desses ar-gumentos também aparecem em mulheres brancas, mas defen-
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demos que, quando em diálogo com o racismo, o sentimento de pouco valor e baixa autoestima é potencializado. Sintetizamos uma amostra de depoimentos no quadro abaixo, apenas como ilustração, uma vez que o material empírico é den-so e esses argumentos se repetem ao longo dos depoimentos. Nesse sentido, as frases selecionadas representam o todo.
Quadro 1: Racismo na infância e na adolescência. “Desde a adolescência minha vida afetiva é muito travada. Nada acontece. Nem uma paquera. Acho que não mereço um amor” (28 anos, solteira, faxineira, segundo grau completo, 2 filhos, mãe faxineira e pai pedreiro). “Uma vez, no segundo ano, eu tinha uns 8 anos, escrevi uma cartinha e coloquei no caderno do menino que eu gostava; quando ele viu a carta, mostrou para a professora e me apelidou de “cabelo pixaim”. Até esse dia eu não tinha me dado conta que eu era “diferente” dele; foi meu primeiro amor que me apresentou ao racismo” (33 anos, separada, caixa de supermercado, segundo grau incompleto, 2 filhos, mãe e pai são trabalhadores rurais na ativa). “Na infância e adolescência, sempre me achei feia e também tinha o preterimento dos meninos, tanto negros como brancos” (36 anos, solteira. Nutricionista. Sem filhos. Mãe auxiliar de enfermagem e pai serviços gerais). “Na adolescência eu não tive namorados, estudei numa escola de brancos apesar de pública; entre a transição do ensino para a faculdade nem pretendente eu tive (...)” (50 anos, solteira. Professora universitária. Sem filhos. Mãe do lar e pai funcionário público federal). “Na adolescência eu era classificada como feia pelos meninos, e levei isso para mim por um bom tempo até entender o racismo por trás das escolhas e construção social do que é “gosto”” (41 anos. Professora, fez mestrado em Pedagogia na PUC de São Paulo. Sem filhos, mãe costureira e pai metalúrgico).“Quando adolescente me achava feia, pois meu tipo de corpo, cabelo e cor não é de-sejado” (30 anos. Solteira. Psicóloga. Estudou Psicologia na Universidade Federal de Santa Maria, sem filhos. Mãe empresária e pai pedreiro).Fonte: dados da pesquisaTodos os depoimentos pontuam a presença do racismo nas esfe-ras de sociabilidade, desde a escola até a construção de relacio-namentos afetivos e a vergonha sentida pela cor de pele.
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Quando eu era criança e adolescente, tinha vergonha nas aulas de história quando a professora falava que os negros eram escravizados e humilhados. Eu abaixava a cabeça e fi-cava quieta, como tinha a pele parecida com a das imagens dos livros, algo me dizia que aquela história era minha, mas era uma história que me causava vergonha, eu ficava quieta e pensando, ‘tomara que ninguém perceba que eu sou pa-recida com os desenhos dos livros (30 anos, ficando com alguém comprometido, segundo grau completo, tem dois filhos, vendedora em uma loja do mercadão da cidade. Mãe faxineira e pai pedreiro).Os depoimentos dialogam com a literatura que afirma que, devi-do aos padrões estéticos impostos pela sociedade brasileira, que valorizam a mulher branca e que são distribuídos pela televisão e cinema, a mulher preta aprende, desde criança, a não ver va-lor em seu corpo, cabelo e rosto, pois esses seriam “o oposto do padrão de beleza estipulado pela sociedade” (Silva, 2019). Para Gomes (2006), a beleza pode servir como marca distintiva e dis-criminatória e foi o que os depoimentos nos relataram.Além disso, o racismo levou essas mulheres a pensarem que ha-via algo errado com elas, ou que eram más, uma vez que eram ignoradas pelos meninos e também porque tinham dificuldade em ter uma “melhor amiga”.
Quadro 2: Racismo e baixa autoestima“Eu sempre achei que tinha algo errado comigo, que o problema era eu, só adulta fui me dar conta do racismo” (37 anos, faxineira, 8ª série, separada, quatro filhos, pais trabalhadores rurais aposentados). “Na hora do recreio eu sempre ficava sozinha; mesmo oferecendo meu lanche eu não conseguia uma “melhor amiga”, muito menos um paquerinha. Eu achava que eu tinha algum problema, que eu era má, porque ninguém gostava de mim” (50 anos, separa-da, 3 filhos, trabalha em uma fábrica como metalúrgica, segundo grau completo, mãe faxineira e pai pedreiro). Fonte: dados da pesquisa
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3.1.2 A festa junina como espaço de racismoA festa junina apareceu em todos os depoimentos como um momen-to especialmente difícil para essas mulheres na infância e na adoles-cência, por nem sempre conseguirem fazer um par para a quadrilha.
Quadro 3: Festa junina e racismo“Na escola, alguns nem me cumprimentavam, nunca dancei nas festas juninas, pois não era escolhida” (36 anos, solteira. Nutricionista, sem filhos. Mãe auxiliar de enfer-magem e pai serviços gerais).“Eu era a única preta na minha sala de aula, pois eu cresci no interior do estado de São Paulo, em cidade colonizada pelos italianos. Apesar de ser uma das melho-res alunas da turma, eu era sempre a última a ser escolhida para a festa junina. E era sempre o mesmo menino que também sobrava, que apesar de branco e filho de uma das professoras, era considerado feio para os padrões sociais (ele era branco, mas bem gordo)” (46 anos, solteira. Professora de uma universidade pública; doutora em pedagogia; Sem filhos. Mãe do lar e pai trabalhador rural aposentado). Fonte: dados da pesquisaNos depoimentos, as mulheres citaram como o problema era contornado pelos professores, o que pode ter causado mais so-frimento. Abaixo uma ilustração desse tipo de argumento co-
mum nos depoimentos:
Me lembro que na sétima série a professora contornou o problema me colocando para dançar com uma amiga, que também sobrou, não por falta de menino, mas porque tam-bém era negra. O problema é que uma de nós tinha que se vestir de menino e ninguém queria se fantasiar de menino
no momento que queríamos aparecer bem arrumadas e bonitas para os mweninos da escola. Era muito humilhan-te porque expressava a falta de par. Até hoje eu detesto fes-ta junina. (46 anos, separada, 2 filhos, caixa de supermer-cado, fez até 8ª série, mãe era faxineira e pai era pedreiro). Esse primeiro bloco de discurso mostra que o racismo esteve presente desde a infância dessas mulheres, construindo um
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marcador simbólico de pouco valor, que terá força excludente no momento das suas vivências afetivas.
3.1.3 A hiperssexualização da mulher preta versus o início
tardio da vida sexualAs mulheres dos dois grupos relataram, também, que quando são abordadas por homens é apenas para convites sexuais e que isso limita a possibilidade de sonhar e fazer planos afetivamen-te. Os valores que essas mulheres exprimem em suas falas rela-tivas à hiperssexualização são: 1) são vistas como objeto sexuais pelos homens, o que leva tanto a reconhecerem-se como 2) uma aventura, “a outra”, o que possivelmente as leva ao 3) início de uma vida sexual tardia. O quadro 4 sintetiza os argumentos refe-rentes a serem vistas como objeto sexual.
Quadro 4: A mulher preta como objeto sexual“(...) não sou vista como uma mulher a ser assumida, mas sim usada como desejo, fetiche sexual. Homens comprometidos sempre me olham com desejo e me sinto
muito mal por isso” (36 anos, solteira. Nutricionista. Sem filhos. Mãe auxiliar de enfermagem e pai serviços gerais).“Me sinto mal como mulher. Nenhum homem merece estar comigo. Não tenho valor. Ninguém me deu valor até hoje. Só me procuram por causa de meu corpo. Nunca elo-giaram meu rosto, só o meu corpo e, depois que conseguem sexo, somem” (23 anos, desempregada, solteira, um filho, mãe faxineira, pai pedreiro).“Nunca tive um relacionamento sério, embora quisesse. Os homens que me relacionei, com o tempo fui percebendo que só queriam sexo (...). Sou fora dos padrões impostos pela sociedade, mas me considero uma mulher apresentável” (22 anos, solteira, estudante de biblioteconomia em uma universidade pública, sem filhos. Mãe do lar e pai tesoureiro).“Meu sonho era ter um parceiro, alguém para viajar, sair, enfrentar a falta de dinheiro, ficar em casa e rir. Mas homens só enxergam meu corpo para sexo. Por isso não penso mais em casamento. Eu gostaria de ter mais um filho, mas não sozinha” (43 anos. Separada, assistente administrativa. Ensino Médio Técnico Administrativo. Tem um filho. Mãe doméstica e pai agricultor).Fonte: dados da pesquisa
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A hiperssexualização do corpo da mulher preta também foi encon-trada nas pesquisas de Gonzalez (1988), Pacheco (2008, 2013), Souza (2008) e Silva (2019). Segundo Oliveira e Santos (2018), na literatura brasileira a mulher preta foi relegada ao símbolo de hi-perssexualizada, como os personagens de Jorge Amado, ou mesmo prostituída, como no livro “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo. Ainda segundo as mesmas autoras, as novelas brasileiras seguem essa tendência, colocando a mulher preta como hiperssexualizada, o que nos faz lembrar a novela “A Cor do Pecado”, protagonizada por Taís Araújo na Rede Globo, em 2004, ou como a mammy, aquela que não tem um enredo próprio e cuida de todos. Nessa discussão, Gonzalez (1988) reforça que a mulher preta recebe dois enquadramentos da sociedade: a hiperssexualizada, a mulata que serve sexualmente, e a mãe preta, a mãe de todos, a que serve emocionalmente; portanto, em ambos os casos, sem identidade própria.Nessa linha da hiperssexualização, as mulheres afirmaram que mesmo quando estão solteiros, os homens pedem para manter o relacionamento escondido, possivelmente para evitar o cons-trangimento de apresentar uma mulher fora dos padrões legíti-mos para a sociedade.
Quadro 5: A mulher preta como “a outra”, a amante“Tenho dois filhos, os dois de relacionamento escondido. Eu nunca namorei, os ho-mens me veem apenas como objeto sexual, o que me deixa muito triste” (28 anos,
recepcionista em uma lan house. Dois filhos. Mãe faxineira e o pai desconhecido).“Vários caras com quem sai pediu para ficar escondido, mesmo sendo solteiro, fala-vam que não estavam prontos para relacionamento sério. Eu sempre soube que eles não me amavam, mas fazia sexo por um pouco de afeto” (45 anos, cuidadora, solteira, segundo grau completo, 3 filhos. Mãe faxineira e pai pedreiro). “Me envolvi com um homem indisponível com quem tive minha primeira vez. Ainda é mui-to doloroso lembrar da relação, pois é muito humilhante ser a segunda opção” (36 anos, solteira. Nutricionista, sem filhos. Mãe auxiliar de enfermagem e pai serviços gerais).“Minha primeira relação sexual foi com um homem comprometido (...) Foi horrível, eu era uma virgem que estava à disposição. Me senti como uma oportunidade úni-ca que a pessoa não poderia perder” (43 anos. Solteira, assistente administrativa. Ensino Médio Técnico Administrativo. Um filho. Mãe doméstica e pai agricultor).Fonte: dados da pesquisa
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O trabalho de campo mostra que, apesar de conscientes de que não estão sendo assumidas, algumas mulheres declararam acei-tar a situação e fazer sexo em troca de algum afeto. Também encontramos no trabalho de campo o desejo de andar de mãos dadas com o parceiro. “Meu sonho é ter um namorado para an-dar de mãos dadas, beijar publicamente. Não precisar ficar es-condido” (35 anos, solteira, dois filhos, balconista, segundo grau completo. Mãe e pai trabalhadores rurais na ativa), expressando
que o trivial para uma mulher branca se torna uma grande con-quista para essas mulheres.Diversas mulheres que relataram ter iniciado a vida sexual como amantes justificaram que não tiveram outra opção; ou era isso, o posto de amante, ou o celibato definitivo, conforme depoimento abaixo, de uma mulher de 50 anos, que iniciou a vida sexual aos 42 anos.
Quadro 6: Início tardio da vida sexual da mulher preta “Comecei minha vida sexual aos 42 anos. Com estima muitas vezes baixa por não ser correspondida. Trabalhava num laboratório de prótese e algumas vezes recebia propostas para ser amante, mas não a esposa” (50 anos, casada, morando em casa separada devido ao trabalho de ambos. Professora universitária. Sem filhos. Mãe do lar e pai funcionário público federal). “Até hoje não iniciei minha vida afetiva e sexual, por incrível que pareça, só beijei na boca duas vezes (...) na escola por exemplo, eu nunca fui olhada com outros olhos por ninguém, nunca mesmo (...) nunca tive a oportunidade de ter carinho e afeto em relação homem e mulher” (22 anos, auxiliar administrativa. Segundo grau técnico, sem filhos. Não informou ocupação/profissão dos pais).“Demorei muito para ter vida sexual, os meninos não se sentiam atraídos por mim, meu ex me trocou por uma menina mais nova e branquinha” (30 anos, solteira, formada em Economia por uma universidade pública. Mãe doméstica e não conheceu o pai). Fonte: dados da pesquisa
Tivemos muitos relatos de mulheres que iniciaram a vida sexu-al aos 20, 22, 25, 28 e 30. Se culturalmente temos o estereótipo da mulher preta como hiperssexualizada, os dados empíricos apontam em uma direção contrária: mulheres sem vida sexual,
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pois a iniciam tardiamente, após os 20 anos, 30 e até 42 anos. Segundo elas, não por falta de desejo ou vontade, mas por falta
de um parceiro para iniciar a vida sexual12. Concluímos que o início da vida sexual aos 20, 30 e 40 anos foi mais comum no grupo de mulheres com diploma universitário, mas também encontramos depoimentos de mulheres sem di-ploma universitário que iniciaram a vida sexual na casa dos 20 anos, igualmente por falta de parceiro sexual.
3.1.4. Ausência de casamento e fracasso afetivoNo questionário foi perguntado às mulheres sobre a vida afetiva, planos, sonhos e se consideravam o conjunto da sua vida afetiva como de sucesso ou de fracasso. Os relatos pontuaram o fracas-so afetivo, assim como a dor e o sofrimento pela ausência de um relacionamento.
12 As pesquisas indicam que as mulheres estão iniciando a vida sexual cada vez mais cedo. Segundo o Mosaico Brasil”, realizado pelo Prosex (Programa de Estudos em Sexua-lidade), ligado à USP (Universidade de São Paulo), em 2008 a iniciação sexual acontecia na faixa etária dos 13 aos 17, com concentração maior aos 15 anos. “Para ter uma ideia de como o começo da vida sexual está ocorrendo mais cedo, as mulheres que estão hoje na casa dos 70 anos tiveram a primeira relação, em média, aos 22”, afirma a psiquia-tra Carmita Abdo, coordenadora do Prosex. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2015/05/19/jovens-comecam-vida-sexual-cada-vez-mais--cedo-veja-como-agir.htm. Contudo, esse dado fala da mulher em geral. Se olharmos para esse dado por meio da variável cor, é possível que nos surpreendamos com um outro número, ou seja, com o início da vida sexual mais tardiamente para mulheres pretas, como apontou a pesquisa que embasa este artigo, na qual a faixa etária para a primeira experiencia sexual foi aos 22 anos. O início da vida sexual tardia ficou mais evidente em mulheres com diploma universitário.
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Quadro 7: Fracasso afetivo e a dor pela ausência do casamento“Tenho muitos vazios de relacionamento. Já fiquei quase dez anos sem namorar. Fiz alguns contatos por site de relacionamento, porém não avancei” (50 anos, solteira, assistente social, sem filhos. Mãe professora e pai técnico administrativo). “Minha vida afetiva foi sempre complicada, pois minha autoestima baixa. Devido a todo padrão de beleza que é imposto, mesmo que hoje exista representatividade ne-gra, ainda está longe do negro ser respeitado, imagina ser considerado bonito” (30 anos. Solteira. Sem filhos. Psicóloga. Mãe empresária e pai pedreiro). “Não vejo um homem querendo ter algo sério comigo Nunca algum homem con-versou comigo sobre isso” (26 anos, solteira, sem filhos. Funcionária pública. Ensi-no médio. Mãe funcionária pública federal e pai pintor). Fonte: dados da pesquisa
4.1.5 Preterimento por homens pretosAlém da exclusão geral no mercado do afeto, algumas mulheres pontuaram o preterimento por homens pretos, o que dialoga com os achados empíricos de Souza (2008), quando a autora re-força que o homem preto prefere a mulher branca por questões
de status ou de distinção.
Quadro 08: Preterimento dos homens pretos“Minha vida afetiva é um fracasso total, sempre que me encanto por alguém, nunca é recíproco, inclusive sempre que me interesso por alguém, esse mesmo alguém “fica” com uma amiga minha (branca). Inclusive esta semana ocorreu algo do tipo, eu há algum tem-po tinha interesse em um menino, só que ele sempre foi muito reservado, ele não gostava de se relacionar com pessoas do serviço, etc., indiquei uma amiga minha (branca) para entrar no serviço e trabalhar comigo, e adivinha? Já sabe né....” (22 anos, auxiliar admi-nistrativa, fez curso técnico. Sem filhos. Não declarou a profissão/ocupação dos pais).“Considero minha vida afetiva de muito fracasso, não só por nunca ter tido um re-lacionamento sério, mas já vivenciar uma situação em que ficava com um homem negro retinto, estava tudo bem e de repente disse que não poderia estar comigo, pois estava entrando em um relacionamento. A menina era branca. Anos depois consegui entender sobre isso e refletir que talvez nunca tenha sido assumida por ser preta” (22 anos, estudante de biblioteconomia, sem filhos. Mãe do lar e pai tesoureiro).“Por muito tempo pensei que era um fracasso por não ter me casado, mas hoje que entendo a estrutura por trás disso vejo que passei por algumas experiências tristes ligadas ao racismo, mas mesmo com homens pretos é difícil escapar do machismo. Hoje penso muito antes de me relacionar, ser heterossexual e preta traz essa inter-secção de opressões” (41 anos. Professora, solteira, sem filhos. Tem mestrado em Pedagogia na PUC São Paulo. Mãe costureira e pai metalúrgico).Fonte: dados da pesquisa
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Outro dado que nos chamou atenção nessas respostas foi o de-sânimo afetivo de mulheres muito jovens, ainda na casa dos 20 anos, como no exemplo a seguir: “Sonho? Depois de tudo que aconteceu na minha vida, da minha falta de esperança, tudo que eu vejo e ouço ainda hoje, não tenho mais sonho nenhum” (22 anos, auxiliar administrativa, ensino técnico, sem filhos. Não in-formou sobre a profissão/ocupação dos pais).Esse item nos faz perceber que o desejo de relacionamento es-tável, de conquistar um casamento, de andar de mãos dadas com o parceiro e de alguma forma vivenciar o amor romântico,
apareceu no trabalho de campo como parte dos interesses das mulheres pretas de ambos os grupos estudados. Esse dado não é uma novidade, pois, em 1981, Angela Davis já tinha afirma-do, em “Mulheres, raça e classe” (2016), que as mulheres negras possuíam as mesmas aspirações domésticas e de casamento que as mulheres brancas, mas que elas não se realizavam devido aos resquícios do regime escravocrata. Sobre o interesse das mulheres pretas por casamento, família e filhos, Pacheco (2013) mostra que, enquanto o movimento femi-nista branco reivindica a igualdade no casamento, o movimento feminismo preto denuncia, entre outras questões, a solidão e a ausência de relacionamentos estáveis nessa população. Portan-to, enquanto as mulheres brancas querem o fim da exploração no casamento, as mulheres pretas querem apenas o direito de serem afetivamente vistas e terem relacionamentos com com-promisso.
3.1.5 Relacionamento abusivoA presença de relacionamento abusivo também foi uma cons-tante nos depoimentos.
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Quadro 9: Relacionamento abusivo “Tenho dificuldades de me relacionar, normalmente são relações pesadas e com ciú-mes” (39 anos, divorciada. Com três filhos. Autônoma. Tem nível superior. Mãe cos-tureira e pai empresário).“Me relacionei somente com um companheiro por 18 anos, numa relação abusiva regada a muito machismo. Considero como uma experiência extremamente dolorosa onde hoje tento ressignificar todos os dias após o rompimento” (40 anos, divorciada, assistente social. Sem filhos. Mãe pedagoga e pai mecânico).“Tive 2 relacionamentos longos que foram extremamente abusivos, apanhei, fui hu-milhada. E hoje estou em um relacionamento e estou tentando não pensar que será mais um fracasso” (29 anos, desempregada, tem ensino médio, solteira, não tem fi-lhos. Mãe e pai professores no ensino médio).“Todos meus relacionamentos afetivos foram baseados no abuso psicológico, mas só consegui ver o abuso psicológico e as humilhações quando estes vieram acompanha-dos de violência física” (44 anos, separada, quatro filhos, segundo grau incompleto, faxineira. Mãe empregada doméstica e pai pedreiro).“Me relacionei com homens alcoólatras e até usuários de droga para não ficar sozi-nha” (29 anos, solteira, vigia em um banco, segundo grau completo. Mãe do lar e pai
mecânico).Fonte: dados da pesquisa
O material coletado mostrou, ainda, o estranhamento de algumas
mulheres em relação a seu isolamento afetivo: “Fico sim intrigada
com o fato de me achar bonita, gente boa e mesmo assim estar
sempre sozinha” (28, solteira, sem filhos, assistente administrati-
va. Estudou Direito. Mãe professora e pai não declarou).Apesar desse estranhamento, o material empírico reforça uma
tomada de consciência dessas mulheres sobre o racismo como elemento excludente no mercado do amor, o que fica evidente
no grande interesse das mulheres em participarem da pesquisa e usarem o espaço como um desabafo.
4. A vivência afetiva de mulheres pretas: caminhos analíticos Nossa revisão da bibliografia sobre o amor nas ciências sociais
tem indicado que existem pelo menos quatro abordagens in-fluentes na literatura sobre o tema: a primeira, que defende o
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fim do amor romântico e a consolidação do amor líquido; a se-gunda, que defende o enfraquecimento do amor romântico e o surgimento do amor confluente; a terceira, que reivindica uma nova forma de amor, o poliamor; e a quarta, que defende a ma-nutenção do amor romântico como doxa romântica, apesar da aguda individualização na sociedade contemporânea.No que se refere à primeira abordagem, essa é inspirada nos es-tudos de Bauman (2004), o qual defende que seguindo a lógica de consumo exacerbado do capitalismo neoliberal, as relações afetivas também estariam no mesmo fluxo, de consumo rápido e efêmero e baseado em laços líquidos. Nesse sentido, os relacio-namentos duradouros, aqueles pressupostos pelo amor român-tico, tornar-se-iam uma nova forma de opressão e de sofrimento, quando os amantes buscariam quantidade e não qualidade. Isso garantiria maior efemeridade nas relações, em diálogo com a li-quidez do modelo econômico neoliberal, do conceito de família e de outras instituições, como o Estado. Essa abordagem recebe atenção de Illouz (2011), autora que tem defendido, por meio de pesquisa em sites de relacionamentos nos Estados Unidos, a existência de uma abundância afetiva no mercado do amor (Illouz, 2011), a qual permitiria maior liquidez e efemeridade nas relações Na segunda abordagem, Giddens (1993) defende que o mo-vimento feminista teria enfraquecido o amor romântico, uma vez que a mulher, sua maior clientela, teria se emancipado de forma a dar menor importância ao casamento e à maternidade, temas clássicos dessa modalidade de amor. O autor defende a
possibilidade do amor confluente, no qual se busca o “relacio-namento especial” e não a “pessoa especial”. Esse tipo de rela-cionamento seria pautado pelo respeito e igualdade, portanto, excluindo os papéis rígidos mais presentes no amor romântico. Como o amor confluente dura o tempo que tiver que durar, o “até que a morte os separe”, típico do amor romântico, teria caído em desuso.
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A abordagem sobre a consolidação do poliamor, que no Brasil é representada nas produções de Pilão e Goldenberg (2012), defende a busca do poliamor como negação aos ideais mono-gâmicos que trazem consigo a posse e o ciúme. Para as autoras,
o movimento feminista teria retirado de cena os ideais do amor romântico, e teria aberto possibilidades para relacionamentos baseados em vários amores, o poliamor.No que se refere à quarta abordagem, os autores se inspiram em diversas escolas sociológicas, tais como em Bourdieu (2019), no livro “A Dominação Masculina”, no qual o autor mostra o papel da cultura androcêntrica como relação de poder, inclusive nas relações afetivas, por meio do amor romântico, considerado por
ele a doxa afetiva. Nessa linha, Jardim (2017, 2019, 2021) tem defendido que, a despeito de uma aparente liquidez do amor, as pesquisas etnográficas têm apontado o fortalecimento do amor romântico na contemporaneidade, uma vez que os apaixonados buscam laços fortes por meio do casamento e da construção de famílias. Em suas pesquisas, Jardim tem frisado que o amor aparece como uma última missão de vida (Jardim, 2019, 2020, 2021), expresso nas novelas brasileiras (Souza, 2020), no cine-
ma hollywoodiano (Rossi, 2013), e se tornando o maior sentido da vida na contemporaneidade (Martuccelli, 2016).
O material empírico analisado neste artigo traz novos elemen-tos para o debate, uma vez que as mulheres pretas não se en-
quadram em nenhuma dessas quatro abordagens apresentadas acima. Nossos dados falam de barreiras sociais que impedem o acesso dessas mulheres ao mercado do afeto, portanto situando--se aquém do consumo do poliamor, do amor romântico ou do amor confluente. No que se refere ao amor líquido, as mulheres até o consomem, mas não por liberdade sexual ou desejo, e sim por falta de opção. Essas barreiras sociais – o racismo e seus correlatos – estariam agindo no mercado matrimonial, criando hierarquias, desigual-
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dades e exclusões. Por dar um tom natural àquilo que é cons-truído socialmente, o racismo aparece como um tipo de mágica social, no sentido da sua eficácia simbólica para a manutenção e a reprodução da ordem social, na maioria das vezes contando com a cumplicidade daqueles a quem domina. Em nossa pesqui-sa, essa cumplicidade aparece no conjunto dos depoimentos que reforça uma autoavaliação negativa sobre si e a aceitação, por essas mulheres, de relacionamentos ditos “proibidos” (como amantes, ficantes, encontros casuais). Ao aceitarem essa situ-ação, justificada pelo desejo de terem um pouco de afeto (não por liberdade sexual), essas mulheres ajudam a reforçar o mito de hiperssexualizadas, de “mulheres fáceis”, disponíveis sexual-mente, e de serem desinteressadas em casamento, que ficaria, portanto, para as mulheres brancas. Contudo, apesar dessa to-mada de posição – que em um olhar mais macrossociológico poderia ser confundida com liberdade sexual –, os dados da pes-quisa de campo falam de mulheres cujo desejo é ter alguém para andar de mãos dadas na praça pública e assumir os compromis-sos domésticos (filhos, contas) com ela. Em Bourdieu (2004) a força da mágica social estaria em seu poder de eufemizar a rea-lidade, ocultando dos engajados “a verdade” por trás dos fatos; neste caso, a verdade seria o racismo que dificulta a vida afetiva dessas mulheres, dando uma aparência de natural àquilo que é construído socialmente. Após esta breve enunciação dos resultados da pesquisa, passa-
mos a colocar nosso material empírico em contraste com as qua-
tro abordagens catalogadas por nós sobre o amor nas ciências sociais. Inicialmente descartamos as abordagens sobre poliamor e amor confluente para pensar a afetividade das mulheres pretas. No que se refere à abordagem do poliamor, o material empírico fala do desejo de compromisso e de vínculos fortes por parte dessas mulheres, o que estaria em oposição ao poliamor, cujo relaciona-mento é pautado pela liberdade. Sobre o amor confluente, que
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pressupõe o ideal de amor com respeito e igualdade, não é possí-vel aplicá-lo para o caso das mulheres pretas, uma vez que a rei-vindicação dessa população é, ainda, pela entrada no mercado do amor. Descartadas essas duas teorias, olharemos para os dados empíricos a partir da teoria do amor líquido e do amor romântico. No que se refere ao amor líquido, todas as mulheres (com diploma universitário ou sem diploma universitário) se mostram humilha-das com convites para serem amantes, serem “a outra” ou “ficarem escondidas”. É consenso nos depoimentos o desânimo afetivo por não serem assumidas e pela ausência de compromisso dos homens com quem se relacionam. O amor líquido aparece, no limite, por falta de escolha: “Já fiz sexo para ter um pouco de afeto” (45 anos, cuidadora, solteira, segundo grau completo, 3 filhos. Mãe faxineira e pai pedreiro). Nesse sentido, não existe abundância afetiva para as mulheres pretas e muito menos o desejo de amor líquido. O que buscam não é a abundância ou a liquidez afetiva, mas laços fortes, expressos em compromissos e reciprocidade afetiva. As mulheres com diploma universitário declararam dispen-sar relacionamentos casuais ou líquidos, recusando o papel de ficantes ou de amantes. Essa tomada de posição estaria em diálogo com os achados de Beatriz Nascimento, que em “A mulher negra e o amor” (1990) mostra que a dificuldade de re-lacionamento se aprofunda junto às mulheres que ascendem socialmente, já que essas passam a ter uma maior consciência sobre o mundo social e a recusar relacionamentos abusivos, e também não se enquadram nos padrões de objetivação do cor-po. Em nossos dados, a presença do amor líquido é mais comum entre as mulheres sem diploma universitário, mas o sentimento de humilhação diante de convites para relacionamentos fortui-tos é comum nos dois grupos e todas as mulheres declararam a preferência por relacionamento estável. A humilhação das mulheres pretas diante de convites eróticos já tinha sido notada por Florestan Fernandes (1978), quando esse
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autor afirmava que uma das consequências da escravidão foi a anomia da população negra, cujas mulheres seriam abandona-das pelos homens, que viam no sexo e nas relações efêmeras a única possibilidade com essas mulheres, afastando-as dos pro-jetos de vida conjugal. No que se refere ao mito do amor romântico, os dados empí-
ricos indicam que a mulher preta estaria menos presa ao mito do amor romântico, que pressupõe uma romantização na vi-vência do amor, com casamento e filhos, além de uma rigidez nos papéis exercidos no relacionamento, sendo o homem mais próximo da ideia de príncipe (provedor) e a mulher da ideia de princesa (protegida). Esse distanciamento do amor romântico e a aproximação de um tipo de amor, que estamos chamando provisoriamente de amor pragmático, seriam dados pela realidade social, uma vez
que as mulheres relataram que, quando são abordadas por ho-mens, é apenas para convites sexuais, o que limita a possibilida-de de sonhar e de fazer planos afetivos. Isso, contudo, não retira a possibilidade de sonhos, mas sonhos mais triviais: “Meu sonho é ter um namorado para andar de mãos dadas, beijar publica-mente. Não precisar ficar escondido”. Portanto, apesar do mun-do social não apresentar muitas possibilidades para a efetivação do amor romântico, as mulheres desejam casar, ter filhos e uma família, sonhos típicos do amor romântico. Nesse sentido, o amor pragmático aparece como uma forma de fugir da solidão e pode ser definido como relacionamentos casuais, sem compromissos. O amor pragmático não pode ser classificado como amor líquido, porque essas mulheres criam
vínculos com esses homens com quem mantêm relacionamen-tos às escondidas, mesmo quando o homem está desimpedido. Portanto, para viver o amor, as mulheres abrem mão dos sonhos de casamento e da família, pois no amor pragmático não existem sonhos compartilhados.
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Ainda sobre o distanciamento dessas mulheres do mito do amor romântico, as mulheres entrevistadas se autodefinem como “fortes” e têm a impressão que também são vistas como “fortes” pela sociedade, afastando-as ainda mais do mito do protetor e protegida. Elas declaram que não dependem de homens, que são autossuficientes. Apesar dos sonhos, elas fazem pouco ou ne-nhum plano afetivo e vivenciam o afeto de forma mais pragmáti-ca: “Só queria ser assumida e andar de mãos dadas”. Essa forma pragmática de lidar com as emoções dialoga com os argumentos de Fernandes (1978), com bell hooks (2000), sobre a dificuldade que a população negra teria em lidar com as emoções, e com os achados de Silva (2019), que também aponta a vivência pragmática do amor pelas mulheres pretas analisadas por ela. No que se refere às especificidades entre os dois grupos estuda-dos, os dados destacam que as mulheres com diploma universi-tário relataram que não foram ensinadas a pensar no casamen-to, mas para vencer na vida pública e na carreira.A maternidade também é algo mais distante para esse grupo de mulheres. É possível que a dedicação à carreira seja uma forma de eufemizar a ausência do amor e, apesar de se mostrarem frus-tradas pela falta de um amor, em muitos depoimentos as mulhe-res falam que estão sozinhas por opção ou porque não precisam de um homem. Contudo, a ausência de um amor e de filhos não passa sem sofrimento para essas mulheres.
Tenho uma carreira de muito sucesso e uma vida afetiva de fracasso; gasto um terço de meu salário, sem exagero, com tratamento psicológico. Tem uma equipe de psicólogos, te-rapeutas, benzedeiro (risos), tudo que você pensar para me ajudar a libertar das dores da rejeição, solidão e abandono trazida pelo racismo. Eu demorei a entender, mas o racismo é o traço que fundamentou todos meus demais traumas. (51 anos, professora universitária, sem filhos. Mãe manicure e pai mecânico).
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Fui uma mulher que não valorizava relacionamento a dois, minha mãe sempre nos incentivou (eu e minhas irmãs prin-cipalmente) a estudar e ser independente de homem, prin-cipalmente no que tange a questões financeiras. Alcancei este objetivo. (60 anos, união estável. Sem filhos. Assistente social e psicóloga. Mãe dona de casa e pai militar).Esses depoimentos estão em acordo com a revisão bibliográfica (Fernandes, 1978; hooks, 2000; Souza, 2008; Silva, 2019) que pontuou o amor como necessidade suplementar da população negra, uma vez que a sobrevivência material ou, como aparece no trabalho de campo “ser alguém na vida”, seria o projeto des-sas mulheres, não o encontro de um amor.Já as mulheres sem diploma universitário também se afastam do ide-al de amor romântico, pois assumem (por falta de opção) a mater-nidade solo e tornam-se chefes de famílias. Mas a ausência da vida afetiva não é experimentada sem sofrimento, uma vez que as mulhe-res pontuaram que mesmo os filhos não substituem a falta de um re-lacionamento afetivo, o que também foi encontrado por Silva (2019).
Conclusão A hipótese que perseguimos neste artigo é a de que a cor da pele pode influenciar positiva ou negativamente no mercado do afe-to. Para tanto, a pesquisa trabalhou com dois grupos de mulhe-res pretas, sendo o primeiro com diploma universitário e o outro sem diploma universitário. Por meio de diversos depoimentos, o texto pontuou um conjunto de temas recorrentes nos questionários, sendo o sofrimento na infância e na adolescência, oriundos do racismo, a ausência de casamento, os relacionamentos abusivos, dentre outros temas,
os que demonstram que o racismo constitui uma barreira social no mercado do afeto, com a exclusão das mulheres que não se encaixam no padrão estético legítimo.
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Portanto, o racismo é a mágica social desse mercado, no senti-do de que é um poder invisível, que coloca a cor de pele branca como naturalmente superior à preta, cuja “verdade” torna-se senso comum, ao ser distribuída de forma consciente e incons-ciente no mundo social (Bourdieu, 2004). De tão poderoso, o ra-cismo conta com a cumplicidade dos próprios dominados. No caso estudado, essa cumplicidade acontece quando as mulheres aceitam as regras impostas pelos homens, como manter relacio-namentos sem compromisso (amantes, ficantes, sexo casual), não por desejo ou por liberdade sexual, mas, ao contrário, como forma de fugir da solidão afetiva que lhes é imposta.Dialogando com as quatro abordagens catalogadas por nós so-bre o amor, a pesquisa mostra que as mulheres pretas não se encaixam nelas: elas querem apenas um amor, não precisa ser romântico, confluente e muito menos poliamor. Também frisou-
-se o descontentamento com os relacionamentos líquidos dispo-níveis para essas mulheres, desnaturalizando que as mulheres
pretas procurariam relacionamentos líquidos por serem mais livres sexualmente do que as mulheres brancas. Nesse momento, o artigo desmistifica a ideia da mulher preta como hiperssexualizada, quando aponta o início tardio da vida sexual delas, não por opção, mas por falta de um parceiro. A pes-quisa sinaliza que o amor líquido, assim como iniciar a vida sexual como amantes, não é a primeira escolha dessas mulheres. Em di-álogo com Angela Davis em “Mulheres, raça e classe” (2016), rea-firmamos o desejo das mulheres pretas por casamento e vida do-méstica; o que, apesar de quase não ser vivenciado, é desejado.
Os dados da pesquisa de campo mostram que com a ausência de trato científico sobre “o fracasso” afetivo das mulheres pretas, o dito fracasso amoroso passa a ser visto como algo individual, quando deveria ser explicado socialmente. Os discursos sinali-zam que o racismo é a mágica social que exclui mulheres pretas do mercado do casamento, sendo que a crença na superioridade
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do branco é tão poderosa que transforma em problema indivi-dual e de foro íntimo uma questão que só pode ser entendida considerando a escravidão dos povos negros no Brasil. Para concluir, é importante destacar o interesse e engajamen-to que nossa pesquisa causou nessas mulheres, que se mostra-ram disponíveis para serem ouvidas neste tema, considerado tabu. Sobre o contato com o tema racismo/afeto, as mulheres que compõem o grupo com diploma universitário sinalizaram o papel do ambiente universitário na tomada de consciência; e as mulheres sem diploma universitário mencionaram o papel das
redes sociais e de algumas influencers negras na compreensão de que a solidão individual é também coletiva; e que o seu fra-casso afetivo não é um problema de foro íntimo, mas que deve ser explicado pelo racismo, que faz a mágica que as exclui do mercado do amor.Diante do potencial explicativo que esse espaço empírico pode oferecer para a compreensão do mercado do afeto, pretende-mos dar sequência a este estudo, investigando o que dizem as
influencers negras – citadas no trabalho de campo – no tema da afetividade negra.
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