1

Revista TOMO, São Cristóvão, v. 42, e17841, 2023
DOI: 10.21669/tomo.v42i

Data de Publicação: 10/01/2023
Dossiê: Teorias Críticas Decoloniais

Desconstrução dos ideários capitalistas de desenvolvimento
e modernização na América Latina: a perspectiva crítica

decolonial

Luciana Lenoir1

Maria da Luz Alves Ferreira2

Maria Janine Dalpiaz Reschke3

Resumo:
O artigo descreve a conjuntura sociopolítica e econômica em que se reproduziram concepções de desenvol-
vimento, subdesenvolvimento e modernização na América Latina. São expostas características alusivas às
relações de poder e de trabalho, pertinentes a um modelo de produção sustentado pelo Estado que concen-
trou suas ações para impulsionar o ideal de modernização, com dimensão econômica. Por meio da episte-
mologia decolonial, evidenciou-se como padrões civilizatórios eurocêntricos conduziram a hierarquização
social, as escalas de desenvolvimento desigual e as relações de dependência econômica. Com fundamentos
da decolonialidade e do sistema-mundo, direcionam-se críticas à ideologia hegemônica do desenvolvimentis-
mo e à imposição cultural do saber ocidental. Para tanto, recorreu-se a uma análise de caráter qualitativo, bi-bliográfica, de natureza exploratória, com método dedutivo e embasada em uma perspectiva histórica-crítica.
Palavras-chave: Desenvolvimento. Subdesenvolvimento. Modernização. Poder. Colonialidade.

Introdução

Descrever a natureza do que concebe-se como desenvolvimento e, por conseguinte, subdesen-
volvimento não é considerada uma tarefa simples, em consequência das ações multifatoriais e complexas que configuram as estruturas sociopolíticas e econômicas de cada sociedade, assim
como elas surgem e se reproduzem em seu espaço e tempo. Trata-se de uma temática ampla-
mente explorada por diferentes áreas do conhecimento e vertentes teóricas, fato que suscita controvérsias e desafios analíticos. Faz-se necessário, portanto, abordar as origens do que con-figurou-se como desenvolvimento, tendo em vista compreender, de modo crítico, a construção
ideológica que direcionou e potencializou desigualdades que impactaram as esferas da vida so-
cial e em escala global.

1 Universidade Estadual de Montes Claros. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social. Montes Claros, Minas
Gerais, Brasil. E-mail: lucianalenoir74@gmail.com. https://orcid.org/0000-0001-5105-5923

2 Universidade Estadual de Montes Claros. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social. Montes Claros, Minas
Gerais, Brasil. E-mail: mluzferreiraalves@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5240-163X 3 Faculdades Integradas de Taquara. Taquara, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: mjanine@terra.com.br. Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-3456-749X

2

Luciana Lenoir; Maria da Luz Alves Ferreira; Maria Janine Dalpiaz Reschke

As concepções de desenvolvimento se construíram, historicamente, desde o capitalismo comer-cial, perpassaram a introdução e fixação do capitalismo industrial e permanecem nas conjunturas
do capitalismo global, com ações transnacionais. Considera-se o capitalismo industrial como me-
canismo que induziu e disseminou as distinções entre os estágios econômicos de regiões, tendo
em vista categorizar as conjunturas do subdesenvolvimento. A partir dos critérios homogeneiza-
dores e universais que estabeleceram uma sociedade como desenvolvida ou não, foram circuns-
critas diferenças entre os níveis do sistema produtivo dos países, com um viés economicista, como também disparidades sociais. Desde então, constituiu-se um ordenamento classificatório envolto
por relações de poder, dominação e dependência econômica.

O ordenamento exposto atrelou-se à imposição dos padrões de modernização e a um conjunto de
transformações exógenas que afetaram as estruturas sociopolíticas e culturais das sociedades ca-
tegorizadas como subdesenvolvidas, especialmente, aquelas pertencentes aos países da América
Latina. A modernização revelou um caráter ultrarreacionário, fato que implicou em dependência
econômica, desigualdade social e regional, intervencionismo estatal, concentração de renda, ex-
propriação e exploração do trabalho.

Percebe-se que o fundamento pertinente à ideia hegemônica de desenvolvimento econômico vin-
culou-se às condições do “progresso civilizatório”. Trata-se de uma designação acionada por dis-
positivos de pensamento arquitetados para a internalização de valores e elementos subjetivos dos
núcleos civilizatórios, fato reconhecível pela imposição e assimilação de formas dominantes de
poder. As persistentes metas para atingir o grau do que estabeleceu-se como “desenvolvimento”
foram regidas pelo modelo norte-americano de sociedade, que, por sua vez, é reprodutor obstina-
do dos valores europeus. Além disso, ao julgarem-se como pioneiros no percurso civilizatório, os
europeus ocidentais criaram imposições para a modernização da humanidade.

Diante de tais exposições, desenvolveu-se uma discussão crítica fundamentada pela epistemologia
decolonial no sentido de questionar a construção do ideário de desenvolvimento e de modernida-
de, assim como de expor outras percepções acerca das estruturas que constituem o sistema-mun-
do. Nesse caso, o pensamento decolonial dispõe de um novo modo de pensar desagregado das
cronologias designadas pelos paradigmas eurocêntricos, conservadores e patriarcais. O trabalho aqui exposto se refere a uma análise de caráter qualitativo, bibliográfica, de natureza
exploratória, pautada pelo método dedutivo ao interpretar um panorama da realidade histórica e social. Considera a singularidade do objeto, assim como a subjetividade e os significados de um
fenômeno mediante a perspectiva histórica-crítica. A discussão divide-se em três partes. Na pri-
meira, concentram-se aspectos alusivos à conjuntura social e política em que foram estabelecidos e reafirmados os paradigmas de desenvolvimento e subdesenvolvimento, assim como seus impac-
tos quanto às desigualdades decorrentes de tal fato. Já na segunda, explora-se a condução do ide-
ário de modernidade vinculado às demandas pela industrialização e enquanto mecanismo para o
alcance dos padrões de desenvolvimento capitalista. A terceira parte expõe considerações acerca
dos parâmetros de modernização impostos à América Latina mediante a indução das transforma-
ções socioeconômicas conduzidas por condições de exploração da classe operária. A quarta, e últi-ma, parte apresenta a reconfiguração disposta pela epistemologia decolonial e dos seus conteúdos críticos tendo em vista romper com os fundamentos hegemônicos que definiram, historicamente,
as concepções de desenvolvimento e modernização.

3

Desconstrução dos ideários capitalistas de desenvolvimento e modernização na América Latina

1. Origens dos conceitos de desenvolvimento e subdesenvolvimento

Os eixos norteadores das teorias desenvolvimentistas regidas pelo viés econômico foram culmina-dos desde a Revolução Industrial inglesa. É o caso das abordagens de Adam Smith, ainda no século XVIII, expostas em sua obra “Inquérito sobre a Riqueza das Nações”, que simboliza os princípios
do pensamento econômico “moderno” e com menções quanto ao desenvolvimento. Destacam-se,
também, os apontamentos suscitados por Joseph Schumpeter, em 1912, mediante o seu trabalho
“Teoria do Desenvolvimento Econômico”, que já explorava ideias quanto às técnicas de inovação e
ao empreendedorismo.

A concepção de desenvolvimento adquiriu a atenção das ciências sociais latino-americanas, espe-
cialmente, após a Segunda Guerra Mundial, quando houve a propagação dos parâmetros episte-
mológicos da economia política e dos projetos de modernização nacionais que visavam à indus-trialização e à urbanização capitalista. É nesse período que expandiu-se a dimensão ideológica do
“atraso”, por meio de uma reverência ao progresso linear, sistêmico e com características unívocas,
consolidada por teorias e práticas referentes à economia do desenvolvimento. Observou-se que
o Estado assumiu o poder central para gerenciar o processo do que se denominou-se como de-
senvolvimento, mediante a indução acelerada da industrialização tendo em vista a inserção no
sistema econômico mundial. Desde então, o Estado assumiu papel decisivo para a introdução, im-
plantação e consecução de políticas econômicas, por meio de articulações entre grupos sociais
dotados de interesses heterogêneos. De acordo com Cardoso e Faletto (2010), o conceito de subdesenvolvimento foi reproduzido, his-toricamente, por meio da expansão do capitalismo mercantil e, adiante, com a reafirmação do
capitalismo industrial, responsável por disseminar as distinções entre os estágios econômicos de
um país em uma estrutura global. Ao estabelecer o que considerava-se como sociedade desenvol-
vida ou não, foram circunscritas diferenças entre os níveis do sistema produtivo, como também,
entre a função e/ou posição de uma mesma estrutura econômica no processo de produção e dis-
tribuição de mercadorias numa conjuntura internacional. Constata-se, portanto, a constituição de um ordenamento classificatório envolto por relações de poder ou de dominação.

A dependência da situação de subdesenvolvimento implica socialmente uma forma de do-
minação que se manifesta por uma série de características no modo de atuação e a orien-
tação dos grupos que no sistema econômico aparecem como produtores ou consumidores.
Essa situação supõe nos casos extremos que as decisões que afetam a produção ou o consu-
mo de uma economia dada são tomadas em função da dinâmica e dos interesses das econo-
mias desenvolvidas. As economias baseadas em enclaves coloniais constituem o exemplo típico dessa situação extrema (Cardoso; Faletto, 2010, p. 39).

A ideia hegemônica de desenvolvimento ecoou por intermédio do discurso de 20 de janeiro
de 1949, proferido pelo então presidente dos Estados Unidos da América, Harry S. Truman,
quando expôs e padronizou seu programa de política externa, ao mencionar o termo “sub-
desenvolvido” para enquadrar os países latino-americanos. Tal discurso representou simbo-
licamente as convenções do que deveria ser instaurado como desenvolvido e moderno – ou
não – por intermédio do progresso industrial e da acumulação capitalista. Estabeleceram-se
as dimensões do “eu” e do “outro”, e, respectivamente, de superioridade e de inferioridade
alinhadas às padronizações técnico-científicas e industriais. Daí reforçaram-se as escalas de
desenvolvimento desigual e de dependência econômica entre segmentos produtivos, regiões

4

Luciana Lenoir; Maria da Luz Alves Ferreira; Maria Janine Dalpiaz Reschke

geográficas e territórios. Conferiu-se, portanto, o surgimento da conexão unidimensional en-
tre industrialização e desenvolvimento. De acordo com Furtado (1974), a gênese histórica do subdesenvolvimento, pela vertente econô-
mica, é interpretada por meio de duas condições simultâneas e interdependentes: o processo de
produção e o processo de circulação do capital e das mercadorias. Ou seja, os condicionantes his-
tóricos que nutrem o ideário acerca do subdesenvolvimento estão associados ao grau de acumula-
ção e de aplicação do capital aos processos produtivos e, também, à amplitude do nível de acesso – o consumo – aos bens finais que sustentam a vida “moderna”.
Outro fator a ser considerado quanto à categoria do subdesenvolvimento pelo viés da economia
refere-se ao modo de assimilação, difusão e incorporação do “progresso técnico” para nutrir o
processo de industrialização, fato responsável por gerar uma relação de dependência tecnológica na esfera do sistema capitalista mundial. Segundo as exposições de Borja (2011), é uma condição
que expõe os países centrais como grandes produtores e exportadores da tecnologia, enquanto os países rotulados como “periféricos” ou “subdesenvolvidos” se configuram como primário-ex-
portadores. Ao assimilar e reproduzir uma tecnologia constituída do centro hegemônico em outra
conjuntura histórica e social, os países “subdesenvolvidos” ampliaram suas contradições diante
das características daquilo que se almejava como “desenvolvimento”.

O que foi concebido como desenvolvimento tendeu a orientar-se por três enfoques, conforme a análise de Furtado (2000): incremento da eficácia do sistema de produção, satisfação de necessi-
dades básicas da produção e alcance dos objetivos almejados por grupos dominantes que compe-
tem pelo usufruto de recursos escassos. O terceiro enfoque é marcado por ambiguidades e adquire
dimensões ideológicas, uma vez que as aspirações de determinado grupo social podem conotar
como mero desperdício para outros grupos. Tais situações permitem concluir que a construção
da noção de desenvolvimento é também composta pelas estruturas sociais, seus objetivos e por
determinações de cunho ideológico.

Outra abordagem a destacar quanto à temática refere-se ao “capitalismo dependente”, que foi consti-tuída por Fernandes (1975) quando explana acerca da ideologia do desenvolvimento. O “capitalismo
dependente” é reconhecido como condição responsável por induzir ao subdesenvolvimento econômi-
co, sociocultural e político. Conjuga-se, assim, a arcaização do moderno e a modernização do arcaico,
porém, os processos como ocorrem não podem ser interpretados mediante diferenças de ritmos e
de estágios históricos em que se encontram as sociedades. O que deve ser levado em consideração,
não é a predominância de estruturas arcaicas ou modernas, tampouco o teor das suas visibilidades
e como são superpostas, mas como os procedimentos que coordenam mudanças no mercado e no
sistema produtivo articulam a persistência de estruturas socioeconômicas herdadas do passado e o surgimento de outras. Ademais, ficou visível que as burguesias dos países capitalistas dependentes
induziram e favoreceram a aceleração do desenvolvimento, mas não tiveram o interesse em priorizar
a autonomia econômica. O que compreendeu-se como subdesenvolvimento econômico fez com que
fossem perpetuadas estruturas econômicas mais ou menos arcaicas, por meio da modernização limi-tada ou segmentada em todas as esferas da vida social. Apesar de que fixar-se como instrumento para
o equilíbrio e a transformação intensiva acentuou as incongruências e as tensões entre povos e países. “Não há como se defender uma ordem social que não atinge nunca os níveis de eficácia, que se definem institucionalmente segundo padrões permanentemente inatingíveis” (Fernandes, 1975, p. 64).
A idealização de desenvolvimento foi alinhavada, historicamente, desde o capitalismo comercial, perpassou a introdução e fixação do capitalismo industrial e permanece nas dimensões do capita-

5

Desconstrução dos ideários capitalistas de desenvolvimento e modernização na América Latina

lismo global. Nesse sentido, Cardoso e Faletto (2010) descrevem que referida idealização estabe-
leceu um único modelo de mercado de economias, fundado em níveis de diferenciação no sistema
produtivo, fatores determinantes para instituir posições na estrutura global do sistema capitalista.
No bojo dos critérios que distinguem países como desenvolvidos e subdesenvolvidos, não concen-
tra-se apenas a idealização dos níveis do sistema produtivo, mas também a função na estrutura
econômica internacional de produtividade e distribuição. Os autores destacam que o conceito de
subdesenvolvimento que foi usualmente empregado – porém limitado – vinculou-se ao ordena-mento de um sistema econômico com predominância de atividades primárias; forte concentração de renda; variações mínimas do referido sistema e predominância do mercado externo sobre o
interno. Por isso, indicam a adoção de denominações como “economias centrais” e “economias pe-riféricas” que acoplam significados sociais; além de relações de dominação e dependência diante
da coexistência de intervenções em função da dinâmica e dos interesses das economias tidas como
desenvolvidas.Há outra vertente de análise proposta por Prebisch (2000) que desfragmenta generalizações dog-
máticas acerca das tendências que exploram temáticas referentes ao desenvolvimento econômi-
co. De acordo com o autor, é sabido que as vantagens decorrentes do progresso tecnológico se
evidenciaram nos centros industrializados, sem que repercutissem diretamente naqueles países
considerados periféricos no cenário econômico mundial. Reconhece-se, também, que a elevação
dos níveis de produtividade nos países industrializados favoreceu a demanda por produtos primá-
rios, fato que indicou um processo dinâmico no crescimento da América Latina. Nesse sentido, há
a predisposição em expor que o “progresso” tecnológico se acentuou na indústria em comparação
à produção primária dos países periféricos. Se os preços reduzissem de modo paralelo ao aumen-to da produtividade, a queda refletiria em maior proporção nos produtos primários do que nos
industrializados, assim, a relação entre os valores de ambos melhoraria, persistentemente, favore-
cendo os países da periferia, à proporção em que ocorresse a disparidade das produtividades. Se
o fenômeno descrito, de fato, ocorresse representaria uma situação peculiar na conjuntura capi-
talista: os países periféricos desfrutariam, de modo equivalente aos países do centro econômico, a redução de preços dos produtos finais ofertados pela indústria. Nessas circunstâncias, o saldo dos
resultados derivado do desenvolvimento tecnológico seria distribuído equitativamente em todos
os países, conforme subtende-se o pressuposto do esquema que envolve a divisão internacional do trabalho. Ademais, a América Latina não obteria nenhum benefício decorrente da industrializa-ção. “Antes, haveria uma perda efetiva, enquanto não se alcançasse uma eficiência produtiva igual à dos países industrializados” (Prebisch, 2000, p. 81).
Observa-se que as escalas produtivas foram conduzidas pelos padrões de poder e o ordenamento
do sistema capitalista impôs transformações aos países considerados subdesenvolvidos ou peri-
féricos, mediante a exigência de que ultrapassassem todas as esferas concentradoras da tradição.
Convencionou-se, assim, que para um país alcançar o status de “moderno” deveria ocorrer o bani-
mento das tradições consideradas arcaicas, como que se elas simbolizassem atraso socioeconômi-
co e cultural, como se fosse possível eliminá-las da história, da memória coletiva e da vida mate-
rial de uma sociedade. A modernização sob a égide do processo de industrialização demonstrou,
portanto, um caráter ultrarreacionário, o que, por sua vez, implicou em dependência econômica,
desigualdade social e regional, intervencionismo estatal, concentração de renda, expropriação e
exploração do trabalho.

6

Luciana Lenoir; Maria da Luz Alves Ferreira; Maria Janine Dalpiaz Reschke

2. O ideário de modernização É possível considerar que o ideário de modernização remonta à Revolução Industrial, diante da
construção de transformações sociopolíticas, econômicas e culturais que atravessaram a Europa
e disseminaram gradativamente para os demais continentes como modelos hegemônicos, desco-nexos às conjunturas em que se inseriam. Tal fato direciona à reflexão de que trata-se de uma con-
cepção que pode emanar, tendencialmente, em contextos sociais distintos que são afetados pela
indução dos interesses de um segmento dominante ou pelo impacto de determinado fenômeno gerado por conflito ou crise e que, portanto, demanda a necessidade de alguma “mudança”. Nota-
-se, assim, que é um ideário que pode emergir e ser propagado em diferentes momentos históricos
e que pode receber conotações convenientes para estabelecer padrões em diferentes esferas da
sociedade, mas constituído pela permanência histórica diante da predominância ideológica de um
estrato ou grupo, uma nação ou região, que defendem o sistema de produção capitalista e seus respectivos mecanismos de dominação. Verifica-se, ainda, que, após os efeitos da Segunda Guerra Mundial, foram organizadas estratégias para ressignificar as dimensões estruturais da vida social
e, novamente, recuperou-se o ideário de modernização, mas com outras dimensões, reproduzindo
os esquemas de hegemonia e exploração de uma região sobre a outra, do Norte sobre o Sul global
ou do centro sobre a periferia. As discussões de Woortmann (1992) demonstram que a modernização, enquanto categoria ana-
lítica, se norteia por aspectos de caráter ambivalente. Por um lado, o conceito de modernização adquiriu uma dimensão utilitária, uma vez que subordinou-se às circunstâncias específicas de
ordem estrutural ou psicossocial relacionadas a determinados processos que envolvem a dinâ-
mica do desenvolvimento. Por outro, pode ser adotado como mecanismo estratégico que oculta a problemática do “desenvolvimento”, podendo desvirtuar a especificidade de cada situação de
“subdesenvolvimento”, tendo em vista salientar esquemas abstrato-formais dos sistemas econô-micos e políticos, que invalidam as configurações internas de cada realidade social. As teorias da
modernização tendem, de modo geral, a convencionar modelos de causalidade psicossocial ou de
compreensão culturalista-difusionista. Ambas desconsideram a amplitude dos fatores estruturais internos (a dinâmica e as contradições das relações de classe) e externos (as relações de depen-dência), além de que focam-se em fatos isolados que direcionam mudanças por meio de “traços
culturais” reproduzidos dos países “desenvolvidos”, especialmente no que concerne aos hábitos
de consumo. Compreende-se, portanto, que nem sempre a modernização adquire o viés desenvol-vimentista ou vice-versa e reconhece-se que ela é um instrumento factível para reafirmar relações
de dependência em diferentes esferas, mediante critérios valorativo-normativos.

O processo de modernização correlacionado ao desenvolvimento econômico também é interpre-
tado, criticamente, pelas dimensões entre espaço e tempo, mesmo quando estejam separadas da
prática da vida ou entre si. Tal situação permite interpretar que tanto a modernização quanto o
desenvolvimento sejam teorizados como categorias analíticas que, concomitantemente, são dis-
tintas e interdependentes da estratégia e da ação. A modernização, portanto, precisa ser com-
preendida mediante as dinâmicas que abarcam o seu tempo e a sua história e, especialmente, o
espaço em que ocorrem. Trata-se de um fenômeno envolto pela “carga” que comporta o seu tempo
e tem alcance histórico, em decorrência de que há variações multifatoriais no transcorrer dos acontecimentos. Ademais, conforme destacou Bauman (2001), o tempo e a história que circundam
o processo de modernização em determinado espaço associam-se à potencialidade do imaginário
coletivo que direciona a assimilação dos fenômenos vivenciados, assim como suas permanências
e transformações.

7

Desconstrução dos ideários capitalistas de desenvolvimento e modernização na América Latina

Diante das circunstâncias expostas, identifica-se a fixação de um discurso (que tornou-se retó-rica equivalente ao senso comum) focado em estabelecer que as sociedades latino-americanas
abrangem sistemas estruturais que as caracterizam como “tradicionais”, como se encontrassem num circuito transitório para a qualificação como “modernas”. Para Cardoso e Faletto (2010),
os defensores dessa narrativa, no transcorrer do circuito mencionado, defendem que antes que as referidas sociedades afirmem-se como “modernas”, há a ideia de um padrão intermediário,
híbrido, denominado “em desenvolvimento”. No entanto, são designações que restringem os
conceitos socioantropológicos de tradicional e moderno, uma vez que ignoram a multiplicidade
e complexidade das características que norteiam a vida social, assim como a diversidade das
tipologias e formações sociais construídas em contextos singulares. São designações de caráter econômico e, portanto, reducionistas, insuficientes para explicar a complexidade dos proces-
sos do que pode ser considerado como modernização em certo contexto. Observa-se que são
percepções limitadas que restringem a dinâmica das sociedades em fases, escalas e graus de
desenvolvimento.Há outra vertente de análise proposta por Prebisch (2000) que expõe outra compreensão quan-
to às dimensões da modernização e de desenvolvimento econômico, mediante as diferenças de
concentração de renda entre o “centro” e a “periferia”. O autor revela que o direcionamento dos
ciclos econômicos é que no período ascendente ocorra a elevação dos preços primários com maior rapidez do que os finais, contudo diminuem com maior intensidade no período descendente, de modo que os preços finais distanciam-se, em escala progressiva. Desse modo, há uma ampliação
do lucro durante a fase ascendente, enquanto na descendente ocorre uma contração, fato que
gera a tendência em reparar os graus de disparidades entre a oferta e a demanda. Se porventura
ocorresse a contração do lucro com a mesma intensidade em que aconteceu a sua dilatação, não
haveria explicações para esse movimento desigual. Contudo, tal movimento decorrente da contra-ção não se manifesta nas proporções descritas. Verifica-se que durante o período ascendente uma
parte dos lucros se reverte em aumento de salários, em função da concorrência entre os próprios
empresários e das demandas por parte das organizações trabalhistas. Já na fase descendente,
ocorre a propensão de contrair-se o lucro, ou seja, aquela parte já mencionada que foi revertida
em aumentos acaba por perder sua liquidez no centro, em consequência da resistência quanto à
queda dos salários. Nesse sentido, a pressão se desvirtua intensamente para a periferia, porque os salários são flexíveis ou em virtude das limitações da concorrência que impactam os lucros do
centro. Evidencia-se, portanto, que quanto menos a renda venha a contrair-se em regiões centrais,
mais ela tende a fazê-lo nas periféricas.

A desorganização característica das massas trabalhadoras na produção primária, especial-
mente na agricultura dos países da periferia, impede-as de conseguirem aumentos salariais
comparáveis com os que vigoram nos países industrializados, ou de mantê-los com ampli-
tude similar. A contração da renda - seja ela sob a forma de lucros ou salários -, portanto, é menos difícil na periferia. Seja como for, mesmo que se conceba na periferia uma rigidez
parecida com a do centro, isso teria como efeito aumentar a intensidade da pressão deste sobre aquela. É que, não havendo uma contração do lucro periférico na medida necessária
para corrigir a disparidade entre a oferta e a demanda nos centros cíclicos continua a haver
nestes últimos uma acumulação dos estoques de mercadorias e uma contração da produ-
ção industrial c, por conseguinte, da demanda de produtos primários. E essa diminuição da
demanda acaba sendo tão acentuada quanto for preciso para obter a contração necessária
da renda no setor primário. O reajuste forçado dos custos da produção primária, durante a crise mundial, dá-nos um exemplo da intensidade que esse fenômeno pode adquirir. (Pre-bisch, 2000, p. 87).

8

Luciana Lenoir; Maria da Luz Alves Ferreira; Maria Janine Dalpiaz Reschke

Tornam-se evidentes as condições que permitem aos sistemas econômicos de grandes centros in-dustriais concentrarem os benefícios dos investimentos em inovações tecnológicas, que, também,
favorecem suas ações para incorporar os resultados do progresso técnico da periferia. Nota-se
a capacidade das massas dos centros econômicos, diante da consciência do papel que desempe-
nham no processo produtivo, de conseguir aumentos salariais em períodos ascendentes e de de-
fender seu padrão de vida em descendentes. Contudo, há o deslocamento das pressões cíclicas
para as regiões periféricas, fato que condiciona a contração acentuada da renda em relação aos
centros econômicos. Tais fenômenos explicam, portanto, “por que a renda destes últimos tende sistematicamente a subir com mais intensidade do que nos países da periferia, como fica patente-ado pela experiência da América Latina” (Prebisch, 2000, p. 87).A definição de desenvolvimento se conduziu pelas esferas sociopolíticas e econômicas e se representou
como “mito fundador” para projetar o que esperava-se de uma nação moderna, no contexto urbano-in-dustrial capitalista. Ademais, Ivo (2013) afirma que tal definição engendra uma retórica destinada a so-
lucionar problemas socioeconômicos por meio de projetos de transformação social, com ênfase quanti-
tativa, em indicadores predominantemente econômicos, conectados ao progresso tecnológico e focados
para superar a tradição, que simbolizava o “atraso”. O “mito” em questão reativou o ideário iluminista
acerca do progresso e concatenou, de modo complexo e contraditório, representantes das antigas e no-
vas elites no âmbito do Estado com as forças externas do sistema de acumulação capitalista.

3. Parâmetros de desenvolvimento designados à América LatinaInicialmente, pontua-se que, em decorrência das dinâmicas do mercado mundial, o processo de desenvolvimento mercantil da América Latina se atrelou à reflexão das relações de produção per-
tinentes à gênese desse mercado, fato que delineou seu caráter e sua expansão. Conforme exposto por Marini (2005), trata-se de uma circunstância contraditória que concentra a explicação para
a condição de dependência latino-americana. Uma vez que a América Latina foi direcionada ao
processo de acumulação de capital fundado pela capacidade produtiva do trabalho em consonân-
cia aos parâmetros dos países centrais, acabou por condicionar-se a um processo de acumulação
delineado pela superexploração do trabalhador.

Nascida para atender as exigências da circulação capitalista, cujo eixo de articulação está
constituído pelos países industriais, e centrada, portanto, sobre o mercado mundial, a pro-
dução latino-americana não depende da capacidade interna de consumo para sua reali-
zação. Opera-se, assim, desde o ponto de vista do país dependente, a separação dos dois
momentos fundamentais do ciclo do capital - a produção e a circulação de mercadorias - cujo efeito é fazer com que apareça de maneira específica na economia latino- americana
a contradição inerente à produção capitalista em geral, ou seja, a que opõe o capital ao tra-balhador enquanto vendedor e comprador de mercadorias. (Marini, 2005, n.p.). As análises de Marini (2005) também enfatizam que nos países industriais o processo de acumu-

lação de capital se caracterizou pela produtividade do trabalho, condição dicotômica que apontou
para um duplo caráter do trabalho, enquanto produtor e consumidor4. No processo de inserção

4 O autor considera que, mesmo que tal condição seja efetiva, encontra-se em determinada proporção, contrapõe-se diante
da forma que apresenta-se no ciclo do capital.

9

Desconstrução dos ideários capitalistas de desenvolvimento e modernização na América Latina

da América Latina na economia capitalista ocorreu de modo diferente, uma vez que atendeu às
exigências da transição para a produção de mais-valia relativa no contexto dos países industriais.
Para explicar tal fato, o autor argumenta que na América Latina a circulação de mercadorias se
desvinculou da produção e se concentrou, fundamentalmente, nas esferas do mercado externo. Nessas circunstâncias o consumo individual do trabalhador acabou por não influenciar na realiza-
ção do produto, mesmo que tratasse de determinante para a taxa de mais-valia. Por conseguinte, o
direcionamento convencional do sistema estabelece a exploração máxima da força de trabalho, sem
a preocupação em ofertar mecanismos de reposição para o trabalhador que poderia ser substituído
a qualquer momento no desenrolar do processo produtivo. Trata-se de um aspecto que demonstra
um modo de exploração do trabalho assalariado que, concentrado na transformação das condições
técnicas de produção, acaba por converter-se em desvalorização real da força de trabalho.

O dramático para a população trabalhadora da América Latina é que essa hipótese foi cum-prida amplamente: a existência de reservas de mão de obra indígena (como no México), ou os fluxos migratórios derivados do deslocamento de mão de obra europeia, provocado pelo progresso tecnológico (como na América do Sul), permitiram aumentar constantemente a
massa trabalhadora, até o início do século 20. Seu resultado tem sido o de abrir livre curso
para a compressão do consumo individual do operário e, portanto, para a superexploração
do trabalho. A economia exportadora é, portanto, algo mais que o produto de uma eco-
nomia internacional fundada na especialização produtiva: é uma formação social basea-
da no modo capitalista de produção, que acentua até o limite as contradições que lhe são próprias. Ao fazê-lo, configura de maneira específica as relações de exploração em que se
baseia e cria um ciclo de capital que tende a reproduzir em escala ampliada a dependência em que se encontra frente à economia internacional. (Marini, 2005, n.p.).

Salienta-se que o modo de circulação correspondente à acumulação gerada por meio da explora-ção do trabalho ocorreu de forma diferenciada. Foi um fenômeno que não operava por intermédio
da dissociação entre a produção e a circulação de mercadorias decorrente do mercado mundial,
mas por meio da separação entre as esferas alta e baixa da circulação no interior da própria eco-nomia. Para Marini (2005), a referida separação adquiriu um caráter radical quando não ocorreu
a contraposição aos fatores regidos na economia capitalista clássica. Nota-se, segundo o autor,
que a produção industrial latino-americana se concentrou na produção de bens não inseridos
plenamente no contexto do consumo popular, uma vez que independia das condições salariais da
classe trabalhadora. Essa condição ocorreu em função de duas causas. A primeira porque o va-
lor das manufaturas independia do valor atribuído à força de trabalho, exceto que representasse algum artigo essencial do consumo individual do operário; portanto, a desvalorização das manu-faturas foi incapaz de influenciar a taxa de mais-valia. Tal fato isentava o proprietário dos meios
de produção de preocupar-se com o aumento da produtividade do trabalho, além de que, uma vez
reduzindo o valor da unidade de produto, procurava aumentar a mais-valia, com uma maior ex-ploração do trabalhador por meio da significativa redução de salários. A segunda porque a relação
inversa tendo em vista a progressão da oferta de mercadorias e do poder aquisitivo dos operários
não interferiria na esfera da circulação, já que as manufaturas não eram prioridades de consumo
individual do operário envolvido.

É assim como, incidindo sobre uma estrutura produtiva baseada na maior exploração
dos trabalhadores, o progresso técnico possibilitou ao capitalista intensificar o ritmo de
trabalho do operário, elevar sua produtividade e, simultaneamente, sustentar a tendência
para remunerá-lo em proporção inferior a seu valor real. Para isso contribuiu decisivamente
a vinculação das novas técnicas de produção com setores industriais orientados para tipos

10

Luciana Lenoir; Maria da Luz Alves Ferreira; Maria Janine Dalpiaz Reschke

de consumo que, se tendem a convertê-los em consumo popular nos países avançados,
não podem fazê-lo sob nenhuma hipótese nas sociedades dependentes. O abismo existente
entre o nível de vida dos trabalhadores e o dos setores que alimentam a esfera alta da
circulação torna inevitável que produtos como automóveis, aparelhos eletrodomésticos etc. sejam destinados necessariamente para esta última. (Marini, 2005, n.p.).Nesse contexto, Fernandes (1975) expôs que os países latino-americanos foram direcionados a

duas condições consideradas ásperas, interpretadas como faces opostas da mesma moeda. Uma
refere-se às suas estruturas econômicas, socioculturais e políticas internas, que poderiam abran-
ger as mudanças reais do sistema capitalista, mas que tolhiam a integração nacional e o desen-
volvimento autônomo. Outra face seria uma subserviência à dominação externa que apregoava
a modernização e o crescimento econômico mediante parâmetros dos estágios mais avançados do capitalismo, fato que vedou a autonomia e a revolução nacional. Foram, portanto, aspectos
delineados pela reciprocidade entre fatores internos e externos. Os setores e estratos sociais que
detinham o domínio sobre as demais esferas das sociedades latino-americanas foram tão interes-
sados quanto responsáveis pelo fenômeno descrito, como também os grupos externos, que se be-neficiaram amplamente da situação. Em suma, “dependência e subdesenvolvimento são um bom negócio para os dois lados” (Fernandes, 1975, p. 26).
4. Desconstrução dos conceitos capitalistas de desenvolvimento e modernização: a
epistemologia decolonial

Percebe-se que o fundamento pertinente à ideia hegemônica de desenvolvimento econômico vincu-
lou-se às condições do que denominou-se como “progresso civilizatório”, inserido em um esquema
de dominação na conjuntura da organização social, centrada no sistema de produção capitalista. Considera-se, conforme as análises de Acosta (2016), que é uma ideia continuamente repaginada, reconstruída e composta por orientações eurocêntricas; de natureza expansionista e com propor-
ção econômica, mas que constituiu-se, primordialmente, mediante uma imposição cultural herdeira
do saber ocidental, por conseguinte, colonial. Trata-se, portanto, de uma designação acionada por
dispositivos de pensamento arquitetados para a internalização de valores e elementos subjetivos
de núcleos civilizatórios, fato reconhecível pela imposição e assimilação de formas dominantes de
poder. Conforme abordado anteriormente, as persistentes metas para atingir o grau do que estabele-
ceu-se como “desenvolvimento” foram regidas pelo modelo norte-americano de sociedade, que, por
sua vez, é reprodutor obstinado dos valores europeus. Ao julgarem-se pioneiros no percurso civili-
zatório, os europeus ocidentais se deduziram como referência para a modernização da humanidade.

Nessa perspectiva, emergem as discussões alusivas à epistemologia decolonial oriundas da con-
cepção de decolonialidade. O ponto de partida da epistemologia decolonial pressupõe a análise
crítica e inversa das construções ideológicas, que impuseram a colonialidade atrelada aos padrões de modernidade e que persistem no imaginário coletivo. Desse modo, Mignolo (2017) expõe que
a representação da colonialidade remete à estrutura do padrão colonial de poder que engloba um
amplo universo de relações e é delineada pelos fundamentos do que constituiu-se como moderni-dade. Já a decolonialidade ou (de)colonialidade é interpretada pelo autor como a desconstrução
contestadora das quimeras e falácias quanto aos padrões de progresso e desenvolvimento empre-
endidos pela modernidade, impostos ao “Terceiro Mundo”, ou seja, àqueles países que foram co-
lonizados, enquadrados como subdesenvolvidos e periféricos. De modo preciso, surgiu no mesmo momento em que a divisão em três mundos se desmoronava e se celebrava o fim da história e de

11

Desconstrução dos ideários capitalistas de desenvolvimento e modernização na América Latina

uma nova ordem mundial. Nessa conjuntura, considera-se que a concepção de “Terceiro Mundo”
não se construiu e se consolidou por aqueles e aquelas que o ocupavam, mas pelos interesses
movidos por indivíduos, grupos sociais, ideologias e categorias de pensamento presentes no “Pri-meiro Mundo”. Tanto que a teoria da dependência foi uma espécie de solução para justificar o mito
do desenvolvimento e da modernização.

A Conferência de Bandung de 1955 é adotada como marco histórico que norteia os fundamentos políticos e epistêmicos que definem a decolonialidade, quando representantes de 29 países da
Ásia e da África buscaram as bases para a visão comum de um futuro que ultrapassasse as dimen-
sões paradigmáticas dos sistemas políticos e econômicos ocidentais, no caso, o capitalismo e o
socialismo. A representatividade da conferência mencionada se encontra na demonstração de que
a decolonialidade surge como uma “terceira opção” que se desprende daquelas já conhecidas, uma
vez que dissocia-se dos sistemas políticos e econômicos predominantes. A decolonialidade, as-
sim, desconstrói a gênese dos conceitos emblemáticos e interpretados como universais, tais como
“modernidade” e “pós-modernidade”, além de que pressupõe rupturas epistêmicas consolidadas pela Europa e sua história interna. Salienta-se, de acordo com Mignolo (2017), que os referidos
conceitos não podem ser interpretados como universais e, tampouco, globais, pois na verdade representam dimensões regionais e por isso carregam o mesmo valor de qualquer outra confi-
guração e transformação regional do conhecimento. Reconhece-se que a única diferença é que as histórias engendradas articularam estratégias para reafirmar os conceitos construídos tendo em
vista atribuir sentido aos desejos particulares e às exigências institucionais.

A descolonialidade não consiste em um novo universal que se apresenta como o verdadei-ro, superando todos os previamente existentes; trata-se antes de outra opção. Apresentan-
do-se como uma opção, o decolonial abre um novo modo de pensar que se desvincula das cronologias construídas pelas novas epistemes ou paradigmas (moderno, pós-moderno, altermoderno, ciência newtoniana, teoria quântica, teoria da relatividade etc.). Não é que
as epistemes e os paradigmas estejam alheios ao pensamento descolonial. Não poderiam sê-lo; mas deixaram de ser a referência da legitimidade epistêmica. (Mignolo, 2017, p. 15).As análises de Mignolo (2017) ressaltam um outro conceito essencial para o desdobramento da

epistemologia decolonial, no caso, o pensamento fronteiriço. Para o autor, o pensamento fron-
teiriço se pauta pela predominância do anthropos diante da humanitas, mesmo que essa última
seja inevitável. Há uma interrelação entre a decolonialidade e as dimensões do pensamento fron-
teiriço, que não conjugam teorias orientadas pelo cartesianismo ou marxismo. Os princípios da
decolonialidade se fundam pela empiria, mediante a experiência vivenciada pelas condições da
colonialidade, e podem ser vinculados à “consciência imigrante”, tal qual apresenta-se na atualida-
de em países da Europa ocidental e nos Estados Unidos. “A ‘consciência imigrante’ está localizada nas rotas de dispersão do pensamento descolonial e fronteiriço” (Mignolo, 2017, p. 16).
O pensamento fronteiriço ou a fronteira epistemológica ou, ainda, a hermenêutica pluritópica refletem a necessidade de um ideário capaz de se movimentar no percurso da diversidade dos
contextos históricos. Nessas circunstâncias, há o pressuposto de que são inexistentes as concep-
ções de um pensamento original e homogêneo, que sejam adotadas como referências unívocas e que sejam reproduzidas universalmente. A alternativa do pensamento fronteiriço é desafiar o
colonialismo e a sua ideologia que impôs conceitos, teorias e epistemologias ocidentais. Trata-se,
portanto, de reputar as forças epistêmicas que foram subalternizadas e que são compostas pelos
conhecimentos tradicional, religioso, popular e emocional.

12

Luciana Lenoir; Maria da Luz Alves Ferreira; Maria Janine Dalpiaz Reschke

Outro aspecto a ser considerado é que a ideologia das classes dominantes acerca das exigências
de desenvolvimento foi responsável por designar a estrutura e as funções do Estado moderno,
dotadas de padrões capitalistas industriais, e foi absorvida ao longo do tempo como referência
unilateral, um paradigma, em condições axiomáticas e incorporadas ao senso comum. A referida ideia de Estado, segundo Nandy (2000), foi introduzida em grande parte das sociedades do Sul por
meio dos preceitos coloniais, pautada pela “responsabilidade civilizadora” do homem branco, cris-
tão e de origem europeia. Além disso, nenhum processo ou programa sociopolítico e econômico de
qualquer sociedade é capaz garantir o desenvolvimento em seu sentido pleno. Mesmo porque, em
vários países, a noção de desenvolvimento se fundou de modo exclusivo pelo desenvolvimento da própria estrutura estatal ou dos seus segmentos. São nessas circunstâncias que identificam-se as tendências em definir o desenvolvimento como processo impulsionado pelo Estado que “mobiliza
recursos interna e externamente, e, depois, consome ele próprio, em vez de permitir que esses recursos atinjam as camadas mais baixas ou as periferias da sociedade” (Nandy, 2000, p. 92).
Tendencialmente, as orientações econômicas foram responsáveis por estabelecer os preceitos do
desenvolvimento e implicaram na desvalorização de todas as outras formas de vida social. Na con-cepção de Esteva (2000), tal desvalorização transformou, quase que de modo mítico, habilidades
em carências, bens públicos em recursos, homens e mulheres em trabalho, tradições em fardo, sa-
bedoria em ignorância e autonomia em dependência, numa conjuntura em que tudo o que envolve
a sociedade seja delimitado por convenções do valor de mercado.

O indivíduo frágil, cuja sobrevivência depende necessariamente do mercado, não foi uma invenção dos economistas; nem nasceu de Adão e Eva, como esses argumentam. Foi uma
criação histórica. Ele foi criado pelo projeto econômico que redesenhou a humanidade. A
metamorfose dos homens e das mulheres autônomas em um “homem econômico” desva-
lorizado foi, de fato, a precondição para a emergência da sociedade econômica, e é uma condição que tem que ser constantemente renovada, reconfigurada e aprimorada para que
o reinado da economia possa continuar. O desvalor é o segredo do valor econômico e só
pode ser criado com violência e em um confronto permanente com quem quer que seja que a ele se oponha. (Esteva, 2000, p. 74).Faz-se necessário alertar que há um número expressivo de teorias que concentra suas análises

acerca do sistema-mundo diante das consequências dos processos de acumulação capitalista, das
estruturas que envolvem a divisão internacional do trabalho e das lutas militares geopolíticas. Nessa perspectiva, Grosfoguel (2008) disserta que os argumentos guiados pela pós-colonialidade
e pelo sistema-mundo compartilham críticas pertinentes ao desenvolvimentismo de viés econo-
micista, aos modelos eurocêntricos de conhecimento, às desigualdades de gênero, às hierarquias
raciais e aos processos culturais de vertente ideológica que alicerçam categorias de subordinação
na conjuntura capitalista. Contudo, é válido diferenciá-las, uma vez que cada abordagem se con-
centra em buscar causalidades distintas. Desse modo, as críticas pós-coloniais se fundamentam
pelos efeitos gerados diante da cultura colonial, enquanto a perspectiva do sistema-mundo se con-
centra nas consequências da acumulação ininterrupta do capital em escala global. No entanto,
destaca-se a necessidade de compreender as estratégias ideológicas e simbólicas que compõem
a cultura colonial/racista do mundo colonial/moderno, juntamente com as imbricações dos pro-cessos de acumulação capitalista e do sistema interestatal. Verifica-se, portanto, que o sistema--mundo, conforme a configuração sociopolítica, cultural e econômica vivenciada em tempos atu-
ais, potencializa os fundamentos do ideário patriarcal/capitalista, colonial/moderno e europeu/
euro-americano.

13

Desconstrução dos ideários capitalistas de desenvolvimento e modernização na América Latina

As críticas pertinentes à imposição e à perpetuação das formas dominantes de poder, com o en-foque da epistemologia decolonial, foram exploradas por Quijano (2002), quando tratou o fenô-
meno do poder mediante tipos de relações sociais que abrangem, simultaneamente, dominação, exploração e conflito. São dispositivos que acometem campos essenciais da vida social e que se
consolidam diante do atual padrão de poder articulado a outros quatro aspectos fundamentais. O
primeiro envolve o histórico da colonialidade do poder, ou seja, expõe a concepção de “raça” como sustentáculo do modelo incondicional que determina a classificação e a dominação sociais. O se-
gundo assinala o capitalismo, interpretado pelo autor como padrão universal das condições de
exploração social. Já o terceiro compreende o Estado como mecanismo central de controle sobre
a autoridade coletiva. E o último refere-se ao eurocentrismo enquanto instrumento hegemônico
que comandou os campos da subjetividade/intersubjetividade, especialmente, no que concerne
aos modos de produção do conhecimento. São fenômenos que se correlacionam historicamente, que afetam todas as áreas da existência social e “constituem a mais profunda e eficaz forma de
dominação social, material e intersubjetiva, e são, por isso mesmo, a base intersubjetiva mais uni-versal de dominação política” (Quijano, 2002, p. 04).
Em tais circunstâncias, o fenômeno do poder se caracteriza como um tipo de relação social cons-tituído pela presença permanente de três elementos: dominação, exploração e conflito. Por conse-
guinte, tais elementos englobam aspectos básicos da existência social: o trabalho, o sexo/gênero,
a autoridade e a subjetividade/intersubjetividade. E a primeira forma de dominação estabelecida
nos processos de colonização é a do corpo, mediante a violência como prática de conquista e tá-
tica de extermínio do “outro” considerado como inferior. A relação de poder estabelecida no pa-
radigma do colonizador é conduzida pela violência e pela manutenção do conservadorismo e do patriarcalismo. Não há, portanto, subsunção ou um processo pacífico de interculturalidade, e sim
a imposição da colonialidade do ser e do saber. No imaginário do colonizador se concentra a ideia
de que houve um aniquilamento, mas na verdade o que ocorreu foi a permanência da cosmologia
anterior à colonização que permite a heterogeneidade e a resistência. O subalterno, o colonizado,
não pode ser então interpretado como um sujeito passivo que foi hibridizado por uma lógica cul-
tural dominante, mas, sim, como sujeito negociador, ativo e dotado de autonomia para elaborar
estratégias culturais para a manutenção da sua cosmologia.

Desde os seus primórdios, o processo de constituição da América foi marcado por manifestações
de todas as formas de dominação e de exploração do trabalho, como, também, de controle das relações de produção. Nessa perspectiva, Quijano (2002) revela que os esquemas de “produção-
-apropriação-distribuição” de mercadorias foram direcionados pela relação capital-salário e pela
dinâmica do mercado mundial. Para tanto, estabeleceram-se modos de controle do trabalho por
meio da escravidão, da servidão, da pequena produção mercantil, da reciprocidade e/ou do assa-lariamento. Mesmo tratando-se de formas de controle reconhecidas desde tenra data, reconfigu-raram-se tendo em vista atender aos padrões do mercado mundial. É assim que ocorre a sobre-e-
minência do novo modelo global de controle do trabalho, com estruturas de poder diferenciadas,
interdependentes histórico-estruturalmente, porém com a manutenção conveniente de determi-
nadas características funcionais de caráter colonial e da modernidade eurocentrada5. Instaura-
ram-se, assim, as colonialidades do poder e do controle do trabalho que, também, determinaram a geografia social e a hierarquização capitalista no contexto atual.
5 Para Aníbal Quijano (2002), a referência “eurocentrada” é aquela que permanece assentada na colonialidade, que impõe categorização e hierarquização raciais por intermédio de uma classificação social básica e universal.

14

Luciana Lenoir; Maria da Luz Alves Ferreira; Maria Janine Dalpiaz Reschke

A imposição de padrões de modernização e de escalas de desenvolvimento conforme a conjuntura
já mencionada, mediante parâmetros capitalistas e com teor economicista, não impulsionou ape-
nas um conjunto de transformações exógenas para alterar os sistemas de produção e aumentar o
consumo. Sob a ótica da epistemologia decolonial, dos fundamentos críticos da pós-colonialidade
e do sistema-mundo, reconhece-se que as vivências históricas das condições de exploração foram uma espécie de “odisseia”, com caráter mítico, justificada por uma práxis irracional da violência
que se reproduz de modo contínuo, seja qual for o contexto histórico, as relações de trabalho, as
instituições e os estratos sociais, o sistema produtivo e o regime político. O mito, traduzido pela afirmação das dicotomias entre moderno-primitivo, superioridade-inferiori-dade, centro-periferia, Norte-Sul e desenvolvido-subdesenvolvido, foi descrito por Dussel (2005) por
meio de fenômenos que requerem destaque. Primeiramente, o que concebeu-se como civilização mo-
derna foi uma autodescrição de superioridade que sustentou, inconscientemente, uma posição euro-
cêntrica que é reforçada na história da humanidade mediante as construções do imaginário coletivo. O
segundo fenômeno refere-se à imposição da superioridade europeia que induziu a um posicionamento
de submissão, como uma exigência moral, por parte daqueles estigmatizados como primitivos, bárba-
ros ou rudes. O terceiro revela a condução de uma espécie de processo educativo unilinear de desen-
volvimento, fato que introduziu e reforçou, também inconscientemente, a “falácia desenvolvimentista”.
O quarto expõe que como o “bárbaro”, o “selvagem”, o “primitivo” ou o “atrasado” foram – e ainda são
– considerados oponentes ao processo civilizador, a práxis moderna difundiu diferentes formas de vio-
lência para remover os obstáculos que travavam a modernização, é o que Enrique Dussel considerou
como a “guerra justa colonial”. O quinto refere-se às relações de dominação conduzidas pela violência
e que são internalizadas como ações inevitáveis, como prática ritualística em que o “herói” civilizador convence que as suas próprias vítimas colonizadas estão destinadas a um sacrifício para salvá-las da
condição em que encontram-se. O sexto demonstra que, na retórica daquele que se considera como
moderno, as próprias vítimas do processo colonizador são as responsáveis pela exploração, fato que
direciona à alternativa ilusória da civilização enquanto via “emancipadora”, mediante uma culpa inven-tada. Por fim, inculcaram que para atingir o progresso civilizatório e o status de moderno é inevitável
que ocorram o sofrimento e a degradação dos povos “inferiores”, das outras “raças escravizáveis” e do
outro gênero por ser frágil. A reprodução desses fenômenos e a legitimação desse poder arbitrário ge-
raram sequelas irreversíveis para a humanidade e desencadearam toda espécie de intolerância, opres-
são, exclusão, segregação, estigmatização e desigualdade presenciadas na vida cotidiana, perceptíveis
em diferentes sociedades na contemporaneidade.Verifica-se que o colonialismo europeu, engendrado desde o século XV e refletido na atualidade, se justificou mediante a adoção estratégica da racionalidade administrativa para explorar as suas co-lônias. Tal estratégia se sustentou pelas ideologias da classificação social (de gênese racial e sexu-al), bem como pelas técnicas normativas das metrópoles ibéricas que estabeleceram a hierarqui-
zação das sociedades latino-americanas. E diante de tais circunstâncias, o racismo desempenhou um papel crucial para enraizar o nível de “superioridade” do colonizador eurocristão (branco e patriarcal). Nesse sentido, Gonzalez (2020) demonstra que o racismo apresentou dois espectros
ideológicos similares – racismo aberto e racismo disfarçado –, porém com táticas destinadas ao
mesmo objetivo: exploração/opressão. O racismo aberto caracteriza a pessoa como negra por
meio dos seus antepassados que apresentavam a mesma condição, ou seja, é a ideia daquele que
detém o “sangue negro nas veias”6. Nesses termos, a miscigenação é algo inconcebível (mesmo
6 Condição construída pelas sociedades anglo-saxônica, germânica e holandesa.

15

Desconstrução dos ideários capitalistas de desenvolvimento e modernização na América Latina

que o estupro e a exploração sexual da mulher negra estejam sempre presentes no transcorrer da história da humanidade), uma vez que o grupo branco busca preservar sua “pureza” e reiterar
sua “superioridade”. Consequentemente, os detentores desse argumento vislumbram e praticam a
segregação dos grupos não brancos, como é o caso da África do Sul, com o discurso do desenvolvi-
mento “igual”, mas separado. Já o racismo disfarçado ou por denegação, conforme sugere a autora
mencionada, é munido pelas “teorias” da miscigenação, da assimilação e da falaciosa “democracia
racial”, comuns nas sociedades de origem latina, que são, na verdade, ameríndias e amefricanas7. Nesses termos, a percepção do poder na colonialidade também se associa à classificação racial
como categorização social universal e eurocentrada. Daí a construção da imagem do inimigo,
numa perspectiva binária no contexto do sistema-mundo capitalista e moderno. A racialização es-truturada nas convenções coloniais/modernas, que perduram desde o século XVI, é interpretada pelas esferas ontológica (seres humanamente inferiores) e epistêmica (seres menos racionais). Para Mignolo (2017), tais esferas são responsáveis por determinar a classificação do outro, do
diferente como inferior, numa condição subalterna que está aquém do conhecimento sistemático
imposto das expressões de linguagem predominantes europeias. Em tais dimensões, os idiomas
inaptos para interpretar o conhecimento teológico e secular, designavam a inferioridade daqueles
que as adotavam.

Que podia fazer uma pessoa cuja língua materna não era uma das línguas privilegiadas e
que não havia sido educada em instituições privilegiadas? Ou devia aceitar sua inferiori-
dade, ou devia fazer um esforço por demonstrar que era um ser humano igual a quem o
situava na segunda classe. Ou seja, em ambos os casos se tratava de aceitar a humilhação
de ser inferior para quem decidia que devia manter-se como inferior ou assimilar-se. E assimilar-se significa aceitar sua condição de inferioridade e resignar-se a um jogo que não é seu, mas que lhe foi imposto. (Mignolo, 2017, p. 18).

Em tempos atuais, o racismo adquiriu suas dimensões múltiplas enquanto mecanismo de hie-
rarquização e de dominação social, material, psicológica e política. Conforme traçado por Acosta (2016), não é constatação surpreendente de que negros e indígenas se apresentem como os gru-
pos sociais mais desprovidos de recursos materiais, explorados e vulneráveis, uma vez que são
atingidos com maior intensidade quanto ao desemprego e à ausência de serviços essenciais. Sem
contar que são os grupos que sofrem maior discriminação nas esferas da participação política e,
por conseguinte, no exercício da democracia. O racismo se traduz, portanto, como problema social
e político que repercute em segregação econômica, exclusão e marginalização. Ademais, abrange
um problema de ordem ambiental, uma vez que evidencia-se, ininterruptamente, o desrespeito
aos ecossistemas e aos territórios dos povos originários que, após expulsos dos espaços e lugares
a que pertencem, são forçados a viver de modo precário em áreas urbanas. Nessa perspectiva, Acosta (2016) propõe uma alternativa para superação dos efeitos históricos
e incessantes da colonialidade do poder. Trata-se da plurinacionalidade tendo em vista a recons-
tituição do Estado e a conjugação entre nações e identidades culturais, unidas e movidas pelo
desejo comum de integração para suplantar a marginalização exploradora. A ideia vincula-se à
pluriversidade que se dissocia da concepção de universalidade e da necessidade de hegemonia do
poder, como também relaciona-se à noção de transmodernidade, que remete à ação voltada para a
solidariedade integrativa dos grupos que sofrem historicamente com a violência. Para tanto, faz-se
necessário reconhecer a interculturalidade e a diversidade como pressupostos para o exercício

7 Percepção comum em sociedades dos países que sofreram a colonização luso-espanhola.

16

Luciana Lenoir; Maria da Luz Alves Ferreira; Maria Janine Dalpiaz Reschke

concreto do pluralismo político e a efetivação da democracia. Ademais, são necessárias ações para
orientar a organização política e econômica construída a partir de baixo e de dentro, em que for-
taleçam os esquemas de moedas alternativas que, por conseguinte, permitem o empoderamento
das comunidades sobre suas economias. A economia, nessas dimensões, é solidária e se concentra em estabelecer critérios de suficiência em sobreposição à lógica da eficiência, da acumulação e do
consumo. Desse modo, efetiva-se a autodependência comunitária, que também requer a adoção
dos princípios de solidariedade, reciprocidade, complementaridade, responsabilidade, integrali-dade e suficiência. São ações aplicáveis mediante uma evolução alternativa que pressupõe uma
dimensão holística e sistêmica, focalizada em direitos fundamentais e sociais. O Estado, portanto,
se torna “cidadanizado”, enquanto o mercado “civilizado”, e ambos implicam numa crescente par-
ticipação da sociedade, especialmente, a partir das bases comunitárias. Nesses termos, é possível
vislumbrar uma sociedade equitativa, que promova o desenvolvimento sustentável e equilibrado
capaz de efetivar princípios verdadeiramente democráticos.

Considerações finais

Os conceitos de modernização, desenvolvimento e subdesenvolvimento foram construídos e pro-
pagados em diferentes momentos históricos, além de que se estabeleceram pela imposição de me-
canismos ideológicos, fenômenos econômicos e condições de exploração de trabalho que foram determinados por influências exógenas. A determinação das escalas de desenvolvimento reforçou
– e permanece a reforçar – condições de exploração de uma região sobre a outra, do Norte sobre o
Sul global ou do centro sobre a periferia. Evidenciou-se que o colonialismo europeu, engendrado desde o século XV e ainda refletido na atualidade, adotou o discurso estratégico da racionalidade
administrativa para explorar as suas colônias. A referida racionalidade se arquitetou pelas ideo-logias da classificação social e pelas técnicas normativas das metrópoles ibéricas e foi executada
por meio da hierarquização das sociedades latino-americanas. A legitimação do poder arbitrário
regido pelos europeus provocou sequelas irreversíveis para a humanidade e disseminou, histori-
camente, condições de exclusão, segregação e desigualdade. São nesses termos de hierarquização
e de dominação social, material, psicológica e política que emergem e perpetuam situações de
racismo em dimensões múltiplas.

Constatou-se que a implementação de projetos e planos de modernização surgiram para conduzir
e sustentar os modelos de desenvolvimento de gênese econômica, com ênfase na industrialização e na urbanização capitalista. No entanto, a configuração do subdesenvolvimento estabeleceu a
permanência de estruturas econômicas mais ou menos arcaicas, por meio da modernização limi-tada ou segmentada em todas as esferas da vida social. Verificou-se que os critérios de moderni-zação justificados pelo processo de industrialização revelaram um caráter ultrarreacionário que
induziu à dependência econômica, à desigualdade social e regional, ao intervencionismo estatal, à
concentração de renda e à expropriação e exploração do trabalho.

Destaca-se, portanto, a necessidade de valorizar os elementos da interculturalidade e da diversi-
dade para superar os modelos de desenvolvimento econômico impregnados desde tenra data na
conjuntura histórica da América Latina. Para tanto, há que buscar-se o pleno exercício do pluralis-
mo político e a efetivação da democracia, conciliados com mecanismos de ação deveras participa-
tivos e focalizados em respeitar os direitos fundamentais e sociais. Nesse sentido, consideram-se
as atividades de autodependência comunitária, conduzidas por estratégias de desenvolvimento

17

Desconstrução dos ideários capitalistas de desenvolvimento e modernização na América Latina

social, sustentável e equilibrado, como também por uma economia solidária, que concentre-se em elementos de suficiência em sobreposição aos métodos de eficiência, competitividade, acumula-
ção e consumo.

Referências

Acosta, Alberto. O Bem Viver - Uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária/ Edi-
tora Elefante, 2016.
Bauman, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.Borja, Bruno. Para a crítica da economia do desenvolvimento: a inserção de Celso Furtado na controvérsia internacional. In: Malta, Maria Mello (coord.). Ecos do desenvolvimento: uma história do pensamento econômico brasileiro. Rio de Janeiro: IPEA - Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2011, p. 79-124.Cardoso, Fernando Henrique Cardoso; Faletto, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina. 9 ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.Dussel, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências so-
ciais. Perspectivas latino-americanas
. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 25-34.Esteva, Gustavo. Desenvolvimento. In: Sachs, Wolfgang (org.). Dicionário do desenvolvimento: guia para o conheci-
mento como poder
. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 59-83.Fernandes, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.Furtado, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. 5 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
___________. Introdução ao desenvolvimento: enfoque histórico-estrutural. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
Gonzalez, Lélia. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos. Rio Janeiro: Zahar,
2020.
Grosfoguel, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade,
pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 80, 2008, p. 115-147.Ivo, Anete Brito Leal. Desenvolvimento e Atores Sociais. In: Ivo, Anete Brito Leal (coord.), Dicionário Temático Desen-
volvimento e Questão Social:
81 problemáticas contemporâneas. São Paulo: Annablume, 2013, p. 102-110.Marini, Ruy Mauro. Dialética da Dependência. In: Traspadini, Roberta; Stedile; João Pedro. (Org.) Ruy Mauro Marini:
vida e obra. Editora Expressão Popular, 2005. Disponível em: l1nq.com/LRYon. Acesso em: 06 nov. 2022.Mignolo, Walter. Desafios decoloniais hoje. In: Epistemologias do Sul. v. 1 n. 1. Foz do Iguaçu, 2017, p. 12-32.Nandy, Ashis. Estado. In: Sachs, Wolfgang. Dicionário do desenvolvimento: guia para o conhecimento como poder. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 84-97.Prebisch, Ricardo. O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus problemas principais. In: Biels-
chowsky, Raúl. (org.) Cinquenta anos de pensamento na Cepal. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 71-136.
Quijano, Aníbal. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Revista Novos Rumos. Marília: UNESP, n. 37, 2002, p. 04-28.
Woortmann, Klaas Axel Anton Wessel. Modernização e Desenvolvimento. Série Antropologia. Brasília: Departamento
de Antropologia da UnB, 1992. Disponível em: http://www.dan.unb.br/images/doc/Serie120empdf.pdf. Acesso em:
30 mar. 2022.

18

Luciana Lenoir; Maria da Luz Alves Ferreira; Maria Janine Dalpiaz Reschke

Deconstruction of capitalist ideas of
development and modernization in Latin
America: the critical decolonial perspective

Abstract:
The article describes the socio-political and eco-
nomic conjuncture in which conceptions of devel-
opment, underdevelopment and modernization
were reproduced in Latin America. Characteristics
alluding to power and work relations are exposed,
pertinent to a production model supported by the
State that concentrated its actions to promote the
ideal of modernization, with an economic dimen-
sion. Through decolonial epistemology, it was ev-
idenced how Eurocentric civilization patterns led
to social hierarchy, uneven development scales
and economic dependence relations. Based on de-
coloniality and the world-system, criticisms are
directed against the hegemonic ideology of devel-
opmentalism and the cultural imposition of West-ern knowledge. In order to do so, a qualitative, bib-
liographical, exploratory analysis was used, with a
deductive method and based on a historical-criti-
cal perspective.
Keywords: Development. Underdevelopment.
Modernization. Power. Coloniality.

Deconstrucción de los ideales capitalistas
de desarrollo y modernización en América
Latina: la perspectiva crítica decolonial

Resumen:
El artículo describe la coyuntura sociopolítica y
económica en la que se reprodujeron las concep-
ciones de desarrollo, subdesarrollo y moderniza-
ción en América Latina. Se exponen características
alusivas a las relaciones de poder y trabajo, pro-
pias de un modelo productivo sostenido por el Es-
tado que concentró sus acciones en promover el
ideal de la modernización, con una dimensión eco-
nómica. A través de la epistemología decolonial, se
evidenció cómo los patrones de civilización euro-
céntricos llevaron a la jerarquización social, esca-
las desiguales de desarrollo y relaciones de depen-
dencia económica. Con base en la decolonialidad y
el sistema-mundo, las críticas se dirigen contra la
ideología hegemónica del desarrollismo y la impo-
sición cultural del conocimiento occidental. Para ello se utilizó un análisis cualitativo, bibliográfico,
exploratorio, con método deductivo y basado en
una perspectiva histórico-crítica.
Palabras clave: Desarrollo. Subdesarrollo. Mo-
dernización. Poder. Colonialidad.