A noção de alma gêmea no seriado
“Osmosis”

Nayara Baiochi* 1

Resumo:
Originalmente impulsionado pela questão “Quais são os impactos da
tecnologia na forma de viver e conceber o amor no momento con-
temporâneo?”, este artigo é voltado à análise do episódio ‘O teste’ do
seriado francês “Osmosis” (2019) a partir de uma abordagem socio-
lógica baseada nas ferramentas metodológicas anunciadas por Pierre
Sorlin, isto é, procurou-se atentar para os elementos expressivos do
audiovisual de modo a discutir como estão construídas noções que se
mostraram centrais na estrutura do episódio em questão, sejam elas
as concepções de amor, alma gêmea e tecnologia. Além da investigação
voltada para a compreensão dessas noções separadamente, procurou-
-se também compreender como o vínculo entre elas está elaborado na
trama, bem como as implicações daí advindas.
Palavras-chave: Sociologia. Série Osmosis. Audiovisual. Amor. Tecno-
logia.

* Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: nay_baiochi@
yahoo.com.br. https://orcid.org/0000-0002-7898-5378

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A NOÇÃO DE ALMA GÊMEA NO SERIADO “OSMOSIS”

TOMO. N. 41 JUL./DEZ. | 2022

The notion of soul mate in the series “Osmosis”

Abstract:
Originally driven by the question “What are the impacts of technolo-
gy on the way of living and conceiving love in the contemporary mo-
ment?”, this article is focused on the analysis of the episodeThe test’
of the French series “Osmosis” (2019) is analyzed through a sociologi-
cal approach based on the methodological tools announced by Pierre
Sorlin. It means, we focused on the expressive elements of the audio-
visual in order to discuss how notions which were considered central
in the episode structure are elaborated. They are the conceptions of
love, soul mate and technology. In addition to the investigation aimed
at understanding these notions separately, we also sought to unders-
tand how the link between them is elaborated in the plot, as well as the
resulting implications.
Keywords: Sociology. Series Osmosis. Audiovisual. Love. Technology.

La noción de alma gemela en la serie “Osmosis”

Resumen:
Impulsado originalmente por la pregunta “¿Cuáles son los impactos de
la tecnología en la forma de vivir y concebir el amor en el momento
contemporáneo?”, este artículo se centra en el análisis del episodio ‘La
prueba’ de la serie francesa “Osmosis” (2019) desde un enfoque so-
ciológico basado en las herramientas metodológicas anunciadas por
Pierre Sorlin. Es decir, tratamos de poner atención a los elementos
expresivos del audiovisual para discutir cómo se construyen nociones
que resultaron ser centrales en la estructura del episodio en cuestión,
ya sean las concepciones de amor, alma gemela y tecnología. Además
de la investigación dirigida a comprender estas nociones por separado,
también buscamos comprender cómo se elabora en la trama el vínculo
entre ellas, así como las implicaciones resultantes.
Palabras clave: Sociología. Serie Ósmosis. Audiovisual. Amor. Tecno-
logía.

Nayara Baiochi

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Prólogo: o seriado

Situado na intersecção entre Sociologia, amor e audiovisual,
este texto compreende a análise do episódio ‘O teste’ do seriado
“Osmosis” (2019). Dirigido por Julius Berg e Thomas Vincent,
tal episódio é o primeiro da série francesa1 criada por Audrey Fouché e lançada pela Netflix em 2019. Dos oito episódios que
compõem a primeira temporada, analisamos somente o primei-
ro, especialmente voltado à introdução do enredo, suas perso-nagens, local e tempo. A maior parte dos problemas e conflitos iniciados nele não tem desfecho até o final da temporada. Alguns
deles, de fato, permanecem sem conclusão mesmo após seu tér-
mino, uma forma de estimular a renovação do seriado, negada pela Netflix até o momento. Em consequência, existe um grande número de personagens, ramificações e histórias coadjuvantes
convivendo em ‘O teste’. Sendo assim, sublinhamos que nosso
relato está comprometido com abarcar a pluralidade de movi-
mentos do episódio sem perder de vista as questões que nos pa-
recem fundamentais nele e para as quais daremos maior aten-
ção no correr da análise.

1 Há duas séries francesas denominadas “Osmosis”. A primeira, de 2015; a segunda, de
2019. Analisamos o primeiro episódio do seriado de 2019, que é baseado na ideia origi-
nal de Louis Chiche, William Chiche e Gabriel Chiche, criadores da série “Osmosis” lança-da em 2015, a precursora do seriado veiculado pela Netflix. “Osmosis” (2015), também
francesa, foi produzida pela ARTE France. Os questionamentos sobre tecnologia e livre
arbítrio a partir de um algoritmo capaz de garantir o amor já estavam presentes na série
de 2015; contudo, as diferenças são marcantes. Não apenas o enredo e as personagens
são distintos, também destoam os enquadramentos, movimentos de câmera, fotogra-fia, enfim, os elementos que compõem a produção audiovisual. A sofisticação técnica
adquirida pela “Osmosis” (2019) não deixa dúvidas sobre a dilatação da verba se com-
parados os seriados. Essa injeção de recursos não é exclusiva dessa produção francesa, afinal produções como “La Casa de Papel” e “Black Mirror”, entre outras, também viram o crescimento exponencial de seus orçamentos com a Netflix, a maior empresa no seg-
mento de streaming da atualidade. A diferença no caso de “Osmosis” é que, com exceção
da ideia, pouco do seriado original foi aproveitado. Enquanto nos casos de “La Casa de
Papel” e “Black Mirror” os seriados foram continuados depois de comprados pela Netflix
e ganharam novas temporadas imediatamente associadas com as anteriores. “Osmosis”
é um novo seriado e não a continuação do seu precursor.

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No prefácio de “Séries Cultes et culte de la série chez les jeunes”, Marc Zaffran afirma que “l’idée de réaliser des séries ne provient
pas de la télévision. Elle est exploitée depuis déjà longtemps par
la radio, la littérature et le cinéma. Une série, c’est d’abord des
personnages”2 (Zaffran apud Julier-Costes et al., 2014, p. XI), re-
cordando que o formato seriado de uma história não foi inventa-
do recentemente nem pertence a um único meio. Zaffran é preciso
ao apontar que a ideia de uma narrativa seriada não é exclusiva da
televisão. Nesse ponto, aproveitamos a abertura provocada pelo
escritor para delimitar o tipo de seriado que pretendemos abor-
dar nos próximos parágrafos. Uma vez que nossa intenção está
atrelada ao seriado “Osmosis”, debateremos brevemente o se-
riado televisivo, tomando de empréstimo a observação feita por
Jean Pierre Esquenazi, segundo quem as séries televisivas “não
são sempre produzidas por empresas ligadas à televisão nem são
vistas via o receptor de televisão3” (Esquenazi, 2017, p. 11). As séries televisivas são, assim como os filmes e outras produ-
ções, compostas por imagens em movimento. Planos, tomadas,
movimentos de câmera, cenários, diálogos e temas musicais são
alguns dos elementos que as formam e, nesse sentido, não há diferenças em relação às produções cinematográficas. O que, en-
tão, caracteriza o formato da série televisiva? O que a diferencia
das demais produções audiovisuais?Sobre as especificidades temporais dos seriados, Esquenazi
pondera:

O tempo passa e os telespectadores envelhecem. Por que não fazer evoluírem ao mesmo tempo as personagens ficcionais
das séries? O gênero serial e a multiplicação dos episódios

2 Em livre tradução: “A ideia de fazer séries não vem da televisão. Há muito tempo, é ex-
plorada pelo rádio, pela literatura e pelo cinema. Uma série é, antes de mais nada, sobre
personagens”.
3 O autor em questão está discutindo produções atuais, mas são conhecidos os seriados exibi-
dos no cinema nos anos 1950.

Nayara Baiochi

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de uma mesma ficção oferecem, nessa matéria, novas po-tencialidades para toda a escrita ficcional. Torna-se possível
renovar ou reformar personagens ano após ano, mostrar as
transformações de uma família ou percorrer o passado e o fu-turo numa ordem sempre a definir (Esquenazi, 2011, p. 104).

Ou seja, o formato serial estende no tempo a construção da nar-rativa e suas personagens são parte dessa elaboração, modifi-
cando-se por conta das experiências vividas na trama. Dito isso,
voltamo-nos à questão da análise de um episódio de “Osmosis”.
Em ‘O teste’ estão colocadas as principais questões existentes
em “Osmosis”, compactadas e introdutórias. Por conseguinte,
nossa amostra abarca, como não poderia ser diferente, um (den-
tre muitos possíveis) recorte do seriado. A forma de analisá-lo
seguiu os preceitos defendidos por Pierre Sorlin, isto é, análi-
se profunda e interna da obra atenta aos “sistemas relacionais”, noção definida a partir da atenção “à l’intérieur du monde fictif
de l’écran, des hiérarchies, des valeurs, des réseaux d’échanges et d’influences”4 (Sorlin, 1977, p. 237). Nesse sentido, procuran-
do a análise profunda da obra, elaboramos um relato do episó-
dio em questão. Tal procedimento permite-nos trilhar de forma
pormenorizada os passos da investigação comprometida com
a imagem em movimento. A partir de então, são debatidos ele-
mentos presentes na obra audiovisual destacada, sejam eles as
noções de amor, alma gêmea e tecnologia, atentando-se para a
forma como aparecem construídos. Por meio desse caminho,
procuramos pensar no amor no momento contemporâneo, evi-
denciando a centralidade da tecnologia nas formas de vivê-lo e
concebê-lo nos dias atuais. A concepção de alma gêmea presente
em “Osmosis” permite-nos, como veremos no correr do texto, refletir acerca do problema anunciado.
4 Em livre tradução: “cada filme constitui, no interior do mundo fictício da tela, hierar-quias, valores, redes de troca e de influências”.

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1. O episódio ‘O teste’

No início de ‘O teste’, a tela branca contrasta com as palavras
“Perfect Match” em rosa e azul. Entre elas, uma forma geomé-
trica mista entre octógono e círculo gira (como o círculo que
costuma indicar o carregamento de programas de computador) dando lugar à abóboda de um edifício de arquitetura clássica en-
quanto os dizeres “Perfect Match, você tem direito ao amor” são
pronunciados em voz off. Então, dois pés descalços sobem uma
escadaria de mármore adornada por um tapete vermelho. Abre-
-se o enquadramento de forma a abranger uma jovem branca de
cabelos ruivos e longos subindo as escadas, Esther. Ela atravessa
uma porta para chegar ao salão onde é encarada por homens
atraentes e arrumados vestidos de ternos e smokings. Ao passar
por eles, visualiza um pequeno letreiro com o nome, a idade e a
nota de cada um, indicada por uma estrela e medida entre zero e
cinco, sob o qual a marca Perfect Match é disposta5.

Esther continua andando até chegar a um novo cômodo, o salão
da lareira. Ao sentar-se em um sofá vermelho, os homens que
ali estavam desaparecem como hologramas desconectados, com
exceção do belo rapaz que permanece em sua frente. “Tom, 27
anos, 4,72/5” indica o cartaz que desponta ao lado do seu ros-
to. Sorridente, ele inicia a conversa rapidamente interrompida a
pedido de Esther. A transição entre essa tomada e a posterior é
feita de forma a indicar que a mudança de cenário - do salão da
lareira para um luxuoso banheiro iluminado por velas - é feita
quase que imediatamente, sem interrupções percebíveis. Com
isso, a percepção de que se trata de uma dimensão alheia às leis físicas é fortalecida. Na banheira, o rapaz inicialmente deitado
sobre o tronco de Esther é conduzido a deslizar sobre o seu cor-
po. Quando a respiração dela se torna mais ofegante e ritmada,
uma voz chama seu nome. Depois de um breve corte, a jovem
aparece deitada em posição muito similar à que estava, porém

5
Simbolizando o mergulho no fluxo das lembranças.

Nayara Baiochi

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veste roupas diferentes daquelas que usava até então. Retira os
óculos grossos - possivelmente de realidade virtual - do rosto
e responde “Sim, Martin”. Escuta, então, que está atrasada para
uma reunião e reitera que não deve ser interrompida quando
está estudando a concorrência.

Atentamos para o fato de que, no seriado, a tecnologia desen-
volvida por Esther e a empresa que fornece essa tecnologia
como um serviço são homonimamente denominados Osmosis.
Seguindo o padrão utilizado pelas personagens da série, em-
pregaremos artigos masculinos em conjunto com o termo Os-
mosis em referência ao serviço tecnológico e artigos femininos
em referência à empresa. As alusões ao seriado serão sempre
indicadas pelo uso do entre aspas. Com isso, pretendemos di-
minuir quaisquer possibilidades de confusão. Entretanto, não
nos furtamos de mencionar que a inexistência de delimitações
rígidas é constitutiva do episódio, que apresenta uma série de
imagens de fusão e de discursos nesse sentido. Como veremos
mais adiante, dentre as imagens, a mais clara é a de Paul, usuá-
rio da tecnologia Osmosis, com Joséphine, sua alma gêmea, mas
há outras, como a existente entre alguns colaboradores (sobre-
tudo Paul e Esther) e a empresa, ademais da que se manifesta
na grande proximidade dos membros do grupo familiar entre si.
Sendo assim, conquanto façamos um esforço analítico para dife-
renciar e categorizar os diferentes empregos do termo Osmosis,
tal diferenciação não é claramente apreensível no episódio, uma
vez que a ideia central da obra aponta antes para a amálgama do
que para a categorização.

Conquanto o episódio seja centrado na invenção de Esther - o
Osmosis -, ele tem início com tomadas que abordam os serviços
da concorrência, a Perfect Match. Essa, como veremos depois
por meio da fala do personagem Paul e de alguns usuários do
Osmosis, parece dominar o mercado de aplicativos e softwares
de relacionamentos no tempo-espaço construído pelo episódio. A mansão, as velas, a banheira, a lareira, entre outros, configu-

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ram signos eróticos clichês manipulados pelo Perfect Match que,
nesse ambiente de realidade virtual, oferta uma variedade de ho-
mens (e muito provavelmente também de mulheres) com quem
os consumidores da plataforma podem relacionar-se. Não é pos-sível afirmar com precisão a origem dessas pessoas, contudo, a
fala de um dos usuários do Osmosis (apresentada mais adiante)
leva-nos a acreditar tratar-se de um coletivo de avatares.

Ao ser chamada, Esther é impedida de atingir o clímax no en-
contro com Tom. Quando se levanta da cama, pede a Martin - a inteligência artificial criada por ela que se comunica com as
personagens a partir de uma voz masculina - que lhe consiga
um táxi e entra em uma sala de reunião cuja arquitetura difere grandemente da apresentada pelo edifício anterior. O mármore,
os tons pastéis e os rococós da mansão do Perfect Match dão
espaço às linhas retas, ao vidro, à iluminação vertical e às co-
res primárias de uma construção moderna. Em uma sala ampla,
algumas pessoas em roupas despojadas escutam a fala de Paul
que, de camiseta e com uma garrafa em mãos, discorre sobre
a importância do teste beta que será realizado com 12 candi-
datos no dia seguinte e ressalta que aquele seria o desfecho do
trabalho desenvolvido pela equipe nos últimos dois anos com o Osmosis. Caminhando entre os ouvintes em postura confiante, ele afirma que o Osmosis é para aqueles que não aguentam mais
os relacionamentos, sem futuro, por aplicativos, e acreditam que
a realidade virtual matou os sentimentos. Segue dizendo, “eles
acham que não têm mais escolha, então pegam, consomem e
jogam fora. Mas, no fundo, querem outra coisa: a intimidade, a
paixão, a osmose. A osmose”.

Continua o discurso criticando o slogan da Perfect Match que,
entoado no início do episódio, é mostrado aos participantes da
reunião por um tablet segurado por Paul. Ele caçoa da concor-
rente: “Bravo, Perfect Match!”, diz em tom zombeteiro, seguido
pelos sorrisos de aprovação dos interlocutores. Enquanto a pro-
posta da concorrente é a de que todos têm direito ao amor, a da

Nayara Baiochi

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Osmosis é a de que o amor é mais do que um direito, é algo para o qual todos se destinam. Por fim, sem deixar de buscar o olhar
da irmã, garante que o Osmosis irá inaugurar um novo mundo
alavancado na promessa do amor absoluto, na garantia do en-
contro da alma gêmea.

Pouco interessada na fala do irmão, Esther come uma refeição
asiática do tipo in box em pé em um canto da sala. Finalizada
a reunião, Paul vai ao seu encontro. Eles debatem o número de
participantes no teste e, incomodada, ela deixa a sala rumo ao
hospital.

2. Os grupos sociais

Esther e Paul Vanhove são as personagens centrais do episó-
dio do qual caracterizaremos os principais grupos sociais. Para
tanto, destacaremos os grupos da família, dos colaboradores da
empresa Osmosis, dos investidores e dos utilizadores dos seus
serviços. Iniciemos, pois, com o grupo familiar, subdividido em
dois. Esther, Paul e sua mãe fazem parte da primeira subdivisão
desse grupo. As relações sociais que protagonizam localizam-se
no presente e no passado da trama. No presente, a personagem
da mãe é restrita a uma cama de hospital, doente e impossibi-litada de estabelecer interações significativas com o meio. Os
irmãos adultos, por sua vez, interagem a partir de diálogos em
que discutem problemas familiares e empresariais. As cenas que
compartilham são restritas ao ambiente da empresa, que parece
servir como uma espécie de segunda casa para ambos, dado o tempo que passam ali. Essa afirmação é especialmente verdadei-
ra com relação à Esther, que dispõe de uma cama em um cômodo reservado do edifício. Enquanto a casa de Paul, um apartamento
compartilhado com Joséphine, é mostrada em algumas tomadas
do episódio, Esther não aparece em nenhum ambiente domésti-
co quando adulta. Sua vida parece girar em torno da busca pela
cura de sua mãe e do desenvolvimento do Osmosis que são con-

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jugados, em sua perspectiva, no decorrer do episódio. Talvez, a
empresa não seja sua segunda, mas primeira e única casa. Aqui identificamos uma das imagens de fusão projetadas pelo episó-
dio. Esther e Paul fundem-se com a empresa. Não é possível se-parar os domínios pessoal e profissional de suas vidas, não há
fronteiras para tanto.

O passado, por sua vez, é acessado a partir de memórias grava-
das e reproduzidas para a mãe a partir de um pequeno dispositi-
vo que Esther posiciona na têmpora da enferma quando a visita
no hospital. Ao som diegético de “Ave Maria” de Schubert, alusão
notória à mãe de Jesus, a primeira imagem mnemônica irrompe
com enfoque nas páginas de um livro aberto e em pés infantis.
Em seguida, a versão de uma criança também ruiva remetendo à Esther aparece na tela e, por fim, a figura da mãe mais jovem é
mostrada por meio de um espelho enquanto trechos de “A Bran-
ca de Neve” são lidos. A alusão à Santa Maria opera como uma
referência - possivelmente a maior do Ocidente - à maternidade
e às práticas de cuidado e abnegação que a envolvem. Maria sim-
boliza o ideal máximo da entrega e do amor maternos. O conto “A
Branca de Neve”, por outro lado, recorda-nos a madrasta obceca-da pelo reflexo no espelho e voltada apenas para a satisfação dos
próprios interesses. Transformada em bruxa velha na passagem
do envenenamento, a rainha má do conto mostra ao mesmo tem-
po sua verdadeira natureza e seu maior medo. A feiura de sua
alma é exteriorizada, torna-se visível a todos.

Ainda que de maneira sutil, a discreta tensão provocada pela co-
existência da composição de Schubert e de referências ao conto
infantil repercute na cena e é fortalecida pela evidência de um
segredo organizador das relações dessa família, o qual será ligei-
ramente mencionado por Paul em meados do episódio. O altru-ísmo materno representado pela figura de Santa Maria contrasta
com o egoísmo da madrasta capaz de ludibriar e envenenar a
enteada, provocando um estranhamento que não passa desper-
cebido.

Nayara Baiochi

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No quadro mnemônico, a pequena Esther enxerga a si própria e
a sua jovem mãe a partir de imagens trêmulas oferecidas por um
espelho de mão. Com isso, levanta-se o caráter incerto do passa-
do, o que não parece provocar nenhum tipo de questionamento em Esther. Se a memória nos constitui, questioná-la significaria
questionar a si, a quem somos ou acreditamos ser. Paul, o detentor
do segredo não revelado, é o único a interrogar as concepções fa-
miliares detidas pela irmã. A tecnologia que permite a reprodução
dessas memórias não é objeto de questões das personagens, mas
aparece como algo passivo, como se aquelas imagens gravadas e
apresentadas depois de muitos anos fossem fatos incontestáveis,
como se fossem veículos inquestionáveis da verdade. O espelho,
então, tem papel importante. Enquanto anuncia a possibilidade de acesso a não mais do que um reflexo trêmulo do passado, for-
talece a referência à história da madrasta má.

Por vezes, o ponto de vista de captura dessas imagens mnêmicas
parece ser os olhos da mãe; por outras, de uma terceira pessoa
não revelada, um observador, que funciona como uma espécie de narrador dotado da função de garantir a fidedignidade das
recordações. Na segunda lembrança, a menina parecida com
Esther pula em uma piscina6 enquanto trechos da passagem do
espelho do conto em questão continuam sendo proferidos: “E
o espelho respondia: ‘você é a mais bela de todas’. E a rainha ficava feliz, pois sabia que o espelho nunca mentia”. Finalizado o
trecho, escuta-se a voz infantil da garota gritando por Paul, que,

6 No episódio, a expressão “perfect match”, tomada de empréstimo pela marca homôni-
ma que oferta serviços de relacionamento, é usada para designar o encontro entre duas personalidades que se “encaixam” perfeitamente, ou seja, que formam um par afinado e
compatível. As notas mensuradas pelas estrelas e compartilhadas por pequenos letrei-
ros não são absolutas, uma vez que dizem respeito ao nível de compatibilidade entre
Esther e os homens que ali estão. Dessa forma, sofrem provável alteração dependendo
do usuário conectado à plataforma. Fora dos contornos do seriado, a expressão vizinha
“dar match” integra o vocabulário sobretudo dos mais jovens no Brasil e, além de ser
usada em vários aplicativos atualmente populares, como o Tinder, é também emprega-
da fora dos aplicativos em referência aos casais com grande compatibilidade de gostos,
hábitos, crenças, etc.

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também criança, salta na piscina para socorrê-la. Ele a leva para a superfície. Sorridente, ela permanece abraçada ao irmão, ain-
da que use boias nos braços. Em off, a voz adulta de Esther diz à
mãe que Paul estava cansado daquilo, que ela o forçou a salvá-la.

Se ela forçava o irmão a salvá-la sem necessidade quando crian-
ça, na idade adulta, é ela quem o salva por meio do Osmosis,
como indicam falas de Paul e de uma personagem pertencente
ao segundo subgrupo familiar que abordaremos, a mãe de Niels
(o 13º participante do teste beta), na cena em que pede ajuda para o filho. Em diálogo com Esther, a mãe do jovem diz: “você
disse ao jornalista que criou o Osmosis para curar o seu irmão”. A programadora não nega tal afirmação, ainda que a rebata com
a fala “É diferente”.

Se o Osmosis foi desenvolvido para ajudar Paul em um passado
não muito distante, no momento atual, Esther apresenta preo-
cupação constante com o estado de saúde da mãe, mostrando-se
afetuosa, ao passo que o irmão volta a atenção aos negócios. Ele
não menciona a mãe a não ser para discutir a venda e a hipoteca
da casa dela e para aludir, em diálogo com Joséphine, ao miste-
rioso segredo da família. Enquanto Esther é movida pelo anseio
de ajudar a doente, Paul não compartilha a mesma preocupação,
apresentando aversão à mãe, demonstrada pela distância e pelo
misto de desinteresse e incômodo quando ela desponta como
assunto.

Nas falas de Paul, as transações comerciais são feitas em nome
dos interesses da empresa que, não obstante, se confundem com
os dele e com aqueles que ele acredita serem os interesses de
Esther. A existência de uma propriedade familiar, bem como a
alocação da mãe em um quarto hospitalar individual indicam
tratar-se de uma família da classe média francesa. Não são ricos,
haja vista a necessidade de investidores externos para a manu-
tenção da empresa; entretanto, tampouco compartilham o estilo
de vida das camadas mais pobres.

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Fazem parte do segundo subgrupo Niels, sua mãe e seu pai, so-
bre o qual escutamos apenas os relatos. As relações deles po-
dem ser apreendidas por meio de duas cenas. Já mencionamos
a primeira, o encontro entre a mãe de Niels e Esther na entrada da Osmosis. Diante do pedido aflito por ajuda, Esther assiste ao
vídeo da candidatura de Niels, a segunda cena. Nessa, o rapaz
descreve como se tornou viciado em masturbação. Para tanto, conta que começou a ver pornografia aos oito anos, após encon-
trar vídeos deixados pelo pai quando ele abandonou a família.
Apesar das relações nesses subgrupos serem diferentes entre si,
há em comum a expectativa de que o Osmosis seja capaz de so-
lucionar problemas que afetam profundamente as personagens.

Além do grupo familiar, Esther e Paul são igualmente parte do
grupo dos colaboradores da empresa Osmosis, o que faz com
que as relações sociais que manifestam tenham caráter familiar
e laboral. Ele é o diretor executivo da companhia e ela é pro-
gramadora e, portanto, a principal responsável pelo desenvolvi-
mento dos serviços disponibilizados pela empresa. Além deles,
os funcionários Billie Tual, Gabriel e Swann têm destaque no
episódio. Billie lida especialmente com o grupo de usuários que realiza o teste beta, Gabriel cuida do setor financeiro e Swann
dos trâmites de segurança computacional. Enquanto Esther tra-
balha nos bastidores da companhia, sozinha diante de telas de
computador, Paul lidera a equipe, discute com investidores e
protagoniza o anúncio comercial da Osmosis. Ambos estão no
topo hierárquico da companhia, cada qual em um posto. No gru-
po dos investidores, despontam cinco personagens com investi-
mentos ativos na empresa. Por fim, o grupo dos usuários dos serviços da Osmosis pode ser
dividido em dois, as 13 pessoas que participam do teste beta e
o casal Paul e Joséphine. Esses, que parecem ser os primeiros
utilizadores dessa tecnologia, dividem um apartamento e, mes-mo quando estão fisicamente distantes, interagem por meio do
Osmosis.

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Por seu turno, os participantes do experimento são homens e
mulheres com idade aproximada entre 17 e 40 anos. Conquanto
alguns estejam temerosos, todos apresentam grande empolga-
ção com a possibilidade de conhecer o serviço que promete o
encontro da alma gêmea. Para alguns é dada maior evidência,
outros têm papéis secundários pouco explorados.

3. Osmosis

Uma sequência no início do episódio mostra ainda outras per-
sonagens de destaque. Elas fazem exames e avaliações prepa-
rativos para o teste beta enquanto relatam suas experiências
amorosas a Martin, que as entrevista com o intuito de gerar
dados para o experimento. Enquanto as falas dessa sequência
revelam formas de viver o amor, apresentam também explica-
ções e motivações para a busca do Osmosis, como nos exem-
plos a seguir, que nos ajudarão a alcançar os valores compar-
tilhados pelo grupo dos usuários e criadores desse serviço.
Enquanto pedala em uma bicicleta ergométrica, um rapaz diz
que sua atividade sexual é 70% virtual e 30% carnal. Na estei-
ra, outra personagem masculina responde a pergunta sobre o
seu melhor orgasmo dizendo que foi virtual, com um avatar
no Perfect Match (o serviço usado por Esther nas cenas intro-
dutórias). Dada a inexistência de novas perguntas, assumimos
que a personagem seguinte, uma mulher de cabelos compridos
e escuros, retruca a mesma questão sobre orgasmos ao dizer
que nunca aconteceu e levantar a hipótese de ser defeituosa na
parte elétrica.

Essas falas evidenciam o comportamento sexual assumido pelas
personagens. Primeiramente, é preciso registrar o mais elemen-
tar, a atividade sexual dos participantes é tema de conversação entre humanos e uma inteligência artificial. Nesse sentido, vol-
tamo-nos à dimensão temporal da trama, localizada em um futu-
ro muito próximo, momento ligeiramente adiantado em relação

Nayara Baiochi

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ao presente, no qual a tecnologia é um pouco mais desenvolvida.
Expostas, informações sobre a vida íntima das personagens são
coletadas como dados para um teste experimental. Dois homens
declaram a prática de relações sexuais “virtuais” e, com isso, vão
ao encontro do discurso de Paul na reunião com os colaborado-
res. Nele, recordamos, o diretor da Osmosis caracteriza os rela-
cionamentos por aplicativos como atos de consumo marcados
pela brevidade e pelo descarte.

A realidade virtual é construída como o terreno da satisfação
(sobretudo sexual) imediata. Como acompanhamos na sequên-
cia introdutória, Esther não tarda para encontrar um belo par
disposto a satisfazê-la sexualmente sem qualquer necessidade
de interação prévia. Mais abrupto do que o início da relação se-
xual é o seu desenlace. Ao ser interrompida por Martin, ela retira
os óculos e, consequentemente, desconecta-se do Perfect Match
e de Tom. A mesma realidade virtual responsabilizada por Paul
pela morte dos sentimentos é positivamente citada como res-
ponsável pelo melhor orgasmo de um dos participantes do teste
beta que, a despeito disso, procura pelos serviços da Osmosis,
aceitando a função de cobaia no experimento.

Há muitas diferenças entre os serviços dos aplicativos virtuais
e o do Osmosis, mas ambos possuem um fator em comum, a ex-
pectativa de que a tecnologia coopere para o sucesso no amor, que possui diferentes significados. Na qualidade de modelo re-
presentativo dos aplicativos virtuais no episódio, Perfect Match
veicula a ideia de que o amor é um direito e o associa ao en-contro sexual e à brevidade. Osmosis identifica amor à destina-
ção, tornando aquele o propósito da existência. Além disso, a
tecnologia opera de maneiras distintas, por meio de algoritmos
ou pela abordagem conjugada de neurotecnologia e tecnologia
de comunicação, como é o caso do Osmosis. De qualquer ma-
neira, a escolha dos parceiros é fundamentalmente embasada nos indicadores tecnológicos. Afinal, como é calculado o grau de
compatibilidade entre os usuários do Perfect Match a não ser

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por um conjunto de algoritmos cuja expressão é uma pontuação
em estrelas, disponibilizada em cartaz individual? A questão da
escolha individual ganha evidência ainda maior no Osmosis por
ser um serviço que promete a revelação da alma gêmea, como
voltaremos a discutir.

Ainda nas cenas de perguntas e respostas dos participantes,
Lucas conta a história das bodas de ouro de seus avós, usada
como explicação para a escolha de buscar o amor via Osmosis.
Ele relata que conversou com a avó na comemoração, pergun-
tando-lhe: “Então o verdadeiro amor é isso? Aquele que dura
para sempre?”. A resposta dela, casada há 50 anos e mãe de seis filhos, foi a de que jamais conhecera o amor verdadeiro. Posto isso, Lucas afirma o desejo de conhecer o amor e “fazer a esco-
lha certa”. Sua resposta é fundamental por verbalizar um valor
central e intimamente associado à existência do Osmosis: “esco-
lher” acertadamente. A tecnologia comercializada pelos irmãos
Esther e Paul promete a garantia da escolha certa, a revelação
de duas pessoas que estavam destinadas uma à outra. As per-
sonagens não querem depender “apenas” de sua inteligência e
sensibilidade para eleger o parceiro amoroso. Elas anseiam pelo
apontamento certeiro ofertado pela tecnologia. No pano de fun-
do da comercialização do Osmosis reside, entre outros aspectos
que trabalharemos no correr do texto, a vontade de suprimir o
risco relacionado ao amor. Em outros termos, há a preferência pelos apontamentos dos dados científicos, pois se acredita que
serão mais seguros, menos passíveis de erros. Nesse sentido,
tanto Perfect Match quanto Osmosis oferecem serviços tecno-
lógicos que visam à diminuição do erro e, consequentemente,
das dúvidas e decepções amorosas. Visa-se a satisfação. Como
vimos, naquele, a compatibilidade entre usuários (avatares ou
não) é matematicamente calculada e exposta nos cartazes indi-
viduais. Na sequência de abertura do episódio, Esther escolhe
Tom cujo cartaz aponta a maior compatibilidade entre os ho-
mens do salão, 4,72 de 5. Osmosis, por seu turno, promete des-
cortinar a alma gêmea.

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Emerge, assim, a oposição entre a alma gêmea e a multiplicidade
de parceiros, entre os relacionamentos duradouros e os efême-
ros. A alma gêmea, princípio guia do Osmosis, é vista como a
condição para que o amor verdadeiro seja conhecido. Paul nos
dá pistas sobre o seu parecer acerca da natureza do amor ao
mencionar a paixão e a intimidade, mas é nas cenas posteriores,
principalmente naquelas que mostram a conexão entre Joséphi-ne e ele via o implante do Osmosis, que isso ficará mais claro.
Constrói-se a ideia de que rotatividade de parceiros é a marca
dos relacionamentos na “era dos aplicativos”, cenário de exten-
sa liberdade sexual e amorosa. Nesse quesito, não nos furtamos
de mencionar a revolução sexual do último século que, dilatada
e desdobrada, encontrou os avanços tecnológicos digitais es-
pecialmente desenvolvidos e popularizados desde a década de
1980. No episódio ‘O teste’, esse encontro é abordado na mo-
bilização dos aplicativos de relacionamentos e da tecnologia
Osmosis: diante da lógica dos aplicativos denunciada por Paul,
abre-se um caminho tão ou mais tecnológico, o próprio Osmosis,
que parece ser concebido como uma nova via frente ao desgas-
te de serviços do tipo do Perfect Match. Ao revisitar a noção de
alma gêmea, essa inovação tecnológica aposta na troca da mul-
tiplicidade de parceiros pela unicidade, da ampla liberdade de
escolha pelo “amor verdadeiro” e da brevidade das relações pela
duração. Colocado de forma mais sucinta (e talvez radical), a li-
berdade sexual e a felicidade são desvinculadas. Ou seja, a liber-
dade sexual não é encarada como um caminho para a felicidade,
como apontam inúmeros discursos promovedores e herdeiros
da revolução sexual de 1960. A questão da escolha está também
vinculada a isso.

Em última instância, os utilizadores do Osmosis não perdem a liberdade de escolher os parceiros, afinal, não são obrigados a
seguir a indicação do implante e, caso a sigam, podem mudar de
ideia a qualquer momento, tendo inclusive garantido o direito
de deixar de usar os serviços da empresa. Entretanto, sublinha-

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mos que elementos associados à liberdade sexual e amplamente
valorizados desde a revolução de 1960 não são encarados como
um caminho para a felicidade. O sexo livre, marca dos movimen-
tos da contracultura do último século, passa a ser constrangido
pelo amor entre “almas predestinadas” unidas graças à tecno-
logia. A satisfação do gozo em encontros efêmeros é rebaixada
diante da união sublime no V-Eternity, dimensão disponibilizada
pelo Osmosis sobre a qual nos debruçaremos mais adiante.

Na revolução sexual de 1960, a sexualidade foi liberada de uma
série de constrições morais, religiosas e legais. A dissociação entre sexo, reprodução e casamento e a autonomia sexual e profissional
feminina ganharam terreno (Giddens, 1992, p. 59-64; Lipovetsky,
1999, p. 19-20; Lasch, 1983, p. 233-236). Conquanto o termo “re-
volução sexual” tenha sido listado pelos pesquisadores e pelo sen-
so comum para nomear o conjunto de mudanças observadas na
segunda metade do último século, ele abrange a concomitante transformação no amor. É sempre difícil e geralmente pouco pro-
veitosa a delimitação conceitual estrita entre o domínio do sexo
e o domínio do amor. Ainda assim, é interessante pensar que a
predileção pelo termo “sexual” para denominar tal conjunto de
mudanças é também um indício do lugar que o sexo passou a ocu-
par no Ocidente. Nas análises de Giddens (1992) e de Lipovetsky
(1999), as transformações no amor são impulsionadas pelas se-
xuais. Tanto a crescente distinção entre sexo e amor nos discursos
de todas as ordens, inclusive nos sociológicos, quanto a predile-
ção por priorizar o sexo ao amor nas análises citadas são indicati-
vos dos comportamentos e ideias que ganharam espaço no correr
dessa revolução. Nos movimentos da contracultura, a liberdade
sexual foi tomada como um caminho capaz de libertar os impul-
sos reprimidos, vistos como responsáveis pela violência e frus-
trações individuais e por diversos problemas sociais. A libertação
das amarras sexuais continha a promessa de superação das catás-trofes geradas pelas grandes guerras, de resistência aos conflitos e
ditaduras, de forma a fortalecer a percepção de que a liberdade e o
prazer sexual levariam a uma sociedade livre do mal-estar.

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A liberdade para escolher e trocar de parceiros nos aplicativos
de relacionamentos referenciados em Osmosis tem raízes na re-
volução sexual dos anos 1960 que, por sua vez, tem raízes no
que Edward Shorter (1977) chama de primeira revolução sexu-al. Iniciada no final do século XVIII, é caracterizada pela atenção
aos sentimentos e à relação amorosa e pelo crescimento da livre
eleição de matrimônios e das atividades sexuais pré-conjugais.
Com ressalvas, em diálogo com Shorter, Giddens denomina o pe-
ríodo abrangido por essa revolução de fase romântica.

A aposta do Osmosis, também herdeira dessas revoluções, rom-
pe com a questão da pluralidade de parceiros e da efemeridade
dos encontros característica dos aplicativos. A partir disso, não afirmamos um retrocesso na libertação de Eros observada nas
revoluções sexuais, mas percebemos uma resposta dos herdei-
ros dessas revoluções que procura escapar da ampla liberdade
sexual. O discurso de Paul e o serviço de sua empresa são conse-
quências das revoluções sexuais, mas não buscam ampliação da
liberdade. Seguem, porém, exigindo a satisfação e a conectam ao
amor cuja vivência plena depende do encontro entre almas gê-
meas. A busca pelo amor como fonte de satisfação faz parte das
falas das personagens ligadas ao Osmosis. Acredita-se que se-
melhante satisfação, todavia, não nasça de encontros fortuitos,
muito menos de ligações desprovidas de profundidade como as
oferecidas pelos aplicativos mencionados no episódio.

Entre os defensores do Osmosis, circula a ideia de que isso que
temos chamado de satisfação, mas que poderia ser com justi-
ça denominado felicidade, nasce da completude proporcionada
pela reunião de pessoas mutuamente destinadas. A concepção
de almas gêmeas e almas irmãs é bastante antiga no Ociden-
te. O aspecto inovador e indubitavelmente moderno presente
em “Osmosis” encontra-se no anseio pela precisão científica.
As combinações tecnológicas oferecidas pela criação de Esther emergem como meio eficaz de supressão das dúvidas. O amor
deixa de ser uma questão para tornar-se certeza. Como já apon-

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tamos, entre as personagens, os questionamentos provocados
pelo amor não são de ordem conceitual, mas dizem respeito à
experiência amorosa, como e com quem vivê-la. Assim, mobi-
lizamos os apontamentos de Beck-Gernsheim e Beck (2018),
Giddens (1992) e Bauman (2001) acerca da conexão entre a
centralidade do indivíduo e a constituição das relações amoro-
sas na contemporaneidade. Beck-Gernsheim e Beck discutem a
combinação entre individualização e a crescente importância do
amor atualmente. O movimento de desenlace do indivíduo ante
a dissolução dos estamentos, classes e comunidades caminhou
ao lado do aumento da relevância do amor, buscado como fonte
de estabilidade.

Acreditamos que, no episódio, a comercialização do Osmosis
dialoga com a individualização no seguinte sentido: uma vez que
cabe ao indivíduo a condução de sua vida de maneira cada vez
mais livre (especialmente quando comparada às coibições rijas
observadas nas sociedades pré-modernas e mesmo nas socie-
dades industriais), o peso da escolha pode tornar-se um fardo demasiadamente difícil, sobretudo quando as escolhas dizem
respeito ao amor, domínio tão valorizado. Depender apenas de
si na tomada de decisões amorosas pode ser extremamente as-
sustador, principalmente quando as relações amorosas recebem
tantos investimentos e são vistas como caminho para a felicida-de. Opta-se, então, por algo que parece mais seguro e afim com
os valores propagados no processo de racionalização.Dessa forma, os algoritmos matemáticos, representados pela fi-gura da inteligência artificial Martin, são responsabilizados por
indicar com quem os usuários do Osmosis devem relacionar-se.
Isso, parece-nos, é mais uma faceta do processo de racionaliza-
ção discutido por Max Weber (2005). O intento de a tudo domi-
nar por meio da previsão alcança a escolha do parceiro. Curio-
samente, conquanto os trâmites do Osmosis sejam tecnológicos,
a aparência de sua funcionalidade guarda algo de mágico e fan-
tástico bem demonstrado pela fala de Billie disposta no próximo

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parágrafo. Tal natureza misteriosa intriga os participantes e aju-
da a fortalecer a aura transcendental do amor. Isso ocorre inclu-
sive por conta do discurso centrado na alma gêmea, essa noção a
priori
jamais explicada e a partir da qual o Osmosis se sustenta.

Doravante, com o objetivo de enriquecer a discussão, acompa-
nhemos de forma mais detalhada como as relações sociais dos
grupos destacados são construídas e como o Osmosis opera.
Após a sequência de perguntas e respostas com os participantes
dos testes, a tela é tomada por um enquadramento fechado no
braço de Ana que, dentro de um tubo transparente, recebe uma
dolorosa descarga elétrica. Após colocar um curativo na altura
do pulso da jovem, ele explica o funcionamento do serviço: “com
a tatuagem, você e sua alma gêmea poderão se conectar pelo V-
-Eternity e alcançar uma osmose emocional total”.

Nas cenas seguintes, as palavras ganham vida a partir da cone-
xão entre Joséphine e Paul, facilitando a compreensão do que se
denomina como “osmose emocional total”. A câmera, na entrada
de um salão iluminado pela luz solar que transpassa grandes ja-
nelas de vidro, captura a repetição de uma sequência de passos
de dança. Depois de algumas tentativas fracassadas, Joséphine
cai antes de completar o salto. Frustrada, retira-se do ambiente
para isolar-se em outro cômodo onde apoia o pulso esquerdo
sobre a barra, deixando à mostra a discreta tatuagem na parte
interna de seu antebraço, um desenho circular translúcido. Com
um movimento do dedo indicador sobre a gravura, torna-a mais
iluminada. Após um corte, vemos Paul atentar para a tatuagem
luminosa de seu próprio braço, idêntica à de Joséphine, como se
atendesse a um chamado dela. Ambos fecham os olhos e outra
dimensão ganha as telas. Não mais o estúdio de dança onde ela
estava ou o escritório em que ele se encontrava, mas um fundo
completamente negro, alheio à gravidade. Nus, Joséphine e Paul
alcançam-se mutuamente, beijam-se. O enquadramento recorta
partes de seus corpos, pescoço, seios, bocas, enfocando a troca
de carícias. Depois de um novo corte, ambos aparecem nos am-

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bientes em que se encontravam fisicamente, abrindo os olhos
num recobrar da consciência. De volta ao estúdio, ela aparece revigorada e finalmente acerta os passos, o que lhe garante a se-
leção para apresentações internacionais.

Apenas após essa passagem, o título do seriado ganha destaque. Os corpos nus de Paul e Joséphine entrelaçam-se flutuando no
escuro enquanto a palavra “Osmosis” surge letra por letra. O tí-
tulo do seriado e o nome da empresa e do serviço por ela ofe-
recido são homônimos, referenciados pelo termo em latim que
diz respeito à osmose emocional total mencionada por Billie no
diálogo com Ana. Conectados pelo V-Eternity a partir do acio-
namento da tatuagem, eles, considerados almas gêmeas, podem
experimentar a mistura de seus corpos, pensamentos e senti-
mentos. Na dimensão escura, nada mais existe a não ser o casal
em uma dança suave capaz de expressar a fusão de duas pessoas
profundamente envolvidas e completamente alheias à realidade física que as rodeia. A osmose possibilitada pelo V-Eternity é a finalidade última do serviço proporcionado pela empresa dos
irmãos Vanhove e, segundo Billie, pode ocorrer somente entre
almas gêmeas. A ideia de amor construída no episódio passa por
essa fusão vista como restauradora, aludindo à concepção de
que os homens e as mulheres são seres que só alcançam a com-
pletude quando unidos à metade que lhes faltam.

Posteriormente, em reunião iniciada por Gabriel, outras caracte-
rísticas do Osmosis são reveladas. Com a ajuda de uma projeção,
Billie explica que o implante funciona como uma pílula que libe-
ra um enxame de nanorrobôs no cérebro de quem a ingere. Os
robôs minúsculos são programados para recuperar os sinais do subconsciente que, decodificados pela inteligência artificial do
Osmosis, são conectados às redes sociais de todo o mundo para selecionar um único perfil. Continua: “O Osmosis vai recriar a
imagem que você tem em sua mente sem saber. E essa imagem é
o rosto da sua alma gêmea”. Ou seja, trata-se de uma tecnologia
complexa que abarca aspectos neurológicos, robóticos, digitais

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e de comunicação ao unir a decodificação de impulsos cerebrais
capturados por pequenos robôs às informações compartilhadas
em redes sociais.

Tão logo a apresentação termina, é aberto espaço para questões.
Prontamente, um dos participantes levanta a mão e pergunta “esse troço é místico ou científico?”. A palavra é dada à Esther que, diante da questão, afirma que o Osmosis não cria, mas re-
vela, uma vez que lê os impulsos elétricos e as reações químicas
que compõem os pensamentos e sentimentos de cada pessoa.
Conclui: “Na verdade, o Osmosis não cria nada. Ele revela você”.
Com isso, ela sugere que a imagem da alma gêmea é, de algu-ma forma, inerente às pessoas. Afinal, cabe ao Osmosis apenas jogar luz sobre uma imagem que jaz codificada no conjunto de
pensamentos e sentimentos. Essa concepção conecta-se à ideia
proclamada pelo discurso de Paul no início do episódio, segundo
o qual o amor é destinado a todos.

Enquanto o slogan da concorrente - “Perfect Match, você tem di-
reito ao amor” - evoca a questão dos direitos, cara às sociedades
democráticas modernas construídas sobre os pilares iluminis-
tas, o discurso da equipe da Osmosis evoca o destino. Os direi-
tos políticos, sociais e civis enaltecidos pela revolução francesa
e pela independência estadunidense espalharam-se no século
XIX. No século XX, outra sorte de direitos ganhou terreno. Bus-
cados menos por meios revolucionários estrondosos que por
aquilo que Lipovetsky considera a revolução do cotidiano, esse
conjunto de direitos passou a ser reivindicado no dia a dia. “Eis o fenômeno que nos modificou: é com a revolução do cotidia-
no, com as profundas convulsões nas aspirações e nos modos de
vida estimuladas pelo último meio século, que surge a consagra-
ção do presente” (Lipovetsky, 2004, p. 59). Seguiram-se, assim, o
direito ao consumo, ao bem-estar, ao prazer e ao amor (coloca-
dos no mesmo pacote). Tais direitos, parece-nos, caminham em
conjunto com a crescente autonomia individual, afrouxados em
relação às perspectivas coletivas mais amplas. Trata-se sobretu-

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do de aspirações centradas no indivíduo, que se torna o núcleo
de mudanças que ele espera que recaiam sobre si.

O serviço ofertado pelo Perfect Match promete aos usuários o
encontro do amor a partir de uma interface, conjugando con-
sumo, autonomia individual, amor e tecnologia. Tratar o amor como um direito significa aproximá-lo de um conjunto de nor-
mas referenciais. Ocorre que, como a relação amorosa depende
de ao menos duas pessoas, não há qualquer garantia de que ela
exista, a não ser ao esbarrar em outros direitos individuais ca-
ros à modernidade. Os avatares, então, emergem como a solução
do Perfect Match. Se todos têm direito ao amor, ele só pode ser
garantido por entidades tecnológicas controladas por computa-
dores invisíveis. Por sua vez, o Osmosis assegura que “o amor se
destina a todos”, retirando o amor do campo do direito para co-
locá-lo como um aspecto do destino, algo para o qual o homem e
a mulher foram supostamente criados independentemente das
condições de suas existências.

A fala de Esther - o Osmosis “revela você” - indica que a manifes-
tação da alma gêmea implica a revelação de si. Em outros termos,
ao revelar alguém, o Osmosis traz à tona seu par, posto que esses
dois seres, essas duas pessoas, são partes de um mesmo todo. A
empresa dos irmãos Vanhove promete a osmose emocional total
a partir da noção de que todos possuem uma alma gêmea cuja
imagem reside no espírito humano, pronta para ser decifrada.

4. Alma gêmea

Vejamos “O Banquete”, centrados no discurso de Aristófanes. Em
louvor a Eros, ele, o quarto orador da noite descrita por Apolo-doro, afirma a falta de percepção dos homens acerca do poder
do amor. “É ele com efeito o deus mais amigo do homem, prote-
tor e médico desses males, de cuja cura dependeria sem dúvida
a maior felicidade para o gênero humano” (Platão, 2003, p. 20),

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diz. Inicia o relato de um tempo antigo em que a natureza huma-
na era outra. Primeiramente, havia três gêneros, não apenas o
feminino e o masculino, também o andrógeno. Ademais, a forma
humana era inteiriça, com o dorso arredondado. Quatro mãos e
pernas formavam cada ser que dispunha de dois rostos opostos
sobre um único pescoço. No topo, uma só cabeça. De tão fortes
e presunçosos, esses seres escalaram ao céu em uma investida
contra os deuses.

O atentado contra os deuses foi tomado como sinal de grande ar-rogância. Eles, após refletirem sobre o que deveria ser feito, con-
ceberam uma maneira de enfraquecer os homens sem lhes tirar
a vida, mantendo com isso as honras e templos que lhes eram
ofertados. Decidiram, assim, cortá-los em dois, tornando-os mais
numerosos e fracos. Dessa forma, além de evitar novas escaladas
ao céu, ainda multiplicariam as ofertas, já que os próprios homens
seriam multiplicados. Zeus solicitou a Apolo que, ao cortá-los, tor-
cesse os seus rostos para o lado do corte como forma de obrigá-
-los a contemplar a própria mutilação cujo umbigo é a cicatriz. Por essa única abertura no meio do ventre, Apolo ligava firmemente a
pele repuxada. Algumas das pregas advindas da junção de pele fo-
ram polidas, outras deixadas, como as que estão à volta do ventre
e o próprio umbigo. Desde semelhante mutilação, o homem vagou
pela Terra, passou a ansiar por sua metade

e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se
um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome
e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das metades e a outra fica-va, a que ficava procurava outra e com ela se enlaçava, quer
se encontrasse com a metade do todo que era mulher - o
que agora chamamos mulher — quer com a de um homem;
e assim iam-se destruindo. (Platão, 2003, p. 21).

À busca pela natureza alterada e “ao desejo e procura do todo
que se dá o nome de amor” (Platão, 2003, p. 23). Segundo Aris-

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tófanes, o amor, portanto, é a procura pela restauração da antiga
natureza humana. A busca pelo outro é a busca por si, a tenta-
tiva de restaurar o todo perdido, de curar uma ferida dolorosa
diariamente contemplada por seres que receberam o castigo da
mutilação. O homem seria feliz se realizasse plenamente o amor:

É então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro
está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga
natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar
a natureza humana. Cada um de nós portanto é uma téssera
complementar de um homem, porque cortado como os lin-
guados, de um só em dois; e procura então cada um o seu
próprio complemento. (Platão, 2003, p. 22).

O discurso gira em torno da união, primeiramente, de dois se-
res separados por Apolo, mas não é exclusiva a eles, pode ser
guiada pelo gênero (feminino, masculino ou andrógeno) quando
há a necessidade de buscar a metade que não seja aquela origi-
nalmente apartada, como ocorreu logo após o corte ordenado
por Zeus. Estabelece-se a noção de incompletude. O homem é
apresentado como um ser amputado e o amor é justamente o
desejo e a busca pela unidade. Quando há o encontro com a me-
tade perdida, o destino dos que insistem na fusão de outrora é a
inércia e a morte. Ao citar, ainda que brevemente, a destruição
oriunda da união entre duas metades, o discurso de Aristófanes
sugere a tragédia advinda da impossibilidade de reunir dois se-res. O homem teve sua natureza modificada. Conquanto anseie
pela totalidade primitiva, essa lhe é vedada e os que insistem em
realizá-la pagam com a vida.

Não há qualquer menção à expressão “alma gêmea” na fala de Aris-tófanes, que, diferente do que muitos afirmam, não pode ser enca-
rada como o discurso por excelência sobre o tema. Antes, podemos afirmar que ela contém bases e noções que, desdobradas e modi-ficadas, ressoaram no tempo e ganharam características específi-
cas em outros períodos, abrindo espaço para que surgisse aquela

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noção. A ideia original do homem incompleto dividido em dois re-
latada por Platão teve terreno particularmente fértil na literatura
romântica, unindo-se à noção de alma propagada pelo cristianismo.
Consequentemente, a metade complementar já não poderia ser um
tipo genérico que respeitasse somente o gênero feminino, masculi-
no ou andrógeno original. Na tradição cristã, a alma é única.

Conforme a ideia de indivíduo ganhou força no Ocidente, soma-
da à concepção cristã de alma, as metades passaram a ser enca-
radas como seres singulares e insubstituíveis. Apenas uma pes-
soa, uma alma, seria o complemento de outra igualmente única.
Por isso, trata-se da “pessoa certa” e de nenhuma outra. Isaiah Berlin, diante da difícil tarefa de definir o Romantismo, levanta
características capazes de dar a dimensão da complexidade e va-
riedade do movimento romântico:

O Romantismo é o primitivo, o ignorante, é a juventude, a
exuberante sensação de vida do homem natural, mas tam-
bém é palidez, febre, doença, decadência (...), a própria Mor-
te. (...) É a plenitude vigorosa e confusa e a riqueza da vida
(...), a multiplicidade inexaurível, a turbulência, a violência, o conflito, o caos, mas também é a paz (...) (Berlin, 2015, p.
42-43).

A pluralidade da acepção defendida por Berlin é tamanha que
nos leva a questionar se há algo que o Romantismo não abarque. Por outro lado, a força dessa definição coloca-nos diante do es-
pírito romântico, de sua energia e contradições. Nicola Abbagna-no, por sua vez, oferece uma definição mais uniforme:

O movimento filosófico, literário e artístico que começou nos últimos anos do século XVIII, floresceu nos primeiros
anos do séc. XIX e constituiu a marca característica desse século. O significado comum do termo romântico, que signi-fica sentimental, deriva de um dos aspectos mais evidentes
desse movimento, que é a valorização do sentimento (...)

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Nos costumes, o amor romântico busca a unidade absoluta
entre os amantes. (Abbagnano, 2002, p. 862).

A busca da “unidade absoluta entre os amantes” mencionada
por Abbagnano dialoga com a noção de restituição de uma uni-
dade porventura perdida que ecoa em obras românticas a partir
de alguns caminhos, como a exacerbação da nostalgia e a predi-
leção pelo retorno à infância, à natureza e à antiguidade greco-
-romana, mas também pelo caminho do encontro de um par per-
feito, um amante com quem não haja menos do que completude.
Semelhante busca é frequentemente causa de grandes tragédias,
como em “Os sofrimentos do Jovem Werther” (2006), para citar o berço romântico alemão. Mas reside em “As afinidades eleti-
vas” (2014) uma proposta particularmente interessante, na qual
o amor é posicionado entre a razão e a emoção, entre a escolha e a propensão natural, as afinidades. Nesse, em diálogo entre Charlotte, Eduard e o capitão, fica claro o peso das condições
naturais, expressas por meio da alusão à Química, em conjunto
à importância da escolha. Vejamos alguns trechos, iniciando por
uma fala do capitão:

Aquilo que designamos por calcário é de fato uma terra cál-
cica mais ou menos pura, intimamente ligada a um ácido
fraco que conhecemos sob a forma gasosa. Se colocarmos
um pedaço desse mineral em contato com uma solução de
ácido sulfúrico diluído, ele se prenderá à cal e, associado a
ela, aparecerá na forma do gesso, ao passo que o ácido, fraco
e gasoso, escapará. Aqui se veem uma separação e um novo composto; acreditamos então que o emprego do termo afi-nidade eletiva está justificado, pois temos a impressão de
que uma relação foi realmente favorecida, de que houve
uma escolha em detrimento de outra (Goethe, 2014, p. 31).

Seguido pela resposta de Charlotte: “Neste ponto eu jamais iden-tificaria uma escolha; percebo no máximo uma necessidade na-tural, pois no fim das contas trata-se de uma questão de opor-
tunidades. A ocasião determina a relação (...)” (Goethe, 2014, p.

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31). Em outra fala dessa personagem, há, em um jogo de pala-
vras, o elogio ao gesso, que, acabado (engessado), não estaria
sujeito às ligações - termo também lido como relações -, dife-
rentemente de outros seres e elementos suscetíveis de adversi-
dades: “O gesso tem boas perspectivas diante de si, está pronto
e acabado, constitui um corpo e nada lhe falta. Mas o ser que foi
expulso enfrentará adversidades até o dia em que retorne lá de
cima” (Goethe, 2014, p. 31).

Nessa obra, as relações abarcam sentidos de falta e completude,
estabelecidas na tensão entre eleição individual e inclinação na-
tural, lembrando-nos das ligações químicas nas quais os átomos
procuram estabilidade por meio da doação ou compartilhamen-
to de elétrons. Ainda que o modelo atômico adotado atualmen-
te seja uma novidade em relação ao livro, escrito por Goethe
em 1808, seu aspecto importante para nosso estudo reside na
capacidade de permitir o acesso a essa ideia que aproxima os
homens e as mulheres de elementos químicos com maior ou
menor propensão natural de ligação (relação) com outros ele-
mentos (pessoas). Aí estão contidos indícios do movimento que
retira as noções de relação e completude do aspecto mitológico
e puramente emocional. Por meio de hipóteses que aproximam
relações entre pessoas e ligações entre compostos químicos, o
livro permite-nos conhecer uma novidade do período ao dar ao
relacionamento amoroso características que podem ser apre-
endidas pelas ciências da natureza, cujo modelo sistematizado
de estudo estava em franca expansão, condição para o desen-
volvimento tecnológico conhecido na atualidade. Assim, vemos
na discussão de Charlotte, Eduard e o capitão ideias que unem o pensamento científico e o amor. Séculos depois, desdobramen-
tos dessas ideias, ainda incipientes em Goethe, são encontrados
em ‘O teste’.

No primeiro episódio de “Osmosis”, a grande promessa da inven-
ção de Esther é garantir o encontro do par amoroso a todos os
usuários do implante desenvolvido por ela e pelos demais mem-

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bros da equipe, entrelaçando avanços tecnológicos e a noção
de alma gêmea, que ganha, assim, novos tons. Paul e Joséphine exemplificam a relação dessas almas cujo expoente mais sig-nificativo reside na conexão via V-Eternity. Ambos renunciam à consciência no plano físico, aproximam-se suavemente, nus,
em um ambiente completamente escuro, alheio ao mundo que
conhecemos. Unem-se por um beijo. De volta à consciência, pa-
recem revigorados e fortalecidos. Ainda que compartilhem um
apartamento e levem uma vida juntos, é por meio do V-Eternity
que têm essa forma sui generis de conexão. Os encontros profun-
dos e restauradores ocorrem na dimensão escura e de gravida-de relativa promovida pelo Osmosis. À luz da filosofia platônica
expressa pelo discurso de Aristófanes, o fortalecimento oriundo
dessa conexão sugere o retorno a uma forma humana completa
e harmônica revivida graças aos recursos tecnológicos. De volta ao fluxo do episódio, vemos Paul retornar à Osmosis
após uma reunião com os investidores. Ele, então, solicita o acio-
namento da cláusula de rescisão dos acionistas. Em sua sala, dis-
postas em uma estante de vidro, esculturas coloridas mostram
casais em abraços profundos, rememorando a representação de
Cupido e Psiquê de Antonio Canova, enquanto uma versão ins-
pirada em ‘O Nascimento de Vênus” de Botticelli desponta em
uma das paredes, somando elementos relacionados ao amor. As
esculturas e o quadro são leituras modernas de obras clássicas,
alusões à proposta do Osmosis, por sua vez, uma versão moder-
na e tecnológica da noção de alma gêmea. O quadro é especial-
mente interessante nesse quesito, pois é formado por pequenos
quadrados e retângulos de diferentes cores, tais como os pixels
das imagens digitalizadas veiculadas por computadores, video-
games e outros aparelhos do gênero. Nasce assim uma nova Vê-
nus, fruto de sopro e espuma digitais.

Esther entra na sala. Comunicam-lhe a situação com os acionis-tas e Paul questiona se ela pode finalizar o teste em um mês.
Diante da resposta negativa da irmã, ele pergunta a Gabriel

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quanto tempo teriam caso vendessem a casa de sua mãe. Esther fica nervosa, argumenta contrariamente, pontua a importância
do ambiente familiar para o despertar da mãe. Numa atitude
manipuladora, Paul retruca, reforçando a necessidade de com-
pletar o teste em um mês para evitar a venda da casa. Esther e
Gabriel, por seu turno, recordam a importância da segurança no
procedimento ao mencionar a ampliação do tempo de conexão
com o experimento e o lançamento. Graças ao número de parti-
cipantes, o sistema precisaria se adaptar à conexão interrupta
com os implantes. Nesse momento, uma melodia suave invade
a cena. Paul, então, aproxima-se da irmã, pede para que ela o
olhe e pergunta se recorda do que disse quando sua mãe adoe-
ceu. “Esther e Paul contra o mundo?”, ela pergunta. Ele repete: “Esther e Paul contra o mundo”. Por fim, ainda com os olhares cruzados, acordam que a finalização do teste seria feita dentro
de dois meses.

Esther retorna ao hospital e, em diálogo com Martin, revela suas
intenções pessoais por trás do desenvolvimento do Osmosis:
encontrar um usuário com uma rede TR-3 igual a de sua mãe.
Com isso, pretende recuperar a memória perdida e curar a en-ferma. Semelhante propósito e os perigos dele advindos ficam
claros com o desenrolar do episódio e não escapam daquilo que
mencionamos anteriormente, a expectativa de que o Osmosis
seja capaz de solucionar problemas que afetam profundamente
as personagens. Tal solução reside no amor exato e restaurador.
Exato, porque resulta da combinação de dados recolhidos por nanorrobôs e lidos por uma inteligência artificial, processo que
procura eliminar os erros e enganos característicos das ações
humanas. Restaurador, porque torna completo aquele que esta-
va mutilado. Na busca da protagonista pela cura do irmão e da
mãe reside a metáfora do Osmosis: a cura pelo amor que com-
pleta, inteira, íntegra.

Ainda que os usuários do Osmosis mantenham, em última ins-
tância, a liberdade de escolha, como debatemos anteriormente,

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perdem a autonomia de decisão ao entregar a capacidade de ge-
rir a própria vida a um serviço tecnológico. Na busca pela exa-
tidão, na procura pelo controle, investem o Osmosis da capaci-
dade de encontrar o parceiro “certo”. Habituadas aos aplicativos
de relacionamento, as personagens voltam-se às promessas do
Osmosis. No Perfect Match, a compatibilidade entre os usuários
é, tudo indica, calculada por algoritmos de forma a oferecer su-
porte matemático às escolhas. No Osmosis, os usuários tampou-co ficam sujeitos aos riscos de suas próprias decisões, uma vez
que se apoiam nos apontamentos da invenção de Esther. Seja no
Perfect Match, seja no Osmosis, é dada à ciência, especialmente à
tecnologia, a faculdade de acertar, de diminuir os erros e de tor-
nar a vida mais planejada e menos assustadora. Por meio do cál-culo científico, busca-se a objetividade, a assertividade no amor.Na cena seguinte, Joséphine e Paul flutuam mais uma vez na es-
curidão do V-Eternity em um encaixe corporal perfeito. A opção
pela extensão temporal do plano aberto inicial somada à melo-
dia tranquila e ao movimento lento e contínuo das personagens
produz a impressão de que tal dimensão desconhece o tempo. O nome - V-Eternity - coopera em favor dessa percepção, afinal
a eternidade manifesta no termo inglês diz respeito à duração sem princípio nem fim. No quesito espacial, não há qualquer
delimitação que indique limites. Tal como o tempo, parece não ter começo ou fim. Dessa forma, o V-Eternity expressa o caráter
eterno das almas gêmeas, construídas no episódio sem indica-
ções acerca da sua origem e destino. Aponta ainda que o encon-tro restaurador entre Joséphine e Paul está acima das leis físicas
que regem o mundo.

No V-Eternity, as falas das personagens são proferidas sem qual-quer movimentação labial. Parece que a afinidade dos corpos e
almas é tamanha que a comunicação não carece da linguagem
verbal. Ainda assim, falas de motivação de Joséphine alcançam
Paul, que desperta em uma das salas da empresa. Seu relógio de
pulso marca 11 horas e 15 minutos. É noite. O lugar parece não

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ter mais ninguém, a não ser Esther, que atravessa um corredor
rumo ao banheiro. Ela toma banho, deita-se em uma cama de
solteiro e veste os óculos do Perfect Match enquanto as luzes do
ambiente são apagadas automaticamente, o que reforça a hipó-
tese de que ela mora na empresa.

Na manhã seguinte, Paul divulga uma gravação ao vivo centrada
no anúncio de que o Osmosis estaria acessível a todo o públi-
co em um mês. O impacto do vídeo é imediato e Esther e Ga-
briel logo questionam a atitude de Paul que, por sua vez, revela
a decisão de hipotecar a casa da família. Furiosa, Esther sai da
sala. Nesse momento, após o corte, iniciam-se as cenas voltadas
aos preparativos para a ingestão do implante, entremeadas por
tomadas centradas no encontro dos irmãos após o desentendi-
mento gerado pelo anúncio. Por meio do espelho do lavabo, em nova alusão ao reflexo - re-
cordando aquela contida na leitura de “A Branca de Neve” -, Es-
ther percebe a aproximação de Paul. Primeiramente, lança a ele
um olhar raivoso, depois, volta os olhos para o chão, como se
não conseguisse encará-lo diretamente. Ele, também através do reflexo do espelho, pede desculpas, explica a falta de opções; rei-
tera que hipotecou a casa pela irmã, para proteger sua criação.
Então, pergunta a causa de sua recusa a ser feliz. “Tome a pílula
e encontre sua alma gêmea”, fala próximo à orelha de Esther. Ela
retruca com uma expressão facial pesada e a voz um pouco tris-
te, “Já tenho duas almas gêmeas que tomam todo meu tempo”,
em alusão à sua mãe e ao irmão. Ele apoia a testa na têmpora
dela, expressando não apenas a grande intimidade entre eles
como também seu próprio pesar diante da situação.

A invenção de Esther e a gestão de Paul, bem como as relações
de ambos enquanto colaboradores da Osmosis, são permeadas por suas relações familiares. Diante do espelho, os irmãos refle-tem-se mutuamente. A imagem de um revela o reflexo do outro
e vice-versa. Não por acaso, Esther caracteriza o irmão como sua

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alma gêmea, tampouco por acaso ambos repetem a frase “Esther e Paul contra o mundo”, afirmando a contiguidade da dupla. A
intimidade entre ambos pode ser também apreendida pela fre-quência de toques longos e significativos. A busca pela integra-
ção e o pensamento do tipo “nós” e “eles” presente na fala dos
irmãos apontam para a tentativa de construção de uma unidade
a despeito do restante do mundo e, portanto, aproxima-se da ló-
gica guia do Osmosis. Associamos essa predileção por relaciona-mentos nucleares, vistos enquanto fonte de significado e senti-
do, com uma característica das sociedades contemporâneas nas
quais redes amplas e entidades sociais organizadoras - ao exem-
plo das classes sociais - são enfraquecidas e abrem espaço para
relações entre poucas pessoas fechadas em pequenos núcleos.

Terminada essa passagem, o episódio retoma os preparativos
para a ingestão do implante. Os 12 novos usuários aparecem
dispostos em volta de uma grande mesa ao passo que o déci-
mo terceiro participante do teste, o substituto Niels, aguarda em
um banco à parte, esperando ansiosamente alguma desistência.
Uma a uma, as personagens retiram os curativos de seus pulsos,
locais em que foram marcadas as tatuagens. Esther, Paul, Billie e
Gabriel acompanham o início do teste. Um sachê de água e uma
pequena caixa preta com o implante são dispostos na frente de
cada participante. Alguns pegam, giram e observam a pílula azul
e rosa. Durante alguns segundos, ninguém a engole, até que Har-
mony dá o primeiro passo. Todos a olham cheios de expectati-
vas. Ela estica o braço sobre a mesa e mostra a tatuagem, até en-
tão imperceptível, tornar-se luminosa. Os demais participantes
passam a ingerir suas respectivas pílulas. Ana demora um pouco
mais do que os demais, mas também toma o implante. Uma salva
de palmas segue o feito.

Das pessoas da sala, apenas duas não demonstram animação,
Niels, que acredita estar fora do teste, uma vez que não houve
nenhuma desistência, e Esther, que se mostra alegre em um
único momento do episódio, nas memórias de sua infância. No

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restante, tem sempre a expressão fechada. Antes que as palmas
terminem, um dos participantes, Marceau, começa a respirar
profundamente, segurando a cabeça como quem se sente mal.
De repente, cai da cadeira, causando grande alerta. No chão,
trêmulo, pede que retirem aquilo de sua cabeça. Apesar do sus-to advindo do impacto da queda de Marceau, Billie configura o
ocorrido como um ataque de pânico. O quase imediato enfoque
da câmera em Niels mostra-lhe sorridente com a nova chance de
experimentar o Osmosis.

Em local reservado da empresa, Esther recebe as últimas atu-
alizações sobre as redes cerebrais dos participantes do teste,
empenhando-se no projeto de curar a mãe, quando a voz da in-teligência artificial Martin começa a falhar. Não demora até que
Swann peça ajuda para solucionar um problema de segurança
que, segundo diz, fora gerado pelo agravamento dos ataques
após o anúncio de Paul.

Esther manuseia apressadamente a interface alocada na ban-
cada cuja parte superior dispõe de uma tela interativa, espécie
de computador horizontal de grandes proporções. Tão logo é notificada sobre os danos causados na CPU, nega rispidamente
a oferta de Swan para realizar a reinicialização necessária, dei-
xando ainda mais claros traços de seu comportamento reser-
vado. Com exceção de seu irmão e sua mãe, ela não estabelece
relações profundas com as personagens. Nesse sentido, ressoa
a fala da protagonista que caracteriza os familiares como suas almas gêmeas. Eles são, figurativamente, o mundo de Esther. A
intenção de salvá-los (a mãe da doença e Paul de um problema
não revelado) ressoa nos bastidores do desenvolvimento do Os-
mosis. Ao salvar os familiares, ela procura salvar a si própria e a
completude que reside nas dinâmicas familiares. Nesse sentido,
retomamos as memórias da piscina mostradas à mãe incons-
ciente. Paul salvava a irmã de um pretenso afogamento. Quan-
do adultos, ela desenvolve o Osmosis e salva o irmão de um mal não especificado. Entretanto, Paul segue salvando Esther, uma

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vez que o salvamento de um implica o do outro. Se eles são uma
unidade, a perda de uma das partes resulta no sofrimento e na
incompletude da outra.

5. Indivíduo e alma gêmeaNos momentos finais do episódio, acontecimentos paralelos to-
mam a tela. O primeiro deles ocorre com Paul. Ele abre a porta
de seu apartamento com uma garrafa em mãos. Pega duas taças
e estoura a champanhe enquanto chama por Joséphine. Como
não escuta resposta, passa a andar pelos cômodos pouco ilumi-
nados à procura dela. Uma música tensa começa a ser reproduzi-
da enquanto ele encontra algumas roupas femininas espalhadas no chão. A fotografia ganha tons prioritariamente vermelhos e
negros, manifestação das emoções intensas que assolam o pro-tagonista. Por fim, ele encontra um bilhete sobre a cama com
os dizeres “Não me procure”. O enfoque no papel segurado por
Paul é, depois, voltado para frente. Nesse momento, metade de
sua face é iluminada ao passo que a outra é sombreada. A ilu-
minação empregada na cena dialoga com a ideia de metades e
oferece mais indícios acerca da noção de alma gêmea construída
no episódio. A obscuridade de uma parte do rosto de Paul pode
ser causada pelo sumiço de Joséphine, sua metade. Outra leitu-
ra, um pouco mais ampla, mas não contraditória em relação à
primeira, indica que o desaparecimento da companheira do pro-
tagonista evidencia a falta que reside nele. A parte deixada na
sombra é sinal do vazio provocado pela falta. É também nos momentos finais do episódio que as imagens das
almas gêmeas dos novos usuários do Osmosis são apresentadas.
Em atividades cotidianas, os participantes do teste beta são sur-
preendidos pela seguinte mensagem: “Bem-vindo ao Osmosis.
Seu implante cerebral está conectado e nos enviou seus dados.
Estamos prontos para lhe apresentar sua alma gêmea. Feche os
olhos. O rosto aparecerá em alguns segundos”. Três participan-

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tes fecham os olhos. “Está pronto para descobrir o que é ver-
dadeiramente o amor?”, a voz pergunta. As personagens, então,
abrem grandes sorrisos e, em seguida, a imagem da alma gêmea
de Niels irrompe na tela. No mesmo fundo negro do V-Eternity,
pontinhos dourados inicialmente desordenados ganham a for-
ma de um rosto feminino. Depois de enfocado o largo sorriso de
Niels, o episódio termina com o título Osmosis em letras brancas
sobre um fundo preto.Por fim, recuperaremos a cena da chegada de Paul no aparta-
mento sem Joséphine, pois ela aponta a existência de um pro-
blema. A comemoração frustrada indicada pelo champanhe jus-
tamente no dia de lançamento do Osmosis é um contraponto à
alegria compartilhada pelos usuários e membros da empresa
diante da revelação das almas gêmeas e indica uma adversidade
à proposta dos irmãos Vanhove. Essa impressão é ainda acentu-
ada porque ocorre com o primeiro casal formado graças à tecno-
logia desenvolvida por Esther. A ausência de Joséphine, a tensão
e o nervosismo característicos da cena apontam que algo destoa
da felicidade prometida.

Podemos conjecturar tratar-se de um sinal de que o desejo de
completude a partir do qual Osmosis se levanta não pode ser
atendido. Simmel (1993) trata da questão da dinâmica do amor, que parte da autossuficiência interna gerada por um objeto ex-terior. A autossuficiência, assim, é originada de movimentos in-
teriores e exteriores.

O amor é sempre uma dinâmica que se gera, por assim di-
zer, a partir de uma auto-suficiência interna, sem dúvida
trazida, por seu objeto exterior, do estado latente ao es-
tado atual, mas que não pode ser, propriamente falando,
provocada por ele; a alma o possui enquanto realidade
última, ou não o possui, e nós não podemos remontar,
para além dele, a um dos movens exterior ou interior que,
de certa forma, seria mais que sua causa ocasional. (Sim-
mel, 1993, p. 127).

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Essa dinâmica relaciona-se ao caráter especial do amor, percebi-
do pelo autor, que o torna ligado à unidade que engloba a vida.
O sentimento amoroso é mais conectado a tal unidade do que
outros por ter a existência vinculada ao movimento do homem
para aquilo que lhe é exterior. Implica na transcendência de si e
na busca pelo mundo que se torna interessante e desejável ao espírito. O excerto acima revela que a suficiência interna é tra-
zida por um objeto exterior, mas seguindo os aspectos da teoria
de Simmel, esse não precisa (nem pode) ser necessariamente
possuído. O objeto amado, caso seja uma pessoa, não se trata
da pessoa em si, mas da representação criada por quem a ama.
Assim, no espírito, o objeto é uma ideia que revela mais quem a
criou do que a fonte de sua inspiração. Consideramos que o ser amado pode gerar autossuficiência a que ama não na qualidade
de uma pessoa de carne e osso, mas na de uma ideia que re-
side apenas no espírito do apaixonado e que é constantemente
colocada à prova pela realidade. O amor é, assim, um ter e um
não-ter concomitantes. O espírito, ainda que o desejo o chame
para fora, não pode possuir outra pessoa, tampouco deixar-se
possuir. Parece-nos, dessa maneira, que o movimento do espí-
rito é muito mais importante do que a inalcançável completude.

Se tomarmos o avanço da individualidade no mundo moderno,
torna-se ainda mais complicada a conciliação da osmose previs-
ta pela tecnologia de Esther com a questão do indivíduo. O de-
sejo de completude manifesto no episódio ‘O teste’, que abarca
a noção de metades apartadas, pode ser lido como desdobra-
mento da ligação do amor com a unidade discutida por Simmel
a partir de movimentos interiores e exteriores. Tomemos a cena final do episódio, em que o Osmosis indica uma imagem, um ros-
to feminino que já residia nos pensamentos de Niels, como parte dele. Essa figura é conhecida de alguma forma pelo jovem, con-
quanto ele não tenha clareza disso. Ocorre que, na trama, não
são previstas dessemelhanças entre a imagem da pessoa e a pes-
soa. Pelo contrário, é como se a memória da alma gêmea residis-
se em latência no espírito de todos. Memória essa incontestável,

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perfeita, inequívoca, exata. O amor é ter o outro porque o outro é
visto como uma parte de si, a tal metade perdida.

As questões da imagem e da memória são, contudo, problemati-
zadas nas cenas em que Esther recorda o passado com sua mãe. O espelho trêmulo indica uma incongruência no próprio reflexo
e questiona as recordações e a veracidade das imagens mostra-
das à enferma. No episódio, as memórias da infância dos irmãos
são transmitidas por um dispositivo tecnológico como imagens gravadas, ao exemplo de um filme. Não podemos saber se essas imagens foram realmente gravadas por uma filmadora ou se ex-
traídas da memória das personagens e armazenadas em dispo-
sitivos. Sabemos que elas são sutilmente questionadas e traze-
mos esse questionamento para o rosto da alma gêmea delineado
pelo Osmosis. Talvez exista aí uma crítica à ideia de que todos
têm uma imagem inequívoca de suas almas gêmeas. Talvez exis-
ta espaço para pensar que a imagem capturada pelo Osmosis
não é tão genuína e pura como previsto. Isso pode ocorrer não
apenas por problemas na leitura realizada pela tecnologia de
Esther, mas pelas lacunas e invenções inerentes ao pensamento
humano. Espera-se exatidão de algo que não pode ser exato por
ser humano. A leitura do Osmosis não pode garantir o rigor in-
questionável esperado pelos usuários, pois as imagens, percep-
ções e sentimentos não têm tamanha rigidez. Pelo contrário, são fluidos, mutáveis, trêmulos e embaçados.
Ademais, conquanto o homem e a mulher estejam inseridos na
dinâmica de procura pelo que lhe é exterior, imaginar a osmo-
se prometida pelo V-Eternity não implicaria a falência do indi-
víduo? No momento em que o indivíduo está mais atomizado
do que nunca antes na história ocidental, a busca por algo que
lhe ofereça um escape dessa autonomia que é ao mesmo tem-
po desejada e temida não surpreende. Essa busca torna-se uma
jornada tecnológica com vistas à anulação do erro que existe en-
quanto possibilidade em qualquer escolha e é contraditória na
medida em que a esperança de encontrar o preenchimento para

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a falta acaba por revelar a impossibilidade de fazê-lo. O projeto
da Osmosis apresenta sinais de tensão na cena da chegada de
Paul ao apartamento e levanta questões sobre a promessa de
cura existente desde a criação dessa tecnologia por Esther. Onde
há necessidade de curar, há doença. Não sabemos nada sobre
a doença de Paul, mas sabemos do vício de Niels, impulsiona-do pelo abandono do pai e pelo acesso à pornografia facilitado
pela rede de internet. Não reside aqui uma crítica à frouxidão
dos laços expressa pelo casamento desfeito e a distância entre
Niels e seu pai? Não há igualmente uma crítica à tecnologia
reafirmada em outros momentos do episódio por meio da
condenação dos serviços do Perfect Match? Essas (a frouxidão
dos laços na atualidade e a facilitação do acesso à pornografia
pela rede de internet) são as causas do mal de Niels, que pode
ser remediado pelo Osmosis. Esse mal, evidentemente, não é de
apenas um, mas tem caráter coletivo.

O Osmosis, então, promoveria o “amor verdadeiro” e, com ele,
a cura dos males do seu tempo. Antes de revelar a imagem do
rosto da alma gêmea aos participantes do teste beta, o implante
questiona “Está pronto para descobrir o que é verdadeiramente
o amor?”. No episódio, portanto, o amor é concebido como uma
osmose total capaz de curar por meio do preenchimento da fal-
ta. Essa falta já aparece no discurso de Aristófanes e nos leva a entendê-la como uma condição humana na filosofia platônica. Isso não nos furta de pensá-la a partir das especificidades do
presente, em que, parece-nos, a individualidade crescente a evi-
dencia. O afrouxamento dos laços comunitários e familiares é um
aspecto do espírito moderno e aparece no episódio como causa
dos males que devem ser curados pelo Osmosis, seja no aban-
dono vivido por Niels, seja na crítica às relações do tipo “pegam,
consomem e jogam fora” dos aplicativos de relacionamento.

Ocorre que, se a condição do indivíduo o impulsiona a buscar a
completude, também o impede de alcançá-la, pois a proposta da
alma gêmea no episódio passa pela osmose total e, consequente-

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mente, pela destruição das fronteiras entre o ser humano e o mun-
do. Segundo Aristófanes, quando a unidade entre seres mutilados
foi conquistada, levou à morte dos pares pela inércia, referindo-se
à morte do desejo e da necessidade de procurar algo fora de si, o que gera o desinteresse pela vida e, consequentemente, o defi-nhamento. Na atualidade, podemos ainda pensar na difícil conci-
liação entre os imperativos da individualidade e o ideal de união
profunda de duas pessoas. O bilhete de Joséphine pede que Paul
não a procure, estabelecendo um limite entre os amantes que, re-
petimos, levanta questões sobre o ideal promovido pela Osmosis.

Em “Romeu e Julieta e a origem do Estado”, Eduardo Viveiros de
Castro e Ricardo Benzaquem de Araujo percebem um paradoxo oci-
dental a partir da análise do texto shakespeariano: o amor ajuda a
conformar indivíduos, mas, se vivido intensamente, provoca o der-
retimento das individualidades. “Romeu e Julieta” ilustraria a passa-
gem do holismo para o individualismo (a individualidade e o indiví-
duo tornam-se valores) e, o que é fundamental, a autonomização do
domínio afetivo. Ao renegarem suas famílias, seus próprios nomes e,
portanto, a ordem tradicional, os protagonistas da peça fortalecem-
-se enquanto individualidades, porém, a intensidade com a qual o
amor é vivido acaba por diluir o status individual - “Abandonando
seus nomes, que os ligavam às famílias, unem-se de tal forma que
chegam a construir, não dois indivíduos, mas um verdadeiro indiví-
duo dual: o dualismo não é externo, mas interno” (Viveiros de Cas-
tro; Benzaquem de Araujo, 1977, p. 151).

A solução dos autores para esse paradoxo encontra-se na distinção
entre duas noções de indivíduo. A primeira, centrada na personali-
dade. A segunda, voltada para a compreensão do ser humano como
membro genérico da espécie. O amor, segundo Viveiros de Castro e
Benzaquem de Araujo, prevê uma relação genérica do tipo homem-
-mulher. Com isso, sublinha-se o papel social dos amantes. Trata-se
de uma solução interessante, porém, assumimos outro caminho,
pautado na percepção de que a diluição dos contornos individuais
não é mais do que desejo não passível de realização. Encaramos,

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inclusive, a morte dos jovens Romeu e Julieta como sinal dessa im-
possibilidade. De qualquer forma, sustentamos, assim como esses
autores, a profundidade da união estabelecida entre indivíduos,
que formam núcleos afetivos “contra o mundo”.

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Recebido em 10/01/2022
Aceito em 14/05/2022