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Revista TOMO
São Cristóvão, v. 42, e18591, 2023
Data de Publicação: Junho/2023
Dossiê
Masculinidades em cena: uma análise de
“Rainha Diaba” e “Madame Satã”
Jônatas Breno Silva Santos
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Renata Barreto Malta
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Resumo:
O cinema é um importante objeto de análise das Ciência Sociais, refletindo a cultura, as identidades e os pa
-
péis sociais. Descortinando as relações de gênero e as representações masculinas, diversos filmes atribuem
papéis sexuais aos homens e agenciam as relações de poder em torno desses. Partindo dessa percepção,
surge o interesse de investigar as masculinidades em personagens gays nos filmes brasileiros, mais preci
-
samente em “Rainha Diaba” (1974) e “Madame Satã” (2002), nos quais os protagonistas estão inseridos em
um contexto de subalternidade, marginalidade, desvio e ruptura social. Assim, esta pesquisa visa descorti-
nar como os protagonistas de ambos os filmes são representados no que concerne aos territórios de gênero
e outros marcadores como raça, etnia e classe. Para tanto, será utilizado o protocolo de “análise de imagens
e movimentos” da pesquisadora Diana Rose. Ao final, espera-se contribuir para os estudos relacionados ao
campo da representação no cinema.
Palavras-chave
: Gênero. Masculinidades. Representação. Personagens gays. Cinema brasileiro.
Introdução
O homem desde a tenra infância sofre influência de diversas instituições de poder regulatório.
Welzer-Lang (2001) relata que, ainda na educação infantil, o patriarcado confere uma série de
lugares que são de uso exclusivamente masculino. Nesse sentido, a masculinidade hegemonica-
mente presumida, ou os significados culturais do que é “ser homem”, designa para esse sujeito o
papel de pai provedor, além de reservar para ele a arena pública, as esferas de poder, o mundo dos
negócios. Já para a mulher, cabe-lhe a maternidade, a capacidade reprodutiva, os afazeres domés
-
ticos, a arena privada, a subserviência, o lar e a família. (Welzer-Lang, 2001).
Connell
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(1995) procura romper com todos esses papéis rígidos e simbólicos atribuídos ao ho
-
mem ao preocupar-se em ressaltar que a masculinidade não é objeto sobre o qual se possa fazer
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Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas. Departamento de Comunicação Social. São Cris-
tóvão, Sergipe, Brasil. E-mail: jonatasbreno@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-1862-7587
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Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas. Departamento de Comunicação Social. São Cris-
tóvão, Sergipe, Brasil. E-mail: renatamaltarm@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7414-9081
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Na publicação original do livro “Masculinities: knowledge, power and social change” assinava como Robert William Con-
nell. Porém, após reconhecer-se como mulher trans, passou a assinar como Raewyn Connell. Em respeito à sua identidade
de gênero iremos tratá-la no feminino.
Dossiê
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Jônatas Breno Silva Santos; Renata Barreto Malta
uma única ciência generalizadora. A autora aponta para uma multiplicidade de masculinidades,
diferentes modelos que serão caracterizados como masculinidades hegemônicas, de subordina-
ção, de marginalização e de cumplicidade. Tais modelos irão desestabilizar a ordem até então
estabelecida, ao mostrar que existem várias formas possíveis de “ser” e se “perceber” homem.
Partimos da premissa de que a percepção ideal do que é ser “homem” em sociedade está orientada
por um modelo hegemônico de masculinidade, de maneira que preponderantemente essas ca-
racterísticas são lidas como naturais. Considerando também a noção de que não há somente uma
única construção e representação possível da masculinidade, senão de várias “masculinidades”, é
que surge o interesse particular de investigar como aparecem representadas as masculinidades
em personagens gays nos filmes brasileiros, as quais imediatamente rompem com a inteligibilida
-
de presumida entre sexualidade e papéis sociais pautados nos gêneros.
Voltando nosso olhar para o cinema brasileiro, buscamos compreender como se dá a represen-
tação das masculinidades em um
corpus
específico. Como principal critério para a sua seleção,
definimos a presença de personagens protagonistas que pudessem, para além da temática da ho
-
mossexualidade, ser facilmente associados a outros marcadores sociais, tais como: classe, raça e
etnia. Tal movimento tem por objetivo perceber como os diferentes tipos de masculinidade co-
abitam com aspectos pré-concebidos como de subalternidade, marginalidade, desvio e ruptura
social. Desse modo, a leitura não é centrada apenas na ordem de gênero e da sexualidade, mas a
partir de uma perspectiva interseccional.
Para a trajetória empírica, será utilizada a “análise de imagens em movimento” da Diana Rose
(2002), originalmente proposta para analisar conteúdos televisivos, mais especificamente a re
-
presentação da loucura na tv britânica. Trata-se de uma consistente ferramenta metodológica
para investigar materiais midiáticos, pois abrange conceitos e técnicas que servem de percurso
analítico para múltiplas representações sociais no campo audiovisual.
Assim, chegamos aos filmes aqui investigados: “Rainha Diaba” (1974) e “Madame Satã” (2002).
O primeiro filme, com argumento de Plínio Marcos, além de ser um grande expoente do drama
policial nacional, traz uma das mais importantes representações de personagem homossexual no
cinema brasileiro, justificando por si só a escolha para este
corpus
. Já o segundo filme é um retrato
da subalternidade, da masculinidade que intercambia entre os limites de gênero, da travestilidade
subversiva e dos marcadores sociais de classe e raça. Todos esses aspectos tornam valiosa a in-
vestigação de ambos no presente trabalho, pois tratam-se de imprescindíveis objetos para melhor
entender o debate acerca das masculinidades. Para fins de análise, escolhemos um conjunto de
cenas para cada filme, as quais oferecem material relevante para a compreensão do problema de
pesquisa.
1. Os estudos de gênero, as masculinidades e o cinema
Da Silva (2006) aponta que no final dos anos 1960 há uma crise na masculinidade. Com influência
dos movimentos feministas, a masculinidade passa a ser alvo de investigação. Pesquisadores par-
tem em busca de um modelo que melhor conseguisse representar suas identidades, resultando
desse movimento as primeiras investidas dos estudos masculinos ou
men’s studies
. Surgindo de
maneira tímida em países como Estados Unidos, França e Inglaterra, a “literatura masculinista”
propõe soluções para esse incômodo do homem contemporâneo (Da Silva, 2006).
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Masculinidades em cena
Mesmo com uma ressalva ou rechaço do movimento feminista em considerar a masculinidade
tema relevante em uma sociedade patriarcal, Connell (1995) afirmam que, embora os homens se
beneficiem daquilo que chama de “dividendo patriarcal”, apenas grupos específicos de homens
são totalmente privilegiados. De acordo com a autora, outros grupos de homens pagam, juntamen-
te com as mulheres, parte do preço por essa manutenção desigual de ordem de gênero. Nessa es-
teira, os homens gays, negros e afeminados se tornam também alvos sistemáticos de preconceito
e violência, ainda que em diferentes escalas. Assim,
a autora entende que, frente ao movimento de
liberação sexual da década de 1970, o consenso era de que o feminismo era benéfico para os ho
-
mens porque também sofriam com a imposição de papéis sexuais rígidos. O rompimento trazido
pelo feminismo permitia que os homens também se libertassem. Contudo, era necessário indicar a
responsabilidade dos homens na existência e na manutenção da ordem de gênero, na contribuição
de um sistema que oprime as mulheres à medida que os beneficia.
A crítica feminista foi importante para denunciar a abordagem essencialista da sexualidade, ins-
taurando a noção de que o sexo não definia os comportamentos ou papéis sociais, mas, sim, os
gêneros, percebidos como socialmente construídos e influenciados pela cultura. Tal perspectiva
trouxe uma abertura para que se pudesse pensar a construção social dos gêneros, questionando
os papéis sexuais antes vistos como “naturais” (Botton, 2007).
Desse modo, não entrou em crise
apenas a masculinidade, mas também as formas como se estruturava a vida entre homens e mu-
lheres. Portanto, afirma-se que não é somente uma crise da masculinidade, mas, sim, uma crise
das relações de gênero.
A partir desse movimento de crítica e reflexão, a ordem vigente começa a colapsar quando se aba
-
lam e passam a ser questionadas as bases principais nos quais sustentava-se a hegemonia, como
a conciliação entre vida familiar e mercado de trabalho, a perda significativa de emprego estáveis,
em sua maioria ocupados por homens, a incorporação massiva de mulheres a trabalhos antes ti-
dos como masculinos (Olavarría, 2003), entre outras questões.
Nesse ínterim, a principal crítica de Connell (1995) recai sobre a estrutura binária da socieda-
de, especificamente na disposição de dois modelos, o feminino e o masculino, os quais têm seus
gêneros reduzidos a categorias homogêneas, bem definidas e internalizadas dos papéis sexuais
masculinos e femininos tidos como padrão social. Connell percebe as diferentes formas de gênero
não como caracteres fixos, mas, sim, como múltiplas formas de vida, práticas e sistemas simbóli
-
cos para se relacionar. A autora discorda da ideia de que a masculinidade é um constructo natural,
rejeitando uma diferenciação essencialista e arbitrária e não relacional.
De acordo com Korin (2001), Connell percebe a masculinidade como uma qualidade fundamental-
mente social, afastando-se das distinções baseadas puramente no sexo biológico e repugnando o
determinismo biológico. Com uma discussão que é nutrida em Foucault, a autora percebe tanto o
gênero quanto a sexualidade como construções sociais e discursivas. Assim, a masculinidade é uma
complexa construção social, entremeada por sujeitos, práticas socioculturais e corpos sexuados.
Não obstante, o corpo se revela como um espectro que não escapa da masculinidade, embora esse
também não seja fixo. Dessa maneira, não existe corpo, e sim “corpos”, do mesmo modo que não
existe “masculinidade”, e sim “masculinidades”. Tais configurações abrem um leque de possibilida
-
des que ultrapassa o modelo clássico hegemônico e heterossexuado (Connell, 1995).
No que se refere aos estudos masculinos no Brasil, Berenice Bento foi um dos primeiros nomes a
escrever sobre o tema. A autora afirma que no país não se costumava discutir sobre masculinida
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Jônatas Breno Silva Santos; Renata Barreto Malta
des, nem no âmbito acadêmico, tampouco na estrutura binária e patriarcal da sociedade. A pes-
quisadora aponta que estudar gênero era sinônimo de estudar a mulher, sendo sua dissertação a
pioneira na investigação da masculinidade na Sociologia brasileira.
De acordo com Bento (2015), a construção das identidades de gênero é relacional e não deve ser
um fator limitante ao associar exclusivamente homens e mulheres, deixando de problematizar
como cada um dos gêneros constrói suas identidades nas relações que estabelecem com os mem
-
bros do próprio grupo. Assim, Bento (2015) corrobora com o pensamento de Connell ao conce
-
ber que não existe uma masculinidade unívoca e que ela não constitui uma prática homogênea.
Logo, é preciso falar em “masculinidades”, reconhecendo os significados distintos para diferentes
grupos de homens, pois esses variam de cultura para cultura, variam em qualquer cultura dentro
de um certo período, e, por fim, variam no decorrer da vida de cada homem individual (Kimmel,
1998). Sob esse olhar, adota-se multiplicidades existentes das diversas masculinidades, tornando
o campo dos estudos masculinos um espaço fortuito para abordagens históricas e sociais. Connell
propõe quatro padrões principais de masculinidades: a hegemônica, a subordinada, a cúmplice e
a marginalizada.
A masculinidade hegemônica é uma configuração de gênero que garante a posição dominante dos
homens e, consequentemente, a subordinação das mulheres. É uma estrutura que adere à legiti
-
midade do patriarcado, e, uma vez construída em relação a outras masculinidades subordinadas,
encobre-as, exercendo domínio e violência coercitiva. Tais práticas de dominação e subordinação
envolvem discriminação, violência e abuso (Connell, 1995).
No que diz respeito à masculinidade hegemônica, Bento (2015) avalia que é um tipo que
permanece como definição de referencial para que outras formas de masculinidades possam –
ou não – ser legitimadas. Logo, dentro de uma cultura hegemonicamente presumida, o homem
branco, heterossexual, de classe média, é o padrão que se estabelece para que outros homens
sejam julgados e avaliados. Uma vez que esse padrão é imposto, muitos homens sentem-se incom-
pletos, pois a masculinidade hegemônica reivindica uma imagem de homens que detêm o poder,
são símbolos de força, sucesso, capacidade, domínio e controle, de modo que aqueles que não se
encaixam, não são vistos nem se percebem como “homens de verdade”. Não obstante, a ideologia
hegemônica aponta para direções de comportamento que devem ser adotadas pelos homens e que
se estruturam em relações assimétricas de gênero.
Dessa maneira, as definições da masculinidade na sociedade brasileira desembocam na manuten
-
ção de um poder que alguns homens têm sobre outros homens e sobre as mulheres. A esse respei-
to, tanto Bento (2015) quanto Connell (1995) apontam que mesmo a masculinidade hegemônica
convive e tende a se agrupar com outras formas de masculinidades que a cercam.
No que tange a masculinidade subordinada, Connell (1995) destaca que há relações de subordi-
nação que se estabelecem dentro do mesmo gênero, ao levar em consideração, por exemplo, que
os indivíduos heterossexuais se adequam ao modelo dominante enquanto os homossexuais fazem
parte do modelo subordinado. Assim, a masculinidade subordinada irá refletir o regime de domi
-
nação e subordinação que existe entre o próprio grupo masculino. De modo a exemplificar, entre
homens heterossexuais, homossexuais e transexuais, as dinâmicas sociais irão sempre privilegiar
a heterossexualidade reprodutiva, a qual é considerada como modelo mais “positivo” em detri-
mento dos outros. Por conseguinte, Connell (1995) aponta também que o simbólico, na masculini
-
dade subordinada, está mais próximo do simbólico da feminilidade. Já Bento (2015) aponta que os
homens heterossexuais estabelecem uma relação de subordinação e opressão com homens gays.
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Masculinidades em cena
Mais além, Novaes e Grossi (2021) refletem que esse conceito sugere uma pluralidade de vivên
-
cias da masculinidade por meio do seu cruzamento com outros marcadores sociais e de diferen-
ça. Logo, os aspectos étnico-raciais, a transexualidade e a homossexualidade são considerados e
compõem um terreno multiterritorial no qual se articulam estratégias para a sobrevivência desses
sujeitos. Desse modo, a masculinidade subordinada, por sua interseccionalidade, abre um campo
interdisciplinar para pensar formas de eliminar os limites das barreiras de gênero.
No caso da masculinidade cúmplice, Connell (1995) aponta que trata-se daquela pela qual os ho-
mens se envolvem com determinadas estruturas hegemônicas, mas não cumprem todas as práticas
com rigor. A masculinidade cúmplice usufrui das vantagens do que é “ser homem” numa sociedade
patriarcal, mas pode abarcar homens que não se encaixam no ideal da masculinidade hegemônica.
Na masculinidade cúmplice são poucos os homens que, em termos práticos, cumprem totalmen-
te o modelo normativo da masculinidade hegemônica. Ainda que alguns tenham alguma relação
com esse modelo, não chegam a incorporá-lo totalmente por dois motivos distintos: tanto porque
não podem usufruir dos benefícios da construção social da hegemonia masculina – leia-se poder,
prestígio, honra e outras vantagens – quanto pelo desejo de se distanciar dos conflitos que podem
surgir para os que estão inseridos nessas práticas hegemônicas. Do mesmo modo, um homem gay
não afeminado, que busca a virilidade como modelo para adequar-se, ser mais “aceito” socialmen-
te e utilizar-se do privilégio masculino, enquadra-se numa masculinidade cúmplice, pois embora
flerte com o hegemônico, dificilmente conseguirá usufruir de todos os privilégios que o homem
heterossexual possui.
Bento (2015) corrobora com o pensamento da autora, pois aponta que embora alguns homens
não façam parte do projeto hegemônico, aproveitam-se dos dividendos do patriarcalismo, pro-
blematizando que esse tipo de masculinidade perpassa questões sociais, econômicas e psíquicas,
mas aceitam a estrutura hierárquica das relações de gênero. De acordo com Grünnagel e Wieser
(2015), a hegemonia e a cumplicidade diferenciam-se das masculinidades subordinadas porque
a subordinação implica não participar do projeto hegemônico e das vantagens estruturais supra-
citadas. Mais precisamente, os aspectos imprescindíveis para poder aderir à masculinidade hege
-
mônica: não ser mulher, não ser gay.
Assim, como reflexo do patriarcado, se estabelece uma hierarquia em que a masculinidade hege
-
mônica está fincada no topo, a cúmplice está ladeada, muito próxima, mas sem poder ocupar o seu
espaço privilegiado; e, por outro lado, a feminilidade e a masculinidade subordinada se encontram
na base (Grünnagel; Wieser, 2015).
Por fim, Connell (1955) aponta que a masculinidade marginalizada é a relação entre grupos ét
-
nicos e classes subordinadas. A marginalização se relaciona com o poder que a masculinidade
hegemônica exerce sobre outros grupos. A autora ressalta que a masculinidade marginalizada se
caracteriza pela relação entre as masculinidades nas classes subordinadas e grupos étnico-raciais
e sociais, mas pondera que o caráter marginalizador é sempre relativo. Logo, a marginalidade
contrapõe-se à masculinidade hegemônica e potencializa-se ao entrecruzar-se com outros mar
-
cadores sociais.
A direção para qual Connell (1995) aponta é que a relação entre marginalização e autorização
pode estar presente também nas masculinidades subordinadas. De maneira a exemplificar, Con
-
nell aponta que embora o modelo mais preponderante de masculinidade subordinada ocorra por
meio da subordinação de homens gays por homens heterossexuais, esse não é o único exemplo
possível, pois homens heterossexuais podem ser excluídos a depender da posição econômica e
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Jônatas Breno Silva Santos; Renata Barreto Malta
social que ocupam na sociedade. Assim, a subordinação está lado a lado da marginalização e vice-
-versa, ainda que a marginalidade possua um caráter mais evidente e distintivo, ocupando a outra
ponta do espectro, podendo inclusive abarcar o papel contra-hegemônico.
Além do mais, faz-se necessário compreender dois aspectos extremamente importantes para
pensar as masculinidades em suas diferentes configurações. Primeiro há que se considerar que
masculinidades diferentes são produzidas dentro de um mesmo contexto social, envolvendo
relações entre homens: de dominação, de subordinação, de marginalização e de cumplicidade.
Por vezes, esses processos ocorrem concomitantemente, como é o caso da masculinidade ho-
mossexual, que pode ser cúmplice e subordinada ao mesmo tempo. Em um segundo momento,
é necessário perceber que qualquer forma de masculinidade é complexa e contraditória, isso
porque é preciso trazer uma definição de masculinidade que não rotule gênero apenas como
uma categoria de pessoas.
Embora a ideologia hegemônica tenha convencionado o gênero como algo fixo e a masculinidade
tenha sido largamente construída por meio de mecanismos de controle social, os alicerces da he-
gemonia são constantemente tensionados. Assim, um tipo de masculinidade hegemônica pode ser
contestado ou transformado ao longo do tempo (Connell, 1995). A esse respeito, Badinter (1993)
afirma que a masculinidade se aprende e se constrói, não havendo dúvidas de que pode mudar ou
se transformar. Logo, o que foi construído, pode sim ser demolido para ser novamente construído,
ainda que a demolição completa não tenda a ocorrer e deslocamentos sejam mais prováveis.
O cinema, por sua vez, é um frutífero campo de investigação e problematização, situado em um
terreno que dialoga com diversos campos e teorias. Logo, se as identidades sexuais, raciais e de
gênero são socialmente construídas, o cinema enquanto artefato cultural também representa um
importante campo de análise, levando-nos a refletir de formas variadas sobre nossa cultura e co
-
tidiano (Kimmel, 1998).
Vitelli (2011) aponta que os filmes, embora possam conter informações globais sobre gênero e
sexualidade, não são agentes que desafiam os padrões básicos, e, em decorrência disso, terminam
por muitas vezes legitimando o comportamento dos homens e suas masculinidades. Em seu turno,
Fabris (2008) afirma que, na sétima arte, as imagens nos interpelam para que possamos assumir
nossos lugares na tela, para que haja identificação com algumas posições e ocorra a dispensa de
outras. Em vista disso, os filmes são produções midiáticas valorosas que devem ser investigadas.
Por fim, ao recorrermos aos Estudos de Gênero para uma interpretação dos significados por trás
do discurso fílmico e da representação das masculinidades, será possível perceber que diferentes
marcações de gênero aparecem frequentemente como legítimas, hegemônicas, desviantes, subal-
ternas, etc. (Fabris, 2008). Nesse sentido, por meio de uma abordagem culturalista, será possível
olhar as masculinidades como o entrelugar, espaço de indagação sobre “porque fazemos desta e
não daquela forma”, “de que forma aceitamos isso e não aquilo” e “de que maneira temos recusado
ser isto ou aquilo” (Fischer, 2007).
2. Pesquisa empírica: a representação das masculinidades no corpus
Para a trajetória empírica, elencamos como método a “análise de imagens em movimento”, da
pesquisadora Diana Rose (2002). Seu protocolo de análise é dividido em quatro partes: seleção,
transcrição, codificação e tabulação. A autora afirma que cada passo na análise de materiais au
-
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Masculinidades em cena
diovisuais envolve decisões e escolhas, sendo aquilo que é deixado de fora tão importante quanto
o recorte que está presente.
Na seleção, partimos de um movimento intencional e deliberado para a definição do material “bru
-
to” da pesquisa, na fase da escolha de programas ou “unidades de análise”. É necessário usar esse
recorte sempre a favor da pesquisa, tendo em vista que as escolhas teóricas e empíricas implicam
na seleção das unidades de análise e vice-versa.
Na etapa de transcrição, o objetivo é gerar um conjunto de dados que sirvam a uma profícua análi
-
se e uma posterior codificação. Ela resume e simplifica a imagem complexa em tela. Nesse sentido,
trabalhamos com tabelas com codificação do conteúdo verbal e não verbal de forma descritiva e
organizada de cada cena. Evidenciamos que o protocolo parte da premissa de que a transcrição é
sempre feita em dois momentos, em que o primeiro é responsável por descrever o aspecto visual
da história, como ambientação, figurinos e posições da câmera, e o segundo é uma transcrição
literal do material verbal, considerando aspectos como diálogos, sotaques e expressões linguísti-
cas. A fase de transcrição é essencial, pois é a partir do conteúdo transladado que são realizadas
as interpretações na fase de análise. Assim, os dois movimentos de transcrição, os quais abrangem
tanto a dimensão sonora quanto a verbal, são responsáveis por fornecer dados suficientes para
extrair conteúdo semântico discursivo do material audiovisual a ser analisado.
Por fim, as fases de codificação e tabulação operam de forma mais incisiva e analítica sobre o con
-
teúdo, nesse momento é feito um esforço de extrair ou inferir significados e categorias dos dados
para, então, propor uma posterior discussão dos resultados.
Isso posto, escolhemos criteriosamente algumas cenas para serem analisadas, as quais considera-
mos que atendem aos objetivos da pesquisa e aos aspectos mais relevantes do
corpus
de análise.
Optamos por não manter todas as tabelas no presente artigo, uma vez que ultrapassaria o limite
de páginas para a publicação, mas apenas a discussão dos resultados. No entanto, em respeito ao
leitor e à leitora, ilustramos a aplicação do método na análise da primeira cena.
2.1 Rainha Diaba
“Rainha Diaba” (1974) é um drama policial que narra a história de Diaba (Milton Gonçalves), um
homossexual que comanda, de dentro de um quarto de bordel, o tráfico de drogas do Rio de Janei
-
ro. No início do filme, ele toma conhecimento que Robertinho, um dos seus capangas, está prestes
a ser preso e começa um plano para que outra pessoa assuma a culpa. Diaba encarrega Caititu
(Nelson Xavier) de executar a tarefa; o comparsa escolhe Bereco (Stepan Nercessian), um jovem
gigolô, para ser o alvo. O rapaz é amante de Isa (Odete Lara), cantora do bordel.
Caititu insere Bereco no mundo do crime, tornando-o aos poucos em um marginal que conquista
espaço e reconhecimento. Em decorrência disso, quando esse começa a comandar o tráfico de
drogas, Diaba passa a ter sua importância cada vez mais diminuída. Ao final, ambos se enfrentam
em um encontro que irá revelar uma trama de traições, ganância e busca pelo poder.
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Jônatas Breno Silva Santos; Renata Barreto Malta
2.1.1 Cena 01 (00:05:37 - 00:10:42)
CategoriaDimensão Visual
Cenário
Quarto da protagonista, aposentos no fundo do Bordel.
Figurino/
Caracterização
Diaba usa um short com estampa em branco e amarelo. Na parte de cima leva um robe de cetim salmão,
uma pulseira marrom e um colar de contas no pescoço.
Gestualidade/
Performance
Diaba muda de postura conforme apresenta-se a situação, de início tem uma postura relaxada, comporta-
mento meigo e voz calma. Depois, mostra um tom violento, ameaçador e cruel. Alterna entre a delicadeza e a
agressividade, também intercambia entre a efeminação e a emasculação, a partir de uma perspectiva binária.
EnquadramentoDesde um plano mais aberto, enquadrando todos que estão em cena, passando por um plano americano,
até um primeiro plano, no momento em que ela intimida os seus comparsas.
CategoriaDimensão Verbal/Sonora
Diálogo
Diaba:
Pega pra Diaba a tesourinha.
Lilico:
Nossa, que bagunça! Você é muito desmazelada, Diaba. Amanhã à tarde eu venho aqui e vou dar
uma arrumaçãozinha nas suas coisas.
Diaba:
Tá aí mesmo, não tem bagunça nenhuma, eu acho tudo que quero, é só você remexer aí que você
acha.
Lilico:
Ah, tá aqui! Debaixo de tudo.
Diaba:
Falei que tava! Me dá, quero fazer as unhas do pé.
Lilico:
Ah, deixa que eu faço, atende os homens, eles estão com pressa.
Diaba
(se dirigindo a um homem no quarto): Se abre, oh, coisa ruim.
Coisa Ruim:
Tá naquilo, mermo, diaba.
Diaba
: E tu veio aqui pra me dizer que é isso aí e pronto?
Coisa Ruim
: É como eu já falei pra tu, esse negócio de passar fumo em escola, pegou mal. Não é pra falar,
mas os cara largaram fumo na mão de filhinho de papai, caíram. E tá na cara que vão bater o serviço e os
homi vão acabar chegando em tu.
Diaba
(dirigindo-se aos outros homens no quarto); Que me dizem disso? Chamei vocês aqui para ouvirem
do Coisa Ruim o tamanho da encrenca. Agora, quero saber como é que fica.
Manco
: Não sei, nem quero saber. Eu só mando lá no caixa. Estudante?! Hum, essa raça pra mim não sig
-
nifica nada.
Diaba
(gritando para todos): QUEM É? QUEM É QUE LIDA COM ESSA RAÇA? (depois dirigindo-se a manco)
Fala manquitola da peste, tô mandando.
Manco
: Bem, esse negócio, é aí com os granfinos.
Gravata
: Eu não trato disso, Diaba. Eu sou mais eu com o pessoal dos cavalinhos. Estudante é com o com-
padre.
Diaba
: Coisa tua, Robertinho? Teve coragem de aprontar uma dessa pra Diaba? Papelão da sua parte, quis
te agradar e vê o que tu me aprontou? E se tu entrar em cana, vai gostar é? Bonito como é, é capaz de se dar
mal. E eu que fique aqui, sofrendo de preocupada. (dirigindo-se a Coisa Ruim) Então é ele é?
Coisa Ruim
: Matou Icema!
Diaba
: E tu? Como entra nessa história?
Coisa Ruim
: Olha, Diaba, não tem mais jeito.
Diaba
(partindo pra cima de Coisa Ruim com uma navalha): SACANA, NOJENTO, É PRA VIR COM ESSE
PAPO QUE EU TE DEI DIVISA? Se o Robertinho entrar em cana, tu vai aparecer boiando num rio, comido de
peixe, de navalha, escutou? Então abre bem o teu olho.
Coisa Ruim:
Mas o que se pode fazer, Diaba?
Diaba
: Não quero Robertinho preso. Vou arrumar outro cara pra dançar no lugar dele. Catitu tá na rua
cuidando disso, se eles arrastam o Robertinho, tá todo mundo ferrado.
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Masculinidades em cena
Na cena em que Diaba é apresentada, ela está isolada em seus aposentos com Lilico, rapaz gay e
pessoa de sua confiança. Os dois estão na cama, em um momento de beleza, depilando as pernas
e fazendo as unhas. Do lado de fora, vários homens “mal-encarados”, portando arma de fogo, são
recebidos por Isa. Eles estão à procura da protagonista, que, da maneira como referem-se, é uma
pessoa de quem deve-se ter medo, a qual não deve, sobretudo, ter sua vontade contrariada.
Dentro dos aposentos, a forma como Diaba interage com Lilico, com voz meiga e afetuosa, além do
gestual delicado, contribui para uma sensação de que estamos frente a alguém inofensivo, visto a
mansidão do seu timbre e a leveza com que se comporta. Porém, quando deixa o que está fazendo
para atender os capangas, basta uma fala: “Se abre, oh, coisa ruim”, o timbre engrossa, o olhar e a
postura corporal mudam.
Figura 01
- Diaba recebe os homens de confiança em seus aposentos
Fonte: YouTube (2019). Disponível em:
http://bit.ly/43AqWeh
A personagem assume um autoritarismo, torna-se despótica e parte para cima de todos, sem he
-
sitar. No caminho, grita com os homens, intimida-os e dispara ofensas, como quando se refere a
um comparsa como “manquitola”. Mais tarde, tomamos ciência de que ela tem relação direta com
a deficiência do homem.
Em outro momento, ameaça Coisa Ruim com a navalha, instrumento que vai acompanhá-la duran-
te todo o filme. Embora seja o grande chefe do tráfico, Diaba quase nunca aparece utilizando uma
arma de fogo, apenas arma branca. Simbolicamente, a navalha esteve associada à figura de tra
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vestis e transexuais, pois era uma forma de defesa dos ataques que sofriam diariamente nas ruas.
De acordo com Mott e Assunção (1987), a expressão “navalha debaixo da língua”
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é utilizada desde
a década de 1970, quando travestis e transexuais eram detidas por causa da prostituição e, como
forma de protesto, chegavam a se automutilar. Entretanto, os autores apontam que o maior objeti-
vo para portarem a arma era a autodefesa.
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Tornou-se uma prática tão convencional esconder a lâmina como último recurso para sobrevivência, que em 2019 a canto-
ra trans Urias lançou a faixa “Diaba”, que conta com o trecho: “com a faca debaixo da língua, trá, trá, tô pronta pra briga”.