image/svg+xml1Revista TOMOSão Cristóvão, v. 42, e18591, 2023Data de Publicação: Junho/2023DossiêMasculinidades em cena: uma análise de “Rainha Diaba” e “Madame Satã”Jônatas Breno Silva Santos1Renata Barreto Malta2Resumo:O cinema é um importante objeto de análise das Ciência Sociais, refletindo a cultura, as identidades e os pa-péis sociais. Descortinando as relações de gênero e as representações masculinas, diversos filmes atribuem papéis sexuais aos homens e agenciam as relações de poder em torno desses. Partindo dessa percepção, surge o interesse de investigar as masculinidades em personagens gays nos filmes brasileiros, mais preci-samente em “Rainha Diaba” (1974) e “Madame Satã” (2002), nos quais os protagonistas estão inseridos em um contexto de subalternidade, marginalidade, desvio e ruptura social. Assim, esta pesquisa visa descorti-nar como os protagonistas de ambos os filmes são representados no que concerne aos territórios de gênero e outros marcadores como raça, etnia e classe. Para tanto, será utilizado o protocolo de “análise de imagens e movimentos” da pesquisadora Diana Rose. Ao final, espera-se contribuir para os estudos relacionados ao campo da representação no cinema.Palavras-chave: Gênero. Masculinidades. Representação. Personagens gays. Cinema brasileiro.IntroduçãoO homem desde a tenra infância sofre influência de diversas instituições de poder regulatório. Welzer-Lang (2001) relata que, ainda na educação infantil, o patriarcado confere uma série de lugares que são de uso exclusivamente masculino. Nesse sentido, a masculinidade hegemonica-mente presumida, ou os significados culturais do que é “ser homem”, designa para esse sujeito o papel de pai provedor, além de reservar para ele a arena pública, as esferas de poder, o mundo dos negócios. Já para a mulher, cabe-lhe a maternidade, a capacidade reprodutiva, os afazeres domés-ticos, a arena privada, a subserviência, o lar e a família. (Welzer-Lang, 2001).Connell3(1995) procura romper com todos esses papéis rígidos e simbólicos atribuídos ao ho-mem ao preocupar-se em ressaltar que a masculinidade não é objeto sobre o qual se possa fazer 1Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas. Departamento de Comunicação Social. São Cris-tóvão, Sergipe, Brasil. E-mail: jonatasbreno@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-1862-7587 2Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas. Departamento de Comunicação Social. São Cris-tóvão, Sergipe, Brasil. E-mail: renatamaltarm@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7414-90813Na publicação original do livro “Masculinities: knowledge, power and social change” assinava como Robert William Con-nell. Porém, após reconhecer-se como mulher trans, passou a assinar como Raewyn Connell. Em respeito à sua identidade de gênero iremos tratá-la no feminino. Dossiê
image/svg+xml2Jônatas Breno Silva Santos; Renata Barreto Maltauma única ciência generalizadora. A autora aponta para uma multiplicidade de masculinidades, diferentes modelos que serão caracterizados como masculinidades hegemônicas, de subordina-ção, de marginalização e de cumplicidade. Tais modelos irão desestabilizar a ordem até então estabelecida, ao mostrar que existem várias formas possíveis de “ser” e se “perceber” homem.Partimos da premissa de que a percepção ideal do que é ser “homem” em sociedade está orientada por um modelo hegemônico de masculinidade, de maneira que preponderantemente essas ca-racterísticas são lidas como naturais. Considerando também a noção de que não há somente uma única construção e representação possível da masculinidade, senão de várias “masculinidades”, é que surge o interesse particular de investigar como aparecem representadas as masculinidades em personagens gays nos filmes brasileiros, as quais imediatamente rompem com a inteligibilida-de presumida entre sexualidade e papéis sociais pautados nos gêneros.Voltando nosso olhar para o cinema brasileiro, buscamos compreender como se dá a represen-tação das masculinidades em um corpusespecífico. Como principal critério para a sua seleção, definimos a presença de personagens protagonistas que pudessem, para além da temática da ho-mossexualidade, ser facilmente associados a outros marcadores sociais, tais como: classe, raça e etnia. Tal movimento tem por objetivo perceber como os diferentes tipos de masculinidade co-abitam com aspectos pré-concebidos como de subalternidade, marginalidade, desvio e ruptura social. Desse modo, a leitura não é centrada apenas na ordem de gênero e da sexualidade, mas a partir de uma perspectiva interseccional.Para a trajetória empírica, será utilizada a “análise de imagens em movimento” da Diana Rose (2002), originalmente proposta para analisar conteúdos televisivos, mais especificamente a re-presentação da loucura na tv britânica. Trata-se de uma consistente ferramenta metodológica para investigar materiais midiáticos, pois abrange conceitos e técnicas que servem de percurso analítico para múltiplas representações sociais no campo audiovisual. Assim, chegamos aos filmes aqui investigados: “Rainha Diaba” (1974) e “Madame Satã” (2002). O primeiro filme, com argumento de Plínio Marcos, além de ser um grande expoente do drama policial nacional, traz uma das mais importantes representações de personagem homossexual no cinema brasileiro, justificando por si só a escolha para este corpus. Já o segundo filme é um retrato da subalternidade, da masculinidade que intercambia entre os limites de gênero, da travestilidade subversiva e dos marcadores sociais de classe e raça. Todos esses aspectos tornam valiosa a in-vestigação de ambos no presente trabalho, pois tratam-se de imprescindíveis objetos para melhor entender o debate acerca das masculinidades. Para fins de análise, escolhemos um conjunto de cenas para cada filme, as quais oferecem material relevante para a compreensão do problema de pesquisa.1. Os estudos de gênero, as masculinidades e o cinemaDa Silva (2006) aponta que no final dos anos 1960 há uma crise na masculinidade. Com influência dos movimentos feministas, a masculinidade passa a ser alvo de investigação. Pesquisadores par-tem em busca de um modelo que melhor conseguisse representar suas identidades, resultando desse movimento as primeiras investidas dos estudos masculinos ou men’s studies. Surgindo de maneira tímida em países como Estados Unidos, França e Inglaterra, a “literatura masculinista” propõe soluções para esse incômodo do homem contemporâneo (Da Silva, 2006).
image/svg+xml3Masculinidades em cenaMesmo com uma ressalva ou rechaço do movimento feminista em considerar a masculinidade tema relevante em uma sociedade patriarcal, Connell (1995) afirmam que, embora os homens se beneficiem daquilo que chama de “dividendo patriarcal”, apenas grupos específicos de homens são totalmente privilegiados. De acordo com a autora, outros grupos de homens pagam, juntamen-te com as mulheres, parte do preço por essa manutenção desigual de ordem de gênero. Nessa es-teira, os homens gays, negros e afeminados se tornam também alvos sistemáticos de preconceito e violência, ainda que em diferentes escalas. Assim,a autora entende que, frente ao movimento de liberação sexual da década de 1970, o consenso era de que o feminismo era benéfico para os ho-mens porque também sofriam com a imposição de papéis sexuais rígidos. O rompimento trazido pelo feminismo permitia que os homens também se libertassem. Contudo, era necessário indicar a responsabilidade dos homens na existência e na manutenção da ordem de gênero, na contribuição de um sistema que oprime as mulheres à medida que os beneficia.A crítica feminista foi importante para denunciar a abordagem essencialista da sexualidade, ins-taurando a noção de que o sexo não definia os comportamentos ou papéis sociais, mas, sim, os gêneros, percebidos como socialmente construídos e influenciados pela cultura. Tal perspectiva trouxe uma abertura para que se pudesse pensar a construção social dos gêneros, questionando os papéis sexuais antes vistos como “naturais” (Botton, 2007).Desse modo, não entrou em crise apenas a masculinidade, mas também as formas como se estruturava a vida entre homens e mu-lheres. Portanto, afirma-se que não é somente uma crise da masculinidade, mas, sim, uma crise das relações de gênero.A partir desse movimento de crítica e reflexão, a ordem vigente começa a colapsar quando se aba-lam e passam a ser questionadas as bases principais nos quais sustentava-se a hegemonia, como a conciliação entre vida familiar e mercado de trabalho, a perda significativa de emprego estáveis, em sua maioria ocupados por homens, a incorporação massiva de mulheres a trabalhos antes ti-dos como masculinos (Olavarría, 2003), entre outras questões.Nesse ínterim, a principal crítica de Connell (1995) recai sobre a estrutura binária da socieda-de, especificamente na disposição de dois modelos, o feminino e o masculino, os quais têm seus gêneros reduzidos a categorias homogêneas, bem definidas e internalizadas dos papéis sexuais masculinos e femininos tidos como padrão social. Connell percebe as diferentes formas de gênero não como caracteres fixos, mas, sim, como múltiplas formas de vida, práticas e sistemas simbóli-cos para se relacionar. A autora discorda da ideia de que a masculinidade é um constructo natural, rejeitando uma diferenciação essencialista e arbitrária e não relacional.De acordo com Korin (2001), Connell percebe a masculinidade como uma qualidade fundamental-mente social, afastando-se das distinções baseadas puramente no sexo biológico e repugnando o determinismo biológico. Com uma discussão que é nutrida em Foucault, a autora percebe tanto o gênero quanto a sexualidade como construções sociais e discursivas. Assim, a masculinidade é uma complexa construção social, entremeada por sujeitos, práticas socioculturais e corpos sexuados.Não obstante, o corpo se revela como um espectro que não escapa da masculinidade, embora esse também não seja fixo. Dessa maneira, não existe corpo, e sim “corpos”, do mesmo modo que não existe “masculinidade”, e sim “masculinidades”. Tais configurações abrem um leque de possibilida-des que ultrapassa o modelo clássico hegemônico e heterossexuado (Connell, 1995).No que se refere aos estudos masculinos no Brasil, Berenice Bento foi um dos primeiros nomes a escrever sobre o tema. A autora afirma que no país não se costumava discutir sobre masculinida-
image/svg+xml4Jônatas Breno Silva Santos; Renata Barreto Maltades, nem no âmbito acadêmico, tampouco na estrutura binária e patriarcal da sociedade. A pes-quisadora aponta que estudar gênero era sinônimo de estudar a mulher, sendo sua dissertação a pioneira na investigação da masculinidade na Sociologia brasileira. De acordo com Bento (2015), a construção das identidades de gênero é relacional e não deve ser um fator limitante ao associar exclusivamente homens e mulheres, deixando de problematizar como cada um dos gêneros constrói suas identidades nas relações que estabelecem com os mem-bros do próprio grupo. Assim, Bento (2015) corrobora com o pensamento de Connell ao conce-ber que não existe uma masculinidade unívoca e que ela não constitui uma prática homogênea. Logo, é preciso falar em “masculinidades”, reconhecendo os significados distintos para diferentes grupos de homens, pois esses variam de cultura para cultura, variam em qualquer cultura dentro de um certo período, e, por fim, variam no decorrer da vida de cada homem individual (Kimmel, 1998). Sob esse olhar, adota-se multiplicidades existentes das diversas masculinidades, tornando o campo dos estudos masculinos um espaço fortuito para abordagens históricas e sociais. Connell propõe quatro padrões principais de masculinidades: a hegemônica, a subordinada, a cúmplice e a marginalizada. A masculinidade hegemônica é uma configuração de gênero que garante a posição dominante dos homens e, consequentemente, a subordinação das mulheres. É uma estrutura que adere à legiti-midade do patriarcado, e, uma vez construída em relação a outras masculinidades subordinadas, encobre-as, exercendo domínio e violência coercitiva. Tais práticas de dominação e subordinação envolvem discriminação, violência e abuso (Connell, 1995).No que diz respeito à masculinidade hegemônica, Bento (2015) avalia que é um tipo que permanece como definição de referencial para que outras formas de masculinidades possam – ou não – ser legitimadas. Logo, dentro de uma cultura hegemonicamente presumida, o homem branco, heterossexual, de classe média, é o padrão que se estabelece para que outros homens sejam julgados e avaliados. Uma vez que esse padrão é imposto, muitos homens sentem-se incom-pletos, pois a masculinidade hegemônica reivindica uma imagem de homens que detêm o poder, são símbolos de força, sucesso, capacidade, domínio e controle, de modo que aqueles que não se encaixam, não são vistos nem se percebem como “homens de verdade”. Não obstante, a ideologia hegemônica aponta para direções de comportamento que devem ser adotadas pelos homens e que se estruturam em relações assimétricas de gênero.Dessa maneira, as definições da masculinidade na sociedade brasileira desembocam na manuten-ção de um poder que alguns homens têm sobre outros homens e sobre as mulheres. A esse respei-to, tanto Bento (2015) quanto Connell (1995) apontam que mesmo a masculinidade hegemônica convive e tende a se agrupar com outras formas de masculinidades que a cercam. No que tange a masculinidade subordinada, Connell (1995) destaca que há relações de subordi-nação que se estabelecem dentro do mesmo gênero, ao levar em consideração, por exemplo, que os indivíduos heterossexuais se adequam ao modelo dominante enquanto os homossexuais fazem parte do modelo subordinado. Assim, a masculinidade subordinada irá refletir o regime de domi-nação e subordinação que existe entre o próprio grupo masculino. De modo a exemplificar, entre homens heterossexuais, homossexuais e transexuais, as dinâmicas sociais irão sempre privilegiar a heterossexualidade reprodutiva, a qual é considerada como modelo mais “positivo” em detri-mento dos outros. Por conseguinte, Connell (1995) aponta também que o simbólico, na masculini-dade subordinada, está mais próximo do simbólico da feminilidade. Já Bento (2015) aponta que os homens heterossexuais estabelecem uma relação de subordinação e opressão com homens gays.
image/svg+xml5Masculinidades em cenaMais além, Novaes e Grossi (2021) refletem que esse conceito sugere uma pluralidade de vivên-cias da masculinidade por meio do seu cruzamento com outros marcadores sociais e de diferen-ça. Logo, os aspectos étnico-raciais, a transexualidade e a homossexualidade são considerados e compõem um terreno multiterritorial no qual se articulam estratégias para a sobrevivência desses sujeitos. Desse modo, a masculinidade subordinada, por sua interseccionalidade, abre um campo interdisciplinar para pensar formas de eliminar os limites das barreiras de gênero.No caso da masculinidade cúmplice, Connell (1995) aponta que trata-se daquela pela qual os ho-mens se envolvem com determinadas estruturas hegemônicas, mas não cumprem todas as práticas com rigor. A masculinidade cúmplice usufrui das vantagens do que é “ser homem” numa sociedade patriarcal, mas pode abarcar homens que não se encaixam no ideal da masculinidade hegemônica. Na masculinidade cúmplice são poucos os homens que, em termos práticos, cumprem totalmen-te o modelo normativo da masculinidade hegemônica. Ainda que alguns tenham alguma relação com esse modelo, não chegam a incorporá-lo totalmente por dois motivos distintos: tanto porque não podem usufruir dos benefícios da construção social da hegemonia masculina – leia-se poder, prestígio, honra e outras vantagens – quanto pelo desejo de se distanciar dos conflitos que podem surgir para os que estão inseridos nessas práticas hegemônicas. Do mesmo modo, um homem gay não afeminado, que busca a virilidade como modelo para adequar-se, ser mais “aceito” socialmen-te e utilizar-se do privilégio masculino, enquadra-se numa masculinidade cúmplice, pois embora flerte com o hegemônico, dificilmente conseguirá usufruir de todos os privilégios que o homem heterossexual possui. Bento (2015) corrobora com o pensamento da autora, pois aponta que embora alguns homens não façam parte do projeto hegemônico, aproveitam-se dos dividendos do patriarcalismo, pro-blematizando que esse tipo de masculinidade perpassa questões sociais, econômicas e psíquicas, mas aceitam a estrutura hierárquica das relações de gênero. De acordo com Grünnagel e Wieser (2015), a hegemonia e a cumplicidade diferenciam-se das masculinidades subordinadas porque a subordinação implica não participar do projeto hegemônico e das vantagens estruturais supra-citadas. Mais precisamente, os aspectos imprescindíveis para poder aderir à masculinidade hege-mônica: não ser mulher, não ser gay.Assim, como reflexo do patriarcado, se estabelece uma hierarquia em que a masculinidade hege-mônica está fincada no topo, a cúmplice está ladeada, muito próxima, mas sem poder ocupar o seu espaço privilegiado; e, por outro lado, a feminilidade e a masculinidade subordinada se encontram na base (Grünnagel; Wieser, 2015). Por fim, Connell (1955) aponta que a masculinidade marginalizada é a relação entre grupos ét-nicos e classes subordinadas. A marginalização se relaciona com o poder que a masculinidade hegemônica exerce sobre outros grupos. A autora ressalta que a masculinidade marginalizada se caracteriza pela relação entre as masculinidades nas classes subordinadas e grupos étnico-raciais e sociais, mas pondera que o caráter marginalizador é sempre relativo. Logo, a marginalidade contrapõe-se à masculinidade hegemônica e potencializa-se ao entrecruzar-se com outros mar-cadores sociais.A direção para qual Connell (1995) aponta é que a relação entre marginalização e autorização pode estar presente também nas masculinidades subordinadas. De maneira a exemplificar, Con-nell aponta que embora o modelo mais preponderante de masculinidade subordinada ocorra por meio da subordinação de homens gays por homens heterossexuais, esse não é o único exemplo possível, pois homens heterossexuais podem ser excluídos a depender da posição econômica e
image/svg+xml6Jônatas Breno Silva Santos; Renata Barreto Maltasocial que ocupam na sociedade. Assim, a subordinação está lado a lado da marginalização e vice--versa, ainda que a marginalidade possua um caráter mais evidente e distintivo, ocupando a outra ponta do espectro, podendo inclusive abarcar o papel contra-hegemônico. Além do mais, faz-se necessário compreender dois aspectos extremamente importantes para pensar as masculinidades em suas diferentes configurações. Primeiro há que se considerar que masculinidades diferentes são produzidas dentro de um mesmo contexto social, envolvendo relações entre homens: de dominação, de subordinação, de marginalização e de cumplicidade. Por vezes, esses processos ocorrem concomitantemente, como é o caso da masculinidade ho-mossexual, que pode ser cúmplice e subordinada ao mesmo tempo. Em um segundo momento, é necessário perceber que qualquer forma de masculinidade é complexa e contraditória, isso porque é preciso trazer uma definição de masculinidade que não rotule gênero apenas como uma categoria de pessoas. Embora a ideologia hegemônica tenha convencionado o gênero como algo fixo e a masculinidade tenha sido largamente construída por meio de mecanismos de controle social, os alicerces da he-gemonia são constantemente tensionados. Assim, um tipo de masculinidade hegemônica pode ser contestado ou transformado ao longo do tempo (Connell, 1995). A esse respeito, Badinter (1993) afirma que a masculinidade se aprende e se constrói, não havendo dúvidas de que pode mudar ou se transformar. Logo, o que foi construído, pode sim ser demolido para ser novamente construído, ainda que a demolição completa não tenda a ocorrer e deslocamentos sejam mais prováveis.O cinema, por sua vez, é um frutífero campo de investigação e problematização, situado em um terreno que dialoga com diversos campos e teorias. Logo, se as identidades sexuais, raciais e de gênero são socialmente construídas, o cinema enquanto artefato cultural também representa um importante campo de análise, levando-nos a refletir de formas variadas sobre nossa cultura e co-tidiano (Kimmel, 1998).Vitelli (2011) aponta que os filmes, embora possam conter informações globais sobre gênero e sexualidade, não são agentes que desafiam os padrões básicos, e, em decorrência disso, terminam por muitas vezes legitimando o comportamento dos homens e suas masculinidades. Em seu turno, Fabris (2008) afirma que, na sétima arte, as imagens nos interpelam para que possamos assumir nossos lugares na tela, para que haja identificação com algumas posições e ocorra a dispensa de outras. Em vista disso, os filmes são produções midiáticas valorosas que devem ser investigadas.Por fim, ao recorrermos aos Estudos de Gênero para uma interpretação dos significados por trás do discurso fílmico e da representação das masculinidades, será possível perceber que diferentes marcações de gênero aparecem frequentemente como legítimas, hegemônicas, desviantes, subal-ternas, etc. (Fabris, 2008). Nesse sentido, por meio de uma abordagem culturalista, será possível olhar as masculinidades como o entrelugar, espaço de indagação sobre “porque fazemos desta e não daquela forma”, “de que forma aceitamos isso e não aquilo” e “de que maneira temos recusado ser isto ou aquilo” (Fischer, 2007).2. Pesquisa empírica: a representação das masculinidades no corpusPara a trajetória empírica, elencamos como método a “análise de imagens em movimento”, da pesquisadora Diana Rose (2002). Seu protocolo de análise é dividido em quatro partes: seleção, transcrição, codificação e tabulação. A autora afirma que cada passo na análise de materiais au-
image/svg+xml7Masculinidades em cenadiovisuais envolve decisões e escolhas, sendo aquilo que é deixado de fora tão importante quanto o recorte que está presente.Na seleção, partimos de um movimento intencional e deliberado para a definição do material “bru-to” da pesquisa, na fase da escolha de programas ou “unidades de análise”. É necessário usar esse recorte sempre a favor da pesquisa, tendo em vista que as escolhas teóricas e empíricas implicam na seleção das unidades de análise e vice-versa.Na etapa de transcrição, o objetivo é gerar um conjunto de dados que sirvam a uma profícua análi-se e uma posterior codificação. Ela resume e simplifica a imagem complexa em tela. Nesse sentido, trabalhamos com tabelas com codificação do conteúdo verbal e não verbal de forma descritiva e organizada de cada cena. Evidenciamos que o protocolo parte da premissa de que a transcrição é sempre feita em dois momentos, em que o primeiro é responsável por descrever o aspecto visual da história, como ambientação, figurinos e posições da câmera, e o segundo é uma transcrição literal do material verbal, considerando aspectos como diálogos, sotaques e expressões linguísti-cas. A fase de transcrição é essencial, pois é a partir do conteúdo transladado que são realizadas as interpretações na fase de análise. Assim, os dois movimentos de transcrição, os quais abrangem tanto a dimensão sonora quanto a verbal, são responsáveis por fornecer dados suficientes para extrair conteúdo semântico discursivo do material audiovisual a ser analisado.Por fim, as fases de codificação e tabulação operam de forma mais incisiva e analítica sobre o con-teúdo, nesse momento é feito um esforço de extrair ou inferir significados e categorias dos dados para, então, propor uma posterior discussão dos resultados.Isso posto, escolhemos criteriosamente algumas cenas para serem analisadas, as quais considera-mos que atendem aos objetivos da pesquisa e aos aspectos mais relevantes do corpusde análise. Optamos por não manter todas as tabelas no presente artigo, uma vez que ultrapassaria o limite de páginas para a publicação, mas apenas a discussão dos resultados. No entanto, em respeito ao leitor e à leitora, ilustramos a aplicação do método na análise da primeira cena. 2.1 Rainha Diaba“Rainha Diaba” (1974) é um drama policial que narra a história de Diaba (Milton Gonçalves), um homossexual que comanda, de dentro de um quarto de bordel, o tráfico de drogas do Rio de Janei-ro. No início do filme, ele toma conhecimento que Robertinho, um dos seus capangas, está prestes a ser preso e começa um plano para que outra pessoa assuma a culpa. Diaba encarrega Caititu (Nelson Xavier) de executar a tarefa; o comparsa escolhe Bereco (Stepan Nercessian), um jovem gigolô, para ser o alvo. O rapaz é amante de Isa (Odete Lara), cantora do bordel. Caititu insere Bereco no mundo do crime, tornando-o aos poucos em um marginal que conquista espaço e reconhecimento. Em decorrência disso, quando esse começa a comandar o tráfico de drogas, Diaba passa a ter sua importância cada vez mais diminuída. Ao final, ambos se enfrentam em um encontro que irá revelar uma trama de traições, ganância e busca pelo poder.
image/svg+xml8Jônatas Breno Silva Santos; Renata Barreto Malta2.1.1 Cena 01 (00:05:37 - 00:10:42)CategoriaDimensão VisualCenárioQuarto da protagonista, aposentos no fundo do Bordel. Figurino/CaracterizaçãoDiaba usa um short com estampa em branco e amarelo. Na parte de cima leva um robe de cetim salmão, uma pulseira marrom e um colar de contas no pescoço. Gestualidade/PerformanceDiaba muda de postura conforme apresenta-se a situação, de início tem uma postura relaxada, comporta-mento meigo e voz calma. Depois, mostra um tom violento, ameaçador e cruel. Alterna entre a delicadeza e a agressividade, também intercambia entre a efeminação e a emasculação, a partir de uma perspectiva binária.EnquadramentoDesde um plano mais aberto, enquadrando todos que estão em cena, passando por um plano americano, até um primeiro plano, no momento em que ela intimida os seus comparsas.CategoriaDimensão Verbal/SonoraDiálogoDiaba:Pega pra Diaba a tesourinha.Lilico: Nossa, que bagunça! Você é muito desmazelada, Diaba. Amanhã à tarde eu venho aqui e vou dar uma arrumaçãozinha nas suas coisas.Diaba:Tá aí mesmo, não tem bagunça nenhuma, eu acho tudo que quero, é só você remexer aí que você acha.Lilico:Ah, tá aqui! Debaixo de tudo.Diaba: Falei que tava! Me dá, quero fazer as unhas do pé. Lilico:Ah, deixa que eu faço, atende os homens, eles estão com pressa.Diaba(se dirigindo a um homem no quarto): Se abre, oh, coisa ruim. Coisa Ruim: Tá naquilo, mermo, diaba. Diaba: E tu veio aqui pra me dizer que é isso aí e pronto?Coisa Ruim: É como eu já falei pra tu, esse negócio de passar fumo em escola, pegou mal. Não é pra falar, mas os cara largaram fumo na mão de filhinho de papai, caíram. E tá na cara que vão bater o serviço e os homi vão acabar chegando em tu.Diaba(dirigindo-se aos outros homens no quarto); Que me dizem disso? Chamei vocês aqui para ouvirem do Coisa Ruim o tamanho da encrenca. Agora, quero saber como é que fica. Manco: Não sei, nem quero saber. Eu só mando lá no caixa. Estudante?! Hum, essa raça pra mim não sig-nifica nada. Diaba(gritando para todos): QUEM É? QUEM É QUE LIDA COM ESSA RAÇA? (depois dirigindo-se a manco) Fala manquitola da peste, tô mandando.Manco: Bem, esse negócio, é aí com os granfinos. Gravata: Eu não trato disso, Diaba. Eu sou mais eu com o pessoal dos cavalinhos. Estudante é com o com-padre. Diaba: Coisa tua, Robertinho? Teve coragem de aprontar uma dessa pra Diaba? Papelão da sua parte, quis te agradar e vê o que tu me aprontou? E se tu entrar em cana, vai gostar é? Bonito como é, é capaz de se dar mal. E eu que fique aqui, sofrendo de preocupada. (dirigindo-se a Coisa Ruim) Então é ele é?Coisa Ruim: Matou Icema! Diaba: E tu? Como entra nessa história?Coisa Ruim: Olha, Diaba, não tem mais jeito.Diaba(partindo pra cima de Coisa Ruim com uma navalha): SACANA, NOJENTO, É PRA VIR COM ESSE PAPO QUE EU TE DEI DIVISA? Se o Robertinho entrar em cana, tu vai aparecer boiando num rio, comido de peixe, de navalha, escutou? Então abre bem o teu olho.Coisa Ruim:Mas o que se pode fazer, Diaba?Diaba: Não quero Robertinho preso. Vou arrumar outro cara pra dançar no lugar dele. Catitu tá na rua cuidando disso, se eles arrastam o Robertinho, tá todo mundo ferrado.
image/svg+xml9Masculinidades em cenaNa cena em que Diaba é apresentada, ela está isolada em seus aposentos com Lilico, rapaz gay e pessoa de sua confiança. Os dois estão na cama, em um momento de beleza, depilando as pernas e fazendo as unhas. Do lado de fora, vários homens “mal-encarados”, portando arma de fogo, são recebidos por Isa. Eles estão à procura da protagonista, que, da maneira como referem-se, é uma pessoa de quem deve-se ter medo, a qual não deve, sobretudo, ter sua vontade contrariada.Dentro dos aposentos, a forma como Diaba interage com Lilico, com voz meiga e afetuosa, além do gestual delicado, contribui para uma sensação de que estamos frente a alguém inofensivo, visto a mansidão do seu timbre e a leveza com que se comporta. Porém, quando deixa o que está fazendo para atender os capangas, basta uma fala: “Se abre, oh, coisa ruim”, o timbre engrossa, o olhar e a postura corporal mudam.Figura 01- Diaba recebe os homens de confiança em seus aposentosFonte: YouTube (2019). Disponível em:http://bit.ly/43AqWehA personagem assume um autoritarismo, torna-se despótica e parte para cima de todos, sem he-sitar. No caminho, grita com os homens, intimida-os e dispara ofensas, como quando se refere a um comparsa como “manquitola”. Mais tarde, tomamos ciência de que ela tem relação direta com a deficiência do homem. Em outro momento, ameaça Coisa Ruim com a navalha, instrumento que vai acompanhá-la duran-te todo o filme. Embora seja o grande chefe do tráfico, Diaba quase nunca aparece utilizando uma arma de fogo, apenas arma branca. Simbolicamente, a navalha esteve associada à figura de tra-vestis e transexuais, pois era uma forma de defesa dos ataques que sofriam diariamente nas ruas. De acordo com Mott e Assunção (1987), a expressão “navalha debaixo da língua”4é utilizada desde a década de 1970, quando travestis e transexuais eram detidas por causa da prostituição e, como forma de protesto, chegavam a se automutilar. Entretanto, os autores apontam que o maior objeti-vo para portarem a arma era a autodefesa.4Tornou-se uma prática tão convencional esconder a lâmina como último recurso para sobrevivência, que em 2019 a canto-ra trans Urias lançou a faixa “Diaba”, que conta com o trecho: “com a faca debaixo da língua, trá, trá, tô pronta pra briga”.