image/svg+xml1Revista TOMOSão Cristóvão, v. 42, e18597, 2023Data de Publicação: Junho/2023DossiêCarta para AnastáciaMorgana Barbosa1Resumo:Neste artigo, em que experimentamos a carta como método e forma de análise, já consolidada em pesquisas acadêmicas precedentes, esboçamos um diálogo entre a arte e as questões sociais que a provocam, mais especificamente as desigualdades de gênero na sociedade brasileira. No empenho dessa interlocução cons-truída por vias de uma narrativa ficcional, partimos das nossas experiências com a performance artística Epístolas Profanas para refletir o silenciamento cultural das mulheres na construção histórica da identidade de gênero no Brasil, considerando as intersecções raciais, sobretudo a questão da mestiçagem e suas impli-cações (est)éticas, em uma perspectiva decolonial.Palavras-chave: Silenciamento cultural. Performance artística. Feminismo interseccional.Anastácia2, Nós te escrevemos esta carta como um pedido de licença tardio para o uso que fizemos da Máscara do Silenciamento, que lhe fora imposta pelos colonizadores do Brasil. Gostaríamos de te contar 1Universidade Federal do Mato Grosso. Instituto de Linguagens. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Email: morganapoiesis@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-0098-0024 2Eyin Awo Oju Orun, princesa yorubá escravizada no Brasil, aqui batizada com o nome de Anastácia. Ver: Relações raciais/Cole-ção centenário da Abolição, Impressos/Escrava Anastácia. Disponível em: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bi-b=arq_cultura&pagfis=4611. Acesso em 9 Jun. 2019. “Sem história oficial, alguns dizem que Anastácia era filha de uma família real Kimbundo, nascida em Angola, sequestrada e levada para a Bahia, Brasil e escravizada por uma família portuguesa. Após o retorno desta família para Portugal, ela teria sido vendida a um dono de uma plantação de cana-de-açúcar. Outros alegam que ela teria sido uma princesa Nagô/Yorubá antes de ter sido capturada por traficantes de escravos europeus e trazida para o Brasil. Enquanto outros ainda contam que a Bahia foi seu local de nascimento. Seu nome africano é desconhecido. Anastácia foi o nome dado a ela durante a escravidão. Segundo todos os relatos, ela foi forçada a usar um colar de ferro muito pesado, além da máscara facial que a impedia de falar. As razões dadas para este castigo variam: Alguns relatam seu ativismo político no auxílio em fugas de outros(as) escravizados(as); outros dizem que ela havia resistido às investidas sexuais do mestre branco. Outra versão ainda transfere a culpa para o ciúme de uma sinhá que temia a beleza de Anastásia. A ela é alegada a história de possuir poderes de cura imensos e de ter realizado milagres. Anastásia era vista como santa entre escravizados(as) africanos(as). Após um longo período de sofrimento, ela morre de tétano causado pelo colar de ferro ao redor de seu pescoço. O retrato de Anastácia foi feito por um francês de 27 anos chamado Jacques Arago que se juntou a uma expedição científica pelo Brasil como desenhista, entre dezembro de 1817 e janeiro de 1818. Há outros desenhos de máscaras cobrindo o rosto inteiro somente com dois furos para os olhos; estas eram usadas para prevenir o ato de comer terra, uma prática entre escravizados(as) africanos(as) para cometer suicídio. Na segunda metade do século XX a figura de Anastácia começou a se tornar símbolo da brutalidade da escravidão e seu contínuo legado do racismo. Ela tornou-se uma figura política e religiosa importante em torno do mundo africano e afro-diaspórico, representando a resistência histórica. A primeira veneração de larga escala foi em 1967 quando o curador do Museu do Negro do Rio de Janeiro erigiu uma exposição para honrar o 80° aniversário da abolição da escravidão no Brasil. Anastásia também é comumente vista como uma santa dos Pretos Velhos, diretamente relacionada ao Orixá Oxalá ou Obatalá – o deus da paz, da serenidade e da sabe-doria – e é objeto de devoção no Candomblé e na Umbanda” (Handler; Hayes apud Kilomba, 2010, p. 179).Dossiê
image/svg+xml2Morgana Barbosacomo encontramos a máscara durante o processo criativo da performance artística Epístolas Pro-fanas, antes de suas implicações éticas e sociais.Sabemos que, conhecida como Máscara de Flandres, a Máscara do Silenciamento foi um instru-mento de tortura que se tornou parte do projeto colonial europeu por mais de três séculos. Sabe-mos, também, que a máscara original que você foi obrigada a vestir era composta por um pedaço de metal colocado no interior da sua boca, instalado entre sua língua e mandíbula, fixado por detrás da sua cabeça por duas cordas, uma em torno do seu queixo e a outra em torno do seu nariz e testa. Conforme escreveu a artista e pesquisadora portuguesa Grada Kilomba (2010), a máscara era usada oficialmente pelos senhores brancos para evitar que africanos/as escravizados/as co-messem cana-de-açúcar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações, mas a autora ressalta que sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo. Diante disso, concordamos com ela de que a máscara representa o colonialismo como um todo, e você, Anastácia, uma das vítimas mais emblemáticas dessa triste história da humanidade, da qual também fazemos parte.Figura 1: Escrava Anastácia. Bahia, 1817-18. Foto: Jacques Arago.Nossa experiência com a aqui denominada Máscara do Silenciamento começou no ano de 2015, quando desejamos nos silenciar. A vontade radical de silêncio que nos tomava naquele momento era um meio de autocuidado, enquanto vivíamos alguns lutos subsequentes, após dois anos tra-balhando em um cargo acadêmico. Mas como poderíamos, mulheres, artistas, jornalistas, ativis-tas e funcionárias públicas, nos calar? Como parte inevitável do nosso trabalho, elaboramos um programa artístico denominado Estética do Silêncio, através do Laboratório de Corpo-Criação--Performance-Interferência-LCCPI, que desenvolvíamos como atividade de extensão do Programa Multicultural, na Coordenação de Cultura, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, campus de Vitória da Conquista-BA. No programa Estética do Silêncio, propúnhamos uma investigação artística acerca dos silêncios, com estudos práticos e teóricos, a partir de referências na arte, na filosofia e nos estudos culturais contemporâneos. O desenvolvimento da Estética do Silêncio par-tia dos eixos básicos do LCCPI, a saber: CORPO: exercícios corporais para o desenvolvimento psi-cofísico das pessoas participantes, especificamente, meditação, energização dos chakras, yoga, tai chi chuan, fundamentos corporais Bartenieff, movimento autêntico e exercícios de improvisação
image/svg+xml3Carta para Anastáciaem dança-teatro; CRIAÇÃO: os processos criativos propriamente ditos implicavam em uma inves-tigação a partir de estudos sobre artistas e filósofas que abordaram os silêncios em suas obras, seja na música, no cinema, na performance, seja nas artes visuais, como Susan Sontag, Ingmar Bergman, John Cage e Marina Abramovic, bem como na elaboração de ações poéticas autorais ou reperformadas; PERFORMANCE: linguagem artística não representativa, com características pro-cessuais, experimentais e conceituais. O termo também pode ser aplicado em uma dimensão cul-tural mais ampla, como propõe o teatrólogo norte-americano Richard Schechner (2011), um dos fundadores do campo interdisciplinar dos Estudos da Performance, em parceria com o sociólogo também norte-americano Erving Goffman (2014); INTERFERÊNCIA AMBIENTAL: termo sugerido pelo artista brasileiro Hélio Oiticica e desenvolvido pelo Grupo de Interferência Ambiental – GIA (Salvador-BA), implica no desprendimento das estruturas primordiais das artes visuais e sua pro-jeção no espaço-tempo, em nosso caso por meio de cenas performativas em espaços sociais, com participação do público. Nas performances artísticas realizadas em grupo no decorrer da execu-ção do programa Estética do Silêncio, fosse pela falta de recursos com que trabalhávamos, fosse por comodidade estética, usávamos máscaras cirúrgicas como forma de expressar nossos estados voluntários de silêncio, em espaços sociais.Figura 2: Artistas do Estética do Silêncio, Vitória da Conquista-BA, 2015. Foto: arquivo LCCPI.Figura 3: Artistas do Estética do Silêncio com participação de testemunhas, Vitória da Conquista-BA, 2015. Foto: arquivo LCCPI.Figura 4: Artistas do Estética do Silêncio com participação de testemunhas, Vitória da Conquista-BA, 2015. Foto: arquivo LCCPI.