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Revista TOMO
São Cristóvão, v. 42, e18597, 2023
Data de Publicação: Junho/2023
Dossiê
Carta para Anastácia
Morgana Barbosa
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Resumo:
Neste artigo, em que experimentamos a carta como método e forma de análise, já consolidada em pesquisas
acadêmicas precedentes, esboçamos um diálogo entre a arte e as questões sociais que a provocam, mais
especificamente as desigualdades de gênero na sociedade brasileira. No empenho dessa interlocução cons
-
truída por vias de uma narrativa ficcional, partimos das nossas experiências com a performance artística
Epístolas Profanas para refletir o silenciamento cultural das mulheres na construção histórica da identidade
de gênero no Brasil, considerando as intersecções raciais, sobretudo a questão da mestiçagem e suas impli
-
cações (est)éticas, em uma perspectiva decolonial.
Palavras-chave:
Silenciamento cultural. Performance artística. Feminismo interseccional.
Anastácia
2
,
Nós te escrevemos esta carta como um pedido de licença tardio para o uso que fizemos da Máscara
do Silenciamento, que lhe fora imposta pelos colonizadores do Brasil. Gostaríamos de te contar
1
Universidade Federal do Mato Grosso. Instituto de Linguagens. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem.
Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Email: morganapoiesis@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-0098-0024
2
Eyin Awo Oju Orun, princesa yorubá escravizada no Brasil, aqui batizada com o nome de Anastácia. Ver: Relações raciais/Cole
-
ção centenário da Abolição, Impressos/Escrava Anastácia. Disponível em: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bi
-
b=arq_cultura&pagfis=4611. Acesso em 9 Jun. 2019. “Sem história oficial, alguns dizem que Anastácia era filha de uma família real
Kimbundo, nascida em Angola, sequestrada e levada para a Bahia, Brasil e escravizada por uma família portuguesa. Após o retorno
desta família para Portugal, ela teria sido vendida a um dono de uma plantação de cana-de-açúcar. Outros alegam que ela teria sido
uma princesa Nagô/Yorubá antes de ter sido capturada por traficantes de escravos europeus e trazida para o Brasil. Enquanto
outros ainda contam que a Bahia foi seu local de nascimento. Seu nome africano é desconhecido. Anastácia foi o nome dado a ela
durante a escravidão. Segundo todos os relatos, ela foi forçada a usar um colar de ferro muito pesado, além da máscara facial que a
impedia de falar. As razões dadas para este castigo variam: Alguns relatam seu ativismo político no auxílio em fugas de outros(as)
escravizados(as); outros dizem que ela havia resistido às investidas sexuais do mestre branco. Outra versão ainda transfere a culpa
para o ciúme de uma sinhá que temia a beleza de Anastásia. A ela é alegada a história de possuir poderes de cura imensos e de ter
realizado milagres. Anastásia era vista como santa entre escravizados(as) africanos(as). Após um longo período de sofrimento,
ela morre de tétano causado pelo colar de ferro ao redor de seu pescoço. O retrato de Anastácia foi feito por um francês de 27
anos chamado Jacques Arago que se juntou a uma expedição científica pelo Brasil como desenhista, entre dezembro de 1817 e
janeiro de 1818. Há outros desenhos de máscaras cobrindo o rosto inteiro somente com dois furos para os olhos; estas eram
usadas para prevenir o ato de comer terra, uma prática entre escravizados(as) africanos(as) para cometer suicídio. Na segunda
metade do século XX a figura de Anastácia começou a se tornar símbolo da brutalidade da escravidão e seu contínuo legado do
racismo. Ela tornou-se uma figura política e religiosa importante em torno do mundo africano e afro-diaspórico, representando
a resistência histórica. A primeira veneração de larga escala foi em 1967 quando o curador do Museu do Negro do Rio de Janeiro
erigiu uma exposição para honrar o 80° aniversário da abolição da escravidão no Brasil. Anastásia também é comumente vista
como uma santa dos Pretos Velhos, diretamente relacionada ao Orixá Oxalá ou Obatalá – o deus da paz, da serenidad
e e da sabe-
doria – e é objeto de devoção no Candomblé e na Umbanda” (Handler; Hayes apud Kilomba, 2010, p. 179).
Dossiê
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Morgana Barbosa
como encontramos a máscara durante o processo criativo da performance artística Epístolas Pro-
fanas, antes de suas implicações éticas e sociais.
Sabemos que, conhecida como Máscara de Flandres, a Máscara do Silenciamento foi um instru
-
mento de tortura que se tornou parte do projeto colonial europeu por mais de três séculos. Sabe
-
mos, também, que a máscara original que você foi obrigada a vestir era composta por um pedaço
de metal colocado no interior da sua boca, instalado entre sua língua e mandíbula, fixado por
detrás da sua cabeça por duas cordas, uma em torno do seu queixo e a outra em torno do seu nariz
e testa. Conforme escreveu a artista e pesquisadora portuguesa Grada Kilomba (2010), a máscara
era usada oficialmente pelos senhores brancos para evitar que africanos/as escravizados/as co
-
messem cana-de-açúcar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações, mas a autora ressalta que
sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo. Diante disso, concordamos
com ela de que a máscara representa o colonialismo como um todo, e você, Anastácia, uma das
vítimas mais emblemáticas dessa triste história da humanidade, da qual também fazemos parte.
Figura 1
: Escrava Anastácia. Bahia, 1817-18.
Foto: Jacques Arago.
Nossa experiência com a aqui denominada Máscara do Silenciamento começou no ano de 2015,
quando desejamos nos silenciar. A vontade radical de silêncio que nos tomava naquele momento
era um meio de autocuidado, enquanto vivíamos alguns lutos subsequentes, após dois anos tra
-
balhando em um cargo acadêmico. Mas como poderíamos, mulheres, artistas, jornalistas, ativis
-
tas e funcionárias públicas, nos calar? Como parte inevitável do nosso trabalho, elaboramos um
programa artístico denominado Estética do Silêncio, através do Laboratório de Corpo-Criação
-
-Performance-Interferência-LCCPI, que desenvolvíamos como atividade de extensão do Programa
Multicultural, na Coordenação de Cultura, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, campus
de Vitória da Conquista-BA. No programa Estética do Silêncio, propúnhamos uma investigação
artística acerca dos silêncios, com estudos práticos e teóricos, a partir de referências na arte, na
filosofia e nos estudos culturais contemporâneos. O desenvolvimento da Estética do Silêncio par
-
tia dos eixos básicos do LCCPI, a saber: CORPO: exercícios corporais para o desenvolvimento psi
-
cofísico das pessoas participantes, especificamente, meditação, energização dos chakras, yoga, tai
chi chuan, fundamentos corporais Bartenieff, movimento autêntico e exercícios de improvisação
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Carta para Anastácia
em dança-teatro; CRIAÇÃO: os processos criativos propriamente ditos implicavam em uma inves
-
tigação a partir de estudos sobre artistas e filósofas que abordaram os silêncios em suas obras,
seja na música, no cinema, na performance, seja nas artes visuais, como Susan Sontag, Ingmar
Bergman, John Cage e Marina Abramovic, bem como na elaboração de ações poéticas autorais ou
reperformadas; PERFORMANCE: linguagem artística não representativa, com características pro
-
cessuais, experimentais e conceituais. O termo também pode ser aplicado em uma dimensão cul
-
tural mais ampla, como propõe o teatrólogo norte-americano Richard Schechner (2011), um dos
fundadores do campo interdisciplinar dos Estudos da Performance, em parceria com o sociólogo
também norte-americano Erving Goffman (2014); INTERFERÊNCIA AMBIENTAL: termo sugerido
pelo artista brasileiro Hélio Oiticica e desenvolvido pelo Grupo de Interferência Ambiental – GIA
(Salvador-BA), implica no desprendimento das estruturas primordiais das artes visuais e sua pro-
jeção no espaço-tempo, em nosso caso por meio de cenas performativas em espaços sociais, com
participação do público. Nas performances artísticas realizadas em grupo no decorrer da execu
-
ção do programa Estética do Silêncio, fosse pela falta de recursos com que trabalhávamos, fosse
por comodidade estética, usávamos máscaras cirúrgicas como forma de expressar nossos estados
voluntários de silêncio, em espaços sociais.
Figura 2
: Artistas do Estética do Silêncio, Vitória da Conquista-BA, 2015.
Foto: arquivo LCCPI.
Figura 3
: Artistas do Estética do Silêncio com participação
de testemunhas, Vitória da Conquista-BA, 2015.
Foto: arquivo LCCPI.
Figura 4
: Artistas do Estética do Silêncio com participação
de testemunhas, Vitória da Conquista-BA, 2015.
Foto: arquivo LCCPI.
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Morgana Barbosa
Ao nos afastarmos das nossas funções como técnicas universitárias da UESB, para qualificação a
nível de doutorado, no qual continuamos nossas pesquisas e elaborações com as estéticas dos si-
lêncios, tivemos oportunidade para elaborar melhor nossa proposta artística. Assim, concebemos
a performance artística Epístolas Profanas,
em que gravamos cartas sussurradas de nossa autoria,
destinadas a leitoras, artistas, professoras, alunas, pesquisadoras, testemunhas, colegas e amigas
interessadas, entre outras destinatárias reais e fictícias, como cidades e entidades personificadas,
personagens artísticas e conceituais. Partindo de uma performance literária para uma performan
-
ce cênica, em que o corpo é instrumento da narrativa, sentávamos em uma cadeira, vestidas com a
Máscara do Silenciamento, convidando transeuntes dos lugares em que atuávamos a testemunha
-
rem os nossos sussurros, de modo que, frente a frente, artistas e testemunhas, estabelecemos um
contato visual e sonoro, mediado pelo áudio dessas cartas sussurradas.
Gostaríamos de esclarecer o termo “testemunhas” que aplicamos em nossas performances artís
-
ticas, para denominar o que seria espectador na obra de arte tradicional. Richard Schechner (2011)
define dois tipos de performances que ocorrem ao mesmo tempo: a transportadora, na qual o per
-
former especializado vai do mundo real ao mundo performativo, de uma referência de tempo/espa
-
ço à outra, de uma personalidade à outra ou às outras, seja de forma voluntária, como na interpreta
-
ção, seja de forma involuntária, como no transe; e a
transformadora, evidente em ritos de iniciação,
que transformam pessoas de um
status
ou identidade a outra, com a presença de pessoas próximas
ao transformado, qualquer que seja a sua habilidade. Enquanto na performance transportadora,
o espectador individualmente experienciaria as suas próprias reações em um nível de respostas
pessoais, na performance transformadora ele seria como uma testemunha que mantém níveis de
proximidade com o transformado. Schechner observa uma mudança no estatuto do espectador,
desde o teatro experimental, nas décadas de 1960 e 1970, que envolvia a sua participação, o palco
ambiental e a criatividade coletiva, tal como podemos observar na arte contemporânea de forma
geral. Em nossos trabalhos, aplicamos o termo “testemunhas” de Schechner para nos referirmos às
pessoas que acompanham ou participam das nossas performances artísticas. Esse termo também é
utilizado no método somático do Movimento Autêntico (Mary Whitehouse), desenvolvido no Brasil
pelas pesquisadoras do movimento Ciane Fernandes (Bahia) e Soraya Jorge (Rio de Janeiro), no qual
uma movedora dança de olhos fechados, a partir dos seus impulsos internos, na presença de uma
testemunha. Para Ciane Fernandes (2018), o nome “testemunha” em vez de “observador” implica
uma sintonia somática com o colega, sem julgamentos ou críticas. Também poderíamos nos remeter
às testemunhas como agentes fundamentais para a reconstituição das memórias nas histórias orais,
como afirma Luciana Hartmann (2011), pois, segundo a antropóloga, elas se referem às experiên
-
cias vividas pelos narradores, no momento em que são transmitidas, sendo ouvidas pela audiência
com a legitimidade de um testemunho, já que quem narra viveu, direta ou indiretamente, a situação
narrada. Para o filósofo espanhol
Castor Bartolomé Ruiz (2011)
, os testemunhos das vítimas de
violências individuais e barbáries sociais seriam recursos para o impedimento de suas naturaliza
-
ções e repetições miméticas promovidas pelas estratégias estruturais de esquecimento dos regimes
repressores. Ele atribui ao testemunho os estatutos de história e de acontecimento, uma vez que
constitui o acontecer ao narrar o acontecido. Assim, essa narrativa se constituiria como uma me
-
mória que resgata da história o acontecimento passado, transformando-o em um acontecer pre
-
sente. Para Ruiz, o testemunho torna-se, portanto, um ato de justiça histórica.
Voltemos à questão do uso da Máscara do Silenciamento, na performance artística Epístolas Pro
-
fanas. Como parte da concepção do figurino para a performance, na busca de um aprimoramento
estético dos silêncios que gostaríamos de expressar, começamos a pesquisar modelos de máscaras
de boca em diferentes culturas e contextos, sem conseguir encontrar uma que nos coubesse. Certa
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Carta para Anastácia
vez, em nossa casa, encontramos uma pequena mandala de crochê que havíamos ganhado de uma
amiga, na época da graduação em Comunicação Social, a qual levávamos conosco. Nunca havíamos
dado uma função nem um significado para aquela mandala de crochê. Resolvemos, então, improvi
-
sar com ela uma máscara facial, utilizando como suportes fitas de cetim. E o que vimos no espelho
foi a imagem de uma “escrava” branca!
Figura 5
: Máscara do Silenciamento. 11ª Mostra Cinema Conquista. Vitória da Conquista-BA, 2015.
Foto: Arquivo da Mostra.
Havíamos, finalmente, encontrado nossa máscara. Ao vesti-la, expressávamos a potência dos nos
-
sos silêncios sussurrados em cartas, nas quais podíamos escrever o não dito. Inicialmente, buscá
-
vamos, como artistas, uma postura afirmativa com relação aos silêncios que pudéssemos encon
-
trar durante o nosso percurso, às formas através das quais eles poderiam se manifestar por meio
das artes, propondo questões de linguagem, no primeiro plano da pesquisa. Respeitados esses
tempos dos encontros com tantos silêncios dentro e fora de nós, começamos a perceber cada vez
mais nitidamente o plano de fundo sobre o qual construíamos as nossas performances artísticas,
escutando os ruídos do mundo global, as crises políticas do país, nossas próprias condições de mu
-
lheres brasileiras e os murmúrios de nossas histórias. Foi então que admitimos os silenciamentos
culturais aos quais tentamos resistir, que nos levaram aos estudos de gênero e suas intersecções.
Em nosso percurso prático-teórico, encontramos as elucidações da pesquisadora brasileira Eni
Orlandi (2007) acerca do silêncio, no âmbito da análise do discurso. Ela busca compreender a
materialidade simbólica do silêncio como fundante de significado, em uma afirmação dos seus
sentidos, cujas dimensões remeteriam à incompletude da linguagem. A autora apresenta o deslo
-
camento que o silêncio produz na fronteira entre o dito e o não dito, nos colocando diante da na
-
tureza histórica da significação. Para ela, o traço comum entre a errância do sentido, a itinerância
do sujeito e o correr do discurso seria a ideia de movimento dos silêncios. Essa perspectiva o li
-
bertaria da passividade e negatividade que lhes são atribuídas nas formas sociais da nossa cultura,
conectando o não dizer à história e à ideologia. Em sua análise, Orlandi distingue o silêncio funda
-
dor das políticas do silêncio, subdivididas entre silêncios constitutivos (para dizer é preciso não
dizer, de modo que o dizer e o silenciamento são inseparáveis) e silêncios locais (censura como
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Morgana Barbosa
interdição do dizer, fato de linguagem que produz efeitos como política pública de fala e silêncio,
negando tanto a alteridade quanto a identidade do sujeito). Acerca do silenciamento, Orlandi re
-
conhece que o silêncio também pode ser uma forma de opressão, produzindo, em contrapartida,
os discursos de resistência, dada a característica movente dos sentidos, de modo que não haveria
censura completamente eficaz. Ela afirma, de maneira radical, que para compreender um discur
-
so devemos perguntar sistematicamente o que ele cala. Nesse sentido, podemos considerar as
Epístolas Profanas
como um discurso de resistência contra o silenciamento cultural das mulheres
(Perrot, 2005) na cultura patriarcal que buscamos desconstruir.
Durante a performance artística em que sussurramos a Carta para Vitória, no Conquista Ruas: Fes
-
tival de Artes Performativas, na praça Tancredo Neves, na cidade de Vitória da Conquista-BA, em
2016, escutamos de uma testemunha que passava pela praça: “Anastácia!” Desde então, você nos
acompanha. No decorrer do nosso percurso, além de admitir as performances dos nossos silêncios
manifestos como uma resposta aos silenciamentos aos quais tentam nos condicionar culturalmen-
te, a máscara nos levara a pensar a questão racial em nosso país, e a nos colocar diante dela.
Anastácia, quando crianças, nas rodas de conversas em família, nas casas das nossas avós, não
raramente escutávamos que nossas tataravós haviam sido indígenas enlaçadas no mato, fato bas
-
tante conhecido a respeito da colonização europeia no Brasil. Isso era repetido com bastante na
-
turalidade, sem que nos questionássemos a gravidade desse acontecimento. Naquela época, não
vinham à tona as denúncias acerca das culturas do assédio e estupro que ainda são reproduzidas
em nosso país, a despeito dos debates e informações veiculadas pelos movimentos feministas, em
meios diversos.
Voltemos para a imagem da escrava branca que nos apareceu no espelho: liberta, mestiça e dupla
-
mente silenciada. Essa imagem conflui para a observação da pesquisadora brasileira Ana Cristina
dos Santos (2013), de que as escritoras latino-americanas, pertencentes a subgrupos étnicos, são
as que exploram de modo mais consistente a noção de hibridismo/mestiçagem étnica. Segundo
ela, essas obras enfatizam uma dupla colonização: sujeito mulher e mestiço, portanto, marginali
-
zado. Mas nós não representamos você, já que a sua imagem já diz muito por si mesma.
A respeito da Máscara do Silenciamento, a jornalista e filósofa brasileira Djamila Ribeiro (2017)
cita as palavras da escritora também brasileira Conceição Evaristo, de que sabemos falar pelos
orifícios da máscara e, às vezes, falamos com tanta potência que ela é estilhaçada. Para Evaris
-
to, o estilhaçamento é um símbolo das mulheres negras, porque suas falas forçam a máscara. Da
mesma forma, também nos expressamos em nossa performance artística, por meio da Máscara
do Silenciamento, a princípio, de forma inconsciente, em seguida, ampliando a nossa consciência
no decorrer dos nossos trabalhos, como artistas e pesquisadoras dos silêncios, na produção e nos
estudos culturais.
A imagem da escrava branca expressa nossa constrangedora condição de mulheres brasileiras.
Gostaríamos de desfazer a aura romântica que camuflou as violências raciais e de gênero legiti
-
madas pelas literaturas e sociologias produzidas por homens brancos, na afirmação de uma iden
-
tidade nacional miscigenada. Segundo a pesquisadora brasileira Sueli Carneiro (2019), a violação
colonial perpetrada pelos senhores brancos contra as mulheres negras e indígenas, assim como
a miscigenação daí resultante, está na origem das construções de nossa identidade brasileira e
latino-americana. Assim, compreendemos que a questão da mestiçagem é um desafio para os mo
-
vimentos feministas e negros, diante da nossa história patriarcal e escravocrata.
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Carta para Anastácia
Nessa encruzilhada étnico-racial, buscamos compreender a mestiçagem para além de um fenômeno
de misturas raciais, assim como propõem Viviane Weschenfelder et al. (2018), mas como um dis
-
curso que instituiu formas de perceber e organizar a sociedade brasileira. Os autores afirmam que é
preciso entender a mestiçagem como uma racionalidade, uma potência, um fenômeno cujos efeitos
podemos historicizar e compreender, uma vez que ela organiza o mundo étnico-racial do país, com
desdobramentos decisivos na maneira como a sociedade se institucionaliza, sobretudo a partir dos
anos de 1930, quando se observa com mais clareza a construção de estratégias biopolíticas no Estado
brasileiro. Estaremos atentas à orientação crítica desses pesquisadores brasileiros, de que é preciso
compreender o processo de construção da mestiçagem como dispositivo de estratégias biopolíticas
no Brasil, e como ela foi pensada e traduzida politicamente a partir de uma epistemologia da raça.
Nos meandros interseccionais desse debate interdisciplinar, compreendemos a importância das
mulheres que se consideram ou são consideradas morenas ou mulatas, sendo oficialmente identi
-
ficadas como pardas, afirmarem suas origens africanas ou indígenas na construção de uma cons
-
ciência negra ou não branca no Brasil. Viviane Weschenfelder et al. apontam para o fato de que a
indefinição do pardo constituiu sobre essa cor/raça uma posição de entre-lugar. Os autores reto
-
mam o pensamento do pesquisador indiano-britânico Homi Bhabha de que esses entre lugares
fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação singular e coletiva, que dão
início a novos signos de identidade e a postos inovadores de colaboração e contestação. Segundo
eles, o pardo marca a passagem de um oposto ao outro, ao mesmo tempo em que borra qualquer
noção de fronteira. Para fins estatísticos, o pardo seria uma cor que resulta do cruzamento entre
raças/etnias brancas e negras, ou seja, o símbolo da mestiçagem. Concordamos com os autores
de que seus usos sugerem a necessidade de ir além desse entendimento. Compreendemos que,
por muito tempo, a miscigenação foi um fator estratégico às políticas eugenistas brasileiras, co
-
laborando para o mito da democracia racial, permitindo não apenas a negação do racismo, como
também as estratégias do branqueamento como perspectiva civilizatória.
Reconhecendo a pertinência desse assunto na cultura brasileira, o que se revelou com mais força
durante o processo criativo da performance artística foi entender como poderíamos pensá-lo a fa-
vor do bem estar e da justiça social no século XXI? Inspiramo-nos nas escrituras multilinguísticas
de Gloria Anzaldúa, que nos incendiara os pensamentos, em sua carta para as mulheres escritoras
do terceiro mundo: “escrevam com suas línguas de fogo!” (Anzaldúa, 2018, p. 236). Ao lerem a
escritora chicana, as pesquisadoras brasileiras Claudia Costa et al. observam como suas mestiça
-
gens múltiplas revelam simultaneamente mecanismos de sujeição e ocasiões para o exercício de
liberdade, a qual também vislumbramos.
Nesse jogo de forças, ainda preferiríamos declarar nossas polêmicas condições de mestiças, não
por não querermos nem podermos ser negras, mas por não querermos nem podermos ser bran
-
cas, por escutarmos as vozes de nossas tataravós indígenas violentadas, enquanto trabalhamos
para o Estado ou para o mercado liberal, enquanto usufruímos dos privilégios que a cor da nossa
pele nos garante, bem como do capital simbólico que passamos a acumular, por meio da arte, da
cultura e da educação.
Anastácia, não temos o seu poder de cura para as chagas coloniais do Brasil. Como estratégia para
melhor nos colocarmos nos debates sociais, relacionamos os temas diversos que nos atravessam
(étnicos, raciais, geracionais, territoriais, econômicos, sexuais, ambientais, etc.) com nossas con
-
dições de nos tornarmos melhores mulheres a cada dia. Buscamos nos posicionar com relação
àquelas questões como gostaríamos que o fizessem com relação a essa que tanto nos oprime.
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Morgana Barbosa
Muitas vezes, percebemos nossas próprias contradições, quando também reproduzimos hábitos
e expressões arraigadas em nossas educações e culturas patriarcais. Sigamos nesse exercício das
escutas e das transformações que se fazem necessárias nesse processo. Para tanto, nos atentamos
à citação que Grada Kilomba (2010) fez do discurso público de Paul Gilroy, no qual ele descreve
cinco diferentes mecanismos de defesa do ego pelos quais o sujeito branco passa a fim de ser
capaz de ouvir o sujeito negro, isto é, para que possa se tornar consciente de sua própria branqui
-
tude e de si próprio/a como performer do racismo, os quais seriam a recusa, a culpa, a vergonha,
o reconhecimento e a reparação.
Djamila Ribeiro apresenta o lugar de fala como instrumento teórico da Comunicação acerca dos
diferentes tipos de mídias, bem como dos estudos feministas em suas diversidades críticas e pen-
samentos decoloniais. Ela pensa o lugar de fala como forma de refutar a historiografia tradicional
e a hierarquização de saberes consequentes da hierarquia social. Nessa perspectiva, é do lugar de
artistas da performance que escrevemos para você. Usamos a Máscara do Silenciamento por qua
-
tro vezes, durante as performances artísticas Epístolas Profanas, em que sussurramos: Carta para
um artista que conheci (11ª Mostra Cinema Conquista, Vitória da Conquista-BA, 2015), Carta para
Vitória (Conquista Ruas: Festival de Artes Performativas, Vitória da Conquista-BA, 2016), Carta
para uma outra mulher (Confluências: Festival de Artes Integradas, Goiânia-GO, 2016), Carta para
a Madame Silenciosa (Poiética, XIV Festival de Artes de Goiás, Itumbiara-GO, 2017)
3
.
Figura 6
: Epístolas Profanas: carta a um artista que conheci.
Mostra Cinema Conquista. Vitória da Conquista-BA, 2015.
Figura 7
: Epístolas Profanas: carta para Vitória. Conquista
Ruas: festival de artes performáticas. Vitória da Conquista-BA,
2015 2016.
3
Os áudios dessas cartas sussurradas estão disponíveis em https://soundcloud.com/morgana-poiesis. Acesso em 14 jan.
2023.
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Carta para Anastácia
Figura 8:
Epístolas Profanas: carta para uma outra mulher.
Confluência: Festival de Artes Integradas. Goiânia-GO.
Figura 9:
Epístolas Profanas: carta para a Madame
Silenciosa. Festival de Artes de Goiás. Itumbiara-GO.
2016 2017.
Aproveitamos a oportunidade desta carta para declarar que, após manifestar nossos silêncios nas
performances artísticas que apresentamos, não utilizamos mais a Máscara do Silenciamento. Não
precisamos mais dela, assim como também você não precisa. Nem gostaríamos de fazer de um
instrumento de tortura objeto estético. Você, embora mascarada, era uma princesa que se comu
-
nicava através dos seus olhos cor de céu, que só se abaixavam para as Orixás. Nossas vozes, cada
uma do lugar social de onde fala, ultrapassaram os orifícios da censura. Com os efeitos artísticos
dessa máscara, podemos ter revelado o não silenciável? Por fim, abdicamos da Máscara do Silen
-
ciamento em nossas performances artísticas e culturais. Ela foi desfeita simbolicamente em uma
outra performance artística, denominada Mandalas dos Silêncios, que desempenhamos na Feira
E-cêntrica, em Pirenópolis-GO, 2019, por meio da qual acabamos por dissolver nossos dilemas
éticos. No processo criativo dessa performance, convidamos uma artista terapeuta da cidade que
trabalhava com a relação entre mandalas e mulheres, pois não tínhamos um conhecimento sobre
esse símbolo, embora já testemunhássemos suas criações como formas de arte, cura e magia. Após
um convite mais amplo no grupo virtual do Sagrado Feminino que participávamos naquela época,
chamado Floressência, uma contadora de histórias também veio ao nosso encontro. Juntas trans
-
formamos os fios que silenciavam nossas vozes e identidades em uma mandala, sugerindo outros
movimentos possíveis. Nessa performance coletiva, estivemos com mulheres diversas, como so
-
mos nós, em um duplo movimento de tecer e destecer as linhas dos silenciamentos, ressignifican
-
do as tramas das nossas histórias e produzindo novos símbolos expressivos.
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Morgana Barbosa
Figura 10:
Mandalas dos Silêncios. Feira E-cêntrica.
Pirenópolis-GO. Fotografia: Arnaldo Lobato.
Figura 11
: Mandalas dos Silêncios. Feira E-cêntrica.
Pirenópolis-GO, 2019.
Foto: Ana Póvoas. Foto: Ana Póvoas.
Anastácia, você estava conosco em espírito. Somos gratas à arte e à educação pelo entendimento
que temos hoje a respeito de nossas condições como mulheres brancas, negras e mestiças. Somos
gratas a você pela oportunidade desse diálogo fabulado a partir das nossas inquietações sociais, as
quais manifestamos artística e teoricamente. Por fim, nos inspirou a prosseguir nas experiências
das cartas, como gênero de literatura e crítica social, a leitura recente do livro “Cartas para minha
avó”, de Djamila Ribeiro (2021), que reforça nossa perspectiva decolonial. Assim como ela, não
estamos mais dispostas a ver o mundo pelas frestas.
Com cumplicidade.
M.
Bahia, 2023.
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11
Carta para Anastácia
Letter to Anastácia
Abstract:
In this article, in which we experiment the letter
as a method and form of analysis, already consol
-
idated in previous academic research, we outline
a dialogue between art and the social issues that
provoke it, more specifically gender inequalities
in Brazilian society. In the pursuit of this interlo
-
cution built through a fictional narrative, we start
from our experiences with the artistic performance
Epístolas Profanas to reflect on the cultural silenc
-
ing of women in the historical construction of gen
-
der identity in Brazil, considering racial intersec
-
tions, especially the issue of miscegenation and its
(aesthetic) implications, in a decolonial perspec
-
tive.
Keywords:
Cultural silencing. Artistic perfor
-
mance. Intersectional feminism.
Carta a Anastácia
Resumen:
En este artículo, en el que experimentamos la carta
como método y forma de análisis, ya consolidada
en investigaciones académicas anteriores, esboza
-
mos un diálogo entre el arte y los problemas socia-
les que lo provocan, más específicamente las desi
-
gualdades de género en la sociedad brasileña. En la
búsqueda de esa interlocución construida a través
de una narrativa ficcional, partimos de nuestras
experiencias con la performance artística Epístolas
Profanas para reflexionar sobre el silenciamiento
cultural de las mujeres en la construcción histórica
de la identidad de género en Brasil, considerando
las intersecciones raciales, especialmente la cues-
tión del mestizaje y sus implicaciones estéticas, en
una perspectiva decolonial.
Palabras clave:
Silenciamiento cultural. Actuación
artística. Feminismo interseccional.
HISTÓRICO
Recebido: Janeiro/23
Parecer: Março/23
Parecer: Abril/23
Aceito: Abril/23
Revisado Autor: Maio/23
Revisão Gramatical/Ortográfica e ABNT: Junho/23
Revisado Autor: Junho/23
Diagramação: Junho/23
Publicado: Junho/23
Equipe Editorial Revista TOMO envolvida no processo editorial deste artigo
Marina de Souza Sartore (Editora-Chefe)
Gabriela Losekan (Editora assistente júnior)