image/svg+xml1Revista TOMOSão Cristóvão, v. 42, e18653, 2023Data de Publicação: Junho/2023DossiêResistências aos discursos hegemônicos nas HQs: o olhar das quadrinistas latino-americanas acerca dos gêneros e das sexualidadesAna Paula Oliveira Barros1Resumo: Nas sociedades ocidentais, tanto os corpos como as sexualidades das mulheres, foram durante muito tempo representados de modos idealizados e baseados nos valores de uma sociedade patriarcal, e isso se refletiu, também, nas histórias em quadrinhos (HQs). Porém, a pesquisa desenvolve a hipótese de que estão aconte-cendo importantes reinvenções dos sentidos atribuídos aos corpos e às sexualidades associadas ao femini-no no campo das HQs. Desse modo, o principal objetivo desta pesquisa consiste em investigar de que manei-ra, nas últimas décadas, algumas quadrinistas, principalmente, latino-americanas têm abordado os corpos e as sexualidades femininas em suas obras, adotando diferentes estratégias de resistência à colonialidade de gênero e aos discursos patriarcais, racistas e eurocêntricos em torno da ideia de feminilidade hegemônica. Palavras-chave: HQs. Corpos femininos. Sexualidades. Gênero.IntroduçãoAs HQs fazem parte de um contexto histórico e social específico e, portanto, são produzidas por su-jeitos históricos situados em determinada época e determinados territórios culturais. Em função disso, as imagens assim geradas não são apenas fruto, mas também colaboram com a consolidação dos valores vigentes na sociedade em que circulam. Assim, sendo as histórias em quadrinhos uma forma de comunicação bastante presente na cultura ocidental, elas se tornaram um importante campo de referência para a construção das imagens femininas em diferentes sociedades. Por tal motivo, é crucial fazer uma leitura crítica desse tipo de expressão artística, enfocando os discursos e as crenças que as alicerçam e atravessam em cada momento histórico, sejam eles hegemônicos ou não. De um modo geral, ao se codificar na ampla variedade de linguagens artísticas e midiáticas que caracterizou a era moderna, as diversas manifestações desse gênero costumavam reificar o corpo e a sexualidade das mulheres com o intuito de satisfazer o olhar dos espectadores masculinos. Os sentidos do feminino plasmados nessas imagens foram, durante muito tempo, idealizados por ho-1Universidade Federal Fluminense. Instituto de Arte e Comunicação Social. Programa de Pós-graduação em Comunicação. Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: anapob1988@gmail.com. https://orcid.org/0000-0001-7224-2648. Dossiê
image/svg+xml2Ana Paula Oliveira Barrosmens e para homens. Em sua grande maioria, em plena vigência do regime patriarcal, tais imagens eram confeccionadas de acordo com um conjunto específico de discursos acerca do que signifi-ca(va) ser mulher. Tais corpos, portanto, foram idealizados no papel de acordo com esses valores predominantemente patriarcais, contribuindo para inundar a sociedade ocidental moderna com visualidades heteronormativas e racistas. O corpo da mulher era colocado, quase sempre, numa situação de objeto de desejo estático a ser observado ou usufruído.Como foi exaustivamente estudado, esse discurso hegemônico tem garantido à masculinidade um decisivo lugar de poder e, como parte desse processo, foi internalizada certa moral dominante no que se refere à sexualidade feminina. Por isso, junto com outros importantes fatores socioculturais, políticos e econômicos, a crescente participação de mulheres na produção de artes gráficas é um dos vetores que está contribuindo para as intensas transformações históricas que vêm ocorrendo na atualidade. Tudo isso conflui no combate cada vez mais acirrado aos discursos patriarcais que, no entanto, ainda estão muito presentes nas sociedades ocidentalizadas, visando a possibilitar a escuta de vozes divergentes e toda sorte de reivindicações proteladas. Dessa forma, percebe-se que estão ocorrendo mudanças significativas nesse sentido, e o gênero da autoria é mais um fator a ser indagado, nem que seja para constatar que os discursos hege-mônicos estão implodindo tanto nos corpos criados no papel como naqueles que os criam. À luz dessas constatações, o principal objetivo desta pesquisa consiste em investigar de que maneira, nas últimas décadas, algumas quadrinistas, principalmente, latino-americanas têm abordado os corpos e as sexualidades femininas em suas obras, adotando diferentes estratégias de combate aos discursos patriarcais, racistas e eurocêntricos em torno da ideia de feminilidade hegemônica. A pesquisa desenvolve a hipótese de que estão acontecendo importantes reinvenções dos sentidos atribuídos aos corpos e às sexualidades associadas ao feminino no campo das HQs.Assim, é por meio da resistência à colonialidade de gênero que este trabalho propõe analisar as obras de algumas quadrinistas latino-americanas, que tratam, principalmente, sobre questões re-lacionadas ao gênero, ao corpo e à sexualidade, mas também sobre a questão da raça e da classe. As HQs dessas mulheres não apenas nos permitem refletir sobre os processos históricos que têm constituído padrões de feminilidade, mas também se configuram como respostas estético-polí-ticas aos discursos que regulam os corpos, produzindo visualidades que se opõem às imagens hegemônicas patriarcais.As bases metodológicas da pesquisa proposta são fundamentadas na pesquisa qualitativa de ca-ráter exploratório, já que não tem o intuito de obter números como resultados, e que tem como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, com vista a torná-lo mais explícito ou desdobrar hipóteses. Já o método utilizado para a análise das HQs será a Análise do Discurso de linha francesa, mais especificamente segundo as propostas de Michel Foucault (1986, 1996), que leva em consideração a construção do discurso enquanto situado num contexto social e histórico específico, e que é permeado por relações de poder. Ainda é importante destacar que a metodolo-gia deste trabalho foi sendo construída a partir das comparações e das associações já supracitadas entre as artistas e as HQs. O intuito não é fazer uma análise totalizante das obras, mas, sim, par-tir de reflexões mais subjetivas e ir traçando paralelos com a bibliografia selecionada. O objetivo também é estimular novas leituras dessas obras, seja para rever certas contradições, seja para confirmar a relevância dessas artistas.
image/svg+xml3Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs1. As mulheres latino-americanas nas artes: poder e relações de gêneroPor meio das teorias de Michel Foucault (1996, 1986) é possível desenvolver importantes reflexões sobre como as relações de poder se constituem por meio de formulações discursivas que servem para regular a existência dos indivíduos e populações. Esses discursos se repetem fundamental-mente sobre os corpos, dando existência a formas de controle, muitas vezes sutis, que estabelecem uma ordem normalizadora dos sujeitos.Apesar das teorias do autor não abordarem questões específicas que digam respeito às discussões sobre o gênero, as noções de corpo formuladas por ele serviram para oferecer uma base impor-tante para entendermos as condições a que os corpos femininos têm sido submetidos em meio a uma economia tanto da produção quanto da reprodução. A partir daí é possível nos questionarmos quais são os discursos atribuídos ao feminino que se estabelecem historicamente como norma, sobretudo na cultura ocidental, e quais premissas circulam hegemonicamente em torno das defini-ções de feminilidade, assim como quais são seus efeitos sobre a existência das mulheres. Dessa forma, o autor deixa explícito, em sua obra “História da Sexualidade”, com primeira publica-ção em 1976, que a sexualidade é produzida artificialmente como um dispositivo de vigilância e re-gulação dos corpos, em que o prazer sexual deve servir para o “bom” funcionamento da sociedade. Assim, em uma das construções discursivas, dominante até o século XIX nas sociedades ocidentais, o sexo obedece a fins reprodutivos e é encerrado no ambiente doméstico, onde a organização fami-liar legítima é baseada num modelo de relação conjugal, monogâmica e heterossexual. As condutas que não se encaixam nessa norma são categorizadas como sexualidades periféricas e não são acei-tas pela sociedade. Desse modo, esse sistema atravessado por binarismos acaba reduzindo a exis-tência social das mulheres às suas funções biológicas, sobretudo relacionadas com a procriação. A elas é destinado o espaço privado e o conceito de feminilidade é construído a partir de uma certa imagem da mãe que cuida da família e do lar. Olga da Costa Lima Wanderley (2018), elucida que a relação hierárquica estabelecida entre os gê-neros com base na divisão sexual binária, e nas significações sociais que lhe são atribuídas dentro da cultura ocidental, assume outra dimensão a partir da invasão europeia às Américas. No contexto colonial, a feminilidade é constituída por um regime brutal de exploração e subordinação dos cor-pos das mulheres. Há um duplo processo de colonização – cultural e de gênero – que está baseado no olhar racializante e que classifica os/as colonizados/as como relacionados à “natureza”. Assim, a natureza surge como um conceito fundamental por meio do qual se retira a humanidade das pes-soas colonizadas e se busca justificar a dominação pelo homem branco europeu. María Lugones (2014), aponta que esse conceito é crucial para a compreensão do sistema de ex-ploração colonial e sua estreita vinculação ao patriarcado como estrutura hegemônica de poder. Por meio da imposição colonial do patriarcado, os corpos femininos foram subjugados a espaços subalternos. A autora ainda elucida que a sexualidade das mulheres colonizadas foi marcada como bestial e pecaminosa, ao mesmo tempo em que a “missão civilizatória” impunha sua lógica dico-tômica e hierarquizada, instituída por meio do cristianismo e da organização social patriarcal e falocêntrica. Sobre essa colonialidade de gênero, a autora analisa como o esquema categorial do pensamento moderno ocidental sobre raça, classe e gênero fundamenta e atualiza os mecanismos do sistema de exploração capitalista.Contudo, Lugones (2014) acredita que não devemos pensar as pessoas colonizadas como corpos passivos ante a organização social estruturada pelo poder hegemônico, mas como produtores de
image/svg+xml4Ana Paula Oliveira Barrossubjetividades ativas, em constante tensão entre opressão e resistência. Para a autora, esse ponto é fundamental para o feminismo decolonial, que deve ter como objetivo ir além das “narrativas de opressão” e oferecer ferramentas efetivas para libertação e oposição à colonialidade de gênero. De acordo com a autora, “descolonizar o gênero é necessariamente uma práxis. É decretar uma crítica da opressão de gênero racializada, colonial e capitalista heterossexualizada visando uma transfor-mação vivida do social” (Lugones, 2014, p. 940).Outro ponto importante é que o nosso olhar, bastante influenciado pela cultura visual ocidental do século XX, pode parecer acostumado com os corpos femininos idealizados da sociedade de consumo que vendem modos de ser por meio de produtos diversos. No entanto, as teorias de Foucault (1986) também são cruciais para desvendar a genealogia dessa “naturalização” ao nos ajudar na compreen-são da relação entre o poder e as artes. O conceito de “poder” que esse autor formulou é móvel e está em toda parte, assim, o poder se produz também nas imagens, embora essas ainda costumem ser vistas de forma ingênua ou “naturalizadas”. A intenção, aqui, não é apontar um sujeito do poder com uma oposição estática dominador-dominado, mas entender como o poder opera, como se dissemina e que relações ele constitui nesse complexo território. Sendo as artes um campo de poder e saber, elas são também um campo de disputa, conflitos e multiplicidade de discursos. Não há, então, um discurso único em relação às artes que seja imune a resistências e deslocamen-tos. Nesse sentido, Luciana Loponte (2002), afirma que essa compreensão das relações de poder nas artes vai além das imagens politicamente engajadas feitas por alguns artistas. É importante perceber que o corpo e a sexualidade não são uma questão pessoal e individual, mas, sim, social e política. Para essa compreensão, os estudos feministas têm sido de extrema importância ao apon-tar diferentes possibilidades de análises no campo artístico, assim como romper a “verdade úni-ca” e questionar a “naturalidade” dos discursos. Junto com isso, se faz importante nos questionar quais são as condições de possibilidade de existência de determinados enunciados, seguindo a perspectiva teórico-metodológica fornecida por Foucault (1986). A historiadora da arte Linda Nochlin (1979), relata de que modo o pensamento feminista a levou a reformular sua posição diante das artes e da própria história. De fato, o feminismo não serve ape-nas para questionar a posição das mulheres na sociedade, mas também nos leva a um questiona-mento de muitos outros pressupostos que costumamos aceitar como “normais” em determinada cultura ou até mesmo “naturais”, universais, eternos, próprios da espécie humana. Essa autora, portanto, lembra que uma das ideias básicas da arte ocidental é a noção de “gênio”, sendo que a “verdadeira”arte deveria ser criada por grandes gênios. Contudo, esse gênio, que nossa sociedade admira porque se eleva, de alguma forma, sobre a massa dos seres humanos comuns, na maioria das vezes é um homem branco heterossexual. A partir dessa constatação, surge o questionamento de por que são tão poucas as mulheres que tiveram uma carreira de sucesso no mundo da arte. Em seu ensaio de 1971, chamado “Por que não houve grandes mulheres artistas?”, a mesma Nochlin aponta que na base dessa pergunta existem diversas ideias duvidosas sobre a natureza da arte e das habilidades humanas, em geral, e muitas suposições ingênuas e distorcidas sobre o fazer artístico. Esse poder atemporal e misterioso rela-cionado à genialidade e, consequentemente, ao “grande artista”, quase sempre masculino, esteve ligado, por muito tempo, a premissas meta-históricas inconscientes e de natureza associal. Mas a arte não é uma atividade livre e autônoma, de um indivíduo dotado de qualidades e influenciado por “forças sociais”; ao contrário, ela se dá num contexto histórico-cultural, sendo um elemento integral da estrutura social e que é mediado e determinado por instituições específicas.
image/svg+xml5Resistências aos discursos hegemônicos nas HQsAo longo do processo de definir o que seja “arte”ou até “grande arte”, a sexualidade e o poder se articularam e exerceram um papel fundamental na determinação de quem poderia representar e ser representado. Se a sexualidade das mulheres era vigiada e controlada, as artistas não foram exceção. Ao passo que a questão da sexualidade não abalava a “genialidade” de artistas homens, que representavam à exaustão bordéis, mulheres nuas e prostitutas, aquelas poucas mulheres que, de forma excepcional, conseguiam entrar no ambiente artístico, muitas vezes, se limitavam à representação de pinturas de interiores e naturezas-mortas, gêneros esses considerados de me-nor valor e que, consequentemente, não as tornariam “grandes artistas” (Loponte, 2002). Assim, ao longo da história da arte ocidental, fica explícita a tendência de tornar a artista mulher como uma figura exótica ou uma exceção, e, ainda de forma paradoxal, usar seu status único para acabar diminuindo seu próprio sucesso. Além disso, quando se trata de posições em relação à raça, além de gênero, a situação é ainda mais complicada. Esse cenário não se tornaria muito dife-rente, pelo menos até a segunda metade do século XX, quando a arte feminista escolheu a lingua-gem como campo de luta por conteúdo e significado na arte. Nesse sentido, Georgina G. Gluzman(2019), aborda que foi a partir da década 1970 que a crítica feminista à história da arte começou a desenterrar um amplo número de obras, situações e artistas até então excluídas das narrativas canônicas. No século XX, os discursos relacionados aos corpos e às sexualidades femininas ganharam maior visibilidade e acabaram atingindo a escala global devido aos meios de comunicação de massa. Nes-se período, cabe acrescentar que também se verifica uma maior participação feminina no proces-so de construção das imagens de mulheres. Nas primeiras décadas do século XX, o envolvimento das mulheres artistas foi responsável também pela elaboração de modelos alternativos por meio das imagens propostas por elas, introduzindo novos modos de ver e representar as mulheres (Lo-ponte, 2002). Contudo, um ponto importante sobre a arte latino-americana, em específico, é o fato de que os nomes mais famosos do período do modernismo no início do século XX são de mulheres. É unânime os nomes de Frida Kahlo (1907-1954) como representante da arte mexicana e o de Anita Malfatti (1889-1964) da arte brasileira, por exemplo. Esse fato é bastante interessante, pois nos faz pensar que a popularidade dessas figuras ajuda na nossa indagação sobre a construção dos femininos latino-americanos, assim como sua presença na arte desses países, principalmente por-que, de modo geral, os grandes nomes da arte mundial são de homens (Freitas; Mendonça, 2020).No caso da mexicana Frida Kahlo, a artista desenvolveu obras fortemente autobiográficas, nas quais ao se retratar se colocava em situação de protagonismo. Seus quadros narram a sua vida de luta e sofrimento numa sociedade racista e patriarcal, e também é possível encontrarmos as celebrações de suas raízes mexicanas em suas obras. Já a brasileira Anita Malfatti dá um novo tratamento aos corpos femininos em algumas de suas obras, ao não associar a nudez feminina necessariamente com disponibilidade sexual ou prazer, subvertendo, assim, os discursos hegemô-nicos do período, e nos fazendo refletir sobre as angústias do seu tempo (Loponte, 2002). Outros exemplos de artistas desse período, porém menos conhecidas no circuito da arte, são a cubana Amelia Peláez (1986-1968) e a boliviana Mariana Núñes del Prado (1908-1995). Peláez produzia retratos femininos, sendo recorrentes a representação de mulheres hindus, negras e crianças. Já Marina Núñez del Prado incorporava a temática indigenista, figura bastante presente na histo-riografia latino-americana, em sua trajetória (Freitas; Mendonça, 2020). A partir desses poucos exemplos, entre os muitos outros que poderiam ser mencionados, ficou explícito que as artistas latino-americanas foram responsáveis por criarem imagens que possibilitaram novos discursos visuais sobre a feminilidade, ao questionar as formas estereotipadas de representação hegemôni-
image/svg+xml6Ana Paula Oliveira Barroscas das sociedades patriarcais. É importante ainda destacar que o papel da experiência/vivência individual dessas mulheres foi de extrema relevância nas diferentes formas que elas escolheram para colocar em prática suas obras artísticas. Muitas dessas artistas estiveram por muito tempo excluídas dos circuitos de legitimação da arte, tanto por questões geográficas quanto por questões de gênero. Contudo, após a década de 1960, e principalmente após 1980, elas passam a emergir. Com a segunda onda do movimento feminista nos anos 1960, se intensificou a requisição das mulheres do poder sobre seus corpos e sobre si mesmas. Na arte se iniciou a busca pela desconstrução dos estereótipos construídos anteriormente e aumentou a procura dos recursos artísticos como espaço de fala para tal luta. Também é nesse período que se dão os primeiros registros de passeatas e protestos em favor da inclusão de um maior número de artistas mulheres em exposições e galerias. Essas mani-festações se deram junto com o Movimento dos Direitos Civis, com o Movimento Estudantil de maio de 1968 e o pós-estruturalismo, sendo todos eventos históricos que contribuíram entre si, devido ao compartilhamento de ideais e valores (Trizoli, 2008). Assim, o movimento feminista na arte tinha como um de seus principais objetivos desconstruir as premissas de mulher objeto de desejo, ao trazer questionamentos sobre as sexualidades, as subjetividades, os femininos, os gêneros, etc. Porém, na década de 1970, no bojo do movimento feminista, alguns limites etnocêntricos do feminismo anglo-saxão ainda se faziam evidentes nas artes de cunho feminista. Em 1977, Griselda Pollock, em seu texto “What´s wrong with the images of Women?”, denunciava a imagem de uma mulher única e propunha a desconstrução das imagens femininas por meio de uma crítica aos discursos estabilizadores, a todos os tipos de reduções, mesmo aqueles operados pelo próprio fe-minismo. Desse modo, a partir da década de 1980, é possível dizer que o feminismo da “igualdade” deu lugar ao da diferença. Autoras como Chéla Sandoval (1995) tiveram um papel importante ao problematizar que o feminismo anglosaxão dos anos 1960/70 pressupunha um sujeito feminista único, estável, hegemônico, o qual não traduzia as expectativas, desejos e realidades vivenciadas pelas “outras do feminismo”. Assim, as questões das mulheres passaram a ser vistas como atraves-sadas também por fortes marcadores de classe e de etnicidade. Nesse momento, as artistas femi-nistas também começaram a focar em criticar aspectos racistas, conservadores e eurocentristas dentro das artes (Simioni; Dorotinsky; Luca, 2013). Ainda na década de 1980, com as acusações e revalidações dentro do movimento feminista da arte, as artistas negras também passam a ganhar espaço com discursos críticos acerca do papel da mulher negra na sociedade. A questão da raça é um tema de extrema importância em relação aos discursos das imagens de mulheres, pois, durante os séculos XIX e XX, a maior parte dessas ima-gens era representações de mulheres brancas. Sobre essa questão, Lélia Gonzalez (1988), destaca que isso se deve ao que alguns cientistas sociais chamam de “racismo por omissão”,cujas raízes se encontram numa visão de mundo eurocêntrica e neocolonialista da realidade. Assim, o racismo, principalmente o latino-americano, graças à sua “ideologia do branqueamento”, mantém negros e indígenas na condição de subordinação e de classes mais exploradas. Essa ideologia que é trans-mitida pelos meios de comunicação de massa e pelos discursos tradicionais reproduz e perpetua a crença de que os valores e as classificações da cultura ocidental branca são únicos e universais. É preciso lembrar ainda que a combinação de dois ou mais marcadores sociais da diferença, entre eles raça, classe, gênero, cria desigualdades básicas. A mulher negra, por exemplo, estaria não só subordinada ao patriarcado, mas também às estruturas sociais racistas, havendo, assim, uma dupla subordinação. Toda essa problemática também se encontra no mundo da arte, que reafirma
image/svg+xml7Resistências aos discursos hegemônicos nas HQsuma estética euro-étnica, heterossexual masculina, que resistiu por muito tempo a presença de gays, negros, indígenas e praticantes de sexualidades consideradas desviantes. Já com relação às artistas na América Latina na contemporaneidade, foi também a partir da dé-cada de 1980 que elas emergiram, por meio de exposições que se interessavam pelos seus traba-lhos, como elucida Wanderley (2018). A partir desse período, as obras dessas artistas refletem, em grande parte, as condições sociais vividas especificamente por elas na América Latina, assim como evidencia as violências de Estado praticadas naquele período, visto que parte dessa pro-dução esteve comprometida com a resistência às ditaduras presentes nesses países. Nas obras é possível perceber o foco nas investigações sobre o corpo como estratégia de intervenção estética e oposição política a diversas formas de abusos. São exemplos de artistas latino-americanas con-temporâneas e que tratam sobre os corpos e sexualidades das mulheres: a chilena Gabriela Rivera Lucero (1977), a brasileira Priscilla Buhr (1985), a brasileira Panmela Castro (1981), a colombia-na Liliana Angulo Cortés (1974), entre muitas outras. Na arte feita pelas artistas latino-americanas hoje em dia ainda é possível perceber uma adição acerca das preocupações mais recentes da visibilidade de múltiplos corpos e sexualidades, e a ideia de um corpo feminino cada vez mais subjetivo. Isso se deu porque, após os anos 1990, a diversidade de gêneros também passou a encontrar espaços para a sua voz e representar seus problemas e exigências sociais. Com o passar do tempo, esses temas foram se intensificando, e a alteração do corpo, presente em várias culturas, atingiu seu ápice, desestabilizando categorias tradicionais como homem/mulher e tornando o ser humano um ser mutante. As mudanças hor-monais, as cirurgias de sexo, as manipulações genéticas, entre outros, modificaram de forma radi-cal os desafios e o contexto da arte nos dias de hoje. Enquanto o corpo dos anos 1960 encarnava o sujeito, seu ser no mundo, hoje ele se torna um artifício submetido ao design permanente da medicina ou até da informática (Borin, 2010). Percebemos, então, que na contemporaneidade artistas passam a repensar o papel da arte em meio ao contexto político no qual vivemos e também passam a levar em conta as subjetividades que surgem a cada dia. Ao reconfigurar os corpos femininos nas artes, emerge uma discussão que vai além do caráter estético e trata de questões também políticas, ou seja, da mulher enquanto sujeito numa sociedade heteronormativa, branca e patriarcal. Essas artistas partem da represen-tação do corpo para encenar diferentes subjetividades sociais, culturais e econômicas das mu-lheres. Esse movimento também será observado entre as artistas de histórias em quadrinhos e ilustrações, como será visto.2. Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs: as quadrinistas latino-americanas Se para Foucault (1996), a construção dos sujeitos se dá por meio dos discursos que carregam efeitos específicos de poder, pode-se dizer que a sociedade produz discursos visuais do feminino, que são reflexo e resultado de uma ideia socialmente enraizada relativa à feminilidade, e essas imagens difundidas de forma massiva produzem e estabelecem modos de pensar o que são as mulheres nas sociedades ocidentais. As imagens são, então, um campo importante quando se trata de questionar relações de poder e de combater mecanismos de perpetuação da dominação mas-culina. Sendo a HQ um espaço de comunicação, ela torna-se uma rica referência de construção das imagens de mulheres, que, muitas vezes, reifica os corpos e as sexualidades delas com o intuito de satisfazer o outro.
image/svg+xml8Ana Paula Oliveira BarrosDessa forma, é importante notar que quando as mulheres lutam por emancipação para conseguir se apropriar do poder de formação de suas próprias subjetividades e sexualidades, elas desestabi-lizam e resistem aos discursos referentes às suas performances sociais. Ao exercerem seu próprio poder político frente aos discursos patriarcais, heteronormativos e racistas acerca das sexualida-des e dos corpos femininos, as mulheres passam a ter a possibilidade de se definir a partir de seus próprios desejos. Ediliane de Oliveira Boff (2014), frisa que, por muito tempo, no mercado de HQs, poucas quadri-nistas conseguiram destacar-se em termos nacionais e internacionais e, com isso, suas criações não chegavam ao conhecimento popular de forma expressiva. Pelo fato de grande parte das pro-duções de mulheres ser, muitas vezes, pouco favorecida nas escolhas editoriais massivas, muitas delas acabavam não tendo suas obras disseminadas em grande escala. Outro ponto é que seus trabalhos ficavam, principalmente, restritos aos meios alternativos das pequenas editoras, dos blogs ou sites particulares. Apesar do campo das HQs ainda ser predominantemente masculino, desde a produção até o con-sumo, a participação feminina em suas produções, consumo, desenho e roteiro remonta à sua origem. Jaqueline dos Santos Cunha (2016), cita o exemplo da tirinha “The old subscrever calls” produzida por uma mulher, Rose O’Neill, em 1896. Cunha (2016) esclarece que as primeiras pro-duções de tirinhas produzidas por quadrinistas mulheres seguiam, em sua maioria, os padrões de obras consideradas femininas. Essas produções pareciam trabalhos de mulher para agradar o público feminino de acordo com o imaginário da época, sem se libertar dos discursos normatiza-dores. Esse parecia ser o caminho possível num ambiente povoado por homens, em que as publi-cações estavam atreladas às demandas do editor, um sujeito masculino. O conteúdo dessas HQs era recheado de romances, moda, belas mulheres e crianças simpáticas. Após a década de 1960, com a colaboração do movimento feminista e da contracultura, os quadri-nhos undergroundsforam os responsáveis por ampliar a participação das mulheres de maneira consistente no campo das HQs. Com efeito, o undergroundacabou sendo um lugar privilegiado para a produção feminina, principalmente porque era um ambiente alheio ao mercado em massa de produção e consumo, no qual as mulheres não precisavam se submeter ao pensamento hege-mônico patriarcal (Boff, 2014). De acordo com Daiany Ferreira Dantas (2006), é comum nos quadrinhos alternativos aparecerem casais compatíveis corporalmente falando. Há também a presença de tipos diversificados tanto para homens quanto para mulheres, em termos de altura, peso e cor de pele. Isso é possível devido ao lugar de fala dessas autoras que estão inseridas no underground. As HQs independentes, por rompe-rem com o cânone, constituem um campo que torna possível as tentativas de dissociação dos velhos estereótipos entre feminilidade e masculinidade. A partir disso encontramos com frequência nessas HQs dilemas referentes ao corpo que lidam com a contradição feminilidade-virilidade. No campo do underground, uma das quadrinistas que se destaca é a norte-americana Aline Ko-minsky Crumb, autora da HQ “Essa Bunch é um amor”, publicada no Brasil em 2011 pela editora Conrad. Suas HQs possuem um teor humorístico bastante aguçado, suas narrativas trazem histó-rias de relações sexuais, baixa autoestima feminina e autodepreciação, relações instáveis com o próprio corpo e ainda histórias autobiográficas de sua vida amorosa com o seu marido e, também, quadrinista Robert Crumb (Boff, 2014). Em todo momento, em suas histórias, a sexualidade femi-nina é tratada sem paradigmas e sem os estereótipos estabelecidos pelos discursos patriarcais, por meio de um traço bastante grotesco que deforma seus personagens, bem comum nos qua-
image/svg+xml9Resistências aos discursos hegemônicos nas HQsdrinhos underground, que são reproduzidos de maneira bem distante dos padrões estabelecidos como “belo”. Boff (2014) aponta que é comum encontrarmos muitas HQs produzidas por mulheres, principal-mente após a década de 1960, que tratem sobre o campo psicológico e, também, da autobiografia das autoras. A libertação conquistada pelas mulheres e a ampliação dos movimentos feministas aumentaram as possibilidades criativas das quadrinistas. O teor presente nessas obras é, geral-mente, de desabafo da condição feminina, especialmente sexual, cuja repressão já não atuava sem resistências significativas. Assim, os fatores que estimularam as mulheres a se apropriarem de seus discursos também ajudaram a ampliar as possibilidades de expressão de grupos de mulheres diferentes entre si em relação a suas sexualidades ou etnias. Essa abertura permitiu tanto a en-trada de mulheres negras na indústria dos quadrinhos, que utilizariam suas obras para discursar sobre questões raciais, quanto o surgimento de mulheres que discutiriam as relações homoafeti-vas nas HQs. O fato é que a questão racial é um tema que deve ser destacado no que diz respeito à identidade das mulheres produtoras de quadrinhos, assim como já foi visto entre as mulheres que produzem outras linguagens artísticas. Percebe-se que o número de mulheres negras é muito menor nesse campo do que o de mulheres brancas. Uma das primeiras mulheres negras produtoras de quadri-nhos foi Jackie Ormes, que começou sua carreira trabalhando num jornal destinado ao público ne-gro, em 1937, quando deu início à HQ “Touchy Brown”. Em 1945, Jackie criou a personagem Candy, uma jovem bela e esbelta, que realizava diversas críticas sobre a sociedade. Após, a quadrinista lançou outra personagem Patty-Jo ‘n’ Ginger, uma jovem, elegante e bonita, que possuía uma irmã mais nova chamada Patty-Jo, que ficou conhecida por sempre fazer algum tipo de comentário so-bre situações polêmicas. Outra quadrinista negra norte-americana é citada por Boff (2014), Bar-bara Brandon, nascida em 1958, filha do desenhista Brumsic Brandon Jr. Barbara inseriu a mulher negra como protagonista de tiras de quadrinhos em 1980 por meio da HQ “Where I’m Coming From?”. Um exemplo interessante também nesse sentido é o da organização The Ormes Society, que atua com o objetivo de dar visibilidade para as obras das quadrinistas negras e promover a inserção delas na indústria das HQs. Figura 1– HQ “Touchy Brown” de Jackie OrmesFonte: http://www.dadoeedesign.com.br/2014/03/mulheres-e-hqs-o-fim-do-preconceito-e.html