image/svg+xml
1
Revista TOMO
São Cristóvão, v. 42, e18653, 2023
Data de Publicação: Junho/2023
Dossiê
Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs: o olhar
das quadrinistas latino-americanas acerca dos gêneros e das
sexualidades
Ana Paula Oliveira Barros
1
Resumo
:
Nas sociedades ocidentais, tanto os corpos como as sexualidades das mulheres, foram durante muito tempo
representados de modos idealizados e baseados nos valores de uma sociedade patriarcal, e isso se refletiu,
também, nas histórias em quadrinhos (HQs). Porém, a pesquisa desenvolve a hipótese de que estão aconte-
cendo importantes reinvenções dos sentidos atribuídos aos corpos e às sexualidades associadas ao femini-
no no campo das HQs. Desse modo, o principal objetivo desta pesquisa consiste em investigar de que manei-
ra, nas últimas décadas, algumas quadrinistas, principalmente, latino-americanas têm abordado os corpos e
as sexualidades femininas em suas obras, adotando diferentes estratégias de resistência à colonialidade de
gênero e aos discursos patriarcais, racistas e eurocêntricos em torno da ideia de feminilidade hegemônica.
Palavras-chave
: HQs. Corpos femininos. Sexualidades. Gênero.
Introdução
As HQs fazem parte de um contexto histórico e social específico e, portanto, são produzidas por su
-
jeitos históricos situados em determinada época e determinados territórios culturais. Em função
disso, as imagens assim geradas não são apenas fruto, mas também colaboram com a consolidação
dos valores vigentes na sociedade em que circulam. Assim, sendo as histórias em quadrinhos uma
forma de comunicação bastante presente na cultura ocidental, elas se tornaram um importante
campo de referência para a construção das imagens femininas em diferentes sociedades. Por tal
motivo, é crucial fazer uma leitura crítica desse tipo de expressão artística, enfocando os discursos
e as crenças que as alicerçam e atravessam em cada momento histórico, sejam eles hegemônicos
ou não.
De um modo geral, ao se codificar na ampla variedade de linguagens artísticas e midiáticas que
caracterizou a era moderna, as diversas manifestações desse gênero costumavam reificar o corpo
e a sexualidade das mulheres com o intuito de satisfazer o olhar dos espectadores masculinos. Os
sentidos do feminino plasmados nessas imagens foram, durante muito tempo, idealizados por ho-
1
Universidade Federal Fluminense. Instituto de Arte e Comunicação Social. Programa de Pós-graduação em Comunicação.
Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: anapob1988@gmail.com. https://orcid.org/0000-0001-7224-2648.
Dossiê
image/svg+xml
2
Ana Paula Oliveira Barros
mens e para homens. Em sua grande maioria, em plena vigência do regime patriarcal, tais imagens
eram confeccionadas de acordo com um conjunto específico de discursos acerca do que signifi
-
ca(va) ser mulher. Tais corpos, portanto, foram idealizados no papel de acordo com esses valores
predominantemente patriarcais, contribuindo para inundar a sociedade ocidental moderna com
visualidades heteronormativas e racistas. O corpo da mulher era colocado, quase sempre, numa
situação de objeto de desejo estático a ser observado ou usufruído.
Como foi exaustivamente estudado, esse discurso hegemônico tem garantido à masculinidade um
decisivo lugar de poder e, como parte desse processo, foi internalizada certa moral dominante no
que se refere à sexualidade feminina. Por isso, junto com outros importantes fatores socioculturais,
políticos e econômicos, a crescente participação de mulheres na produção de artes gráficas é um
dos vetores que está contribuindo para as intensas transformações históricas que vêm ocorrendo
na atualidade. Tudo isso conflui no combate cada vez mais acirrado aos discursos patriarcais que,
no entanto, ainda estão muito presentes nas sociedades ocidentalizadas, visando a possibilitar a
escuta de vozes divergentes e toda sorte de reivindicações proteladas.
Dessa forma, percebe-se que estão ocorrendo mudanças significativas nesse sentido, e o gênero
da autoria é mais um fator a ser indagado, nem que seja para constatar que os discursos hege-
mônicos estão implodindo tanto nos corpos criados no papel como naqueles que os criam.
À luz
dessas constatações, o principal objetivo desta pesquisa consiste em investigar de que maneira,
nas últimas décadas, algumas quadrinistas, principalmente, latino-americanas têm abordado os
corpos e as sexualidades femininas em suas obras, adotando diferentes estratégias de combate
aos discursos patriarcais, racistas e eurocêntricos em torno da ideia de feminilidade hegemônica.
A pesquisa desenvolve a hipótese de que estão acontecendo importantes reinvenções dos sentidos
atribuídos aos corpos e às sexualidades associadas ao feminino no campo das HQs.
Assim, é por meio da resistência à colonialidade de gênero que este trabalho propõe analisar as
obras de algumas quadrinistas latino-americanas, que tratam, principalmente, sobre questões re-
lacionadas ao gênero, ao corpo e à sexualidade, mas também sobre a questão da raça e da classe.
As HQs dessas mulheres não apenas nos permitem refletir sobre os processos históricos que têm
constituído padrões de feminilidade, mas também se configuram como respostas estético-polí
-
ticas aos discursos que regulam os corpos, produzindo visualidades que se opõem às imagens
hegemônicas patriarcais.
As bases metodológicas da pesquisa proposta são fundamentadas na pesquisa qualitativa de ca-
ráter exploratório, já que não tem o intuito de obter números como resultados, e que tem como
objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, com vista a torná-lo mais explícito ou
desdobrar hipóteses. Já o método utilizado para a análise das HQs será a Análise do Discurso de
linha francesa, mais especificamente segundo as propostas de Michel Foucault (1986, 1996), que
leva em consideração a construção do discurso enquanto situado num contexto social e histórico
específico, e que é permeado por relações de poder.
Ainda é importante destacar que a metodolo-
gia deste trabalho foi sendo construída a partir das comparações e das associações já supracitadas
entre as artistas e as HQs. O intuito não é fazer uma análise totalizante das obras, mas, sim, par
-
tir de reflexões mais subjetivas e ir traçando paralelos com a bibliografia selecionada. O objetivo
também é estimular novas leituras dessas obras, seja para rever certas contradições, seja para
confirmar a relevância dessas artistas.
image/svg+xml
3
Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs
1. As mulheres latino-americanas nas artes: poder e relações de gênero
Por meio das teorias de Michel Foucault (1996, 1986) é possível desenvolver importantes reflexões
sobre como as relações de poder se constituem por meio de formulações discursivas que servem
para regular a existência dos indivíduos e populações. Esses discursos se repetem fundamental-
mente sobre os corpos, dando existência a formas de controle, muitas vezes sutis, que estabelecem
uma ordem normalizadora dos sujeitos.
Apesar das teorias do autor não abordarem questões específicas que digam respeito às discussões
sobre o gênero, as noções de corpo formuladas por ele serviram para oferecer uma base impor-
tante para entendermos as condições a que os corpos femininos têm sido submetidos em meio a
uma economia tanto da produção quanto da reprodução. A partir daí é possível nos questionarmos
quais são os discursos atribuídos ao feminino que se estabelecem historicamente como norma,
sobretudo na cultura ocidental, e quais premissas circulam hegemonicamente em torno das defini
-
ções de feminilidade, assim como quais são seus efeitos sobre a existência das mulheres.
Dessa forma, o autor deixa explícito, em sua obra “História da Sexualidade”, com primeira publica-
ção em 1976, que a sexualidade é produzida artificialmente como um dispositivo de vigilância e re
-
gulação dos corpos, em que o prazer sexual deve servir para o “bom” funcionamento da sociedade.
Assim, em uma das construções discursivas, dominante até o século XIX nas sociedades ocidentais,
o sexo obedece a fins reprodutivos e é encerrado no ambiente doméstico, onde a organização fami
-
liar legítima é baseada num modelo de relação conjugal, monogâmica e heterossexual. As condutas
que não se encaixam nessa norma são categorizadas como sexualidades periféricas e não são acei-
tas pela sociedade. Desse modo, esse sistema atravessado por binarismos acaba reduzindo a exis-
tência social das mulheres às suas funções biológicas, sobretudo relacionadas com a procriação. A
elas é destinado o espaço privado e o conceito de feminilidade é construído a partir de uma certa
imagem da mãe que cuida da família e do lar.
Olga da Costa Lima Wanderley (2018), elucida que a relação hierárquica estabelecida entre os gê
-
neros com base na divisão sexual binária, e nas significações sociais que lhe são atribuídas dentro
da cultura ocidental, assume outra dimensão a partir da invasão europeia às Américas. No contexto
colonial, a feminilidade é constituída por um regime brutal de exploração e subordinação dos cor-
pos das mulheres. Há um duplo processo de colonização – cultural e de gênero – que está baseado
no olhar racializante e que classifica os/as colonizados/as como relacionados à “natureza”. Assim,
a natureza surge como um conceito fundamental por meio do qual se retira a humanidade das pes-
soas colonizadas e se busca justificar a dominação pelo homem branco europeu.
María Lugones (2014), aponta que esse conceito é crucial para a compreensão do sistema de ex
-
ploração colonial e sua estreita vinculação ao patriarcado como estrutura hegemônica de poder.
Por meio da imposição colonial do patriarcado, os corpos femininos foram subjugados a espaços
subalternos. A autora ainda elucida que a sexualidade das mulheres colonizadas foi marcada como
bestial e pecaminosa, ao mesmo tempo em que a “missão civilizatória” impunha sua lógica dico-
tômica e hierarquizada, instituída por meio do cristianismo e da organização social patriarcal e
falocêntrica. Sobre essa colonialidade de gênero, a autora analisa como o esquema categorial do
pensamento moderno ocidental sobre raça, classe e gênero fundamenta e atualiza os mecanismos
do sistema de exploração capitalista.
Contudo, Lugones (2014) acredita que não devemos pensar as pessoas colonizadas como corpos
passivos ante a organização social estruturada pelo poder hegemônico, mas como produtores de
image/svg+xml
4
Ana Paula Oliveira Barros
subjetividades ativas, em constante tensão entre opressão e resistência. Para a autora, esse ponto
é fundamental para o feminismo decolonial, que deve ter como objetivo ir além das “narrativas de
opressão” e oferecer ferramentas efetivas para libertação e oposição à colonialidade de gênero. De
acordo com a autora, “descolonizar o gênero é necessariamente uma práxis. É decretar uma crítica
da opressão de gênero racializada, colonial e capitalista heterossexualizada visando uma transfor-
mação vivida do social” (Lugones, 2014, p. 940).
Outro ponto importante é que o nosso olhar, bastante influenciado pela cultura visual ocidental do
século XX, pode parecer acostumado com os corpos femininos idealizados da sociedade de consumo
que vendem modos de ser por meio de produtos diversos. No entanto, as teorias de Foucault (1986)
também são cruciais para desvendar a genealogia dessa “naturalização” ao nos ajudar na compreen-
são da relação entre o poder e as artes. O conceito de “poder” que esse autor formulou é móvel e está
em toda parte, assim, o poder se produz também nas imagens, embora essas ainda costumem ser
vistas de forma ingênua ou “naturalizadas”. A intenção, aqui, não é apontar um sujeito do poder com
uma oposição estática dominador-dominado, mas entender como o poder opera, como se dissemina
e que relações ele constitui nesse complexo território. Sendo as artes um campo de poder e saber,
elas são também um campo de disputa, conflitos e multiplicidade de discursos.
Não há, então, um discurso único em relação às artes que seja imune a resistências e deslocamen
-
tos. Nesse sentido, Luciana Loponte (2002), afirma que essa compreensão das relações de poder
nas artes vai além das imagens politicamente engajadas feitas por alguns artistas. É importante
perceber que o corpo e a sexualidade não são uma questão pessoal e individual, mas, sim, social e
política. Para essa compreensão, os estudos feministas têm sido de extrema importância ao apon
-
tar diferentes possibilidades de análises no campo artístico, assim como romper a “verdade úni
-
ca” e questionar a “naturalidade” dos discursos. Junto com isso, se faz importante nos questionar
quais são as condições de possibilidade de existência de determinados enunciados, seguindo a
perspectiva teórico-metodológica fornecida por Foucault (1986).
A historiadora da arte Linda Nochlin (1979), relata de que modo o pensamento feminista a levou a
reformular sua posição diante das artes e da própria história. De fato, o feminismo não serve ape-
nas para questionar a posição das mulheres na sociedade, mas também nos leva a um questiona-
mento de muitos outros pressupostos que costumamos aceitar como “normais” em determinada
cultura ou até mesmo “naturais”, universais, eternos, próprios da espécie humana. Essa autora,
portanto, lembra que uma das ideias básicas da arte ocidental é a noção de “gênio”, sendo que a
“verdadeira”
arte deveria ser criada por grandes gênios. Contudo, esse gênio, que nossa sociedade
admira porque se eleva, de alguma forma, sobre a massa dos seres humanos comuns, na maioria
das vezes é um homem branco heterossexual.
A partir dessa constatação, surge o questionamento de por que são tão poucas as mulheres que
tiveram uma carreira de sucesso no mundo da arte. Em seu ensaio de 1971, chamado “Por que não
houve grandes mulheres artistas?”, a mesma Nochlin aponta que na base dessa pergunta existem
diversas ideias duvidosas sobre a natureza da arte e das habilidades humanas, em geral, e muitas
suposições ingênuas e distorcidas sobre o fazer artístico. Esse poder atemporal e misterioso rela-
cionado à genialidade e, consequentemente, ao “grande artista”, quase sempre masculino, esteve
ligado, por muito tempo, a premissas meta-históricas inconscientes e de natureza associal. Mas a
arte não é uma atividade livre e autônoma, de um indivíduo dotado de qualidades e influenciado
por “forças sociais”; ao contrário, ela se dá num contexto histórico-cultural, sendo um elemento
integral da estrutura social e que é mediado e determinado por instituições específicas.
image/svg+xml
5
Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs
Ao longo do processo de definir o que seja “arte”
ou até “grande arte”, a sexualidade e o poder se
articularam e exerceram um papel fundamental na determinação de quem poderia representar e
ser representado. Se a sexualidade das mulheres era vigiada e controlada, as artistas não foram
exceção. Ao passo que a questão da sexualidade não abalava a “genialidade” de artistas homens,
que representavam à exaustão bordéis, mulheres nuas e prostitutas, aquelas poucas mulheres
que, de forma excepcional, conseguiam entrar no ambiente artístico, muitas vezes, se limitavam à
representação de pinturas de interiores e naturezas-mortas, gêneros esses considerados de me-
nor valor e que, consequentemente, não as tornariam “grandes artistas” (Loponte, 2002).
Assim, ao longo da história da arte ocidental, fica explícita a tendência de tornar a artista mulher
como uma figura exótica ou uma exceção, e, ainda de forma paradoxal, usar seu status único para
acabar diminuindo seu próprio sucesso. Além disso, quando se trata de posições em relação à
raça, além de gênero, a situação é ainda mais complicada. Esse cenário não se tornaria muito dife
-
rente, pelo menos até a segunda metade do século XX, quando a arte feminista escolheu a lingua-
gem como campo de luta por conteúdo e significado na arte. Nesse sentido, Georgina G. Gluzman
(2019), aborda que foi a partir da década 1970 que a crítica feminista à história da arte começou
a desenterrar um amplo número de obras, situações e artistas até então excluídas das narrativas
canônicas.
No século XX, os discursos relacionados aos corpos e às sexualidades femininas ganharam maior
visibilidade e acabaram atingindo a escala global devido aos meios de comunicação de massa. Nes-
se período, cabe acrescentar que também se verifica uma maior participação feminina no proces
-
so de construção das imagens de mulheres. Nas primeiras décadas do século XX, o envolvimento
das mulheres artistas foi responsável também pela elaboração de modelos alternativos por meio
das imagens propostas por elas, introduzindo novos modos de ver e representar as mulheres (Lo-
ponte, 2002). Contudo, um ponto importante sobre a arte latino-americana, em específico, é o fato
de que os nomes mais famosos do período do modernismo no início do século XX são de mulheres.
É unânime os nomes de Frida Kahlo (1907-1954) como representante da arte mexicana e o de
Anita Malfatti (1889-1964) da arte brasileira, por exemplo. Esse fato é bastante interessante, pois
nos faz pensar que a popularidade dessas figuras ajuda na nossa indagação sobre a construção dos
femininos latino-americanos, assim como sua presença na arte desses países, principalmente por-
que, de modo geral, os grandes nomes da arte mundial são de homens (Freitas; Mendonça, 2020).
No caso da mexicana Frida Kahlo, a artista desenvolveu obras fortemente autobiográficas, nas
quais ao se retratar se colocava em situação de protagonismo. Seus quadros narram a sua vida
de luta e sofrimento numa sociedade racista e patriarcal, e também é possível encontrarmos as
celebrações de suas raízes mexicanas em suas obras. Já a brasileira Anita Malfatti dá um novo
tratamento aos corpos femininos em algumas de suas obras, ao não associar a nudez feminina
necessariamente com disponibilidade sexual ou prazer, subvertendo, assim, os discursos hegemô-
nicos do período, e nos fazendo refletir sobre as angústias do seu tempo (Loponte, 2002). Outros
exemplos de artistas desse período, porém menos conhecidas no circuito da arte, são a cubana
Amelia Peláez (1986-1968) e a boliviana Mariana Núñes del Prado (1908-1995). Peláez produzia
retratos femininos, sendo recorrentes a representação de mulheres hindus, negras e crianças. Já
Marina Núñez del Prado incorporava a temática indigenista, figura bastante presente na histo
-
riografia latino-americana, em sua trajetória (Freitas; Mendonça, 2020).
A partir desses poucos
exemplos, entre os muitos outros que poderiam ser mencionados, ficou explícito que as artistas
latino-americanas foram responsáveis por criarem imagens que possibilitaram novos discursos
visuais sobre a feminilidade, ao questionar as formas estereotipadas de representação hegemôni-
image/svg+xml
6
Ana Paula Oliveira Barros
cas das sociedades patriarcais. É importante ainda destacar que o papel da experiência/vivência
individual dessas mulheres foi de extrema relevância nas diferentes formas que elas escolheram
para colocar em prática suas obras artísticas.
Muitas dessas artistas estiveram por muito tempo excluídas dos circuitos de legitimação da
arte, tanto por questões geográficas quanto por questões de gênero. Contudo, após a década de
1960, e principalmente após 1980, elas passam a emergir. Com a segunda onda do movimento
feminista nos anos 1960, se intensificou a requisição das mulheres do poder sobre seus corpos
e sobre si mesmas. Na arte se iniciou a busca pela desconstrução dos estereótipos construídos
anteriormente e aumentou a procura dos recursos artísticos como espaço de fala para tal luta.
Também é nesse período que se dão os primeiros registros de passeatas e protestos em favor
da inclusão de um maior número de artistas mulheres em exposições e galerias. Essas mani-
festações se deram junto com o Movimento dos Direitos Civis, com o Movimento Estudantil de
maio de 1968 e o pós-estruturalismo, sendo todos eventos históricos que contribuíram entre si,
devido ao compartilhamento de ideais e valores (Trizoli, 2008). Assim, o movimento feminista
na arte tinha como um de seus principais objetivos desconstruir as premissas de mulher objeto
de desejo, ao trazer questionamentos sobre as sexualidades, as subjetividades, os femininos, os
gêneros, etc.
Porém, na década de 1970, no bojo do movimento feminista, alguns limites etnocêntricos do
feminismo anglo-saxão ainda se faziam evidentes nas artes de cunho feminista. Em 1977, Griselda
Pollock, em seu texto “What´s wrong with the images of Women?”, denunciava a imagem de uma
mulher única e propunha a desconstrução das imagens femininas por meio de uma crítica aos
discursos estabilizadores, a todos os tipos de reduções, mesmo aqueles operados pelo próprio fe-
minismo. Desse modo, a partir da década de 1980, é possível dizer que o feminismo da “igualdade”
deu lugar ao da diferença. Autoras como Chéla Sandoval (1995) tiveram um papel importante ao
problematizar que o feminismo anglosaxão dos anos 1960/70 pressupunha um sujeito feminista
único, estável, hegemônico, o qual não traduzia as expectativas, desejos e realidades vivenciadas
pelas “outras do feminismo”. Assim, as questões das mulheres passaram a ser vistas como atraves-
sadas também por fortes marcadores de classe e de etnicidade.
Nesse momento, as artistas femi-
nistas também começaram a focar em criticar aspectos racistas, conservadores e eurocentristas
dentro das artes
(Simioni; Dorotinsky; Luca, 2013).
Ainda na década de 1980, com as acusações e revalidações dentro do movimento feminista da
arte, as artistas negras também passam a ganhar espaço com discursos críticos acerca do papel da
mulher negra na sociedade.
A questão da raça é um tema de extrema importância em relação aos
discursos das imagens de mulheres, pois, durante os séculos XIX e XX, a maior parte dessas ima-
gens era representações de mulheres brancas. Sobre essa questão, Lélia Gonzalez (1988), destaca
que isso se deve ao que alguns cientistas sociais chamam de “racismo por omissão”,
cujas raízes se
encontram numa visão de mundo eurocêntrica e neocolonialista da realidade. Assim, o racismo,
principalmente o latino-americano, graças à sua “ideologia do branqueamento”, mantém negros e
indígenas na condição de subordinação e de classes mais exploradas. Essa ideologia que é trans-
mitida pelos meios de comunicação de massa e pelos discursos tradicionais reproduz e perpetua
a crença de que os valores e as classificações da cultura ocidental branca são únicos e universais.
É preciso lembrar ainda que a combinação de dois ou mais marcadores sociais da diferença, entre
eles raça, classe, gênero, cria desigualdades básicas. A mulher negra, por exemplo, estaria não
só subordinada ao patriarcado, mas também às estruturas sociais racistas, havendo, assim, uma
dupla subordinação. Toda essa problemática também se encontra no mundo da arte, que reafirma
image/svg+xml
7
Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs
uma estética euro-étnica, heterossexual masculina, que resistiu por muito tempo a presença de
gays, negros, indígenas e praticantes de sexualidades consideradas desviantes.
Já com relação às artistas na América Latina na contemporaneidade, foi também a partir da dé
-
cada de 1980 que elas emergiram, por meio de exposições que se interessavam pelos seus traba-
lhos, como elucida Wanderley (2018). A partir desse período, as obras dessas artistas refletem,
em grande parte, as condições sociais vividas especificamente por elas na América Latina, assim
como evidencia as violências de Estado praticadas naquele período, visto que parte dessa pro-
dução esteve comprometida com a resistência às ditaduras presentes nesses países. Nas obras é
possível perceber o foco nas investigações sobre o corpo como estratégia de intervenção estética
e oposição política a diversas formas de abusos. São exemplos de artistas latino-americanas con-
temporâneas e que tratam sobre os corpos e sexualidades das mulheres: a
chilena Gabriela Rivera
Lucero (1977), a brasileira Priscilla Buhr (1985), a brasileira Panmela Castro (1981), a colombia
-
na Liliana Angulo Cortés (1974), entre muitas outras.
Na arte feita pelas artistas latino-americanas hoje em dia ainda é possível perceber uma adição
acerca das preocupações mais recentes da visibilidade de múltiplos corpos e sexualidades, e a
ideia de um corpo feminino cada vez mais subjetivo. Isso se deu porque,
após os anos 1990,
a
diversidade de gêneros também passou a encontrar espaços para a sua voz e repre
sentar seus
problemas e exigências sociais.
Com o passar do tempo, esses temas foram se intensificando, e
a alteração do corpo, presente em várias culturas, atingiu seu ápice, desestabilizando categorias
tradicionais como homem/mulher e tornando o ser humano um ser mutante. As mudanças hor-
monais, as cirurgias de sexo, as manipulações genéticas, entre outros, modificaram de forma radi
-
cal os desafios e o contexto da arte nos dias de hoje. Enquanto o corpo dos anos 1960 encarnava
o sujeito, seu ser no mundo, hoje ele se torna um artifício submetido ao design permanente da
medicina ou até da informática (Borin, 2010).
Percebemos, então, que na contemporaneidade artistas passam a repensar o papel da arte em
meio ao contexto político no qual vivemos e também passam a levar em conta as subjetividades
que surgem a cada dia. Ao reconfigurar os corpos femininos nas artes, emerge uma discussão que
vai além do caráter estético e trata de questões também políticas, ou seja, da mulher enquanto
sujeito numa sociedade heteronormativa, branca e patriarcal. Essas artistas partem da represen-
tação do corpo para encenar diferentes subjetividades sociais, culturais e econômicas das mu-
lheres. Esse movimento também será observado entre as artistas de histórias em quadrinhos e
ilustrações, como será visto.
2. Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs: as quadrinistas latino-americanas
Se para Foucault (1996), a construção dos sujeitos se dá por meio dos discursos que carregam
efeitos específicos de poder, pode-se dizer que a sociedade produz discursos visuais do feminino,
que são reflexo e resultado de uma ideia socialmente enraizada relativa à feminilidade, e essas
imagens difundidas de forma massiva produzem e estabelecem modos de pensar o que são as
mulheres nas sociedades ocidentais. As imagens são, então, um campo importante quando se trata
de questionar relações de poder e de combater mecanismos de perpetuação da dominação mas-
culina. Sendo a HQ um espaço de comunicação, ela torna-se uma rica referência de construção das
imagens de mulheres, que, muitas vezes, reifica os corpos e as sexualidades delas com o intuito de
satisfazer o outro.
image/svg+xml
8
Ana Paula Oliveira Barros
Dessa forma, é importante notar que quando as mulheres lutam por emancipação para conseguir
se apropriar do poder de formação de suas próprias subjetividades e sexualidades, elas desestabi-
lizam e resistem aos discursos referentes às suas performances sociais. Ao exercerem seu próprio
poder político frente aos discursos patriarcais, heteronormativos e racistas acerca das sexualida-
des e dos corpos femininos, as mulheres passam a ter a possibilidade de se definir a partir de seus
próprios desejos.
Ediliane de Oliveira Boff (2014), frisa que, por muito tempo, no mercado de HQs, poucas quadri-
nistas conseguiram destacar-se em termos nacionais e internacionais e, com isso, suas criações
não chegavam ao conhecimento popular de forma expressiva. Pelo fato de grande parte das pro-
duções de mulheres ser, muitas vezes, pouco favorecida nas escolhas editoriais massivas, muitas
delas acabavam não tendo suas obras disseminadas em grande escala. Outro ponto é que seus
trabalhos ficavam, principalmente, restritos aos meios alternativos das pequenas editoras, dos
blogs ou sites particulares.
Apesar do campo das HQs ainda ser predominantemente masculino, desde a produção até o con-
sumo, a participação feminina em suas produções, consumo, desenho e roteiro remonta à sua
origem. Jaqueline dos Santos Cunha (2016), cita o exemplo da tirinha “The old subscrever calls”
produzida por uma mulher, Rose O’Neill, em 1896. Cunha (2016) esclarece que as primeiras pro-
duções de tirinhas produzidas por quadrinistas mulheres seguiam, em sua maioria, os padrões
de obras consideradas femininas. Essas produções pareciam trabalhos de mulher para agradar o
público feminino de acordo com o imaginário da época, sem se libertar dos discursos normatiza
-
dores. Esse parecia ser o caminho possível num ambiente povoado por homens, em que as publi-
cações estavam atreladas às demandas do editor, um sujeito masculino. O conteúdo dessas HQs
era recheado de romances, moda, belas mulheres e crianças simpáticas.
Após a década de 1960, com a colaboração do movimento feminista e da contracultura, os quadri-
nhos
undergrounds
foram os responsáveis por ampliar a participação das mulheres de maneira
consistente no campo das HQs. Com efeito, o
underground
acabou sendo um lugar privilegiado
para a produção feminina, principalmente porque era um ambiente alheio ao mercado em massa
de produção e consumo, no qual as mulheres não precisavam se submeter ao pensamento hege-
mônico patriarcal (Boff, 2014).
De acordo com Daiany Ferreira Dantas (2006), é comum nos quadrinhos alternativos aparecerem
casais compatíveis corporalmente falando. Há também a presença de tipos diversificados tanto para
homens quanto para mulheres, em termos de altura, peso e cor de pele. Isso é possível devido ao
lugar de fala dessas autoras que estão inseridas no
underground
. As HQs independentes, por rompe-
rem com o cânone, constituem um campo que torna possível as tentativas de dissociação dos velhos
estereótipos entre feminilidade e masculinidade. A partir disso encontramos com frequência nessas
HQs dilemas referentes ao corpo que lidam com a contradição feminilidade-virilidade.
No campo do
underground
, uma das quadrinistas que se destaca é a norte-americana Aline Ko
-
minsky Crumb, autora da HQ “Essa Bunch é um amor”, publicada no Brasil em 2011 pela editora
Conrad. Suas HQs possuem um teor humorístico bastante aguçado, suas narrativas trazem histó-
rias de relações sexuais, baixa autoestima feminina e autodepreciação, relações instáveis com o
próprio corpo e ainda histórias autobiográficas de sua vida amorosa com o seu marido e, também,
quadrinista Robert Crumb (Boff, 2014). Em todo momento, em suas histórias, a sexualidade femi-
nina é tratada sem paradigmas e sem os estereótipos estabelecidos pelos discursos patriarcais,
por meio de um traço bastante grotesco que deforma seus personagens, bem comum nos qua-
image/svg+xml
9
Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs
drinhos
underground
, que são reproduzidos de maneira bem distante dos padrões estabelecidos
como “belo”.
Boff (2014) aponta que é comum encontrarmos muitas HQs produzidas por mulheres, principal-
mente após a década de 1960, que tratem sobre o campo psicológico e, também, da autobiografia
das autoras. A libertação conquistada pelas mulheres e a ampliação dos movimentos feministas
aumentaram as possibilidades criativas das quadrinistas. O teor presente nessas obras é, geral-
mente, de desabafo da condição feminina, especialmente sexual, cuja repressão já não atuava sem
resistências significativas. Assim, os fatores que estimularam as mulheres a se apropriarem de
seus discursos também ajudaram a ampliar as possibilidades de expressão de grupos de mulheres
diferentes entre si em relação a suas sexualidades ou etnias. Essa abertura permitiu tanto a en-
trada de mulheres negras na indústria dos quadrinhos, que utilizariam suas obras para discursar
sobre questões raciais, quanto o surgimento de mulheres que discutiriam as relações homoafeti-
vas nas HQs.
O fato é que a questão racial é um tema que deve ser destacado no que diz respeito à identidade
das mulheres produtoras de quadrinhos, assim como já foi visto entre as mulheres que produzem
outras linguagens artísticas. Percebe-se que o número de mulheres negras é muito menor nesse
campo do que o de mulheres brancas. Uma das primeiras mulheres negras produtoras de quadri-
nhos foi Jackie Ormes, que começou sua carreira trabalhando num jornal destinado ao público ne-
gro, em 1937, quando deu início à HQ “Touchy Brown”. Em 1945, Jackie criou a personagem Candy,
uma jovem bela e esbelta, que realizava diversas críticas sobre a sociedade. Após, a quadrinista
lançou outra personagem Patty-Jo ‘n’ Ginger, uma jovem, elegante e bonita, que possuía uma irmã
mais nova chamada Patty-Jo, que ficou conhecida por sempre fazer algum tipo de comentário so
-
bre situações polêmicas. Outra quadrinista negra norte-americana é citada por Boff (2014), Bar-
bara Brandon, nascida em 1958, filha do desenhista Brumsic Brandon Jr. Barbara inseriu a mulher
negra como protagonista de tiras de quadrinhos em 1980 por meio da HQ “Where I’m Coming
From?”. Um exemplo interessante também nesse sentido é o da organização The Ormes Society,
que atua com o objetivo de dar visibilidade para as obras das quadrinistas negras e promover a
inserção delas na indústria das HQs.
Figura 1
– HQ “Touchy Brown” de Jackie Ormes
Fonte: http://www.dadoeedesign.com.br/2014/03/mulheres-e-hqs-o-fim-do-preconceito-e.html
image/svg+xml
10
Ana Paula Oliveira Barros
Com relação a questões de orientação sexual, a quadrinista norte-americana Alison Bechdel tem
atuado com reconhecimento internacional. Uma de suas principais obras, “Fun Home”, publicada
no Brasil em 2006, é um relato autobiográfico de conteúdo sentimental bastante complexo. A HQ
trata da relação entre a personagem e sua família, especialmente seu pai homossexual, e como ela
construiu suas relações com a homossexualidade e a identidade de gênero. “Fun Home” foi consi-
derada pela revista Time uma obra-prima, que trata da relação entre duas pessoas que convivem
na mesma casa, mas em “mundos” distintos, e sobre suas diferenças nunca resolvidas. Ou seja, é
sobre um pai e uma filha e o paradoxo de amar e sentir descaso ao mesmo tempo. O traço de Alison
é bem apurado, pois mistura o grotesco e a delicadeza simultaneamente.
Figura 2
– HQ “Fun Home” de Alison Bechdel
Fonte: https://naodiganada.blogspot.com/2007/01/fun-home-o-livro-do-ano-segundo-time.html
Por mais que os Estados Unidos seja um dos principais produtores de quadrinhos, sendo um cam-
po bastante amplo onde encontramos um grande número de mulheres quadrinistas, lá não é a
única região onde se encontram importantes nomes. Mariela Alejandra Acevedo (2019), ao tratar
sobre o panorama das mulheres que fazem quadrinhos na América Latina, traz que a década de
1980 foi o momento de início de democratização da região, e, como consequência, houve o aumen-
to da participação feminina nos espaços de criação cultural.
No contexto da América Latina os dois países de maior expressividade em termos de produção de
HQs são a Argentina e o Brasil. No caso da Argentina, Acevedo (2019) elucida que na década de 1930
já encontramos quadrinistas mulheres trabalhando nas redações das revistas, e que, na maioria das
vezes, elas assinavam apenas com o sobrenome. Isso acontecia, principalmente, para ocultar os tra-
balhos realizados por essas mulheres. É desse período a quadrinista argentina Mitzi (1903-1996),
pseudônimo da humorista Marina Esther Traveso. Ela publicou uma coluna semanal na revista Sin
-
tonía sob o título “Alfilerazos” nos anos de 1933 e 1934. Lá, além de escrever críticas sobre os pro
-
dutos da mídia, acompanhava suas falas com pequenas cenas de humor por meio de HQs. Outra
quadrinista é Idelba Lidia Dapueto (1932), que por muitas vezes tem seu nome referenciado como o
image/svg+xml
11
Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs
da primeira autora dedicada aos quadrinhos na Argentina. O seu trabalho profissional inclui colabo
-
rações em diversas revistas, entre elas Suspenso (1949), Filmograf (1950), Billiken (nos anos 1950)
e Intervalo (nos anos 1960 e 1970). Ela também atuou como assessora artística da Cleda e em 1960
dirigiu títulos da mesma editora. Já nas décadas de 1980 e 1990 integrou diversas equipes editoriais.
Acevedo (2019) explica que é na década de 1970 que as organizações feministas começaram a
produzir uma imprensa crítica que incluía, em muitos casos, histórias em quadrinhos. Alguns no-
mes que passaram a publicar a partir desse período são Petisuí, pseudônimo de María Alicia Guz
-
mán, Patricia Breccia, Silvia Maldini, María Alcobre e Maitena Burundarena. O foco dessas autoras
era, principalmente, as questões relacionadas a corporalidades e a sexualidades. Elas tratavam so-
bre representações e discursos sobre modos de habitar o corpo, transgressões e transições, assim
como representações sobre o sexo, o desejo, a diversidade e as dissidências.
Entre essas autoras citadas, a mais famosa é Maitena, sendo reconhecida internacionalmente. Essa
é criadora da HQ “Mulheres Alteradas”, que já foi publicada em pelo menos 15 países, desde 2006.
A HQ apresenta temáticas como moda, corpo, família, filhos e relacionamentos, ao mesmo tempo
em que faz uma crítica à condição da mulher. Por meio da Figura 3 nota-se que as personagens de
Maitena parecem agressivas e desesperadas, com o mesmo teor grotesco já vistos nos quadrinhos
undergrounds
.
Figura 3
– HQ “Mulheres Alteradas” de Maitena
Fonte: http://cartunesebonecos.blogspot.com.br/2006/01/mulheres-alteradas-by-maitena_10.html
Segundo Dantas (2006), as mulheres de Maitena expõem corpos que se tornam flácidos, que lidam
com a acne, estrias, pelos, rugas, isto é, tudo aquilo que os “desvia” de um modelo inalcançável.
Esses corpos são, ao mesmo tempo, amparados em imagens de grotesco que confirmam a distân
-
cia entre a realidade do corpo e o padrão desejado. O realismo grotesco utilizado pela quadrinista
nada mais é do que aquilo que transgride, que rearticula a alteridade do sujeito mulher. É também
a ferramenta que ela usa para denunciar as ficções reguladoras de gênero que impõem condutas
às mulheres. Na HQ de Maitena, o corpo é o lugar onde fica explícito as angústias das personagens
e suas vulnerabilidades. No pensamento de Dantas (2006, p. 108):
image/svg+xml
12
Ana Paula Oliveira Barros
As mulheres de Maitena destronam as idéias olimpianas de beleza, da construção de um
ser belo e bom como essência da mulher, sendo alvo de admiração dos homens e acumu-
lando sucessos no mundo público, feliz no casamento, na educação dos filhos e vestindo-se
na moda da última estação. O corpo, saturado de tantas demandas, inquieto e vitimado,
agoniza a sua falência múltipla ao acumular trabalho e resistência na trilha do perfectível.
No caso do Brasil, Boff (2014) elucida que quando as mulheres começaram a entrar na produção
de quadrinhos em outros países, aqui as quadrinistas ainda tinham um papel inexpressivo. A par-
tir da década de 1960, por exemplo, o Brasil já apresentava uma significativa produção que discu
-
tia o feminino em suas narrativas, como é o caso das revistas Chiclete com Banana, Big Bang Bang
e personagens como Rê Bordosa, de Angeli, mas eram muito poucas as mulheres que faziam parte
dessas produções. São alguns nomes: Mariza Costa Dias, Cristina Siqueira, Ciça e Hilde Weber.
É notório que as primeiras quadrinistas brasileiras, apesar de não terem contribuído de forma tão
significativa para os discursos acerca das mulheres no terreno das HQs, colaboraram para abrir
caminho para maiores possibilidades de inserção das mulheres numa área predominantemente
masculina. Essas primeiras artistas não começaram necessariamente produzindo narrativas
quadrinizadas. A atuação de algumas delas se deu no terreno da caricatura e da ilustração. Ao
mesmo tempo em que Rose O’Neill começou a publicar nos Estados Unidos, o Brasil também
apresentava sua pioneira, Nair de Teffè. Sonia M. Bibe Luyten (2011), destaca que Nair assinava
suas obras como Rian e nasceu no Rio de Janeiro em 1886. Ela era filha do Barão de Teffè, esposa
do Marechal Hermes da Fonseca e começou sua carreira em Paris fazendo caricaturas, que foram
publicadas na imprensa carioca. De acordo com Boff (2014), em 1910 a artista caricaturou di-
versas mulheres consideradas personalidades da sociedade carioca. Essas imagens constituíram
suas “Galeria das elegâncias” e “Galeria das damas aristocráticas”. Essas imagens eram distorcidas,
exageradas e grotescas, realizadas por meio de uma linguagem caricatural.
Figura 4
– Caricatura de Nair de Teffè
Fonte: http://brasileiros.com.br/2016/05/uma-primeira-dama-culta-talentosa-e-irreverente/
Pouco tempo depois do sucesso de Nair de Teffè, outra mulher passou a chamar a atenção da classe
artística brasileira. Trata-se de Patrícia Galvão, que ficou conhecida como Pagu, nascida em São João
da Boa Vista, no interior de São Paulo, em 1910. Ela era escritora e jornalista com forte militância
feminista e comunista, tendo se desempenhado também como crítica de arte e como quadrinista.
Segundo Boff (2014), Pagu contribuiu para mobilizar a vida política e cultural do país nas décadas
image/svg+xml
13
Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs
1930 e 1940, entrando assim para a pequena lista de mulheres que participavam da vida social na
sua época. A artista começou desenhando na revista Antropofagia
,
abordando aspectos sexuais e de
trabalho feminino, o que gerava polêmica tanto entre a burguesia quanto entre os seus colegas co-
munistas da época. Entre as suas obras, vale mencionar que Pagu editou o jornal O Homem do Povo
entre os meses de março e abril de 1931, junto com o poeta e escritor Oswald de Andrade, no qual
costumava publicar as suas críticas feministas numa sessão especial chamada “A Mulher do Povo”
.
No mesmo periódico também aparecia a sua HQ intitulada “Malakaceça, Fanikita e Kabeluda”. Como
é possível notar na Figura 5, seu traço como desenhista era bastante rudimentar, demonstrando
uma despreocupação com a “qualidade” artística, além de deixar explícito os seus posicionamentos
ideológicos. Em suas tirinhas,
Pagu não se furtava de tocar em temas delicados, como o aborto, por
exemplo, e ela também costumava trazer dois tipos de mulheres: a esposa obediente e a jovem con-
testadora e fora dos padrões convencionais, como era a própria quadrinista.
Figura 5
– HQ “Malakaceça, Fanikita e Kabeluda” de Pagu
Fonte: http://ladyscomics.com.br/as-tiras-de-pagu
A partir da década de 1970 o campo do humor passou a se desenvolver nas HQs produzidas por mu-
lheres no Brasil. Umas das principais quadrinistas desse ramo na época foi Marguerita Fahrer, nascida
na Austrália, em 1950, mas que emigrou para o Brasil quando ainda tinha 4 anos. Sua HQ “Margarida, A
incrível Mulher Moderna” surgiu nas páginas da revista Mais! nos anos 1970, época de intensa repres
-
são política. Nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil surgiu a figura da mulher “moderna” nas histórias
em quadrinhos, aquela que questionava os velhos imaginários do feminino e se inseria cada vez mais
nos dilemas do mundo público. Esse é justamente o perfil da personagem Margarida, que gozava dos
benefícios da luta feminista e somava às atribuições domésticas as aspirações de inclusão no mercado
de trabalho e ter o sexo não como obrigação conjugal, mas fonte de satisfação (Dantas, 2013). Na Fi-
gura 6 nota-se que Margarida usava muitos decotes, tinha cabelos volumosos, bastante curvas, seios
levemente caídos, tinha nariz, boca, olhos e dentes bem grandes para o rosto e articulações irregulares.
Para Dantas (2013), a personagem estava bem longe de ser considerada uma mulher “bela” na época,
mas seu aspecto grotesco não a impedia de exercer sua sedução. Seu corpo avantajado e desproporcio-
nal acabava servindo como diferencial gráfico dos padrões de beleza pregados para as mulheres, era
aquilo que a distanciava da normatização e demarcava sua singularidade. Dessa forma, constata-se que
a primeira proclamada mulher “moderna” das HQs brasileiras era uma personagem que deixava em
evidência os sintomas de contradições e tensões de uma época em que os papéis sociais de homens e
mulheres estavam sendo redefinidos e negociados.
image/svg+xml
14
Ana Paula Oliveira Barros
Figura 6
– “Margarida” de Marguerita Fahrer
Fonte: http://regbit.blogspot.com.br/2013/06/leila-diniz-nos-tracos-das-desenhistas.html
Luyten (2011) explana que após a década de 1990, ocorre uma mudança com a participação das
mulheres no cenário dos quadrinhos em diversos países. Começam a surgir muitas jovens qua
-
drinistas por meio de publicações independentes e fanzines, que utilizam a internet e os meios
alternativos para difundirem sua voz e estética. O espaço online confere autonomia às quadrinis-
tas, que podem atuar de maneira direta com seu público, o que possibilita colocar em prática suas
convicções artísticas. Há também as que estão preenchendo o espaço do mercado nacional de HQs
com novas propostas editoriais, desenhando uma nova figura da mulher e tentando desconstruir
os estereótipos dos discursos patriarcais.
Entre elas está a brasileira Edna Lopes, nascida em Curitiba em 1962, criadora da HQ “Amana aos
deus-dará”, que tem como principal temática a questão da violência e dá voz a uma protagonista
feminina. Na história, Amana, uma jovem negra de cabelos curtos e cacheados (Figura 7), sai da ci-
dade grande em busca de encontrar seu lugar no mundo e encontrar a si mesma. Outra importante
representante das HQs nacionais a partir desse período é Ana Koehler, que trabalha especialmente
no mercado europeu. Em seu quadrinho “Beco do Rosário” é possível encontrar uma rara constru
-
ção de protagonista negra de HQs, seu nome é Vitória Azambuja.
Figura 7
– “Amana” de Edna Lopes
Fonte: https://www.amazon.com.br/Amana-Deus-Dara-Edna-Lopes/dp/8587220594
image/svg+xml
15
Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs
Figura 8
– “Vitória Azambuja” de Ana Koehler
Fonte:
http://ladyscomics.com.br/resenha-beco-do-rosario
No caso da Argentina, Acevedo (2019) argumenta que, a partir de 1990 até meados dos anos 2000,
houve um momento de transição em que o mercado – como existia até então – entrou em colapso.
Alguns autores que estavam iniciando suas carreiras nessa época optaram por outros campos
criativos como ilustração, artes plásticas e redação. Todavia, ao mesmo tempo, um grupo incipien
-
te de autoras começava a se formar nos primeiros eventos de fanzines. Exemplos dessa irrupção
são Alejandra Lunik (1973), nascida no Chile, mas que hoje em dia trabalha na Argentina, e que
participou da revista Fierro: La Historieta Argentina, Daniela Kantor (1970) com “Mujer primeri
-
za”, e Powerpaola, pseudônimo de Paola Gaviria (1977), quadrinista nascida no Equador, mas que
já morou em diversos países da América Latina, e atualmente mora na Argentina. É também nesse
momento que surge uma nova geração que se aproxima dos primeiros eventos de feiras e circui-
tos editoriais alternativos de HQs. Posteriormente, o advento da internet e de uma tecnologia que
reduz os custos de produção incentivará a incorporação de autores em blogs coletivos como “His
-
torietas Reales” ou a fundação do coletivo internacional de autores Chics On Comics.
Das quadrinistas mencionadas desse período, Powerpaola é uma das mais famosas na atuali-
dade, tendo seus livros publicados em diversos países. Ela é também artista plástica e carica
-
turista, e já expôs seus diários de viagem, desenhos e pinturas em diversas cidades da América
Latina, da Europa e dos Estados Unidos. Autora de “Vírus Tropical”, “O Diário de Powerpaola”
,
“QP”, “Todo Va a Estar Bien”, “Nos Vamos”, etc. Atualmente integra os espaços coletivos Chicks On
Comics, No Tan Parecidos e La Casa Telepática. Publica uma tirinha mensal na revista cultural
Arcadia (Colômbia) e é diretora artística do longa de animação “Virus Tropical”, baseado em seu
romance gráfico (Acevedo, 2019).
image/svg+xml
16
Ana Paula Oliveira Barros
Figura 9
– HQ “Vírus Tropical” de Powerpaola
Fonte: https://minadehq.com.br/a-vida-pelo-fino-traco-de-power-paola/
Em seu primeiro romance gráfico “Vírus Tropical”, de 2011, publicado no Brasil pela editora Nemo,
a quadrinista contou sua própria história em capítulos com temas como família, dinheiro, religião,
trabalho e amor. Já em sua HQ “QP”,
publicada no Brasil pela editora Lote 42
,
encontramos
13 histó-
rias autobiográficas sobre o cotidiano de um casal e também temas sobre feminismo, subjetividade e
gênero.
Hoje em dia, ela
publica fotos de seus desenhos, pinturas e cadernos de viagem em seu Insta-
gram. Com um traço preciso e, por muitas vezes, também grotesco, com bastante influência das HQs
undergrounds,
Powerpaola se distancia das corporalidades femininas culturalmente estabelecidas
como desejáveis, fazendo uma crítica aos padrões corporais impostos como beleza física.
Após a década de 2010, a participação das autoras começou a se multiplicar exponencialmente,
devido à visibilidade dada pelas redes sociais e à autopublicação, aumentando as lutas coletivas
e assuntos que antes eram, muitas vezes, negados às mulheres, como, por exemplo, o aborto legal
e as questões sobre os corpos e os desejos fora dos padrões. A partir desse momento, a cena dos
quadrinhos vem mudando impulsionada por essas novas histórias. Hoje em dia existem muitas
autoras produzindo materiais interessantes na América Latina, sendo muito difícil abarcar todas
elas.
Sobre essa questão, Acevedo (2019) elucida que a proliferação de publicações independentes e os
espaços de encontros e de circuitos de criação foram intensificados após os anos 2010. É também
nessa época que os blogs começam a declinar para dar lugar às redes sociais, às plataformas
digitais e às produções que exploram e combinam diferentes linguagens com a ideia de questionar
o senso comum estabelecido. Na Argentina, tudo isso foi impulsionado na cena dos quadrinhos
pelas diversas pautas do movimento feminista, como a luta pelo casamento igualitário (2010) e
pela Lei de Identidade de Gênero (2012), assim como o movimento Nenhuma a menos (2015) e,
posteriormente, a demanda pelo aborto legal, seguro e gratuito, que se instalaram na pauta da
mídia, ao mesmo tempo que o ativismo nas ruas e nas redes se tornava mais visível.
Desse modo, diferentes projetos e espaços tornaram-se ecos da obra de quadrinistas nos últimos
anos. Isso nos permitiu perceber uma pluralidade maior de discursos. Entre 2010 e 2013, a pró-
pria Acevedo esteve à frente da edição da revista “Clítoris”, uma publicação que tinha como objeti-
image/svg+xml
17
Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs
vo imprimir a produção de autoras que publicavam na internet, com o intuito de ser uma proposta
gráfica seguindo um viés feminista. A revista “Clítoris” teve quatro edições financiadas por um
edital que premiou dez projetos de
nuevas revistas culturales
(Secretaria de Cultura de la Nación,
Argentina, 2010) e, logo depois, se associou à editora independente Hotel de las Ideas, com quem
publicou duas antologias em formato de livro:
“Clítoris: Sex(t)ualidades em Viñetas” (2014), e
“Clítoris: Relatos Gráficos para Femininjas” (2017). Assim, muitos são os nomes de quadrinistas
argentinas na atualidade que tratam sobre questões referentes à corporalidade, à sexualidade,
às práticas de resistência e a questões relacionadas ao gênero. Entre elas podemos citar Lucía
Brutta (1986), Mariana Salina e Nacha Vollenweider (1983), Effy Mía (1988-2014), Covvabunga,
Femimutancia (1989), Natalia Novia e China Ocho (1989) e muitas outras (Acevedo, 2020).
De acordo com Acevedo (2019), Effy Mía é o pseudônimo de Elizabeth Mía Chorubczyk. Nascida
em corpo masculino, iniciou seu tratamento aos 21 anos. A quadrinista faleceu prematuramente
em 2014, o que impactou o ativismo local que homenageou suas lutas. Ela era uma artista perfor-
mática e cartunista que capturou o processo de redesignação de sua identidade autopercebida e
sua luta contra o sistema médico em seu trabalho artístico. Em 2011, o projeto performático que
realizou foi registrado no blog Nunca serás mujer em resposta aos que desacreditavam da sua
experiência ou negavam sua identidade. No mesmo ano, ainda sem documentos que constassem o
sexo feminino e o seu nome social Elizabeth, a quadrinista começou a desenhar a “TRANSita”, uma
série de charges e HQs sobre a sua transgeneridade e a reação das pessoas à sua aparência ambí-
gua, a violência do maschismo e da transfobia. As suas lutas também estiveram bastante ligadas à
despenalização do aborto e à busca pela igualdade de gênero.
Imagem 10
– HQ de Effy Mía
Fonte: https://revistageni.org/05/a-identidade-mutante-de-effy-mia/
image/svg+xml
18
Ana Paula Oliveira Barros
Feminutancia é o pseudônimo de Julia Inés Mamone, nascida em 1989. A quadrinista participou
de diversas fanzines e antologias. Entre suas obras estão “Alienígena”, “Piedra Bruja” e “Banzai”.
Nessa última, a artista expõe sua intimidade de forma bruta, mas ao mesmo tempo amorosa, que
vão desde situações cotidianas até situações surreais com o intuito de traçar uma crônica de ser
uma pessoa não-binária. Diferente das suas obras anteriores, em “Benzai”
,
a quadrinista
não uti-
liza do artifício de fantasias de monstros para aliviar as dores da personagem, agora ela aparece
exposta e pronta para enfrentar os seus traumas sociais. Já China Ocho é o pseudônimo de Carla
Ochoa, arquiteta formada pela UBA e ilustradora autodidata. Desde 2011 ela atua como professora
universitária e também se dedica à ilustração freelance para diferentes agências de publicidade e
tatuagens em seu estúdio pessoal. A quadrinista já participou de diversos eventos de quadrinhos
e publicou por conta própria a fanzine “Valiente” em 2018. Suas ilustrações mais pessoais apre-
sentam questões relacionadas ao feminismo, à corporalidade, à autoestima, às práticas de resis
-
tências e às relações humanas por meio de um humor ácido e um traço grotesco (Acevedo, 2019).
Imagem 11
– HQ de Feminutancia
Fonte: https://www.pagina12.com.ar/335325-banzai-una-novela-grafica-sobre-ser-no-binarie
Imagem 12
– HQ de China Ocho
Fonte: https://www.telam.com.ar/notas/202009/515769-revista-fierro-digital-carla-ochoa.html
image/svg+xml
19
Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs
No Brasil, também houve um grande aumento da produção no ambiente online e a organização de
grupos de mulheres que desejavam discutir as questões de gênero e as HQs. Como exemplo, pode-
mos citar o site Lady’s Comics, o grupo Inverna, o Projeto XXX, o site Mina de HQ, que por meio de
financiamento coletivo também edita a revista com o mesmo nome
com a participação de diversas
quadrinistas independentes. Essa movimentação tem colaborado para a visibilidade de muitas
produtoras de HQs brasileiras, entre elas Chiquinha (1984), Gabriela Masson (1989), Aline Lemos
(1989), Sirlanney (1984), Benê Oliveira, entre outras. Assim como na Argentina, esse movimento
coincide com as mobilizações das lutas pela igualdade de gênero e as denúncias de abusos contra
as mulheres. Porém, no caso do Brasil, essas lutas se deram principalmente por meio das redes
sociais, pelo uso das hashtags, que são palavras-chave ou termos associados a uma informação,
tópico ou discussão que se deseja indexar de forma explícita nas redes sociais, #meuamigosecreto,
#meuprimeiroassedio, entre outras, em que as mulheres denunciavam seus agressores.
O campo do humor foi um dos mais importantes em trazer críticas sociais e uma discussão do
feminino nas HQs ao redor do mundo, e isso não se deu de forma diferente no cenário nacional.
Chiquinha, pseudônimo de Fabiane Longona, é um exemplo de quadrinista que utiliza do humor
para fazer suas críticas em relação aos papéis designados às mulheres na sociedade.
Nascida em
Porto Alegre e formada em jornalismo, ela é também cartunista e ilustradora, e, em suas obras,
publicadas num site, a artista critica as concepções de mulher que a vinculam ao romantismo, ao
desejo pela família e ao cuidado com o corpo, ao mesmo tempo em que discute as influências dos
padrões de beleza na autoestima feminina. Toda essa crítica é feita por meio de personagens cria-
das com traços grotescos e que ostentam um padrão bem longe do idealizado como belo.
Figura 13
– Desenho de Chiquinha
Fonte: https://www.facebook.com/afabianelangona/
Gabriela Masson é uma quadrinista brasiliense que usa o pseudônimo LoveLove6. Na sua fanzine
autobiográfica, intitulada “A Ética do Tesão na Pós-Modernidade”, e produzida de forma artesanal
em 2013, é possível se deparar com um tipo de diário sexual, com relatos íntimos de confissões
image/svg+xml
20
Ana Paula Oliveira Barros
e reflexões sobre liberdade sexual, amor romântico, amor livre e monogamia. Segundo a própria
Gabriela Masson (2016), essa produção é feminista e tem como intuito desafiar discursos hetero
-
normativos e questionar o patriarcado. Já sua série de HQs “Garota Siririca”, também produzida
de forma independente e disponibilizada por meio da mídia digital, conta a história de uma garota
viciada em masturbação, suas aventuras eróticas e seu relacionamento com as amigas por meio de
uma narrativa bem-humorada. Para Masson (2016), o principal objetivo desse trabalho é estimu
-
lar a discussão entre mulheres e sociedade a respeito da masturbação e da sexualidade femininas,
por meio de uma abordagem didática. A autora ainda destaca que tinha como intuito explorar
o tema da sexualidade por meio de uma perspectiva feminista, retirando dos corpos femininos
padrões socialmente construídos que geram repressão sexual. Essa HQ pode ser compreendida
“como uma produção de pornografia feminista, ou de pós-pornô, no sentido de representar visual
e explicitamente relações sexuais e genitais, mas cuja atmosfera é talvez satírica, seguramente
crítica, em vez de erótica” (Masson, 2016, p. 60). É notório que a pornografia feminista se faz pre
-
sente na HQ “Garota Siririca” por meio de um discurso sobre os corpos e as sexualidades diferente
daquele retratado pela indústria pornográfica heteronormativa. As diversas personagens que apa
-
recem na HQ possuem características físicas, personalidades e orientações sexuais que constroem
identidades destoantes do padrão pornográfico machista.
Figura 14
– HQ “Garota Siririca” de Gabriela Masson
Fonte: http://ladyscomics.com.br/vlog-hqs-e-visibilidade-lesbica/gs64-w
image/svg+xml
21
Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs
Aline Lemos é outra quadrinista brasileira que trata também de temáticas diversas acerca do em
-
poderamento feminino e produz suas HQs de forma independente por meio de plataformas di-
gitais. Aline nasceu em Belo Horizonte e produz seus quadrinhos desde 2013. Hoje em dia ela é
colaboradora do portal Lady’s Comics e participa dos coletivos de artistas Zinas e 100 Têtes (Via-
na, 2016). Em sua HQ “Melindrosa”, por meio de um traço simples, mas bastante vivos e coloridos,
encontramos personagens com diferentes tipos de corpos e diferentes identidades de gênero, e é
possível perceber o destaque dado pela quadrinista ao prazer e ao consentimento feminino, por
meio de relações não necessariamente heteronormativas. Sendo importante citar que a narrativa
presente em Melindrosa apresenta uma abordagem, por vezes, cômica.
Figura 15
– HQ “Melindrosa” de Aline Lemos
Fonte: http://filfelix.com.br/2017/03/especial-melindrosa-folhetim-erotico-politico-fantastico-do-seculo-xxi.html
Por fim, a última quadrinista brasileira a ser trazida, de muitas que poderiam ser citadas, é a per
-
nambucana Bennê Oliveira. Ela é também artista plástica, ilustradora e criadora da página do Ins
-
tagram intitulada Levemente insana, na qual produz tirinhas sobre temas cotidianos, e muitas
vezes autobiográficos, sobre o dia a dia de uma família suburbana. Seu trabalho já fez parte de pu
-
blicações como Mina de HQ, revista Continente e Piauí. Entre os vários temas que trabalha, está a
discussão acerca do racismo e da negritude no Brasil. Também por meio de algumas de suas obras,
a artista traz a realidade das trabalhadoras domésticas, por meio de uma forte crítica e reflexões
sociais. O aprofundamento dessas pautas nos trabalhos de Bennê tem o intuito de promover e
buscar atitudes mais igualitárias no pensamento social coletivo. Essa abordagem trazida pela qua
-
drinista, que trata do cotidiano de muitas periferias do país, denuncia e nos faz refletir as realida
-
des violentas, que muitas vezes estão permeadas por um discurso normalizador, e, na maior parte
das vezes, são silenciadas por uma questão de medo ou ignorância. Desse modo, as HQs de Bennê
são marcadas pela crítica à diferenciação racial e à subalternização dos corpos negros, ao assumir,
muitas vezes, o exagero como tática de composição artística.
image/svg+xml
22
Ana Paula Oliveira Barros
Imagem 16
– HQ de Bennê Oliveira
Fonte: https://minadehq.com.br/mina-convida-laura-athayde/
Nas obras das quadrinistas brasileiras e argentinas abordadas, podemos perceber que o caráter
ficcional das identidades é trazido à tona, assim como o questionamento da manutenção dos pro
-
cessos de exploração que tentam se justificar com base nos discursos coloniais hierarquizantes.
Por meio da apropriação estética, essas artistas criam personagens que assumem formas corpo-
rais codificadas pelo olhar ocidental como deformidades e, assim, desestabilizam os cânones de
beleza feminina, fundamentados em parâmetros eurocêntricos. Fica indubitável nas HQs dessas
quadrinistas o que Lugones (2014) aponta como uma operação de recusa às denominações oci-
dentais, que a autora expõe como “uma política de resistência, rumo à libertação”, visto que, “em
nossas existências colonizadas, racialmente gendradas e oprimidas, somos também diferentes da-
quilo que o hegemônico nos torna” (Lugones, 2014, p. 940).
Conclusão
Com relação às mulheres produtoras de HQs na América Latina, principalmente no Brasil e na
Argentina, que tratam sobre sexualidades, corpos, questões de gênero e raça em suas obras,
elas o fazem, principalmente, de forma independente, por meio de mídias digitais, com o in-
tuito de desconstruir certas verdades patriarcais e colonizadoras acerca desses temas. É im
-
portante destacar que as HQs trazidas correspondem a uma pequena parte do que se pode
compreender como a produção de quadrinhos feministas por parte das mulheres latino-a-
mericanas, e apenas elas não são capazes de abranger a complexidade característica desse
image/svg+xml
23
Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs
território com suas contradições e especificidades históricas, políticas e culturais em relação
aos discursos sobre o gênero.
O que se objetivou ao longo do trabalho foi compreender como se dá as construções históricas dos
discursos que têm definido o gênero por meio de um imaginário carregado de padrões opressivos
e heranças coloniais, que reduzem os significados sociais das mulheres. Nas HQs apresentadas, os
corpos femininos não são pensados como um território passivo nos quais se exercem relações de
poder, mas, sim, como criadores de subjetividades ativas e que subvertem os discursos de femini-
lidades estáveis da sociedade patriarcal. As produções dessas quadrinistas colaboram com novos
discursos visuais a partir de múltiplas vivências corporificadas, e rompem com a lógica objetifica
-
dora que marca hegemonicamente os corpos das mulheres, ao mesmo tempo em que convertem
seus gestos criativos em ação política.
Sendo importante ainda destacar que essas mulheres quadrinistas possuem um discurso basica-
mente humorístico ou grotesco para tratar das temáticas, utilizando traços simples ou distorcidos
como forma mais viável de desconstruir os discursos hegemônicos. Isso se dá porque o campo do
humor sempre foi um dos mais importantes em trazer críticas sociais e uma discussão do femi-
nino nas HQs (Barros, 2017) e o grotesco pode ser compreendido como um signo afinado às ima
-
gens do feminino dissidente (Ruso, 2000). Para Mary Russo, em seu livro “O grotesco feminino”
,
de 2000, a distinção entre o corpo grotesco e o corpo clássico está no centro da crítica feminista
a uma cultura que objetifica e normatiza a magreza, a juventude e os padrões eurocêntricos de
beleza. Assim, nas HQs dessas quadrinistas latino-americanas, o grotesco pode ser compreendido
como o deslocamento de um feminino normatizado, assim como também é um recurso usado para
a produção de um humor subversivo, com recorte de gênero.
Referências
Acevedo, Mariela Alejandra.
Nosotras contamos: un recorrido por la obra de autoras de historieta y
humor gráfico de ayer y de hoy
. 1ra edición, Buenos Aires, 2019.
Acevedo, Mariela Alejandra. Nosotras contamos. Notas em torno a construir genealogía feminista en el cam
-
po de la historieta y el humor gráfico (Argentina, 1933-2019).
Tempo e Argumento
. Florianópolis, v.12,
n.31, e0106, set./dez. 2020.
Barros, Ana Paula Oliveira.
Homens e Mulheres produtores de HQ: discursos sobre o corpo e a sexu-
alidade da mulher na Indústria Cultural.
Dissertação (Programa de pós graduação em Antropologia),
Universidade Federal de Sergipe, 2017.
Boff, Ediliane de Oliveira.
De Maria a Madalena: representações femininas nas histórias em quadri-
nhos
. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2014.
Borin, Carla Vieira.
A presença do corpo feminino como objeto na arte contemporânea
. Dissertação
(Mestrado em Artes Visuais) – Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade de Santa Ma
-
ria, Santa Maria, 2010.
Cunha, Jaqueline dos Santos.
A representação feminina em Mulher Pantera e Mulher Maravilha
. Disser-
tação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Universidade Federal de Goiás, Catalão, 2016.
Dantas, Daiany Ferreira.
Sexo, Mentiras e HQ: representação e auto-representação das mulheres nos
quadrinhos
. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006.
Dantas, Daiany Ferreira. Marguerita Fahrer: A invenção da Mulher Moderna nos Quadrinhos Brasileiros dos
anos 1970.
XV Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste
, Mossoró, 2013.
Foucault, Michel.
A ordem do discurso
. São Paulo, Loyola, 1996.
image/svg+xml
24
Ana Paula Oliveira Barros
Foucault, Michel.
Microfísica do poder
. São Paulo: Graal, 1986.
Freitas, Mylena Godinho de; Mendonça, Renato do Carmo. Espaços femininos e femininos possíveis na arte
latino-americano do início do século XX.
Desvio: Revista da graduação eba/UFRJ
, Edição Especial III
PEGA, mar. 2020.
Gluzman, Georgina G. “
Linhas convergentes: apontamentos sobre as artistas latino-americanas entre os sé-
culos 19 e 20”.
In: Pedrosa, Adriano; Carneiro, Amanda; Mesquita, André (Orgs.).
Histórias das mulheres,
histórias feministas: antologia
. São Paulo: MASP, 2019.
Gonzales, Lélia (1988). “Por um feminismo afro latino-americano”. In: Pedrosa, Adriano; Carneiro, Amanda;
Mesquita, André (Orgs.).
Histórias das mulheres, histórias feministas:
antologia. São Paulo: MASP, 2019.
Loponte, Luciana Gruppelli. Sexualidades, artes visuais e poder: pedagogias visuais do feminino.
Revista
Estudos Feministas
. Vol. 10, n. 2, jul. 2002.
Lugones, Maria. Rumo a um feminismo descolonial.
Revista Estudos Feministas
. Vol. 22, n. 3, Florianópo-
lis: set./dez. 2014, p. 935-952.
Luyten, Sonia M. Bibe. A mulher e as histórias em quadrinhos: sua produção e retratação no Ocidente e no
Oriente.
Anais eletrônicos da 1o Jornadas Internacionais de Quadrinhos
, USP/São Paulo, 2011.
Masson, Gabriela Teixeira.
Projeto Pedagógico de formação da sexualidade da mulher e a Garota Siriri-
ca
. TCC (Graduação em Artes Visuais) – Instituto de Artes da Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
Nochlin, Linda (1974). “Como o feminismo nas artes pode implementar a mudança cultural”. In: Pedrosa,
Adriano; Carneiro, Amanda; Mesquita, André (Orgs.).
Histórias das mulheres, histórias feministas: anto-
logia
. São Paulo: MASP, 2019.
Nochlin, Linda.
Por que não houve grandes mulheres artistas?
. São Paulo: Edições Aurora, 2016.
Pollock, Griselda.
What´s wrong with images of women?
. Screen Education, n. 24, 1977, p. 25-33.
Russo, Mary.
O grotesco feminino: risco, excesso e modernidade
. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti; Dorotinsky, Deborah; Luca, Maira de. Editorial: Mulheres criadoras na Amé
-
rica Latina: o desafio de sintetizar sem singularizar.
Artelogie
, n. 5, out. 2013.
Trizoli, Talita. O feminismo e a arte contemporânea – considerações.
17 Encontro Nacional da Associação
Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
, Florianópolis/SC, 2008.
Wanderley, Olga da Costa Lima. Corpo, potência e significação na fotografia feminista latino-americana.
Anais do II Colóquio de Fotografia da Bahia
, v.1, n. 1, nov. 2018.
Viana, Germana. As quadrinistas do Social Comics.
Ladyscomics
, dez/2016. Disponível em: http://lady-
scomics.com.br/as-quadrinistas-do-social-comics. Acesso em ago. 2017.
image/svg+xml
25
Resistências aos discursos hegemônicos nas HQs
Resistance to hegemonic
discourses in comics: the look of Latin
American comic artists about gender and
sexualities
Abstract:
In Western societies, both women’s bodies and
sexualities were represented for a long time in ide-
alized ways based on the values of a patriarchal
society, and this was also reflected in comic books.
However, the research develops the hypothesis that
important reinventions of the meanings attributed
to bodies and sexualities associated with the fem-
inine are taking place in the field of comics. Thus,
the main objective of this research is to investigate
how, in recent decades, some comic artists, main-
ly Latin American ones, have approached female
bodies and sexualities in their works, adopting dif-
ferent strategies of resistance to gender coloniality
and to the patriarchal, racist and Eurocentric dis-
courses around the idea of hegemonic femininity.
Keywords:
Comics. Women’s bodies. Sexualities.
Gender.
Resistencias a los discursos hegemónicos
en historietas: la mirada de las autoras de
historietas latinoamericanos sobre género
y sexualidades
Resumen:
En las sociedades occidentales, tanto el cuerpo
como la sexualidad de la mujer fueron representa-
dos durante mucho tiempo de formas idealizadas
basadas en los valores de una sociedad patriarcal,
y esto también se reflejó en las historietas. Sin em
-
bargo, la investigación desarrolla la hipótesis de
que en el campo de la historieta se están produ
-
ciendo importantes reinvenciones de los significa
-
dos atribuidos a los cuerpos y las sexualidades aso-
ciadas a lo femenino. Así, el objetivo principal de
esta investigación es indagar cómo, en las últimas
décadas, algunos dibujantes de historietas, prin-
cipalmente latinoamericanos, han abordado los
cuerpos y las sexualidades femeninas en sus obras,
adoptando diferentes estrategias de resistencia a
la colonialidad de género y al patriarcado, racista y
discursos eurocéntricos en torno a la idea de femi-
nidad hegemónica.
Palabras clave
: Historietas. Cuerpos femeninos.
Sexualidad. Género.
HISTÓRICO
Recebido: Janeiro/23
Parecer: Março/23
Parecer: Abril/23
Aceito: Abril/23
Revisado Autor: Abril/23
Revisão Gramatical/Ortográfica e ABNT: Maio/23
Revisado Autor: Junho/23
Diagramação: Junho/23
Publicado: Junho/23
Equipe Editorial Revista TOMO envolvida no processo editorial deste artigo
Marina de Souza Sartore (Editora-Chefe)
Gabriela Losekan (Editora assistente júnior)