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Revista TOMO
São Cristóvão, v. 42, e18761, 2023
Data de Publicação: Junho/2023
Dossiê
Memória, narrativas e resistência com as mulheres Xokó
1
Ugo Maia Andrade
2
Ana Carolina de Assis Marinho Silva
3
Resumo:
O recorte etnográfico sobre o povo Xokó, até o momento, pouco apresenta as narrativas femininas sobre o
papel das mulheres na história das lutas de retomada do território indígena. No processo de uma retomada
da retomada, quando as mulheres retornam à memória desse tempo, encontramos narrativas outras que
estão apenas na oralitura. Ancorados no trabalho da memória da luta pela terra, entrelaçando pesquisa
etnográfica e documental – além do audiovisual como ferramenta de contato e interlocução com a memória
das mulheres Xokó – este estudo deságua na intersecção entre gênero e construção da memória coletiva,
compreendendo formas de resistência e protagonismo das mulheres, desde dentro das narrativas Xokó.
Palavras-chave:
Mulheres Xokó. Retomada. Memória. Etnografia feminista. Documentário etnográfico.
1. Os Xokó enquanto processo
Os Xokó contemporâneos são resultado de processos históricos, rotinas coloniais, violências e
protagonismo indígena que culminaram, no final dos anos de 1970, em um discurso social sobre a
diferença e em uma nova forma de autopercepção adotados pela população vivente na ilha de São
Pedro e adjacências. Até então, o cenário era de uma massa camponesa mesclada com descenden
-
tes dos antigos habitantes da missão da ilha de São Pedro, uma vez que vigorava ainda a ideia de
desaparecimento pela mistura dos indígenas que compunham tal assentamento, conforme será
abordado em outros momentos neste artigo. Como se viu, foi a partir da presença de alguns atores
de apoio ligados a uma ala progressista da igreja católica, sob o auspício da Diocese de Propriá/
SE, que a autopercepção genérica de caboclos, mais especificamente os “caboclos da Caiçara”, co
-
meçou a dar lugar a uma identidade particular associada à missão local.
Esse movimento, que vai da autopercepção à identidade, do genérico ao particular, ou do cultural
-
mente difuso ao coletivo delineado em termos de fronteiras sócio-simbólicas, conduz do “caboclo
1
Este texto é uma versão revisada e ampliada dos trabalhos apresentados na 33ª Reunião Brasileira de Antropologia e no IV
Seminário Nacional de Sociologia da Universidade Federal de Sergipe.
2
Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas. Departamento de Ciências Sociais. São Cristó
-
vão, Sergipe, Brasil. E-mail: ugomaia@academico.ufs.br. https://orcid.org/0000-0002-0359-3214.
3
Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas. Departamento de Ciências Sociais. São Cristó
-
vão, Sergipe, Brasil. E-mail: anamarinhoams@gmail.com. https://orcid.org/0000-0003-3904-4732
Dossiê
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Ugo Maia Andrade; Ana Carolina de Assis Marinho Silva
ao índio”, uma das grandes mobilizações surgidas no seio das massas camponesas nordestinas a
partir dos anos de 1920, mas intensificadas nas décadas de 1980 e 1990 do último século, a mobi
-
lizações que ficaram conhecidas como emergências étnicas, sociogêneses, ressurgências (na pre
-
ferência nativa) e que foram estudadas pela antropologia com recurso, especialmente, à teoria dos
grupos étnicos e da etnicidade (Barth, 1969). Assim, populações camponesas, quase sempre com
vínculos de memória com alguma missão indígena histórica local, praticantes de ritos associados
ao universo mágico-religioso atinente ao Nordeste indígena, em simbiose com o catolicismo popu
-
lar, e sabedoras de sua diferença, ascenderam a novas existências sociais impulsionadas pela pos
-
sibilidade da recomposição dos territórios das léguas em quadra das antigas missões, fenômeno
que transcorreu a partir da memória dos limites de tais léguas em quadra, comprovando a íntima
associação entre território e identidade (Tilley; Cameron-Daum, 2017).
Voltando na linha historiográfica da missão da ilha de São Pedro e seus antigos habitantes, Hohen
-
thal Jr. (1954, p. 96) atesta que a primeira notícia sobre os Ceocoses data de 1713 e ocorre por
conta da revolta indígena na Ribeira do Pajeú, quando indígenas foram perseguidos pelos portu
-
gueses e parcialmente aldeados pelo Fr. Vital de Frescarollo conjuntamente aos Umães e Vouvês
no Olho d’Água da Gameleira, Alagoas (Andrade, 2008, p. 73). Por outro lado, Dantas e Dallari
(1980) argumentam que ainda no século XVII, e no seguinte, os Ceocoses seriam transferidos da
serra de Pão de Açúcar, em Alagoas, para a missão da ilha de São Pedro, Sergipe, onde já estavam
os Romaris, grupo que seria autóctone da região. Assim, os Ceocoses já estariam presentes em do
-
cumentação do século XVII. Confrontando Dantas e Dalari (1980), Regni (1988, p. 217) indica que,
no século XVII, na missão de Porto da Folha, comandada por Capuchinhos, estavam inicialmente
indígenas Aramuru e não cita os Romaris, possivelmente misturados aos Aramuru que, devido à
participação na luta contra os holandeses, ao lado dos portugueses, foram agraciados pelos senho
-
res do Morgado de Porto da Folha, de propriedade de Pedro Gomes, com terras e abrigo (Figueire
-
do, 1981, p. 87), tornando-se, assim, a principal referência indígena na região.
No século seguinte, os Aramuru foram deslocados para o aldeamento de Pacatuba a mando do
neto de Pedro Gomes, incomodado com a missão, com os indígenas e seu missionário. Todavia, a
razão concreta da expulsão dos indígenas e dos missionários para Pacatuba deve ter sido o anda
-
mento dos trabalhos de medição das terras doadas aos Aramuru por Pedro Gomes, ato que mais
tarde seria anulado por seu neto por meio do deslocamento dos indígenas, expediente comum e
que comprovava o alto poder de influência que grandes sesmeiros tinham sobre a administração
colonial. Mas os Aramuru também estavam na Serra de Itabaiana, refugiados, e desse grupo não
deslocado para a missão de Pacatuba não se teve mais notícias (Figueiredo, 1981).
No que concerne aos Ceocoses, sabemos que espalhavam-se do sul do Ceará até às margens do
baixo rio São Francisco, no território Cariri, mas foram empurrados pelas frentes “civilizatórias”
para zonas de refúgio localizadas nas serras circunvizinhas (Hohenthal Jr., 1960a, 1960b), sendo
aldeados na missão da ilha de São Pedro do Porto da Folha, fundada em 1672, provavelmente
pelo capuchinho francês Anastácio de Audierne, a fim de abrigar os indígenas Aramuru (Andrade
et al., 2018, p. 170), confirmando a tese de Regni (1988) de que esses teriam sido os primeiros
habitantes da região da margem direita do baixo Rio São Francisco. As terras da missão foram o
citado prêmio que lhes concedeu Pedro Gomes pela participação dos Aramurus nas milícias contra
tropas holandesas (Dantas; Dallari, 1980).
Já no que concerne à classificação linguística, dentro da literatura etnológica clássica que mencio
-
na o Nordeste brasileiro, Lowie (1946), corroborando Nimuendaju, acredita que os povos do inte
-
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Memória, narrativas e resistência com as mulheres Xokó
rior dessa região, genericamente classificados por Tapuia, falavam línguas nem sempre associadas
ao tronco Macro-Jê, sendo algumas delas isoladas, a exemplo dos Fulni-ô, Xucurú, Pankararú, Tuxá
e Natú e Xocó (Andrade, 2008, p. 68). Lowie ainda alerta que classificações linguísticas e socioló
-
gicas não são forçosamente coincidentes e, sendo assim, é necessário distingui-las a fim de afastar
confusões.
Pouco tempo após a criação da missão da ilha de São Pedro, de comando capuchinho quase ao
longo de toda a sua vigência, deu-se início à mistura étnica que caracterizaria a política indigenista
colonial, fazendo convergir em um território diminuto com indígenas de diferentes missões, além
de escravizados e colonos pobres, favorecendo o êxodo indígena para as serras e aldeias vizinhas.
Assim, no século XIX os Ceocoses e Romari aparecem como os únicos indígenas que permanece
-
ram na ilha de São Pedro (Dantas, 1997) e após a morte do último missionário da missão suas
terras mais férteis foram ocupadas por poderosas famílias locais, restando para os indígenas a ilha
de São Pedro, já parcialmente ocupada por colonos pobres. Esses ataques provocaram mais uma
leva de migração indígena e contribuíram para novas relações interétnicas, a exemplo da interação
com a população do quilombo do Mocambo, pouco acima da ilha de São Pedro.
Em 1887 as terras que constituíam a missão da ilha de São Pedro foram transferidas, por Decreto
oficial, para a Câmara Municipal de Porto da Folha para, na sequência, serem arrendadas, sobran
-
do apenas a ilha de São Pedro, pouco fértil (Dantas; Dallari, 1980). Seguiram-se tentativas de re
-
composição territorial por famílias indígenas que permaneceram no local ou emigraram para a al
-
deia de Porto Real do Colégio (Ferrari, 1956), então terra dos indígenas Kariri que, somente cinco
décadas após a chegada das primeiras famílias Xokó, na virada dos séculos XIX e XX, atualizaram
seu etnônimo para Kariri-Xokó. Por conta desse consórcio, as mobilizações nos anos de 1970 e
1980 contra a ocupação da família Brito, principal grileira do território Xokó, contaram com a aju
-
da fundamental de lideranças Kariri-Xokó de Porto Real do Colégio, além de líderes locais da igreja
católica vinculados à Comissão Pastoral da Terra (Andrade et al., 2018, p. 170-171). A presença
dessa rede de apoio, constituída por professores e estudantes da Universidade Federal de Sergi
-
pe e missionários da igreja católica, em um cenário de disputas entre forças sociais antagônicas
(indígenas Xokó, poder público e fazendeiros), possibilitou a ação da Funai visando a instauração
do processo de regularização fundiária do território pleiteado, processo concluído em 1991 com a
homologação da Terra Indígena Caiçara/Ilha de São Pedro.
A luta pela reconquista da autonomia territorial constitui hoje o início da história Xokó contempo
-
rânea e possui grande impacto nas representações desse coletivo indígena, sendo ela conhecida
como a “luta da retomada”, que instituiu um novo modelo de liderança e de organização social
(Souza, 2016). Dada à sua dimensão e importância simbólica na moderna história Xokó, a “luta da
retomada” vem sendo transmitida de diferentes maneiras para as gerações subsequentes, incluin
-
do uma dramatização – sob a forma de peça teatral encenada por jovens Xokó – que costumava
acontecer todo dia 9 de setembro com o intuito de contar a história Xokó da luta pela terra (Souza,
2011, p. 31).
Simultaneamente às mobilizações, visando transmitir sua história moderna, os Xokó manifestam
modos especiais de relação com a fauna e a flora visíveis, objetivamente, na manutenção de uma
extensa zona de mata de Caatinga em seu território, fruto da lenta recuperação da cobertura ve
-
getal nativa degradada pela agricultura extensiva e criação de gado praticadas pelos antigos pro
-
prietários das fazendas Belém, Surubim e Maria Preta (GATI/FUNAI/ANAI, 2017). No tempo atual,
a área de Caatinga em recuperação representa 81% da TI Caiçara/Ilha de São Pedro e é utilizada
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Ugo Maia Andrade; Ana Carolina de Assis Marinho Silva
especialmente como pastagem para bovino e para fins extrativistas e rituais, com destaque para
a realização do Ouricuri (GATI/FUNAI/ANAI, 2017, p. 23). A Caatinga possui, portanto, significa
-
tiva importância para os Xokó, indo além de seu uso econômico: “Nas ações de cuidados com o
território, as matas têm grande importância para os Xokó. A Caiçara é considerada a ‘Reserva’ do
território, onde a caatinga vem se recuperando e dela se tira apenas o necessário para o uso do
povo Xokó” (GATI/FUNAI/ANAI, 2017, p. 60).
Assim, temos uma trajetória coletiva que inicia no tempo primordial da missão da ilha de São Pedro,
tempo esse sintetizado na figura do frei Doroteu de Loreto, o último missionário e lembrado por coibir
ritos hereges (como o ouricuri, na memória Xokó) executados às escondidas na mata; segue pela su
-
pressão da história indígena local, atestada pela historiografia oficial a sustentar a inexistência indíge
-
na e, assim, justificar o fim da missão da ilha de São Pedro; passa pelas mobilizações locais dos anos de
1970 e 1980, que, contando com importante suporte de atores da igreja católica e da Universidade de
Sergipe, revertem o esquecimento e alçam os “caboclos da Caiçara” a indígenas Xokó, sujeitos de direi
-
tos territoriais legítimos; até chegar nas atuais mobilizações de “retomada da cultura” (Souza, 2016).
2. Mulheres e resistência indígena no Nordeste
Dessa forma, o processo de colonização no Brasil e o rastro que o sucede criaram e criam dinâmi
-
cas de intersecção com o universo indígena que influenciam no modo de existir desses povos. As
lutas indígenas estão integradas à constituição do território com base em memórias de territoria
-
lidade, traçando caminhos para uma autonomia pós-colonial dentro de um contexto de violências
complexas e avassaladoras, articuladas por meio da ambiguidade do Estado.
Tudo aquilo que não corresponde a uma filosofia cartesiana é considerado inferior. A invasão eu
-
ropeia subverte o solipsismo descartiano pela conquista dos outros povos nativos na América. É
a partir do encobrimento que a colonialidade suprime subjetividades. A invasão das Américas se
propõe como projeto de “descoberta” de um outro já pré-definido na “relação dialética entre o
europeu e o não-europeu” (Dussel, 1993, p. 7).
A colonização da vida cotidiana do índio é o primeiro processo europeu de modernização,
de civilização, de subsumir o outro como si-mesmo, mas agora não mais como objeto de
uma práxis guerreira, de violência pura (...) e sim de uma práxis erótica, pedagógica, cultu
-
ral, política, econômica (...) do domínio dos corpos (Dussel, 1993, p. 50).
É na exploração do contato que novas categorias hierarquizadas e dicotomizadas são impostas
e incorporadas às cosmovisões nativas, como índio/branco ou homem/mulher. “A imposição
dessas categorias dicotômicas ficou entretecida com a historicidade das relações, incluindo as
relações íntimas” (Lugones, 2014, p. 936), com impactos diferenciados para as mulheres. Para
Lugones (2014), tornar os colonizados seres humanos não era uma meta colonial, muito menos
reconhecer as mulheres. Dessa forma, “o sistema moderno colonial de gênero” também se dá na
“desumanização constitutiva da colonialidade do ser” (Lugones, 2014, p. 938).
A colonialidade trata a história como universal, mesmo essa sendo particular. As identidades e
memórias, então, vão se construindo no encontro e no conflito, produzindo hierarquias internas.
Essas hierarquias internas promovem interseccionalidades, a partir de marcadores que produ
-
zem experiências distintas. Essas identidades/categorias produzidas têm um lugar e um tempo
no espaço histórico, como propõe Oyêwùmí (2021) ao falar de gênero. Ela identifica o gênero
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Memória, narrativas e resistência com as mulheres Xokó
tanto como uma construção social quanto histórica. Para a autora, o “gênero” se inicia na história
a partir do período colonial.
Entre as mulheres indígenas situadas no Nordeste
4
, essas dinâmicas de intersecção as colocam em
uma encruzilhada ainda mais complexa, interseccionando etnia, raça, gênero, classe e regionalida
-
de. A partir da perspectiva de Crenshaw (2004), a interseccionalidade aborda a diferença dentro
da diferença e expõe as encruzilhadas de categorias jurídicas e simbólicas que alocam os atores
sociais comprimindo-os e oprimindo-os.
As demandas das mulheres indígenas atravessam os limites da luta pela terra e colocam em pauta as
especificidades. Questões como autonomia, articulação, participação, organização, violência, corpo,
reprodução, memória, parentesco, matrimônio e poder
5
provocam, a partir da década de 1980, uma
organização feminina indígena que dá início aos primeiros movimentos das mulheres indígenas
6
.
Apesar da maior parte dessas organizações se concentrar
na Amazônia (Sacchi, 2003), as mulheres
indígenas no Nordeste se integram ao movimento de articulação por meio de organizações nacio
-
nais, regionais
7
e locais. Segundo o levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), de 2020, foram
mapeadas 85 organizações de mulheres indígenas e sete organizações que possuem departamentos
de mulheres – a APOINME
8
, por exemplo, é uma delas – totalizando 92, presentes em 21 estados do
país. Dessas, 19 estão no Nordeste. As mulheres indígenas no Brasil passam assim a tecer uma rede
complexa de organização sociopolítica, galgando espaços, inclusive, dentro de pautas internacionais.
Como Sonia Guajajara, Célia Xakriabá e Glicéria Tupinambá que participaram da Conferência das
Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP26), entre 31 de outubro e 12 de novembro de 2021,
sendo consideradas “as reais lideranças em questões climáticas” (Alarcon, 2022, p. 01).
Entre as mulheres Xokó, que vivem na Terra Indígena Caiçara/Ilha de São Pedro, localizada no
Município de Porto da Folha, no Semiárido sergipano, à margem direita do rio São Francisco, não
é diferente. Elas são representadas pela Associação Indígena das Mulheres Xokó da Comunidade
Ilha de São Pedro (AMIX) e têm como representantes externas de liderança Karine Xokó, atual
comunicadora da APOINME, e Jocy Xokó, atual presidente da AMIX.
Durante esse processo de luta, muito se lê sobre o protagonismo masculino ou do coletivo Xokó
em si. Nomes como Apolônio Xokó, Paulo Acácio, Girleno Clementino e Raimundo Bezerra são
destaque na história desse povo. Mas…
3. Onde estavam as mulheres Xokó para a antropologia?
O recorte etnográfico sobre o povo Xokó
9
, até o momento, pouco apresenta as narrativas femininas
sobre o papel das mulheres na história das lutas do processo de retomada do território indígena.
4
Para diferenciação entre povos indígenas ‘do’ e ‘no’ Brasil, ver Viveiros de Castro (1999).
5
Como exemplos, ver Sacchi (1999, 2003), Souza (2007), Segato (2010), Fonseca (2015) e Dutra e Mayor
-
ga (2019).
6
Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (AMARN) e Associação das Mulheres Indígenas de
Taracuá, Rio Uaupés e Tiquié (AMITRUT) (Sacchi, 2003).
7
A atual representante do Departamento de Mulheres Indígenas da APOINME é Elisa Ramos Pankararu e
é quem leva, para a Articulação, as pautas de gênero.
8
Articulação dos povos e organizações indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo.
9
Como exemplos, ver Dantas (1980, 1997), Mota (2007), Barreto (2010), Santos Júnior (2011, 2016), Souza (2011), Souza
(2016) e Santos (2020).
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Ugo Maia Andrade; Ana Carolina de Assis Marinho Silva
O que está escrito sobre a “outra metade” (Paredes, 2014) desse povo revela apenas o protagonis
-
mo delas com a produção da cerâmica. Trabalho de total dominância delas, já que a participação
masculina nessa atividade estava restrita à coleta da matéria-prima, no caso o barro, para pro
-
dução dos objetos. O local onde estaria o melhor barro para produção também era indicado por
elas. Depois de produzida a cerâmica, ela era vendida em feiras nas cidades vizinhas, como Porto
da Folha, em Sergipe, e Porto Real do Colégio, em Alagoas. Nos textos, encontramos relatos sobre
o papel das louceiras, enfatizando que foi por meio da elaboração das panelas e outros utensílios
de barro, produzidos exclusivamente pelas mulheres, que o sustento da comunidade era mantido
no período de escassez, devido às lutas. Elas “vêem o trabalho com o barro como uma atividade
relacionada com os troncos velhos, coisa que os índios faziam desde o começo do mundo. Dessa
forma, associam a cerâmica aos índios e as suas origens” (Dantas, 1997, p. 29).
Já em campo, outros relatos aparecem e, assim, outras narrativas, que constam apenas nessa ora
-
litura, tomam forma.
Esse termo foi criado por Leda Martins (2003) e afirma que o corpo em per
-
formance narra uma história não grafada, constituindo, assim, uma oralitura. “Repertórios orais
e corporais, gestos, hábitos, cujas técnicas e procedimentos de transmissão são meios de criação,
passagem, reprodução e de preservação dos saberes” (Martins, 2003, p. 67) são considerados,
pela autora, ambientes de memória. A autora nomeia que os lugares de memória seriam biblio
-
tecas, museus e afins. Já os ambientes de memória são o corpo e a voz. Dessa forma, os próprios
corpos, e, no contexto desta pesquisa, os corpos femininos Xokó são repositórios não apenas de
memória singular, como coletiva. Entendemos então o corpo como via de narrativas.
Nesses corpos que falam de outra forma diferente da escrita, encontramos uma narrativa não gra
-
fada. Quem nos relata é Maria Helena, que aos 18 anos se ofereceu para acompanhar, até a cidade
de Porto da Folha,
a missionária Maria Amélia, que alguns chamavam de freira, na busca por uma
documentação importante para o processo de retomada. Esse documento estava em posse de frei
Angelino. Era uma viagem arriscada, pois a missionária estava visada pela polícia, assim como os
próprios Xokó.
Ela falou que tinha que buscar esse documento, mas não tinha ninguém para ir junto com
ela. Eu disse que iria. Ela até questionou e disse que tinha que falar com minha mãe primei
-
ro. Eu só disse pra ela não falar que a viagem era arriscada e que a polícia estava atrás dela,
que minha mãe ia deixar. Nós fomos… Na hora de voltar, aconteceu uma situação engraça
-
da. Eu fiquei esperando ela na beira do rio pra atravessar de barco, enquanto ela tinha ido
buscar um lanche. Foi aí que apareceu um amigo nosso que era Xokó, mas também policial.
Ela viu a aproximação de longe e veio correndo, pedindo para que ele não me prendesse,
que levasse ela, ao invés de mim. Ela ficou em estado de choque com medo que eu fosse
presa (risos). Foi aí que ele agarrou ela pelo braço e disse que também era Xokó. Na hora
foi tenso, mas depois rimos muito dessa situação. (Maria Helena Xokó, 63 anos. Entrevista
concedida em 24 de julho de 2022).
Apesar do relato constatar a importância que teve essa empreitada, ocorrida em um momento de
tensão na história Xokó, o silenciamento das histórias femininas nos revela, também, o contexto da
colonialidade. Uma invisibilidade não apenas das mulheres Xokó, mas também da mulher não-in
-
dígena que ajudou no processo da retomada, a agente pastoral Maria Amélia Leite. Segundo Ianara
Apolonio Xokó, principal interlocutora desta pesquisa e mestranda no PPGA-UFS, ela nunca teria
ouvido falar na presença da freira nesse tempo histórico. Apesar de o nome de Maria Amélia ser
recordado pelas mais velhas e mais velhos, como Dona Zezé, Dona Creuza, Prazeres e Seu Girleno.
Dessa forma, encontramos destacada na história escrita Xokó a presença, apenas, dos nomes dos
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Memória, narrativas e resistência com as mulheres Xokó
freis homens, já citados aqui anteriormente, responsáveis pelo engajamento dos indígenas na luta
pelo território. Isso demonstra uma sub-representação de narrativas específicas, as das mulheres.
Em contato informal e por e-mail, enviado em 13 de dezembro de 2022, para a professora Beatriz
Góis Dantas, importante referência bibliográfica sobre o povo Xokó, ela compartilhou que tem:
Apenas registros indiretos [sobre as mulheres Xokó], pois acompanhei, durante algum tem
-
po, atividades que na ilha eram exercidas por mulheres: a fabricação da cerâmica e a educa
-
ção escolar. O meu enfoque era outro. (...) Desde já adianto que
Maria Amélia Leite, uma
agente pastoral que teve
intensa atuação na ilha de São Pedro
e outras localidades da
região sanfranciscana, seria a pessoa certa para tratar do assunto. (Beatriz Góis Dantas.
Entrevista concedida em 13 de dezembro de 2022, grifos nossos).
Para Daniela Alarcon, em seu trabalho sobre gênero, mobilização e recuperação territorial entre
os Tupinambá da Serra do Padeiro, no sul da Bahia, “a laboriosa e geralmente invisível resistência
de gerações de mulheres deve ser colocada no centro do debate” (Alarcon, 2022, p. 19). Isso, por
-
que “alguns dos sofrimentos e lutas que dão corpo a tais narrativas se ligam especificamente às
experiências das mulheres.” (Alarcon, 2022, p. 05). As memórias das mulheres sobre a retomada
Xokó, assim como entre os Tupinambá da Serra do Padeiro, quando compartilhadas pelo coletivo,
se tornam um “idioma comum de mobilização.” (Alarcon, 2022, p. 06). Como quando os homens
também relatam que a sustentação financeira da aldeia, na época das lutas pelo território, se deu,
principalmente pela produção de cerâmica, atividade exclusivamente feminina. Além disso, é sem
-
pre colocado a participação delas como lideranças do campo mágico-religioso, no qual os Xokó, de
forma coletiva, acreditam que foi a principal frente de luta contra os fazendeiros locais.
Apesar disso, as falas das mulheres indígenas Xokó, interseccionadas pela colonialidade e pelo
patriarcado, também acabam por diminuir o valor de sua importância na narrativa coletiva. Ao
serem questionadas sobre qual o papel das mulheres nas lutas de retomada das terras, a maioria
respondeu que não estava na linha de frente e que por isso, talvez, não tivesse algo de importante
para compartilhar.
O papel da educação, do cuidado com as crianças e com os mais velhos, do zelo, da espiritualidade,
das rezas, da produção das louças e do cultivo do arroz, encabeçado por essas mulheres – como
a história de Tia Enoi, mãe do ex-cacique Girleno, personagem frequente das narrativas dos e das
mais velhas, por ter sido quem os ensinou a ler e a escrever, contragolpe essencial para a articu
-
lação com os documentos dos não-indígenas fazendeiros –, é muitas vezes considerado como um
trabalho subalterno da luta.
A somatória desses trabalhos tem sido conceituada por feministas marxistas como repro
-
dução social: um conjunto de tarefas essenciais para a continuidade de cada humano e da es
-
pécie, logo, da própria sociedade, e que o patriarcalismo designa como ‘trabalho de mulher’,
uma espécie de não trabalho invisibilizado (...) A desqualificação da mulher, mesmo na forma
do elogio à doçura e a outras virtudes ditas femininas, serve tanto para diminuir seu valor no
mercado de trabalho
[e na narrativa histórica]
como para permitir que os homens, em
abstrato, sintam-se autorizados a submetê-las (Moraes, 2022, p. 20, grifos nossos).
Assim como o marxismo feminista tem o intuito de expor o trabalho da mulher como um lugar
invisibilizado pelo sistema. O mesmo mecanismo opera ao colocar como bastidor a memória e a
performance ditas “da mulher” no campo de luta.
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Ugo Maia Andrade; Ana Carolina de Assis Marinho Silva
Tendo isso em vista, argumento que a construção do sujeito político coletivo que conduz
as retomadas está ancorada na capacidade de manutenção do grupo étnico ao longo do
tempo, empreitada para a qual as mulheres contribuíram amplamente, em grande medida
por meio de atos de cuidado. (...) mulheres dentro e fora do território desempenhavam atos
cotidianos, dirigidos principalmente a garantir boa saúde e proteção religiosa a seus paren
-
tes. (...) geralmente as mulheres é que são reconhecidas como os principais repositórios de
conhecimentos tradicionais nesses campos. (Alarcon, 2022, p. 8-9).
Em outro diálogo ocorrido no campo, na reunião de mulheres promovida pela AMIX
10
, no dia 24
de julho de 2022, Jocy Xokó, presidenta da Associação, relatou que, “infelizmente, a história da
mulher Xokó está apenas na memória da gente. Existem histórias que já foram perdidas com a par
-
tida das nossas mais velhas, como no caso de Tia Enoi”. Jocy ainda ressalta que já está mais do que
na hora das mulheres Xokó se reunirem para contar seus relatos e deixar o amparo mnemônico
feminino para as novas gerações.
4. “A gente vai sair, mas a terra é nossa”. Memória e cinema: modos de resistir e recontar
Antes do campo, mas principalmente a partir do campo etnográfico, foi possível perceber a pos
-
sibilidade da construção dessas memórias com imagens audiovisuais. A câmera chega em campo
como uma ferramenta de contato e interlocução com a memória das mulheres Xokó. Assim como
um diário de campo, o equipamento audiovisual se tornou alicerce da pesquisa. Nesse diálogo,
a imagem não apenas registra, mas também constrói, por si só, narrativa e memória. Para Elisa
Ramos Pankararu, “o cinema, como expressão de uma linguagem ocidental, seria a maneira mais
próxima de uma tradução da oralidade indígena”
11
. No intuito de buscar não deixar escapar pelas
fronteiras da escrita, as experiências sensoriais dessas mulheres, foi sugestionado, junto com elas,
construir um documentário.
Quando a presença do autor se tornou a garantia da autenticidade etnográfica, as imagens fílmicas
também se tornaram uma comprovação entre o estar lá e o estar aqui. Posteriormente, a chegada
do som sincronizado ao cinema etnográfico marca também a chegada da voz dos interlocutores
no material visual. A etnografia e o cinema acabam caminhando juntos e passam pelos mesmos
questionamentos quanto à autoria na pós-modernidade antropológica e cinematográfica.
Entre os povos no Nordeste, a elaboração das imagens também é um alicerce de luta. Já que o cor
-
po considerado indígena remete a um corpo mítico. As políticas de apagamento produzidas tanto
pelo Estado quanto pela Igreja entre essas comunidades flagelam um silenciamento do que é ser
indígena no Nordeste. As imagens produzidas por uma colonialidade do ver inferioriza racial e
epistemicamente, “a partir de regimes visuais da modernidade” (Barriendos, 2011, p. 41), o outro.
Essa colonialidade do ver menospreza ainda mais a história de mulheres indígenas no Nordeste,
que não condiz com o modo de representação mítico dos corpos indígenas. Afinal, “o imaginário
simbólico violento que aciona imagens estereotipadas dos povos indígenas é fomentado desde o
início da colonização” (Pinheiro, 2020, p. 164).
Aqui, o material audiovisual entra como suporte de uma retomada da narrativa das mulheres Xokó,
na própria história das lutas pela terra. Narrativas como a de Dona Zezé
12
, fiel escudeira de Tia Enoi,
10
Associação Indígena das Mulheres Xokó da Comunidade Ilha de São Pedro.
11
Comentário feito sobre as impressões iniciais desta pesquisa, durante a sessão 2 do GT 71, da 33ª Reunião Brasileira de
Antropologia, promovida pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), no dia 1º de setembro de 2022, online.
12
Entrevista concedida no dia 3 de agosto de 2022.
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9
Memória, narrativas e resistência com as mulheres Xokó
estavam sempre juntas. Dona Zezé é missionária, solteira e sem filhos, foi adepta da luta do povo
Xokó inspirada nas próprias ideologias libertárias. Ela compartilhou que quando os indígenas Xokó
decidiram retomar o território, 20 famílias deixaram as humildes casas da Caiçara e começaram a
viver na Ilha de São Pedro, sem estrutura alguma, embaixo das árvores que ali estavam, os chamados
“pé de pau”. Nesse momento de ocupação da Ilha, os Xokó souberam que um fronte de 300 policiais
estava indo em direção à Caiçara. “Todo mundo se reuniu, homem, mulher e criança, e a gente foi
defender a Caiçara contra os policiais”. Chegando lá, uma confusão se instaurou e o fazendeiro orde
-
nou que se separassem policiais de “caboclos”. “A gente achava que ia ser morto, eram 300 policiais
armados contra 20 famílias”, sendo majoritária a presença de mulheres e crianças.
Porém, uma parte dessa narrativa já foi escrita (Santos Júnior, 2016), o que não foi complementa
-
do é que “as mulheres e as crianças ficaram na frente dos homens, como um escudo”. Desarmados
de objetos físicos, Tia Enoi se armou da espiritualidade e estimulou todos a puxarem uma reza.
Ela soltou o primeiro verso de uma das principais orações que acompanha esse povo até hoje.
Uma reza para uma mulher, o Ofício de Nossa Senhora. Quando ela entoou o primeiro verso, todos
a acompanharam. “Eles baixaram as armas, tiraram os bonés e ninguém saiu ferido”, nas palavras
de Dona Zezé.
Com esse resultado inesperado, a liderança indígena – o Cacique Girleno, filho de Tia Enoi – é cha
-
mado para dialogar com o delegado e sua prisão é decretada. “A gente não ia deixar ele ser preso.
A gente ficou ao redor do carro da polícia dizendo que se ele fosse preso, a gente também ia”. Essa
performance produz outro efeito, Girleno é liberado. Aceitando voltar para a Ilha, todos retornam
sem ninguém ficar ferido. No entanto, duas outras personagens são as últimas a saírem da Caiçara,
foram elas Prazeres e Dadinha
13
. Prazeres relatou que as duas gritaram para os policiais: “a gente
vai sair hoje, mas a terra é nossa”, Dadinha complementou: “depois a gente ficou sabendo que na
delegacia disseram que os policiais não sabiam se a gente era corajosa ou doidas de enfrentar eles
(risos)”.
Enquanto os homens estavam combatendo os fazendeiros ou os policiais durante a trajetória de
luta, as mulheres se armavam dos ritos mágico-religiosos e, inclusive, creditam, ainda hoje, à espi
-
ritualidade o fato de nunca ter havido, nesse processo da retomada, derramamento de sangue en
-
tre os Xokó. Nessa época, as práticas religiosas se davam em torno dos rituais católicos, devido ao
intenso processo colonial que a missão de São Pedro sofreu. O toré era proibido pelos fazendeiros
locais, mas muitos cantos eram entoados na beira da lagoa, quando as mulheres se reuniam para
“fechar as terras”. O resgate desses cantos e torés se deu a partir das mulheres, principalmente por
Dona Zefinha, mulher não-indígena, esposa de Manoel Canicó, indígena (caboclo), a família deles
foi considerada um dos troncos-velhos da etnia Xokó; Mãezinha, mulher indígena (cabocla), sobri
-
nha de Canicó; e Maria Cabocla, mulher indígena (cabocla), nascida e criada na Caiçara. Essa espi
-
ritualidade pertencente a esse território e resgatada, principalmente, pelas mulheres, demonstra
que o combate a partir da perspectiva mágico-religiosa não fica nos bastidores, ela é a própria luta
e, geralmente, é encabeçada pelas mulheres. Uma luta não existe sem a outra, os homens na linha
de frente e as mulheres rezando, cuidado, zelando, assim como a memória dos homens não existe
sem a memória das mulheres. Elas se integram e constituem a memória coletiva.
Essa oralitura, (re)conta a história como manutenção da existência. “A narração da própria vida
é o testemunho mais eloqüente dos modos que a pessoa tem de lembrar. É a sua memória” (Bosi,
13
Entrevistas concedidas nos dias 22 de julho e 2 de agosto de 2022.
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10
Ugo Maia Andrade; Ana Carolina de Assis Marinho Silva
1979, p. 29). No trabalho da memória também está o trabalho de manter a existência, principal
-
mente nos grupos invisibilizados da sociedade como um todo, velhos, indígenas, pessoas pretas,
corpos dissidentes... A explanação da memória feminina aqui não é uma contraposição aos fatos,
mas o desenho que os fatos tomam em cada corpo se costurando de forma comum, com a me
-
mória e a existência coletivas. Lembrar é existir. Os coletivos caboclos ancorados em memórias
de pertencimento a um universo ameríndio regional, mesmo que difuso e associado a algumas
práticas sociais, como os rituais católicos, passam a elaborar-se novamente. As identidades se
tornam produto desse processo de resgate e trabalho diário da memória e das práticas. Mudam-se
as categorias coletivas de autopercepção, mas a memória de pertença indígena sobrevive, mesmo
que fragmentada. A construção social da memória se dá, segundo Bosi (1979, p. 27), “quando um
grupo trabalha intensamente em conjunto, na tendência de criar esquemas coerentes de narração
e de interpretação dos fatos”.
Uma das funções que circundam um filme é também sobre preservação das narrativas. Fazer fil
-
mes etnográficos, dentro da disciplina antropológica, constitui um processo de resiliência e de
trabalho da memória. Para Sylvia Caiuby (2020, p. 13), as imagens dentro da disciplina revelam o
“paradoxo de uma ciência atravessada pelo visualismo e que, ao mesmo tempo, reitera a prima
-
zia do texto verbal, afastando-se seja da produção de imagens, seja de sua análise”. Já para Silvia
Cusicanqui (2015, p. 22), “visualizar não é o mesmo que escrever com palavras o que se está visu
-
alizando. Mas, às vezes, para comunicar-se, o olhar exige muitas vezes um trânsito pela palavra e
pela escrita”.
Segundo MacDougall (2007), muitos pesquisadores escolhem discutir a teoria epistemológica e a
legitimidade de se fazer um filme. Para ele, talvez, “o mais importante seja experimentar fazer um
filme e escrever sobre essa experiência” (MacDougall, 2007, p. 187). Ainda, para o autor e cineasta,
os filmes etnográficos têm um quê de especial, pois trazem formas diferenciadas de se relacionar
e experienciar o campo, mediadas pela câmera. “É um modo diferente de produção de conheci
-
mento, que utiliza a enorme experiência antropológica em pesquisa de campo para incorporar o
conhecimento a partir de situações concretas e reais” (MacDougall, 2007, p. 187).
O filme etnográfico aqui parte do conceito de antropologia compartilhada de Jean Rouch (1979).
Para ele, a câmera deve ser usada como instrumento de investigação e isso é parte do processo de
construção do conhecimento com o outro. Pois, é elaborando junto com os interlocutores que se
propõe “um novo tipo de relação entre o antropólogo e o grupo, o primeiro passo no que alguns
de nós rotulamos de ‘antropologia compartilhada’” (Rouch, 1979, p. 11). O cineasta complementa
afirmando que sempre há uma maneira de justificar esse tipo de cinema, científica, política ou es
-
teticamente, “mas, na verdade, o que há é aquela intuição repentina sobre a necessidade de filmar,
ou inversamente, a certeza de que não se deve filmar” (Rouch, 1979, p. 11).
Para Silvia Cusicanqui, o cinema é um diálogo. Uma ponte para a reconstrução de formas de vida.
“A percepção de interrogadores e interrogados se transforma, em um grande processo, em que
acaba por surgir um nós cognoscente e intersubjetivo” (Cusicanqui, 2015, p. 286). Para a autora,
o exercício da história oral é ativo e não passivo. O cinema escancara a utilidade e inutilidade das
palavras e os limites da escrita. O processo de montagem dos testemunhos acaba se tornando
uma criação que descobre histórias. A montagem criativa assim se torna também uma experiência
oral. “Se pensarmos na poética da terra com as mulheres, acionamos a potência dos corpos e das
políticas desse imaginário. A relação mulher, terra e imagem revela memórias vivas e apreensões
cosmológicas de suas alteridades” (Pinheiro, 2020, p. 164).
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11
Memória, narrativas e resistência com as mulheres Xokó
Considerações finais
No contexto antropológico, “o lugar destinado às mulheres nas produções etnográficas” era de
“sub-representação, silenciamento e invisibilidade” (Bonetti, 2009, p. 107). É somente a partir da
década de 1970 que novas formas de estudo, os estudos feministas e, inclusive, os estudos decolo
-
niais, buscam ampliar as tentativas de levar a presença feminina “a sério, buscando em particular
entender o trabalho e a vida das mulheres sem pressupor valores ou significados associados” aos
domínios de “natureza/cultura, indivíduo/sociedade, biológico/social ou domínio doméstico/do
-
mínio público” (McCallum, 1999, p. 157).
Em um relato da pesquisadora Creuza Prumkwyj Krahô, habitante na Aldeia Nova, no Tocantins,
ela afirma que a maioria dos antropólogos que pesquisam com os Krahô só fala com os homens,
não conversa com as mulheres. “Ao pesquisar, vi que a maioria das coisas não é do jeito que estão
registradas, porque são as mulheres que fazem e os homens que contam” (Krahô, 2017, p. 112).
Algumas cientistas sociais feministas decoloniais, como María Lugones, colocam que a resistência
à colonialidade de gênero se dá na relação oprimir-resistir. Decolonizar precisa ser uma prática,
como a implementação de uma infrapolítica que parte de um olhar para dentro, propondo uma
ideia de (re)fazer e (re)elaborar as próprias narrativas. Exemplos dessa infrapolítica são as mar
-
cas da resistência e das idiossincrasias como o toré, o candomblé, o samba e as próprias memórias
que as mulheres Xokó relatam dentro da narrativa coletiva.
Em um processo de retomada da retomada, (re)incorporando essas memórias, elas também ree
-
laboram a memória coletiva. Afinal, a memória é o alicerce da resistência dos povos originários de
maneira geral, mas acaba por ser de forma particular das mulheres. “Na maior parte das vezes, lem
-
brar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências
do passado” (Bosi, 1979, p. 17). Se cinema é diálogo, como citado anteriormente por Cusicanqui,
“memória é trabalho” (Cusicanqui, 2015, p. 286). Apesar de “colonizados, racialmente gendrados e
oprimidos, somos também diferentes daquilo que o hegemônico nos torna” (Lugones, 2014, p. 940).
Apropriar-se do dispositivo cinematográfico também é uma forma decolonial de invenção de si
mesma. Subvertendo a imagem indígena estereotipada, a presença da câmera ativa narrativas ou
-
tras em que elas se colocam como protagonistas de suas próprias histórias. Narrativas essas entre
-
laçadas com a narrativa coletiva, demonstrando a importância das vivências e elaborações delas.
Lugones ainda propõe não desconsiderarmos ou negarmos a colonialidade nesse processo de
oprimir-resistir, pois a colonialidade é parte da encruzilhada em que estamos interseccionados
enquanto Sul global. Dessa forma, a autora sugere pensar na diferença e na colonialidade como
territórios que nos constituem. O processo de decolonização do gênero corresponde a um estado
de vigília das produções postas e das reelaborações que fazemos delas no campo discursivo das
relações de poder. Dessa forma, a memória também se torna vigília. O lugar da resistência é uma
reinvenção dos seres por eles mesmos, e, consequentemente, da memória, dentro do campo da
colonialidade no qual estamos todos inseridos. É nesse campo que a “subjetividade ativa dos co
-
lonizados atua” (Lugones, 2014, p. 943). Resiste-se, assim, em coletividade e compartilhamento,
trabalhando na memória e na narrativa desde dentro para dentro.
Narrar a própria história se torna assim mecanismo de resistência das mulheres indígenas. Isso
é um recado e representa a necessidade de entender que é possível fomentar resistência a partir
de dentro. É preciso caminhar nas discussões que envolvem gênero, decolonialidade, memória,
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12
Ugo Maia Andrade; Ana Carolina de Assis Marinho Silva
narrativa, participação e construção feminina do coletivo, afinal, a luta das mulheres indígenas é
pela territorialidade em seu amplo sentido.
Toda história tem sempre um roteiro, o que muda são as diversas perspectivas e modos de viven
-
ciar determinados eventos. A história da luta da retomada do povo Xokó quando narrada pelas
mulheres inclui novos personagens, modos de existência, performances e memória.
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Memória, narrativas e resistência com as mulheres Xokó
Memory, narratives and resistance with
the Xokó women
Abstract:
The ethnographic outline about the Xokó people,
so far, doesn’t present much of the female nar
-
ratives about the role of women in the history of
struggles to recover the indigenous territory. In the
process of a resumption of the resumption, when
the women return to the memory of that time, we
find other narratives that are only in oral reading.
Anchored in the work of the memory of the strug
-
gle for land, intertwining ethnographic and docu
-
mentary research – in addition to the audiovisual
as a tool for contact and dialogue with the memory
of Xokó women – this study flows into the inter
-
section between gender and the construction of
collective memory, comprising forms of resistance
and protagonism of women, from within the Xokó
narratives.
Keywords:
Xokó women. Resumption. Memory.
Feminist ethnography. Ethnographic documentary.
Memoria, narrativas y resistencia con las
mujeres Xokó
Resumen:
El esbozo etnográfico sobre el pueblo Xokó, hasta
el momento, poco presenta las narrativas femeni
-
nas sobre el papel de la mujer en la historia de las
luchas por la recuperación del territorio indígena.
En el proceso de una reanudación de la reanudaci
-
ón, cuando las mujeres regresan a la memoria de
ese tiempo, encontramos otras narrativas que solo
están en lectura oral. Anclados en el trabajo de la
memoria de la lucha por la tierra, entrelazando
investigaciones etnográficas y documentales -ade
-
más del audiovisual como herramienta de contacto
y diálogo con la memoria de las mujeres Xokó- este
estudio incide en la intersección entre el género y
la construcción de la memoria colectiva, compren
-
diendo formas de resistencia y protagonismo de las
mujeres, desde el interior de las narrativas Xokó.
Palabras clave:
Mujeres xokó. Reanudar. Memoria.
Etnografía feminista. Documental etnográfico.
HISTÓRICO
Recebido: Março/23
Parecer: Abril/23
Parecer: Abril/23
Aceito: Abril/23
Revisado Autor: Maio/23
Revisão Gramatical/Ortográfica e ABNT: Maio/23
Revisado Autor: Junho/23
Diagramação: Junho/23
Publicado: Junho/23
Equipe Editorial Revista TOMO envolvida no processo editorial deste artigo
Marina de Souza Sartore (Editora-Chefe)
Gabriela Losekan (Editora assistente júnior)