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Revista TOMO
São Cristóvão, v. 42, e18800, 2023
Data de Publicação: Junho/2023
Dossiê
A resistência feminina através das agências estetizadas:
reflexões sobre o movimento punk e o graffiti em Aracaju
Erna Barros
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Letícia Galvão
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Resumo:
O presente artigo objetiva levantar discussões em torno de modalidades de agência femininas veiculadas
por meio das artes, com um recorte centrado no movimento punk e do graffiti enquanto práticas de resis
-
tência. Os métodos adotados para a coleta e interpretação de dados foram a revisão de literatura, a obser-
vação direta, a elaboração de entrevistas semiestruturadas e a análise de conteúdo (Minayo, 2014). Após
o contato com os campos, foi possível concluir que, no contexto das culturas urbanas contemporâneas, as
artes podem se configurar enquanto recursos de contestação de espaços hegemonicamente masculinos por
parte de mulheres vinculadas a esses contextos, algo que pudemos identificar tanto no âmbito do graffiti
quanto no do movimento punk na cidade de Aracaju e que nos permitiu associar essas práticas ao conceito
de agências estetizadas pensado por Marcon (2019) para definir novas modalidades de ativismo político
contemporâneas.
Palavras-chave
: Resistência feminina. Artes. Graffiti. Movimento punk.
Introdução
A presença feminina nas artes e as diferentes formas de agências feitas por mulheres são temas
cuja discussão nas ciências sociais tem se tornado cada vez mais frequente. De objetos a serem
retratados, as mulheres, com o passar dos anos, reivindicaram sua posição enquanto autoras e
propuseram, em diferentes contextos sociais, novas perspectivas em torno do que significa ser
mulher e produzir arte. Neste artigo, propomo-nos a apresentar algumas contribuições nesse sen
-
tido, bem como refletir sobre a presença feminina em modalidades artísticas classificadas, em
certas instâncias, como “marginais”: o movimento punk e o graffiti.
Nesse sentido, buscaremos investigar como, a partir de recursos como a música, a produção de eventos
e, em ambos os contextos, as artes visuais, algumas mulheres da cidade de Aracaju buscam reivindicar
a sua presença nesses espaços. De um lado, relatando a experiência de mulheres que se impõem a partir
de uma agência estética na cidade, ao pintar os muros e reivindicar sua ocupação no espaço urbano por
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Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas. Departamento de Comunicação Social (DCOS).
São Cristóvão, Sergipe, Brasil. E-mail: ernabarros@academico.ufs.br https://orcid.org/0009-0009-9939-572X
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Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. São
Cristóvão, Sergipe, Brasil. E-mail: leticiofg@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-2833-9781
Dossiê
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Erna Barros; Letícia Galvão
meio das imagens
que produzem; do outro, evidenciando as relações entre um movimento estético-polí-
tico e as pautas feministas da atualidade a partir da música e das artes plásticas.
Para cumprir com esses objetivos, fizemos um levantamento bibliográfico de produções em torno do
tema mulheres, ativismo político, agência, agências estetizadas, movimento punk e graffiti, e busca
-
mos na fotografia um meio de aproximar o leitor e a leitora das temáticas trabalhadas. Além disso,
realizamos uma observação direta de práticas do punk e do graffiti, assim como conduzimos entre
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vistas semiestruturadas com mulheres associadas no passado e no presente a esses movimentos.
Utilizamos, também, a análise de conteúdo segundo Minayo (2014) como instrumento metodológico
para compreendermos detalhadamente as produções artísticas trazidas a seguir. Alguns conceitos
estarão presentes na nossa discussão sobre as possibilidades de atuação dessas mulheres no espaço
urbano: a ideia de artivismo (Delgado, 2013; Chaia, 2007), que implica na utilização da arte como
um veículo para o ativismo político; a noção de agência a partir de Ortner (2006), que diz respeito
às possibilidades de ação dos sujeitos sociais nos seus respectivos contextos culturais, e também o
conceito de agências estetizadas, pensado por Marcon (2018, 2019), que, ao investigar as formas
de mobilização política dos jovens na atualidade, as classifica como “estetizadas” na medida em que
usam canais como a arte e as novas mídias para serem comunicadas.
Ao optarmos por observar as práticas do graffiti e do punk, nossa proposta é refletir sobre práticas
feitas por mulheres que encontram na cidade um espaço para criar e para reivindicar suas agên
-
cias no ambiente público. Entendemos que a cidade compõe o tecido das relações sociais, sendo
também objeto da produção de imagens e discursos. Assim, a relação entre expressões da arte e a
cidade é uma pista para pensarmos diferentes interações e disputas, muitas delas representadas
pelas práticas do graffiti e do punk e seus inúmeros recursos imagéticos, musicais e estético-po
-
líticos.
Há em ambas as manifestações formas particulares de transgredir o espaço urbano e interagir
com ele e sobre ele. A partir de um enfrentamento e da ocupação dos espaços da cidade, as
práticas do graffiti e do punk se apresentam muitas vezes como linguagens de protesto, em
dinâmicas que reverberam as relações de gênero vivenciadas pelas mulheres envolvidas nesses
contextos.
As dificuldades que as mulheres encontram e as disputas realizadas para reivindicarem suas pre
-
senças nesses espaços refletem também como a cidade é experimentada por elas. E, quando atuam
e articulam suas agências na cidade, buscam ressignificar essas vivências por meio de diferentes
representações estéticas, seja pela via da imagem e das artes plásticas, seja da música, em mani
-
festações artísticas que se fazem presentes também enquanto práticas de resistência.
Assim, para melhor observar ambas as práticas como formas de resistências, no primeiro tó
-
pico, “As origens do movimento punk”, apresentaremos brevemente a história do movimento
punk, a fim de contextualização, e discutiremos alguns preceitos que norteiam a conduta e as
produções punks até a atualidade. Em seguida, em “O ativismo feminista punk em Aracaju”,
abordaremos o processo de inserção das mulheres na cena punk de Aracaju, os percalços en
-
frentados por elas e como a reinvindicação da presença feminina no punk aracajuano pode ser
identificada em letras de músicas, fanzines e outras formas de produção artística e manifesta
-
ção política. Em “Arte, ativismo e agência a partir do punk”
buscaremos conduzir uma discus-
são de forma a associar as produções e modalidades de ativismo punk feministas a fenômenos
contemporâneos como a terceira onda do feminismo e conceitos como agência (Ortner, 2006)
e artivismo (Chaia, 2007a).
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A resistência feminina através das agências estetizadas
Em seguida, as discussões sobre o graffiti terão como frentes os tópicos: “Imagens feitas por mu
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lheres e as rupturas do graffiti”, que apresentará algumas discussões sobre as relações entre gê
-
nero, estética e poder no âmbito do graffiti; “A cidade e o graffiti como formas de resistir”, no qual
abordaremos as intersecções entre a prática do graffiti e suas múltiplas formas de ocupação do es
-
paço público da cidade; “Percorrendo territórios: graffitis da Grande Aracaju”, no qual nos aprofun
-
daremos sobre as práticas de resistência das grafiteiras da região metropolitana de Aracaju; e “O
punk e o graffiti como mecanismos de ação estética”, em que discutiremos como ambas as práticas
podem ser entendidas como novas estratégias de comunicação política contemporâneas. Por fim,
nas considerações finais, iremos sintetizar algumas das reflexões proporcionadas pelo trabalho de
campo e pela escrita deste artigo.
1. As origens do movimento punk
Ao falarmos do protagonismo feminino nas artes, é importante considerar a relevância do movi
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mento punk nesse contexto. O punk teve sua origem no final dos anos 1970, a partir de um forte
sentimento de desilusão das juventudes das classes trabalhadoras britânicas e norte-americanas
frente uma crescente crise econômica protagonizada pelo nascimento da sociedade pós-industrial,
que trouxe consigo novas configurações nas relações de trabalho e nas formas de organização so
-
cial (Gatto, 2011). Vale ressaltar que todo esse processo se deu frente ao que hoje é conhecido
como globalização – o que abriu a possibilidade dos sujeitos sociais se vincularem a novas narrati
-
vas identitárias e a uma diversidade de estilos de vida.
A partir dessas motivações, a proposta do punk enquanto movimento artístico/político se baseou
em tornar visíveis à sociedade, por meio da arte, questões como a desigualdade social, a violên
-
cia, a falta de oportunidades e perspectivas de futuro. Esses preceitos foram fundamentais para a
construção de toda uma estética punk, que perpassou territórios desde a música até a moda e as
artes plásticas. Essa estética se baseia no princípio
do-it-yourself
, ou faça-você-mesmo: um
ethos
(Guerra; Straw, 2017) que consiste em produzir quaisquer obras a partir de instrumentos de baixo
custo e fácil acesso. O punk enquanto movimento e estilo de vida sofreu adaptações em diversos
países ao redor do globo. Atualmente, cada cena possui suas particularidades e modalidades de
ação artística e política.
Em uma perspectiva sociológica, o punk foi enquadrado, em um primeiro momento pelos teóricos
do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) de Birmingham, como uma subcultura juvenil.
Atualmente, em virtude de algumas discussões terminológicas a respeito do tema, o punk pode ser
entendido como uma cultura urbana que transcende categorias como gênero, idade e classe. Como
posto por Guerra, Gelain e Moreira (2017, p. 14):
trata-se de uma (sub)cultura verdadeiramente contemporânea no sentido da contradição,
da dialética constante entre
underground
e
mainstream
, da possibilidade de uma reinven-
ção incessante —exemplo claro do hibridismo e bricolagem da cultura (O’Connor, 2002) e
da hiperinflação dos códigos subculturais.
Dessa forma, o ponto em comum que leva diversas pessoas a se identificarem com o punk é o
conjunto de ideias e perspectivas em torno do que significa ser punk – valores que geralmente se
associam a posicionamentos políticos coletivistas, à apreciação de uma estética punk e às estreitas
relações entre arte e política que podem ser percebidas nesse contexto.
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Erna Barros; Letícia Galvão
A chegada do punk no Brasil coincidiu com o período mais ferrenho do regime civil-militar. Além
de questões como a crise econômica e o desemprego, o contexto repressivo da ditadura militar
durante o final dos anos 1970 e o início da década de 1980 foi representado nas produções de
diversos grupos punks
do período. Ivone Gallo (2010, p. 289)
constata que “as correntes mais
críticas chocaram-se de frente com a ditadura, o que lhes valeu perseguições policiais e censura a
interromper um fluxo natural de suas produções, além, é claro, da criminalização pela imprensa e
pela mídia”.
2. O ativismo feminista punk em Aracaju
Na cidade de Aracaju, o movimento punk teve seu início na metade dos anos 1980, protagonizado
pelo surgimento da banda Karne Krua e com a chegada de discos de bandas do exterior no estado.
A partir disso, a musicalidade e a estética do punk aracajuano se constituíram marcadas por um
teor de protesto e de denúncia, o que pode ser visto desde as produções da banda Karne Krua,
como também em
fanzines
, como Escarro Napalm, Buracaju, Centauro Sem Cabeça, Seduções Eco
-
lógicas e Clube do Ódio, e em eventos, como o I e II Festcore de Aracaju. O punk já apresentava
um caráter político nos seus primeiros anos em Aracaju: entre os anos 1980 e 1990, alguns punks
locais se organizaram em grupos de ação anarquistas, assim como realizavam “manifestos em dia
dos trabalhadores, manifestos sobre a terra, sobre o meio ambiente” (Entrevista com Silvio Cam
-
pos, 2022).
Entretanto, esse período marca a constituição de um circuito marcadamente masculino; a maior
parte das bandas era composta em sua totalidade por homens (assim como os sujeitos que compa
-
reciam aos eventos) e a autoria de outras produções artísticas, como os fanzines, seguia a mesma
lógica. Nesse período, a participação feminina documentada nas produções punks se apresentava
de forma escassa, mas ainda registrada, como o grupo As Suburbanas, formado por quatro mulhe
-
res. É importante salientar que a baixa adesão de mulheres ao estilo de vida punk não era um fenô
-
meno apenas local, como também nacional e internacional. De acordo com Guerra, Gelain e Morei
-
ra (2017, p. 22), “a socialização familiar e escolar para os papéis femininos e masculinos continua
a ser determinante nas expectativas dos jovens e na sua construção identitária e tal transporta-se,
com toda a intensidade, para o universo (sub)cultural do punk”.
Com o passar dos anos, o público feminino passou a reivindicar com mais intensidade o seu direito
de autorrepresentação na cena. A partir dos anos 2000, a presença de mulheres tomando a frente
de bandas, fanzines e também na produção de eventos na cena cresceu exponencialmente. Nesse
contexto, o movimento punk de Aracaju passou a aderir a novas pautas, como o antiespecismo e o
feminismo. Como posto por uma das interlocutoras entrevistadas, as novas gerações de mulheres
“não tão vendo mais por que ficarem caladas, né? E muitas atitudes a gente não tá mais aceitando.
E isso, claro, vai se transparecer no punk” (Entrevista com Oliveira, 2021).
Entretanto, essa inserção não significa que as mulheres se inseriram na cena sem percalços. Como
posto pela interlocutora Daniela, vocalista e guitarrista da banda The Renegades of Punk,
Como eu falei, quando a gente é mais nova, a gente tem mais cara de pau. Então eu cheguei:
“quero fazer as coisas, então vou fazer”. Mas não necessariamente encontrei as portas aber
-
tas, entendeu? Mas era uma coisa que eu já esperava. Eu não esperava que eu ia ser aceita.
[...] E nos primeiros shows foi até surpreendente que não teve essa hostilidade toda, mas às
vezes você não precisa ser hostil, também, pra tá alfinetando. Às vezes você quietinho ali, só
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A resistência feminina através das agências estetizadas
dando uma risadinha, e tal, machuca bem mais. [...] Tipo, “ah, você toca bem pra uma meni
-
na”, essas coisas. [...] Então assim, sempre rolaram questões que eu acho que aconteceriam
em qualquer cidade do mundo, em qualquer cena. Mas num certo momento eu me sur
-
preendia quando vinha de caras que faziam parte dessa cena, porque eu entrei nesse rolê
super inocente, achando “gente, a gente é contracultura, contra o sistema! A gente partilha
dos mesmos valores, então os caras não vão ser machistas”, mas não necessariamente, né?
Eu não me dava conta nesse primeiro momento de que, apesar de ser contracultura, nesse
espaço pequeno, de nicho, é um reflexo pequeno da sociedade, são as mesmas pessoas. A
gente tá tentando se desconstruir, mas tem gente que não tá tentando tanto assim. E aí eu
sempre tive que, enfim, tentar enfrentar essas paradas, mesmo. (Entrevista com Daniela
Delmondes, 2022).
Havia um duplo esforço, então, para as mulheres que se associavam à cena punk de Aracaju: o
primeiro, por buscarem realizar uma produção artística que foge dos padrões hegemônicos cons
-
truídos pela mídia, e, o segundo, por serem mulheres nesse processo e lidarem com diversas in
-
terdições motivadas por padrões de gênero. É interessante como esses dois fatores se entrelaçam
em muitos momentos como recursos de resistência. De acordo com Daniela, “se tem um grande re
-
sumo que eu posso falar, acho que eu fui punk porque eu era mulher. Ou, enfim, me afeiçoei a esse
universo porque eu era mulher e era inconformada” (Entrevista com Daniela Delmondes, 2022).
Nesse sentido, cabe mencionar o papel de bandas inteiramente compostas por mulheres que bus
-
caram sua inserção no circuito punk, como a banda hardcore VHC (Figura 2), em atividade desde
2009, e o grupo The Jezebells, em atividade de 2008 a 2011. Também ocupa um papel relevante
nesse sentido a banda The Renegades of Punk (Figura 1), que conta com parte da formação da
segunda banda citada.
Figura 1
- Apresentação da banda Renegades of Punk
Fonte: Facebook (2014). Disponível em: https://www.facebook.com/rop07
Como posto acima, a banda VHC foi uma das poucas bandas hardcore-punk da cena sergipana for
-
mada apenas por mulheres. Nesse sentido, a questão de gênero foi uma temática frequentemente
abordada em suas produções, desde músicas até a participação em coletâneas de bandas femini
-
nas de diversas partes do país. De acordo com Islaine Souza, uma das componentes do grupo, ain
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da que a VHC não estivesse vinculada a nenhum partido político, “o conteúdo explícito das letras
tinha muito sobre política, sobre questões sociais, até sobre violência contra a mulher e tudo mais”
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Erna Barros; Letícia Galvão
(Entrevista com Islaine Souza, 2022). Abaixo, a letra da música “Maldito, porco, escroto” evidencia
a postura de indignação e revolta, motivada por casos de violência de gênero vividos na cena de
rock de Aracaju, que a banda optou por refletir na sua arte:
Eu tô cansada de ouvir você falar
Que eu não posso tocar porque eu sou mulher
Eu tô cansada de ouvir você julgar
Minha capacidade por eu ser mulher
Eu to cansada de ouvir você falar
Que eu não posso tocar porque eu sou mulher
Eu tô cansada de ouvir você julgar
Minha capacidade
Se você pensa que pode me tratar como um pedaço de carne qualquer
Isso eu não sou, mas posso lhe dizer agora
Exatamente o que você é
Maldito, porco
Maldito, porco
Escroto!
Maldito, porco
Maldito, porco
Escroto!
(VHC, 2017).
Figura 2
- Apresentação da banda VHC
Fonte: Site oficial da banda. Disponível em: https://www.palcomp3.com.br/vhc/fotos.htm.
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A resistência feminina através das agências estetizadas
Além da música, a presença feminina na cena punk aracajuana também pode ser percebida a par
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tir de outras modalidades de produção artística.
Os eventos Hardcore Contra o Fascismo, Ativa
Cena e Clandestino, por exemplo, tiveram mulheres à frente das suas organizações e foram re
-
alizados em locais públicos de acesso gratuito, como a Praça Camerino, no centro da cidade, e o
Viaduto do D.I.A, um dos pontos de maior fluxo de veículos e transeuntes de Aracaju. Também é
importante citar o programa de rádio Cidade das Mulheres (no ar desde 2021) e o fanzine I Wa
-
nna Be Yr Grrrl (Figura 3). Os fanzines, em especial, ocupam um lugar de destaque na história do
movimento punk, desde as primeiras impressões xerocadas feitas por punks do Reino Unido até
versões digitais contemporâneas, os fanzines foram (e são) responsáveis por comunicar o ideário
punk a partir de produções que exigem poucos recursos e são de fácil acesso, em consonância com
o princípio
do-it-yourself.
Abaixo, trazemos um exemplo de mobilização política recente da cena referente à situação das
mulheres. Em virtude do envolvimento de um músico da cena com alguns relatos de assédio, di
-
versas bandas e páginas relacionadas ao
underground
sergipano divulgaram uma nota conjunta
no Instagram, em julho de 2020, que propunha o boicote às atividades do referido músico em
nome da segurança das mulheres da cena:
Figura 3
- Nota de conjunta de bandas, coletivos e produtoras
Fonte: Instagram. Disponível em: http://instagram.com/_estaca
A nota oficial propõe uma postura autocrítica por parte da cena, indagando em que momento
condutas que reforçam esse tipo de assédio foram minimizadas por parte dos homens. Ao final da
nota, os autores reforçaram: “o
underground
deve ser antifascista, antirracista, anti-LGBTQIfobia e
antimachista”. Essa nota pode ser vista, além de um exemplo de ativismo simultaneamente virtual
e presencial da cena, como efeito da influência dos novos ativismos feministas da contemporanei
-
dade, que se transpõem para territórios como a política e a arte – principalmente ao considerar
que o punk mobiliza ambos e se mostra suscetível a novos debates.
Já o fanzine I Wanna Be Yr Grrrl, em específico, abordou, em sucessivas edições, questões como a
falta de reconhecimento das mulheres nas artes e a violência de gênero. De acordo com a autora
do fanzine, “a ideia surgiu diante da falta de projeção das artistas femininas locais em comparação
não só aos homens, mas também numa proporção nacional já que somos o menor estado do país
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Erna Barros; Letícia Galvão
e historicamente inferiorizado” (I Wanna Be Yr Grrrl Zine, 2020, p. 1). Também é interessante
pontuar que o I Wanna Be Yr Grrrl Zine é publicado de forma bilíngue, o que auxilia no fomento de
uma rede internacional de circulação de produções punks e feministas.
Figura 4
- Fanzine I Wanna Be Yr Grrrl #5
Fonte: Instagram. Disponível em: https://www.instagram.com/iwannabeyrgrrrlzine
Dessa forma, tanto a produção de músicas quanto de fanzines e eventos parece possuir um caráter
notadamente político. Em entrevista concedida a uma das autoras deste artigo, a artista respon-
sável pelo fanzine I Wanna Be Yr Grrrl e pelo programa de rádio Cidade das Mulheres enfatizou as
estreitas relações entre arte e ativismo político que transporta para o seu trabalho:
Pra mim ativismo político, quando você tá na cena underground, é você se educar, e tam
-
bém passar essa mensagem sobre diversas causas sociais que são afetadas diretamente
pelo sistema capitalista, e eu acho que você tem que abraçar todas as causas. Não é aquela
coisa “ah, eu vou falar só sobre feminismo”. Dentro do feminismo vão existir outras pautas,
sim, outras causas que você tem que abraçar, sabe? Então eu acho que é essa coisa de am
-
pliar os horizontes e escolher suas ferramentas, se educar, estar sempre nesse processo de
reflexão. [...] É necessário, e eu acho que através desse ativismo você faz a diferença. Eu pos
-
so dizer que quando eu levei isso pra minha zine, eu percebi que outras mulheres, sabe, se
sentiram inspiradas, eu conheço algumas mulheres que começaram a fazer zine também. É
uma ferramenta política, sim, é a sua produção, entendeu? (Entrevista com Oliveira, 2021).