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Revista TOMO
São Cristóvão, v. 42, e18800, 2023
Data de Publicação: Junho/2023
Dossiê
A resistência feminina através das agências estetizadas:
reflexões sobre o movimento punk e o graffiti em Aracaju
Erna Barros
1
Letícia Galvão
2
Resumo:
O presente artigo objetiva levantar discussões em torno de modalidades de agência femininas veiculadas
por meio das artes, com um recorte centrado no movimento punk e do graffiti enquanto práticas de resis
-
tência. Os métodos adotados para a coleta e interpretação de dados foram a revisão de literatura, a obser-
vação direta, a elaboração de entrevistas semiestruturadas e a análise de conteúdo (Minayo, 2014). Após
o contato com os campos, foi possível concluir que, no contexto das culturas urbanas contemporâneas, as
artes podem se configurar enquanto recursos de contestação de espaços hegemonicamente masculinos por
parte de mulheres vinculadas a esses contextos, algo que pudemos identificar tanto no âmbito do graffiti
quanto no do movimento punk na cidade de Aracaju e que nos permitiu associar essas práticas ao conceito
de agências estetizadas pensado por Marcon (2019) para definir novas modalidades de ativismo político
contemporâneas.
Palavras-chave
: Resistência feminina. Artes. Graffiti. Movimento punk.
Introdução
A presença feminina nas artes e as diferentes formas de agências feitas por mulheres são temas
cuja discussão nas ciências sociais tem se tornado cada vez mais frequente. De objetos a serem
retratados, as mulheres, com o passar dos anos, reivindicaram sua posição enquanto autoras e
propuseram, em diferentes contextos sociais, novas perspectivas em torno do que significa ser
mulher e produzir arte. Neste artigo, propomo-nos a apresentar algumas contribuições nesse sen
-
tido, bem como refletir sobre a presença feminina em modalidades artísticas classificadas, em
certas instâncias, como “marginais”: o movimento punk e o graffiti.
Nesse sentido, buscaremos investigar como, a partir de recursos como a música, a produção de eventos
e, em ambos os contextos, as artes visuais, algumas mulheres da cidade de Aracaju buscam reivindicar
a sua presença nesses espaços. De um lado, relatando a experiência de mulheres que se impõem a partir
de uma agência estética na cidade, ao pintar os muros e reivindicar sua ocupação no espaço urbano por
1
Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas. Departamento de Comunicação Social (DCOS).
São Cristóvão, Sergipe, Brasil. E-mail: ernabarros@academico.ufs.br https://orcid.org/0009-0009-9939-572X
2
Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. São
Cristóvão, Sergipe, Brasil. E-mail: leticiofg@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-2833-9781
Dossiê
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Erna Barros; Letícia Galvão
meio das imagens
que produzem; do outro, evidenciando as relações entre um movimento estético-polí-
tico e as pautas feministas da atualidade a partir da música e das artes plásticas.
Para cumprir com esses objetivos, fizemos um levantamento bibliográfico de produções em torno do
tema mulheres, ativismo político, agência, agências estetizadas, movimento punk e graffiti, e busca
-
mos na fotografia um meio de aproximar o leitor e a leitora das temáticas trabalhadas. Além disso,
realizamos uma observação direta de práticas do punk e do graffiti, assim como conduzimos entre
-
vistas semiestruturadas com mulheres associadas no passado e no presente a esses movimentos.
Utilizamos, também, a análise de conteúdo segundo Minayo (2014) como instrumento metodológico
para compreendermos detalhadamente as produções artísticas trazidas a seguir. Alguns conceitos
estarão presentes na nossa discussão sobre as possibilidades de atuação dessas mulheres no espaço
urbano: a ideia de artivismo (Delgado, 2013; Chaia, 2007), que implica na utilização da arte como
um veículo para o ativismo político; a noção de agência a partir de Ortner (2006), que diz respeito
às possibilidades de ação dos sujeitos sociais nos seus respectivos contextos culturais, e também o
conceito de agências estetizadas, pensado por Marcon (2018, 2019), que, ao investigar as formas
de mobilização política dos jovens na atualidade, as classifica como “estetizadas” na medida em que
usam canais como a arte e as novas mídias para serem comunicadas.
Ao optarmos por observar as práticas do graffiti e do punk, nossa proposta é refletir sobre práticas
feitas por mulheres que encontram na cidade um espaço para criar e para reivindicar suas agên
-
cias no ambiente público. Entendemos que a cidade compõe o tecido das relações sociais, sendo
também objeto da produção de imagens e discursos. Assim, a relação entre expressões da arte e a
cidade é uma pista para pensarmos diferentes interações e disputas, muitas delas representadas
pelas práticas do graffiti e do punk e seus inúmeros recursos imagéticos, musicais e estético-po
-
líticos.
Há em ambas as manifestações formas particulares de transgredir o espaço urbano e interagir
com ele e sobre ele. A partir de um enfrentamento e da ocupação dos espaços da cidade, as
práticas do graffiti e do punk se apresentam muitas vezes como linguagens de protesto, em
dinâmicas que reverberam as relações de gênero vivenciadas pelas mulheres envolvidas nesses
contextos.
As dificuldades que as mulheres encontram e as disputas realizadas para reivindicarem suas pre
-
senças nesses espaços refletem também como a cidade é experimentada por elas. E, quando atuam
e articulam suas agências na cidade, buscam ressignificar essas vivências por meio de diferentes
representações estéticas, seja pela via da imagem e das artes plásticas, seja da música, em mani
-
festações artísticas que se fazem presentes também enquanto práticas de resistência.
Assim, para melhor observar ambas as práticas como formas de resistências, no primeiro tó
-
pico, “As origens do movimento punk”, apresentaremos brevemente a história do movimento
punk, a fim de contextualização, e discutiremos alguns preceitos que norteiam a conduta e as
produções punks até a atualidade. Em seguida, em “O ativismo feminista punk em Aracaju”,
abordaremos o processo de inserção das mulheres na cena punk de Aracaju, os percalços en
-
frentados por elas e como a reinvindicação da presença feminina no punk aracajuano pode ser
identificada em letras de músicas, fanzines e outras formas de produção artística e manifesta
-
ção política. Em “Arte, ativismo e agência a partir do punk”
buscaremos conduzir uma discus-
são de forma a associar as produções e modalidades de ativismo punk feministas a fenômenos
contemporâneos como a terceira onda do feminismo e conceitos como agência (Ortner, 2006)
e artivismo (Chaia, 2007a).
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A resistência feminina através das agências estetizadas
Em seguida, as discussões sobre o graffiti terão como frentes os tópicos: “Imagens feitas por mu
-
lheres e as rupturas do graffiti”, que apresentará algumas discussões sobre as relações entre gê
-
nero, estética e poder no âmbito do graffiti; “A cidade e o graffiti como formas de resistir”, no qual
abordaremos as intersecções entre a prática do graffiti e suas múltiplas formas de ocupação do es
-
paço público da cidade; “Percorrendo territórios: graffitis da Grande Aracaju”, no qual nos aprofun
-
daremos sobre as práticas de resistência das grafiteiras da região metropolitana de Aracaju; e “O
punk e o graffiti como mecanismos de ação estética”, em que discutiremos como ambas as práticas
podem ser entendidas como novas estratégias de comunicação política contemporâneas. Por fim,
nas considerações finais, iremos sintetizar algumas das reflexões proporcionadas pelo trabalho de
campo e pela escrita deste artigo.
1. As origens do movimento punk
Ao falarmos do protagonismo feminino nas artes, é importante considerar a relevância do movi
-
mento punk nesse contexto. O punk teve sua origem no final dos anos 1970, a partir de um forte
sentimento de desilusão das juventudes das classes trabalhadoras britânicas e norte-americanas
frente uma crescente crise econômica protagonizada pelo nascimento da sociedade pós-industrial,
que trouxe consigo novas configurações nas relações de trabalho e nas formas de organização so
-
cial (Gatto, 2011). Vale ressaltar que todo esse processo se deu frente ao que hoje é conhecido
como globalização – o que abriu a possibilidade dos sujeitos sociais se vincularem a novas narrati
-
vas identitárias e a uma diversidade de estilos de vida.
A partir dessas motivações, a proposta do punk enquanto movimento artístico/político se baseou
em tornar visíveis à sociedade, por meio da arte, questões como a desigualdade social, a violên
-
cia, a falta de oportunidades e perspectivas de futuro. Esses preceitos foram fundamentais para a
construção de toda uma estética punk, que perpassou territórios desde a música até a moda e as
artes plásticas. Essa estética se baseia no princípio
do-it-yourself
, ou faça-você-mesmo: um
ethos
(Guerra; Straw, 2017) que consiste em produzir quaisquer obras a partir de instrumentos de baixo
custo e fácil acesso. O punk enquanto movimento e estilo de vida sofreu adaptações em diversos
países ao redor do globo. Atualmente, cada cena possui suas particularidades e modalidades de
ação artística e política.
Em uma perspectiva sociológica, o punk foi enquadrado, em um primeiro momento pelos teóricos
do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) de Birmingham, como uma subcultura juvenil.
Atualmente, em virtude de algumas discussões terminológicas a respeito do tema, o punk pode ser
entendido como uma cultura urbana que transcende categorias como gênero, idade e classe. Como
posto por Guerra, Gelain e Moreira (2017, p. 14):
trata-se de uma (sub)cultura verdadeiramente contemporânea no sentido da contradição,
da dialética constante entre
underground
e
mainstream
, da possibilidade de uma reinven-
ção incessante —exemplo claro do hibridismo e bricolagem da cultura (O’Connor, 2002) e
da hiperinflação dos códigos subculturais.
Dessa forma, o ponto em comum que leva diversas pessoas a se identificarem com o punk é o
conjunto de ideias e perspectivas em torno do que significa ser punk – valores que geralmente se
associam a posicionamentos políticos coletivistas, à apreciação de uma estética punk e às estreitas
relações entre arte e política que podem ser percebidas nesse contexto.
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Erna Barros; Letícia Galvão
A chegada do punk no Brasil coincidiu com o período mais ferrenho do regime civil-militar. Além
de questões como a crise econômica e o desemprego, o contexto repressivo da ditadura militar
durante o final dos anos 1970 e o início da década de 1980 foi representado nas produções de
diversos grupos punks
do período. Ivone Gallo (2010, p. 289)
constata que “as correntes mais
críticas chocaram-se de frente com a ditadura, o que lhes valeu perseguições policiais e censura a
interromper um fluxo natural de suas produções, além, é claro, da criminalização pela imprensa e
pela mídia”.
2. O ativismo feminista punk em Aracaju
Na cidade de Aracaju, o movimento punk teve seu início na metade dos anos 1980, protagonizado
pelo surgimento da banda Karne Krua e com a chegada de discos de bandas do exterior no estado.
A partir disso, a musicalidade e a estética do punk aracajuano se constituíram marcadas por um
teor de protesto e de denúncia, o que pode ser visto desde as produções da banda Karne Krua,
como também em
fanzines
, como Escarro Napalm, Buracaju, Centauro Sem Cabeça, Seduções Eco
-
lógicas e Clube do Ódio, e em eventos, como o I e II Festcore de Aracaju. O punk já apresentava
um caráter político nos seus primeiros anos em Aracaju: entre os anos 1980 e 1990, alguns punks
locais se organizaram em grupos de ação anarquistas, assim como realizavam “manifestos em dia
dos trabalhadores, manifestos sobre a terra, sobre o meio ambiente” (Entrevista com Silvio Cam
-
pos, 2022).
Entretanto, esse período marca a constituição de um circuito marcadamente masculino; a maior
parte das bandas era composta em sua totalidade por homens (assim como os sujeitos que compa
-
reciam aos eventos) e a autoria de outras produções artísticas, como os fanzines, seguia a mesma
lógica. Nesse período, a participação feminina documentada nas produções punks se apresentava
de forma escassa, mas ainda registrada, como o grupo As Suburbanas, formado por quatro mulhe
-
res. É importante salientar que a baixa adesão de mulheres ao estilo de vida punk não era um fenô
-
meno apenas local, como também nacional e internacional. De acordo com Guerra, Gelain e Morei
-
ra (2017, p. 22), “a socialização familiar e escolar para os papéis femininos e masculinos continua
a ser determinante nas expectativas dos jovens e na sua construção identitária e tal transporta-se,
com toda a intensidade, para o universo (sub)cultural do punk”.
Com o passar dos anos, o público feminino passou a reivindicar com mais intensidade o seu direito
de autorrepresentação na cena. A partir dos anos 2000, a presença de mulheres tomando a frente
de bandas, fanzines e também na produção de eventos na cena cresceu exponencialmente. Nesse
contexto, o movimento punk de Aracaju passou a aderir a novas pautas, como o antiespecismo e o
feminismo. Como posto por uma das interlocutoras entrevistadas, as novas gerações de mulheres
“não tão vendo mais por que ficarem caladas, né? E muitas atitudes a gente não tá mais aceitando.
E isso, claro, vai se transparecer no punk” (Entrevista com Oliveira, 2021).
Entretanto, essa inserção não significa que as mulheres se inseriram na cena sem percalços. Como
posto pela interlocutora Daniela, vocalista e guitarrista da banda The Renegades of Punk,
Como eu falei, quando a gente é mais nova, a gente tem mais cara de pau. Então eu cheguei:
“quero fazer as coisas, então vou fazer”. Mas não necessariamente encontrei as portas aber
-
tas, entendeu? Mas era uma coisa que eu já esperava. Eu não esperava que eu ia ser aceita.
[...] E nos primeiros shows foi até surpreendente que não teve essa hostilidade toda, mas às
vezes você não precisa ser hostil, também, pra tá alfinetando. Às vezes você quietinho ali, só
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A resistência feminina através das agências estetizadas
dando uma risadinha, e tal, machuca bem mais. [...] Tipo, “ah, você toca bem pra uma meni
-
na”, essas coisas. [...] Então assim, sempre rolaram questões que eu acho que aconteceriam
em qualquer cidade do mundo, em qualquer cena. Mas num certo momento eu me sur
-
preendia quando vinha de caras que faziam parte dessa cena, porque eu entrei nesse rolê
super inocente, achando “gente, a gente é contracultura, contra o sistema! A gente partilha
dos mesmos valores, então os caras não vão ser machistas”, mas não necessariamente, né?
Eu não me dava conta nesse primeiro momento de que, apesar de ser contracultura, nesse
espaço pequeno, de nicho, é um reflexo pequeno da sociedade, são as mesmas pessoas. A
gente tá tentando se desconstruir, mas tem gente que não tá tentando tanto assim. E aí eu
sempre tive que, enfim, tentar enfrentar essas paradas, mesmo. (Entrevista com Daniela
Delmondes, 2022).
Havia um duplo esforço, então, para as mulheres que se associavam à cena punk de Aracaju: o
primeiro, por buscarem realizar uma produção artística que foge dos padrões hegemônicos cons
-
truídos pela mídia, e, o segundo, por serem mulheres nesse processo e lidarem com diversas in
-
terdições motivadas por padrões de gênero. É interessante como esses dois fatores se entrelaçam
em muitos momentos como recursos de resistência. De acordo com Daniela, “se tem um grande re
-
sumo que eu posso falar, acho que eu fui punk porque eu era mulher. Ou, enfim, me afeiçoei a esse
universo porque eu era mulher e era inconformada” (Entrevista com Daniela Delmondes, 2022).
Nesse sentido, cabe mencionar o papel de bandas inteiramente compostas por mulheres que bus
-
caram sua inserção no circuito punk, como a banda hardcore VHC (Figura 2), em atividade desde
2009, e o grupo The Jezebells, em atividade de 2008 a 2011. Também ocupa um papel relevante
nesse sentido a banda The Renegades of Punk (Figura 1), que conta com parte da formação da
segunda banda citada.
Figura 1
- Apresentação da banda Renegades of Punk
Fonte: Facebook (2014). Disponível em: https://www.facebook.com/rop07
Como posto acima, a banda VHC foi uma das poucas bandas hardcore-punk da cena sergipana for
-
mada apenas por mulheres. Nesse sentido, a questão de gênero foi uma temática frequentemente
abordada em suas produções, desde músicas até a participação em coletâneas de bandas femini
-
nas de diversas partes do país. De acordo com Islaine Souza, uma das componentes do grupo, ain
-
da que a VHC não estivesse vinculada a nenhum partido político, “o conteúdo explícito das letras
tinha muito sobre política, sobre questões sociais, até sobre violência contra a mulher e tudo mais”
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Erna Barros; Letícia Galvão
(Entrevista com Islaine Souza, 2022). Abaixo, a letra da música “Maldito, porco, escroto” evidencia
a postura de indignação e revolta, motivada por casos de violência de gênero vividos na cena de
rock de Aracaju, que a banda optou por refletir na sua arte:
Eu tô cansada de ouvir você falar
Que eu não posso tocar porque eu sou mulher
Eu tô cansada de ouvir você julgar
Minha capacidade por eu ser mulher
Eu to cansada de ouvir você falar
Que eu não posso tocar porque eu sou mulher
Eu tô cansada de ouvir você julgar
Minha capacidade
Se você pensa que pode me tratar como um pedaço de carne qualquer
Isso eu não sou, mas posso lhe dizer agora
Exatamente o que você é
Maldito, porco
Maldito, porco
Escroto!
Maldito, porco
Maldito, porco
Escroto!
(VHC, 2017).
Figura 2
- Apresentação da banda VHC
Fonte: Site oficial da banda. Disponível em: https://www.palcomp3.com.br/vhc/fotos.htm.
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A resistência feminina através das agências estetizadas
Além da música, a presença feminina na cena punk aracajuana também pode ser percebida a par
-
tir de outras modalidades de produção artística.
Os eventos Hardcore Contra o Fascismo, Ativa
Cena e Clandestino, por exemplo, tiveram mulheres à frente das suas organizações e foram re
-
alizados em locais públicos de acesso gratuito, como a Praça Camerino, no centro da cidade, e o
Viaduto do D.I.A, um dos pontos de maior fluxo de veículos e transeuntes de Aracaju. Também é
importante citar o programa de rádio Cidade das Mulheres (no ar desde 2021) e o fanzine I Wa
-
nna Be Yr Grrrl (Figura 3). Os fanzines, em especial, ocupam um lugar de destaque na história do
movimento punk, desde as primeiras impressões xerocadas feitas por punks do Reino Unido até
versões digitais contemporâneas, os fanzines foram (e são) responsáveis por comunicar o ideário
punk a partir de produções que exigem poucos recursos e são de fácil acesso, em consonância com
o princípio
do-it-yourself.
Abaixo, trazemos um exemplo de mobilização política recente da cena referente à situação das
mulheres. Em virtude do envolvimento de um músico da cena com alguns relatos de assédio, di
-
versas bandas e páginas relacionadas ao
underground
sergipano divulgaram uma nota conjunta
no Instagram, em julho de 2020, que propunha o boicote às atividades do referido músico em
nome da segurança das mulheres da cena:
Figura 3
- Nota de conjunta de bandas, coletivos e produtoras
Fonte: Instagram. Disponível em: http://instagram.com/_estaca
A nota oficial propõe uma postura autocrítica por parte da cena, indagando em que momento
condutas que reforçam esse tipo de assédio foram minimizadas por parte dos homens. Ao final da
nota, os autores reforçaram: “o
underground
deve ser antifascista, antirracista, anti-LGBTQIfobia e
antimachista”. Essa nota pode ser vista, além de um exemplo de ativismo simultaneamente virtual
e presencial da cena, como efeito da influência dos novos ativismos feministas da contemporanei
-
dade, que se transpõem para territórios como a política e a arte – principalmente ao considerar
que o punk mobiliza ambos e se mostra suscetível a novos debates.
Já o fanzine I Wanna Be Yr Grrrl, em específico, abordou, em sucessivas edições, questões como a
falta de reconhecimento das mulheres nas artes e a violência de gênero. De acordo com a autora
do fanzine, “a ideia surgiu diante da falta de projeção das artistas femininas locais em comparação
não só aos homens, mas também numa proporção nacional já que somos o menor estado do país
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Erna Barros; Letícia Galvão
e historicamente inferiorizado” (I Wanna Be Yr Grrrl Zine, 2020, p. 1). Também é interessante
pontuar que o I Wanna Be Yr Grrrl Zine é publicado de forma bilíngue, o que auxilia no fomento de
uma rede internacional de circulação de produções punks e feministas.
Figura 4
- Fanzine I Wanna Be Yr Grrrl #5
Fonte: Instagram. Disponível em: https://www.instagram.com/iwannabeyrgrrrlzine
Dessa forma, tanto a produção de músicas quanto de fanzines e eventos parece possuir um caráter
notadamente político. Em entrevista concedida a uma das autoras deste artigo, a artista respon-
sável pelo fanzine I Wanna Be Yr Grrrl e pelo programa de rádio Cidade das Mulheres enfatizou as
estreitas relações entre arte e ativismo político que transporta para o seu trabalho:
Pra mim ativismo político, quando você tá na cena underground, é você se educar, e tam
-
bém passar essa mensagem sobre diversas causas sociais que são afetadas diretamente
pelo sistema capitalista, e eu acho que você tem que abraçar todas as causas. Não é aquela
coisa “ah, eu vou falar só sobre feminismo”. Dentro do feminismo vão existir outras pautas,
sim, outras causas que você tem que abraçar, sabe? Então eu acho que é essa coisa de am
-
pliar os horizontes e escolher suas ferramentas, se educar, estar sempre nesse processo de
reflexão. [...] É necessário, e eu acho que através desse ativismo você faz a diferença. Eu pos
-
so dizer que quando eu levei isso pra minha zine, eu percebi que outras mulheres, sabe, se
sentiram inspiradas, eu conheço algumas mulheres que começaram a fazer zine também. É
uma ferramenta política, sim, é a sua produção, entendeu? (Entrevista com Oliveira, 2021).
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A resistência feminina através das agências estetizadas
3. Arte e ativismo a partir do punk
Como posto acima, o circuito punk aracajuano passou a contar com uma maior presença das mu-
lheres a partir do início deste século. Em um sentido histórico, é importante mencionar que esse
período se deu aproximadamente uma década depois do início do movimento Riot Grrrl,
segmen-
to punk feminista que ganhou destaque a partir dos anos 1990. De acordo com Guerra, Gelain e
Moreira (2017, p. 15), “as participantes deste movimento estavam desiludidas e revoltadas com a
exclusão a que as mulheres eram voltadas no movimento punk”. Também foi entre o final dos anos
1990 e início dos anos 2000 que ocorreu uma aproximação entre o Brasil e movimentos como a
Marcha Mundial das Mulheres (MMM), a partir de 1998, como destaca Gomide (2016). Nesse sen
-
tido, a chegada de mais mulheres na cena punk de Aracaju coincidiu com um período de crescente
abrangência das pautas feministas no país, que culminariam na chamada Primavera Feminista
após os anos 2010.
Essas questões também podem ser articuladas com algumas discussões em torno da arte como
recurso político. De acordo com Miguel Chaia (2007a), há uma série de relações possíveis entre
arte e política, tanto devido às propriedades da arte como um elemento de comunicação de visões
de mundo quanto da política enquanto mecanismo de ação social. Segundo o autor,
a obra artística carrega qualidades que afetam a percepção do mundo e fatos da política
atingem as mais diferentes esferas da sociedade, o que possibilita a tendência de aproxi
-
mação destas duas áreas distintas, criando vínculos e deixando-se influenciar mutuamente.
Como esferas da sociedade, elas podem se interpretar, gerando novas possibilidades de
atuação do sujeito, elas podem se interpenetrar, gerando novas possibilidades de atuação
do sujeito e de configuração estética. (Chaia, 2007a, p. 14).
Dessa forma, se a arte pode ser acionada enquanto recurso político – e até configurar o que Chaia
(2007b) entende por “artivismo” –, ao levarmos em conta a produção de uma arte política feita por
grupos minoritários, essa produção também pode ser vista como uma prática de resistência. Espe
-
cificamente no que diz respeito à participação feminina na cena punk de Aracaju, essa resistência
se manifesta na medida em que, a partir da música, das artes plásticas e da ocupação do espaço
público, essas mulheres buscam trazer à tona diversos questionamentos de ordem ética, moral e
ideológica frente à sociedade civil.
4. Imagens feitas por mulheres e as rupturas do graffiti
Como posto acima, neste artigo buscamos partilhar também um olhar sob o graffiti a partir dos
espaços onde ele se insere: um recorte da Grande Aracaju (SE), mas também a partir das relações
estabelecidas entre os grupos que grafitam nesse espaço, em especial grupos e coletivos de mu
-
lheres que grafitam.
Assim como nas manifestações do movimento punk, a relação de gênero e poder envolvida no
universo do graffiti é parte da prática de mulheres que se fazem presentes no espaço público da
cidade cotidianamente. Essa correlação entre ambas as práticas permite que façamos uma ponte
entre as representações estéticas e as disputas por espaço presentes nos fazeres dessas mulheres.
Em ambos os casos o processo que se observa é de ocupação dos espaços públicos tendo a repre
-
sentação artística como motor.
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Erna Barros; Letícia Galvão
Nesse sentido, buscamos observar de que forma os graffitis feitos por mulheres podem ser inter
-
pelados enquanto ferramentas de representação estética, a partir de uma perspectiva de gênero,
e em que medida essas mulheres atuam e representam seus valores e seus entendimentos sobre
a cidade e o espaço público.
Segundo Didi-Huberman (1998), uma das grandes forças da imagem é a de produzir ao mesmo
tempo sintoma e conhecimento. A partir dessa reflexão, podemos apontar, inicialmente, o graffiti
como uma ruptura dentro do ser, uma forma de comunicação e um modo de vida urbano pulsante
das cidades, mas também uma ruptura dentro do caos, que poderia agregar outros contornos e
outras reflexões além da questão estética e da representação inerentes a ele (Barros, 2012).
Entendemos, por exemplo, que a cidade compõe o tecido das relações sociais. Ela é objeto da pro
-
dução de imagens e discursos que se colocam no lugar da materialidade e do social e os repre
-
sentam (Pesavento,2007). Imagens e discursos esses que podem ser questionados a partir de um
olhar sobre as interações e as práticas imagéticas do graffiti tomando como pano de fundo as
relações de gênero e de poder existentes no ambiente urbano.
Assim, este texto busca observar a prática e estética do graffiti feito por mulheres ao passo que
também busca um olhar para a agência estética dessas mulheres na cidade e em suas formas de
ser e existir por meio da imagem.
5. A cidade e o graffiti como formas de resistir
A cidade é um espaço que une os indivíduos quando eles atuam, ainda que por vezes invisibi
-
lizados, inferindo suas agências por meio de diferentes movimentos, suportes e linguagens nas
ruas. Quando a agência das mulheres é podada, cerceada, invalidada e invisibilizada nos espaços
públicos, seja no processo de planejar, construir, pensar, estar, seja no existir na cidade, o gênero
se apresenta como algo a ser observado.
As disputas de gênero, tão presentes nas posturas críticas das cenas do punk e do graffiti feitos por
mulheres, demarcam um ponto de encontro, uma necessidade que pauta as atividades realizadas
pelos grupos de ambas as práticas. Suas intervenções urbanas propõem representar esteticamente
inúmeras críticas às relações de gênero estabelecidas em uma sociedade ainda patriarcal e machista.
Nesse contexto, a discussão acerca da cidade como um espaço construído pelas relações de po
-
der existentes na sociedade requer, sempre que abordada, um olhar atencioso para a agência das
mulheres. O papel da mulher na sociedade tem sido historicamente um papel de subserviência
em relação à figura masculina e as disputas pelo espaço público estão inseridas num contexto de
busca de direitos que envolvem a necessidade de cidades mais seguras e habitáveis às mulheres.
Diante disso, é necessário pontuar também que as relações de poder não são engessadas e transmu
-
tam à medida em que são subvertidas pelos sujeitos. A cidade, como sendo uma projeção da socieda
-
de, é também o espelho das diferenças sociais, da pluralidade e das diferentes formas de (re)existir.
O encontro com a imagem do graffiti nos confere uma pausa no olhar, e nos oferece ao nosso ime
-
diato sentido da visão como um dispositivo de pensamento. Esse dispositivo, efêmero e atemporal,
causa-nos certa ruptura, um estranhamento, um conflito e, diríamos, até uma emoção. Porém, ele
é ainda um dispositivo estético de resistência.
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A resistência feminina através das agências estetizadas
Falar de graffiti, portanto, não é falar de desenhos na parede, mas de uma representação
imagética que parte de uma “ocupação da rua”, ou ainda, um “corpo” transitando na rua.
Grafitar é, portanto, fazer-se presente sem fazer-se visível. É ainda, transitar por espaços
muitas vezes desconhecidos a partir dos sentidos de um corpo que sente e reage à experi
-
ência do contato com a cidade. (Barros, 2020, p. 68).
Sob a perspectiva de gênero, o fenômeno do grafite absorve outras particularidades. A inserção das
mulheres no universo da grafitagem envolve as dificuldades de uma prática realizada a partir de um
“existir” no âmbito do espaço público, o que por si só tem sido uma barreira histórica a ser transpas
-
sada pelas mulheres, que por sua vez tiveram de lidar com um “existir” no âmbito privado do lar e da
família.
Figura 5
- Graffitis no bairro Marcos Freire, 2016 (Nossa Senhora do Socorro-SE)
Fonte: Arquivo pessoal da autora Erna Barros
Para as mulheres, as representações no espaço público estão atravessadas por hierarquias de gê
-
nero, percebidas nas relações sociais entre os grupos, bem como nas representações que realizam
nas paredes. Não há dúvida que o ambiente do graffiti (em suas práticas e discursos) ainda é um
cenário de predomínio dos homens no qual as mulheres se tornam agentes a partir de uma prá
-
tica de resistência, posto que as práticas realizadas pelos sujeitos que grafitam estão de um lado
imbuídas de uma reprodução das desigualdades de gênero, ao passo que, de outro, há um enfren
-
tamento a essa desigualdade (Barros, 2020).
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Erna Barros; Letícia Galvão
Figura 6 e 7
- Graffitis na Av. José Carlos Silva (Aracaju, SE), 2020
Fonte: Arquivo pessoal da autora Erna Barros
As intervenções por meio do graffiti e essa ocupação visual da cidade como fenômenos e como
práticas de resistência constantemente se articulam a partir de relações de gênero estabelecidas
por seus sujeitos. Nessa ocupação visual, prática de resistência que assume diferentes significados
para homens e mulheres, ainda é notória a participação massiva de homens, no entanto, a reflexão
que se faz necessária aponta para a dupla transgressão da grafiteira, enquanto sujeito que inter
-
fere na paisagem urbana de forma subversiva e enquanto agência da mulher no espaço público
(Barros, 2020).
Figura 8 – Graffitis no Bairro Industrial – Aracaju-SE (2016)
Fonte: Arquivo pessoal da autora Erna Barros)
Relacionar-se com a cidade, para a mulher, perpassa inevitavelmente um “existir” diante de dinâ
-
micas de poder patriarcais, nas quais o fazer masculino ainda predomina. A ocupação visual da
cidade realizada por mulheres, portanto, é aqui vista como uma forma de resistir a esse contexto,
subvertendo os espaços à medida que constroem neles outros significados, outros usos e outros
discursos. Assim, é importante entender a prática do graffiti feito por mulheres como uma forma
de agência estética que tem a resistência como característica fundamental.
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13
A resistência feminina através das agências estetizadas
6. Percorrendo territórios: graffitis da Grande Aracaju
Levando em conta as características urbanísticas da Região Metropolitana de Aracaju (bem como da
própria Aracaju),
uma das autoras deste artigo buscou
observar como o graffiti se apresentou em al
-
guns espaços, acompanhando grupos de grafiteiras ao longo de três anos enquanto realiza
va sua pes-
quisa de doutorado em
S
ociologia na Universidade Federal de Sergipe, entre os anos de 2016
e
2018.
Ao olhar o ambiente urbano da Grande Aracaju “de perto e de dentro”, como propõe Magnani
(2002, p. 17),
foi considerada
também “a existência de grupos, redes, sistemas de troca, pontos
de encontro, instituições, arranjos, trajetos e muitas outras mediações por meio das quais aquela
entidade abstrata do indivíduo participa efetivamente, em seu cotidiano, da cidade”.
Nessas andanças,
foi observado onde tais imagens se concentravam, e pudemos
analisá-las como
pistas
que guiam o olhar do citadino para os locais com maior atividade de grafitagem. Característica “concen
-
tração”, no entanto, é sempre efêmera, tal como o próprio graffiti já que há uma materialidade fugidia em
todo graffiti na parede, que torna imprevisível sua permanência nos espaços. Segundo Glória Diógenes
(2013, p. 58): “[...] A arte urbana, a
street art
, se constitui no esteio efêmero das inscrições que se mes
-
clam aos suportes materiais da cidade e, ao serem rascunhadas, por terem existência efêmera, evocam o
próprio caráter transitório da vida urbana. Essa é uma arte, [...] que existe para ser apagada”.
O relato a seguir buscará, então, dar conta do mapeamento realizado, observando os coletivos de
mulheres atuantes à época e os sentidos das imagens produzidas enquanto formas de resistência
e enquanto agência dessas mulheres na cidade.
As
crews
3
de mulheres que grafitam na cidade, como as Arteiras Crew e a Donas do Rolê, estavam
bastante presentes
nos muros da cidade. A
crew
Donas do Rolê possuía integrantes dos estados da
Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro e as Arteiras Crews também possuía integrantes em diferen
-
tes estados do país.
Figura 9
- Bairro Industrial, Aracaju-SE (2016)
Fonte: Foto cedida por Andrea Oliveira.
3 No graffiti, o termo
crew
é usado para se referir a grupos e “galeras” formados por grafiteiros. (Galvão, 2021, 2023; Furtado, 2012).
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14
Erna Barros; Letícia Galvão
O Arteiras Crew
foi criado no intuito de “fortalecer a cena feminina, descriminalizando e propa
-
gando a arte urbana tendo como objetivo principal fomentar a cultura Hip Hop através da constru-
ção cultural, com o desenvolvimento da arte urbana representada pelo graffiti e pela pichação”
4
. Já
a
crew
Donas do Rolê tem na discussão do papel da mulher na sociedade uma de suas principais
pautas. Essa
crew
se define como uma
crew
feminista que busca mensagens que enalteçam a luta
das mulheres na sociedade.
Figura 10 e 11
- Encontro Nacional de Graffiti (Bairro Industrial, 2016 (Aracaju-SE)
Fonte: Arquivo pessoal da autora Erna Barros
Ambas, bastante atuantes em Aracaju, apontam para a importância da pauta feminista e de resis
-
tência por meio da expressão artística nas ruas da cidade, posicionamento muitas vezes carregado
de questões que atravessam os muros onde grafitam. Para Ferreira e Ferreira (2016, p. 2):
[...] ser uma mulher e grafiteira é ainda mais complicado e traz novas discussões, novas
questões que vão desde o direito a ter um espaço maior no muro para grafitar até respeito
por sua produção artística como algo que tem qualidade e que merece ser reconhecida
assim. Pois, em sua relação com os homens as meninas precisam provar todos os dias que
também sabem fazer arte[...].
Figura 12 e 13
- Grafiteiras no bairro Marcos Freire, 2016 (Nossa Senhora do Socorro-SE)
Fonte: Arquivo pessoal da autora Erna Barros
4 Definição disponível na página do facebook oficial do grupo Arteiras Crew.
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15
A resistência feminina através das agências estetizadas
A cidade experimentada pelas grafiteiras apresenta-se quase sempre como uma cidade cheia de
hostilidades. Após o contato direto com grafiteiras da cidade de Aracaju,
foi possível perceber
que
a cidade tem sido tomada por imagens feitas por mulheres que percebem e vivenciam o espaço
público a partir de uma experiência bastante particular que envolve a condição de mulher e as
relações desiguais de gênero e poder existentes na nossa sociedade.
Historicamente, essa desigualdade se apresenta de diversas maneiras no espaço público, sendo
uma delas a violência de gênero, física ou simbólica. Ainda que as hostilidades das cidades atin
-
gem a todos de maneira muito violenta, dentro de diversas particularidades, elas atingem as mu-
lheres de maneira ainda mais intensa em consequência das relações desiguais de gênero.
As imagens criadas pelas grafiteiras são, nesse contexto, a busca por uma comunicabilidade com
o espaço público, além de ser uma forma de resistir a essa hostilidade da cidade, transgredindo
essa lógica por meio do graffiti, reivindicando uma agência que comporte um diálogo próprio com
o espaço público por meio de imagens que traduzam um existir naquele espaço, historicamente
repleto de imagens produzidas por um fazer masculino.
Nessa perspectiva, ao observar as grafiteiras em suas saídas pela cidade de Aracaju, houve a des
-
coberta de uma cidade de múltiplos contornos, que se fez pelo caminhar, observar e experimentar
por “sobre os ombros” das grafiteiras como um exercício de percepção de uma cidade que foi vista,
sentida e vivenciada sob uma perspectiva de gênero.
Figuras 14 e 15
- Produção de Graffitis em mutirão no Bairro Industrial, 2016 (Aracaju-SE)
Fonte: Arquivo pessoal da autora Erna Barros)
A experiência na cidade para a mulher é dotada de muitas limitações, particularizadas na condição
de gênero. A ameaça do assédio, por exemplo, é algo que inevitavelmente determina o local que o
grupo irá escolher para grafitar, o horário das saídas, quem estará presente, entre outras táticas
adotadas para que a atividade possa ser realizada.
Às vezes a gente precisa pintar de madrugada, mas eu nunca saí sozinha de madrugada.
Pelo fato de ser mulher. Já meus amigos homens saem sozinhos de madrugada, mas a gente
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16
Erna Barros; Letícia Galvão
não, não é só o medo da polícia, é o medo do estupro, né? E pelo fato de ser mulher e estar
mais sujeita a ser assaltada, é bem mais fácil do que homem. Geralmente os bandidos pre
-
ferem assaltar a mulher do que o homem. Isso porque a gente
às vezes não tem tanta força
para reagir assim, e brigar, e assim se torna um alvo mais fácil. É complicado nesse sentido,
sair determinada hora e já não dá para ficar sozinha na rua, para pintar sozinha já é mais
arriscado, a gente tem de estar sempre saindo de dia, e tem lugares que são bem movimen
-
tados, tem de ser depois de 9 horas da noite, e esse horário já é mais esquisito para a gente
estar na rua sozinha. Outra coisa é estar com outra mulher, porque dá no mesmo, sinto que
sempre temos de estar com um homem presente no rolê. Isso é uma coisa que limita um
pouco as mulheres estarem no graffiti pelo fato de o graffiti ser uma arte em locais públicos,
então tem esses riscos. (Entrevista com grafiteira Deza, 2018).
Figura 16
- Grafiteira, Aracaju (SE)
Fonte: Arquivo pessoal da grafiteira.
Quando o corpo feminino se mobiliza no transitar pela cidade, atuando sobre ela, tanto sua ação
como as marcas que deixa são precisamente formas de resistência. Entendemos que o corpo da
mulher, sua presença tanto quanto sua manifestação, defronta-se com uma construção social que
divide os corpos na sociedade entre “um que aparece publicamente para falar e agir e outro, se
-
xual, pulsante, feminino, estrangeiro e mudo, que geralmente é relegado à esfera do privado [...]”
(B
utler
, 2018, p. 95).
Segundo Butler (2018, p. 95), nosso aparecimento enquanto indivíduos na sociedade tem de ser
registrado pelos sentidos, não apenas os nossos, mas os de alguém mais. Esse “aparecimento”
dos corpos de quem grafita surge, então, no contexto das grafiteiras, por meio das inscrições dei
-
xadas nas ruas, e ainda que essa presença não seja corporal, ela está lá, mediada pela mensagem
deixada, pelo conteúdo oferecido, pela forma e pela dimensão estética de um fazer político. Por
uma agência feminina na cidade que se manifesta no enfrentamento do medo e na resistência à
invisibilidade de suas ações.
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A resistência feminina através das agências estetizadas
7. O punk e o graffiti como mecanismos de ação estética
Como visto até o presente momento, no contexto das culturas urbanas e juvenis da cidade de Araca
-
ju, o movimento punk e o graffiti se posicionam como possibilidades de ação de algumas mulheres,
como forma de responder às múltiplas dinâmicas de opressão social vividas por elas nos mais distin
-
tos contextos. Os estudos sobre gênero nos possibilitam analisar esse fenômeno quando inferimos,
de acordo com Butler (2019), que “os gêneros são instituídos pela estilização do corpo e, por isso,
precisam ser entendidos como o processo ordinário pelo qual gestos corporais, movimentos e ações
de vários tipos formam a ilusão de um Eu atribuído de gênero imemorial” – o que significa que o gê
-
nero pode ser visto, em suma, como um ato performático; e é por meio de novos atos performáticos,
que desafiam posições de sujeito outrora atribuídas em totalidade ao gênero feminino, que a inser
-
ção das mulheres no punk e no graffiti estabelece contrapontos a essa estrutura.
Outra discussão que pode ser construída a partir dos dados apresentados diz respeito à ques
-
tão da agência. De acordo com Sherry B. Ortner (2006), o termo agência pode ser definido como
uma série de disposições incorporadas por sujeitos sociais voltada à capacidade de realização
de projetos culturalmente definidos. Nesse sentido, as possibilidades de resistência oferecidas
pela produção artística podem se configurar enquanto modalidades de agência para as mulheres
envolvidas nesse processo, na medida em que se tornam também recursos para contestar ideais
pré-estabelecidos para indivíduos do gênero feminino.
Também podemos pensar nesse fenômeno a partir do conceito de agências estetizadas, desenvol
-
vido por Marcon (2019, p. 192) para pensar as modalidades de ativismo juvenis contemporâneas.
Segundo o autor, os sujeitos envolvidos nessas modalidades de ativismo “expressam e usam um
amplo repertório criativo de práticas e símbolos com referências locais e globais e que carregam
sentidos políticos intrínsecos nos contextos em que aparecem”. Esse repertório pode ser visto nas
produções do punk e do graffiti femininos em Aracaju, que, a partir de músicas, murais, fanzines
e eventos, repercutem novas perspectivas sobre o que significa ser mulher e transitar na cidade.
Considerações finais
As discussões trazidas neste artigo nos proporcionaram olhar para distintas formas de se ocupar
a cidade e produzir arte para as mulheres. Diversas frentes podem ser ocupadas nesse sentido,
como pôde ser visto a partir do ativismo feminista punk em Aracaju, que tem como principais ve
-
ículos a música e as artes plásticas, e do graffiti, que articula modalidades de intervenção artística
e ocupação do espaço público por vias não-convencionais.
Observamos que, quando grafitam, as mulheres agregam para si outras formas de se relacionar
com a cidade, experimentando necessariamente outra cidade, com a qual interagem, somam suas
vivências e também suas histórias. Podemos pensar o quão significativo é para uma mulher estar
nas ruas, no espaço público da cidade, interferindo ativamente em sua paisagem. As mulheres que
grafitam se impõem à cidade hostil, provocadas por e agindo contra
o medo, e assim legitimam
suas presenças e reivindicam uma agência na cidade a partir de um fazer de resistência. Assim, por
meio da ocupação dos muros da cidade pelo graffiti, muitas vezes provocada pela hostilidade do
espaço urbano, a cidade é confrontada e transformada. Falamos, portanto, não apenas de imagens
pintadas na cidade por mulheres, mas em uma agência que se apresenta a partir de diferentes
formas de resistir, mas também de existir nesse espaço.
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18
Erna Barros; Letícia Galvão
Já o punk, por ser um movimento simultaneamente artístico e político, comporta várias formas de
ação coletiva que se manifestam na música, na poesia, nas artes plásticas e também nas formas de
ocupar o espaço público propostas a partir da lógica do faça-você-mesmo. Essas formas de ativis
-
mo, como visto, dialogam com pautas políticas. No campo do ativismo feminista, pudemos ver que
o punk, além de construir um sentido de pertencimento para as mulheres que a ele se associam
– já que os seus principais fundamentos se baseiam na contraposição a várias estruturas de domi
-
nação –, também representa uma forma de ação diante dessas estruturas.
Entretanto, é importante ressaltar que ainda há uma série de percalços enfrentados pelas mu
-
lheres em ambos os contextos trazidos para análise no presente trabalho: no movimento punk, a
reivindicação pelo reconhecimento feminino na cena ainda é uma luta constante, como ressaltado
pelas interlocutoras que contribuíram para a escrita deste artigo. No graffiti, a hostilidade do espa
-
ço urbano ainda é uma questão que atravessa as vivências das grafiteiras aracajuanas. Entretanto,
como posto, a resistência diante de tais situações é um fator comum às mulheres do punk e do gra
-
ffiti, que buscam estabelecer seus próprios mecanismos de contestação diante dessas realidades.
Dessa forma, considerando esses mecanismos e também a forte presença da expressão artística
no punk e no graffiti, podemos concluir que ambos representam formas de agências estetizadas
que se interseccionam com um recorte de gênero no campo das culturas e dos movimentos ur
-
banos da cidade de Aracaju. O que nos permite inferir que o punk e o graffiti, em sua diversidade
de expressões e adaptações, podem ser interpretados como linguagens políticas de emancipação
feminina contemporâneas.
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20
Erna Barros; Letícia Galvão
Feminine resistance through aesthetic
agencies: reflections on the punk
movement and graffiti in Aracaju
Abstract:
This article aims to raise discussions around fema
-
le agency modalities conveyed through the arts,
with a focus on the punk movement and graffiti as
practices of resistance. The methods adopted for
data collection and interpretation were literature
review, direct observation, semi-structured inter
-
views and content analysis (Minayo, 2014). After
contact with the fields, it was possible to conclude
that, in the context of contemporary urban cultu
-
res, the arts can be configured as resources for con
-
testing hegemonically masculine spaces by women
linked to these contexts, something that we were
able to identify both in the field of graffiti and the
punk movement in the city of Aracaju, and which
allowed us to associate these practices with the
concept of aesthetic agencies thought by Marcon
(2019) to define new modalities of contemporary
political activism.
Keywords
: Female resistance. Arts. Graffiti. Punk
movement.
Resistencia femenina a través de agencias
estéticas:reflexiones sobre el movimiento
punk y el graffiti en Aracaju
Resumen:
Este artículo tiene como objetivo suscitar discusio-
nes en torno a las modalidades de agencia femeni-
na transmitidas a través de las artes, con foco en
el movimiento punk y el graffiti como prácticas de
resistencia. Los métodos adoptados para la reco-
lección e interpretación de datos fueron revisión
de literatura, observación directa, entrevistas se
-
miestructuradas y análisis de contenido (Minayo,
2014). Tras el contacto con los campos, fue posible
concluir que, en el contexto de las culturas urba
-
nas contemporáneas, las artes pueden configurar
-
se como recursos para la contestación de espacios
hegemónicamente masculinos por parte de muje
-
res vinculadas a estos contextos, algo que pudimos
identificar tanto en el campo del graffiti y como
en el movimiento punk en la ciudad de Aracaju, y
que permitió asociar estas prácticas al concepto
de agencias estéticas pensado por Marcon (2019)
para definir nuevas modalidades del activismo po
-
lítico contemporáneo.
Palabras clave
: Resistencia feminina. Artes. Graffi
-
ti. Movimiento punk.
HISTÓRICO
Recebido: Fevereiro/22
Parecer: Abril/23
Parecer: Abril/23
Aceito: Abril/23
Revisado Autor: Maio/23
Revisão Gramatical/Ortográfica e ABNT: Maio/23
Revisado Autor: Junho/23
Diagramação: Junho/23
Publicado: Junho/23
Equipe Editorial Revista TOMO envolvida no processo editorial deste artigo
Marina de Souza Sartore (Editora-Chefe)
Fabiana Bartira de Souza Brito (Editora assistente júnior)