image/svg+xml1Revista TOMOSão Cristóvão, v. 42, e18803, 2023Data de Publicação: Junho/2023DossiêTem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”Ana Ângela Farias Gomes1Victor Adriano Ramos2Resumo:O artigo analisa a presença da mulher negra nas telenovelas da Rede Globo, com foco em “Lado a lado” (2012-2013), tendo em vista a presença de personagens negras com protagonismo. Nossa base teórica en-contra um diálogo alicerçado no pensamento feminista negro a partir das reflexões de Patricia Hill Collins e Lélia Gonzalez. Buscamos empreender uma análise de conteúdo evidenciando as categorias defendidas por tais autoras. O processo metodológico utiliza o conceito desenvolvido por Diane Rose em “análise da ima-gem em movimento”, que considera a análise específica dos fenômenos televisivos. Nosso tensionamento central é compreender como essas representações atuam para quebrar noções estereotipadas da população negra em geral e, em específico, da mulher negra, ou manter conceitos racistas e pré-determinados.Palavras-chave: Representação. Telenovela. Personagem. Feminismo negro. Lado a lado.IntroduçãoSegundo dados do último censo do IBGE, a população negra (entendida como a somatória de pre-tos e pardos) representa 54,5% da população brasileira. Sendo assim, a pergunta “onde estão a negra e o negro nas telenovelas brasileiras?” se mostra relevante. Considerando ainda que as mulheres são 52% da população mundial, e ainda assim permanecem sub- representadas, é ne-cessário observar esses dados para entender como essas parcelas permanecem em posições de desvantagem social. A interseção entre os dois dados joga luz para a situação específica da mulher negra, vista a partir da pirâmide social como o elemento a ocupar a mais baixa posição.Os meios de comunicação, em especial a televisão a partir de sua difusão das telenovelas, detêm uma expressiva concentração de poder. Sobre isso, Lopes (2003, 2009, 2014) afirma que esse veículo de comunicação ocupa no Brasil, devido às suas características específicas, geográficas e culturais, um espaço privilegiado, que, antes, tradicionalmente, era ocupado por outros espaços de 1Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas. Departamento de Comunicação Social. Aracaju, Sergipe, Brasil. Email: anaangela@academico.ufs.br https://orcid.org/0000-0001-7596-4777 2Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Culturas Contemporâneas. Faculdade de Comunicação. Salvador, Bahia, Brasil. Email: adrianovctr92@gmail.comhttps://orcid.org/0000-0002-1746-3461Dossiê
image/svg+xml2Ana Ângela Farias Gomes; Victor Adriano Ramosdominação, como a igreja e a escola. Sendo assim, a TV detém um enorme poder de influência na formação identitária por ser o principal veículo de informação e entretenimento. A autora defende que esse espaço pode ser entendido como um “novo espaço público” (Lopes, 2009, p. 23), no qual os postos de comando da sociedade passam a ter o controle do repertório compartilhado que an-tes estava nas mãos dos intelectuais.Este artigo tem como principal objetivo apresentar os primeiros resultados obtidos a partir da pesquisa “Tem negra nessa novela? Representação da mulher negra em ‘Lado a lado’”, na qual apresentamos uma extensa análise dessa narrativa seriada, com foco nas personagens femininas negras. A escolha do produto analisado considera, além da posição de protagonismo da persona-gem negra, o aparente compromisso do enredo em apresentar e discutir relações raciais, seja dire-ta, seja indiretamente, fator que julgamos inicialmente como um dado relevante para a realização da pesquisa. Por meio da análise do enredo compreendemos de forma ampla as estratégias de aproximação com o público a partir das diferentes utilizações das personagens negras dispostas ao longo da narrativa.Essa produção apresenta uma característica que percebemos como recorrente em outras obras, o multiprotagonismo. Entendemos inicialmente que esse fato pode ser encarado como uma estraté-gia para veiculação de mais protagonistas racialmente identificadas como não brancas. Buscamos, por meio da análise de “Lado a lado”, entender de que maneira o multiprotagonismo auxilia para melhor apresentação de personagens de diferentes percepções raciais. Consideramos as perso-nagens negras dispostas no enredo, sendo elas: Isabel (Camila Pitanga), Berenice (Sheron Mene-zzes), Jurema (Zezeh Barbosa), Etelvina (Laís Vieira) e Zenaide (Ana Carbatti), conferindo a par-tir de noções interseccionais suas funções na narrativa em relação à disposição das personagens identificadas como brancas.Ao apresentar um casal de protagonista negros, “Lado a lado” subverte o padrão histórico, sendo a primeira novela do horário das 18h da Rede Globo a trazer não só o protagonismo negro, mas tam-bém outras personagens negras com algum nível de complexidade narrativa. Sendo assim, con-sideramos essa telenovela como um marco histórico, definindo-a como a primeira a trazer uma perspectiva complexa às populações negras, revelando como o período imediato ao pós-abolição trouxe graves consequências para essa população, e para o país de maneira geral, configurando o período como o embrião formativo da sociedade brasileira.Para a análise, dialogamos com Lélia Gonzalez e Patricia Hill Collins, em relação à presença de mu-lheres negras na sociedade. Os trabalhos dessas pesquisadoras possuem pontos de semelhanças ao apresentar de maneira categórica como a sociedade, por diversos meios — sendo o audiovisual um dos mais importantes — enxerga as mulheres negras. As duas autoras, em seus diferentes contextos sociais, promoveram questionamentos em relação à maneira como obras audiovisuais justificam e até mesmo criam alguns estereótipos associados à população negra, principalmente as mulheres, e como isso colabora para uma visão superficial e calcada em preconceitos que essa parcela da população sofre diariamente.Collins (2019) nomeia como “imagens de controle”, entendendo que essas categorias comumente vinculadas às mulheres negras as aprisionam, servindo como um rígido controle para os corpos negros, cumprindo assim uma meta estabelecida pelo Estado para a manutenção das relações subjacentes das pessoas negras. Gonzalez também segue raciocínio similar em suas contribuições sobre a posição da mulher negra brasileira, afirmando que essa foi, desde o período escravocrata, um dos pilares de construção da nossa identidade nacional. Porém, a partir de determinados me-
image/svg+xml3Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”canismos, como a ação deturpada dos meios de comunicação, em especial as telenovelas, a ima-gem dessa mulher negra, assim como dos homens negros, é comumente associada a conotações estereotipadas e inferiores.Collins (2019) associa o pensamento feminista negro como uma importante fonte teórica, não só para mulheres negras, como também para outros grupos sociais, que, consequentemente, pode ser usado e articulado em outras esferas de estudos:Ao defender, aperfeiçoar e disseminar o pensamento feminista Negro, os indivíduos de ou-tros grupos que estão envolvidos em projetos de justiça social similares — homens Negros, mulheres Africanas, homens Brancos, Latinas, mulheres Brancas e membros de outros gru-pos raciais/étnicos norte-americanos, por exemplo — podem identificar pontos de articu-lação que façam avançar os projetos de justiça social. (Collins, 2019, p. 118).A análise da telenovela foi desenvolvida a partir da metodologia desenvolvida por Diane Rose (2002) intitulada “análise de imagens em movimento”. A autora propõe a tabulação de cenas se-lecionadas com base no referencial teórico do autor ou da autora. Os quadros aqui apresentados se dividem em relação às dimensões sonora e visual, sendo nessa última necessária a criação de categorias que visam compreender e buscar as informações por meio do que está sendo exposto. Juntas elas nos darão as informações necessárias para a conclusão.Para isso, dividimos a narrativa em eixos, sendo eles: casamento, maternidade e carreira, pois compreendemos que, dentro da trama analisada e em conjunção com as explicações trazidas pelas autoras, se faz necessário investigar a partir desses três pontos como as personagens mulheres negras estão representadas. Neste artigo, apresentamos as análises referentes ao eixo narrativo da maternidade. Foram selecionadas cenas em cada uma das categorias que abarcam não só a trajetória da protagonista, como também de outras personagens, assim conseguimos obter dados suficientes para responder às nossas indagações.1. Apontamentos sobre a televisão: onde estão o negro e a negra na programação da Rede Globo?A telenovela está inserida em um campo específico, o da televisão, portanto obedece a regras que guiam esse campo. Além disso, está também inserida em um subcampo que seriam os das pro-duções seriadas folhetinescas. Como a televisão brasileira se insere em uma lógica de mercado dependendo das inserções publicitárias, essa relação se torna relevante para podermos refletir sobre as formas de produzir uma telenovela, assim como o que pode ser abordado em sua trama. François Jost (2007), ao estabelecer as relações que moldam as funções das emissoras em sua aná-lise da televisão francesa, mas que serve também como modelo de aplicação em outros sistemas televisivos, afirma que:Uma emissora é, ao mesmo tempo, uma empresa, regida por uma lógica econômica; uma instituição, voltada a missões no espaço público; e uma marca, em concorrência com outras emissoras, via seus programas e programação. Essas três instâncias interferem, cada uma à sua maneira, sobre a programação (Jost, 2007, p. 89-90).Esta afirmação elucida bem a maneira como os grupos empresariais que constituem as emisso-ras de televisão precisam estar posicionados. A programação desses canais considera todas essas
image/svg+xml4Ana Ângela Farias Gomes; Victor Adriano Ramosinstâncias, sem perder de vista a busca pela audiência e o consequente faturamento por meio de investimentos publicitários. Apesar de serem concessões públicas, portanto estão sujeitas a cum-prir regras preestabelecidas, as emissoras atuam como empresas privadas que estabelecem as suas próprias regras, mantendo relações diretas com o mercado publicitário, o que podemos en-tender como televisão corporativa (Svartman, 2019). Esse modelo funciona em escala industrial na produção diária de programas, mantendo estreita ligação com empresas de publicidade por meio da venda de inserções em seus intervalos comerciais ou até mesmo na diegese das narrativas audiovisuais, nos telejornais e nos programas de auditório.Podemos inferir que as demandas sociais passam pelo crivo das empresas de telecomunicação que avaliam a necessidade de inclusão ou não das temáticas, segundo os seus interesses. Porém, chama atenção a falta de controle de órgãos públicos dentro dessas empresas no incentivo ao aumento de diversidade racial, entre outros tópicos de interesse público. Essas demandas são apenas acatadas quando visam estabelecer retorno financeiro. Com relação a isso, Santos (2021, p. 49) afirma que “a televisão brasileira nasceu privada e com intenções comerciais, baseada no modelo estadunidense, instrumentalizada para reproduzir o modus vivendi da elite dominante e inferiorizar mentalmente a negros e mestiços”.Gonzalez (2020), em seu discurso na constituinte em 1987, reforça o pensamento de que os meios de comunicação de massa favorecem uma imagem positiva associada à parcela branca da socie-dade, alimentando assim a ideia de negros como significância de algo pejorativo, favorecendo um discurso do “embranquecimento”, expresso nos meios de comunicação por meio da escolha de pessoas de pele clara para viverem personagens negras, por exemplo o caso da novela “Escrava Isaura”3. Porém, também acontece com a articulação, por produções audiovisuais, de casais in-terraciais, reforçando a ideia de branqueamento social. Todas essas questões estão intimamente relacionadas à maneira como a mídia de massa representa os negros e negras brasileiros. A autora nos diz que:Ao levarmos em consideração que a ideologia é veiculada nos meios de comunicação – na escola, nas teorias e práticas pedagógicas –, vamos constatar o quê? Sabemos sempre que a escolha de um sistema de representação, de classificação, valoração e de significação nos remete sempre a uma cultura dominante. No caso da sociedade brasileira, apesar da contri-buição extraordinária que o negro trouxe, vamos perceber que a cultura, a classe e a raça do-minante impõem ao todo desta sociedade uma visão alienada de si (Gonzalez, 2020, p. 245).A supremacia branca entende que a partir dessas imagens veiculadas de forma preconceituosa será possível determinar e significar toda a população pertencente àquele grupo. Sobre isso, Mo-reira (2019) entende o poder dos meios de comunicação, em especial a televisão, como um im-portante ponto de apoio para a manutenção das relações sociais anacrônicas, em que o grupo social mais privilegiado exerce pressão para manter as minorias silenciadas, pois “[…] mais do que representações específicas da raça, a televisão é um lugar de legitimação de vários outros aspectos responsáveis pela reprodução da hegemonia social das pessoas brancas” (Moreira, 2019, p. 66).Mostra-se necessário entender os demais agentes que regulamentam o campo televisivo para po-dermos responder algumas perguntas, entre elas: por que não é comum a presença do negro e da 3A novela “Escrava Isaura” foi exibida pela Rede Globo em 1976 no horário das 18h. A trama, livre adaptação da obra de Bernardo Guimarães, apresentava a personagem Isaura, interpretada pela atriz branca Lucélia Santos como protagonista.
image/svg+xml5Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”negra nas principais tramas das telenovelas brasileiras? Por que há divisão entre protagonistas negros e brancos nas telenovelas? Quais relações com o índice de audiência e a trama central dessas produções? Esses questionamentos podem ser alcançados por meio da análise da teleno-vela selecionada nesta pesquisa, mas para isso também temos que entender a estrutura que cerca essas produções.Pautar uma telenovela inteira revelando as problemáticas sociais relacionadas às maiorias meno-rizadas (Santos, 2020) pode afastar parcelas conservadoras da audiência ou até mesmo grupos da população que não estão interessados em discutir determinadas problemáticas. Porém, existe uma parcela expressiva da população que clama por essas inserções, o que é entendido como uma representatividade para esses grupos.A emissora se vê então em uma encruzilhada para cumprir o seu papel social sem arriscar perder capital financeiro. Mais uma vez chamamos atenção para as especificações da produção televi-siva. No caso específico da telenovela, os autores tendem a buscar maneiras de aproximar essas personagens dos telespectadores, usando em seu favor a longa duração das tramas e a narrativa marcadamente folhetinesca. São estratégias que as empresas precisam recorrer por meio dos autores, como a solução do multiprotagonismo em “Lado a lado”.Com a absorção das chamadas pautas identitárias pelo capitalismo, tem sido cada vez mais co-mum que grandes corporações em vários segmentos, principalmente o midiático, se aproximem desses grupos inserindo em seus quadros de funcionários e apresentando por peças publicitárias o seu aceno a essas bandeiras (Caldwell apud Lima, 2018). Das 73 telenovelas produzidas pela Globo entre 2010 e 2020, apenas 12 tiverem protagonismo negro e apenas uma delas teve todo seu enredo pautando as relações raciais em diversos níveis da sociedade brasileira. Porém, todas elas apresentavam ao menos duas personagens negras em seu elenco (Ramos, 2022).O Grupo de Estudos Multidisciplinar de Ação Afirmativa (GEMAA) tem promovido pesquisas que buscam apresentar diagnósticos da presença racial em telenovelas da Globo (Candido, 2019; Campos; Feres Junior, 2015) com resultados relevantes sobre a presença racial nas tramas. Uma das pesquisas para a qual chamamos atenção é em relação às protagonistas não brancas, em que apenas 13 atrizes se destacam nessa posição, sendo elas: Taís Araújo, Juliana Paes e Camila Pitan-ga. Apenas em 2023, Sheron Menezzes entra nessa seleta lista ao protagonizar “Vai na fé”4, novela das 19h.Essa mudança, lenta, mas perceptível, pode ser atribuída a alguns fatores além do já apontado in-teresse de grandes empresas nos assuntos entendidos como pautas identitárias, como o interesse na projeção de lucros ao se associar a novos possíveis consumidores, a partir da lógica: “se eu não me vejo representado em um produto, não compro”. Com isso, tem sido cada vez mais comum a aproximação com as parcelas sub-representadas, entre elas a população negra.4Novela das 19h, escrita por Rosane Svartman, traz como foco principal a personagem Sol (Sheron Menezzes), ex- dançarina de funk que aos 40 anos tem a oportunidade de reviver seus sonhos de juventude, mas com o diferencial de atualmente ser uma mulher evangélica com duas filhas. A produção se destaca por apresentar metade do elenco formado por pessoas negras, além de roteiristas negras na equipe de escrita.
image/svg+xml6Ana Ângela Farias Gomes; Victor Adriano Ramos2. “Lado a lado”: um marco histórico na teledramaturgia brasileiraA telenovela “Lado a lado” teve sua exibição entre setembro de 2012 e março de 2013, com 154 capítulos exibidos no horário das 18h. Foi dividida em duas fases, a primeira com uma média de 50 capítulos, marcando o início da trama central que dá corpo para a obra na totalidade; e a segunda marcada pelo desenvolvimento e conclusões das situações. Baccega et al. (2016, p. 18) definem “Lado a lado”: “como uma novela sociocultural […] ocupando, muitas vezes, o local de fala dos excluídos da história oficial, ela abre um canal de diálogo e discussões a questões ligadas a res-peito e diferença, a construção da cidadania, identidade nacional e cultural”. A trama busca desde o princípio reinserir partes da população constantemente marginalizadas, fazendo isso de forma sistemática ao retratar, a partir da população negra, a reencenação da história oficial do Brasil.Os autores, brancos – João Ximenes Braga e Claudia Lage –, ao inserirem personagens do dia a dia interligando suas vivências cotidianas com os grandes fatos históricos do início do século XX, criam uma ficção que busca apresentar variadas vivências negras. Braga (apud Geledés, 2013) define “Lado a lado” como “uma novela muito brasileira. No pano de fundo das nossas histórias de amor, mostramos fatos que ajudaram a definir a identidade cultural brasileira, como o samba, a capoeira, o carnaval, a popularização do futebol, as religiões de matriz africana, as favelas”.A telenovela apresenta personagens conscientes de sua condição racial, que não baixam a cabeça e lutam pelos seus direitos. Chegando a nomear as situações em que estão inseridos de racistas, mesmo exibida em um contexto histórico no qual o racismo não era um crime previsto de retalia-ção, fato que só acontece décadas depois. Porém, ao exibir essas situações no tempo presente, a narrativa dialoga com o público, e, ao assumir posturas de combate, as personagens de “Lado a lado” se mostram como donas de sua própria trajetória, diferente do que é comumente apresen-tado em relação à personagens negras em outras produções. Com isso, não devemos confundir as intenções com as ações práticas vistas em cena. Sobre a construção das personagens, Claudia Lage, em entrevista para o portal Geledés, afirma que “essa foi uma proposta bem pensada, não ter nenhum personagem negro sem essa consciência, com postura passiva e/ou conformista em rela-ção à condição de seu povo” (Cardoso, 2013, n.p.). Entendemos, com base nas entrevistas, que os autores criam a novela como um projeto com intenção de construir uma nova e potente referência sobre como o negro e a negra são retratados na televisão brasileira, oferecendo assim uma visão ampliada de representação a ser explorada em futuras tramas da emissora.Ao longo da trama, fatos históricos são apresentados. Além da construção do primeiro agrupa-mento social, a favela, é abordado o surgimento do samba enquanto ritmo musical. A Revolta da Vacina (1904) e a Revolta da Chibata (1910) também são trazidas a partir das perspectivas da reconstrução de figuras históricas como João Candido, que vira um personagem dentro da novela, mas é espelhado no personagem Zé Maria. Esse personagem assume a figura de alguns heróis na-cionais negros, colocando-se em primeira pessoa.Além desses movimentos, a trama incorporou a sua narrativa a figura histórica de Tia Ciata, conhecida mãe de santo que disponibilizava seu terreiro para grupos de samba, sendo então conhecida como uma das pessoas responsáveis pelo surgimento e popularização do ritmo. A personagem Tia Jurema a representa, além de ser a pessoa responsável pelos caminhos espirituais que interligam a narrativa das várias personagens. De acordo com Baccega et al. (2016, p. 7) “Lado a lado reconstrói o fato histórico através do olhar do povo que conta a história vivida, seus protagonistas que fazem parte das classes menos favorecidas da sociedade de ontem e de hoje, trazendo para a atualidade essas discussões”.
image/svg+xml7Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”Essa trama se apropria de uma narrativa histórica dialogando com a posição em que a novela ocupa na faixa de horários da emissora. As faixas horárias reservadas às narrativas seriadas de reconstrução histórica, com forte teor de narrativas escravocratas, sempre foram veiculadas às 18h. Os autores, estão em consonância com outros títulos consagrados dessa faixa horária, caso de “Escrava Isaura”, já referida. Inferimos que “Lado a lado” questiona o lugar que essa obra coloca a população negra, além disso, ressignifica narrativas já consagradas no imaginário popular, ao mesmo tempo em que também é enquadrada em padrões estereotipados.Teóricas negras e feministasPartindo da ideia de um pensamento feminista negro como teoria social crítica, Patricia Hill Collins cunha a base de suas perspectivas de análise social. Aqui dialogamos com o conceito de imagens de controle a fim de criar uma estrutura para as nossas inquietações em relação às personagens negras em “Lado a lado”. Collins (2019) entende que a vivência de mulheres negras é de suma im-portância para a produção de conhecimento, elegendo como intelectuais ou pensadoras não só as pessoas com passagens por instituições acadêmicas, pois considera também a produção não reco-nhecida formalmente de mulheres negras. A autora cita o exemplo de Sojourner Truth, ex-escravi-zada que questiona ainda no século XIX a invisibilidade da mulher negra na sociedade estaduni-dense. Ao proferir a indagação “E eu não sou uma mulher?”, referindo-se às condições diferentes que eram apresentadas às mulheres brancas e negras, ela desloca o sentido da universalidade da categoria mulher, promovendo uma construção que abarca a vivência dessa realidade específica.A autora abarca a sua construção conceitual a partir das relações com o feminismo negro, en-tendendo que as realidades consistentes às diversas vivências das mulheres negras podem ser absolvidas por meio de várias fontes, como as músicas de blues interpretadas por negras e que atingem um grande público. Collins (2019) afirma que a contribuição que essas mulheres dão é fundamental para a construção de uma consciência coletiva em relação à demanda das mulheres negras estadunidenses.Desenvolver o pensamento feminista negro como teoria social crítica implica incluir tanto as ideias de mulheres negras que não eram consideradas intelectuais — muitas das quais de classe trabalhadora, empregadas fora da academia — quanto as ideias que emanam dos ambientes de conhecimento mais formais e legitimados (Collins, 2019, p. 55).Ao trazer essas definições, a autora aproxima a experiência com a produção teórica voltada a en-tender a relação das mulheres negras com a sociedade estadunidense. É uma teoria prática que dialoga com as questões pertinentes às vivências da negritude, em especial as de mulheres negras.Collins faz um grande apanhado da construção e da luta das mulheres negras nos Estados Unidos, revelando e evidenciando algumas estratégias desenvolvidas pelas feministas negras ao longo dos anos como forma de confronto numa sociedade machista e patriarcal. Segundo Winnie Bueno (2020, p. 59), “a obra de Patricia Hill Collins pode ser considerada uma estrutura analítica que possibilita examinar os conceitos do pensamento feminista negro e os contextos nos quais eles operam”. Collins busca contextualizar os resultados desse trabalho no livro “Pensamento feminis-ta negro” (2019), no qual também apresenta algumas categorias de classificação impostas pela sociedade patriarcal branca para promover o controle absoluto da mulher negra, fazendo com que ela não tenha permissão para alcançar novos objetivos.
image/svg+xml8Ana Ângela Farias Gomes; Victor Adriano RamosA autora, ao analisar os padrões de socialização impostos pela sociedade para as mulheres negras, organiza categorias de análise intituladas de “imagens de controle”. Esse conceito nos serve como um marcador para pensarmos as interlocuções entre o audiovisual e seus reflexos na sociedade. Uma das principais divulgadoras dos estudos da pesquisadora no Brasil, Winnie Bueno, assim define o conceito de imagens de controle:[…] são a dimensão ideológica do racismo e do sexismo compreendidos de forma simultâ-nea e interconectada. São utilizadas pelos grupos dominantes com o intuito de perpetuar padrões de violência e dominação que historicamente são constituídos para que perma-neçam no poder. As imagens de controle aplicadas às mulheres negras são baseadas cen-tralmente em estereótipos articulados a partir das categorias de raça e sexualidade, sendo manipulados para conferirem às iniquidades sociorraciais a aparência de naturalidade e inevitabilidade (Bueno, 2020, p. 73).O que a autora chama de imagens de controle pode ser entendido como estratégias de manipula-ção da população negra pós-abolição. Sendo ainda mais específicos, são as estratégias de controle do corpo da mulher negra, dificultando a sua emancipação e luta por liberdade. Torna-se relevante para a nossa pesquisa entender o uso e a classificação das imagens de controle, pois um dos meios de sua perpetuação é a partir das mídias de massa, como o cinema e a televisão. “Essas imagens de controle são traçadas para fazer com que o racismo, o sexismo, a pobreza e outras formas de injustiça social pareçam naturais, normais e inevitáveis na vida cotidiana” (Collins, 2019, p. 136). É importante ressaltar que as imagens de controle diferem dos conceitos de representação e estereótipo pela maneira como elas são destacadas e manipuladas dentro das esferas de poder articuladas por raça, classe, gênero e sexualidade (Bueno, 2020). Essas categorias representam correlações que datam desde o período escravocrata e são sempre atualizadas conforme a neces-sidade a partir das atualizações sociais, com o intuito de impedir uma visão positiva da mulher negra na sociedade patriarcal. As imagens de controle atuam em correlação com os sistemas de diferenciação de raça, gênero, sexualidade e classe, sendo um importante instrumento da supre-macia branca para dominação dos corpos de mulheres negras. Era importante para a sociedade estadunidense perpetuar essas imagens, pois, além de justificarem as atrocidades cometidas pela escravização dos seus corpos, também funcionavam para mascarar as relações sociais que afeta-vam todas as mulheres (Collins, 2019). Ou seja, ao definir a mulher negra como um objeto sem direitos, representando apenas um corpo apto ao trabalho e para atender as necessidades sexuais dos patrões, projeta-se uma diferença entre as mulheres brancas e negras.Sendo assim, essas categorias também acabam por inferiorizar a mulher branca, ainda que em me-nor medida. “As imagens de controle também podem ser consideradas símbolos que buscam restrin-gir a autonomia de mulheres negras, também sendo utilizadas como uma forma de naturalização das consequências do racismo e do sexismo a partir da inevitabilidade” (Bueno, 2020, p. 79).As imagens de controle atuam como um mecanismo que busca barrar a entrada de mulheres ne-gras como sujeitas atuantes na sociedade, consequentemente dificultando muito fortemente a participação da população negra nas esferas de representação política. Essas categorias de do-minação são difundidas por meio de diversos mecanismos de controle social. Para este trabalho, destacamos a sua operacionalização através dos meios de comunicação. Entretanto, é importante destacar que tais categorias são vigentes em variados níveis dentro da sociedade patriarcal su-premacista branca, objetivando culpabilizar as mulheres negras pela situação socioeconômica em que se encontra a população negra, isentando, assim, a burguesia, verdadeira responsável.
image/svg+xml9Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”Uma das imagens de controle mais difundidas pelos meios de comunicação é a das mammies – mulheres negras que cuidam dos filhos das famílias brancas. Geralmente assexualizadas e gordas, elas são apresentadas como “quase da família”, vistas como servas fiéis e nada mais. É a partir des-sa categoria que todas as outras imagens de controle são formadas, articulando uma forte relação entre a questão da maternidade e as mulheres negras.Essa imagem ficou eternizada na personagem de “E o vento levou” (1940), vivida por Hattie McDaniel, mas podemos associar também à clássica personagem do “Sítio do pica pau amarelo” (1977), Tia Anastácia. Nas telenovelas, temos a personagem da atriz Isaura Bruno em “ Direito de nascer”5, de 1964, que interpretava uma empregada doméstica sem nome, conhecida apenas como Mamãe Dolores. Esse exemplo é fundamental para entendermos como as imagens de con-trole se perpetuam pela mídia, extraindo o benefício para os grupos dominantes e relegando as atrizes ao esquecimento e/ou à miséria. Isaura Bruno foi a primeira atriz negra de grande rele-vância nas telenovelas brasileiras, mas permaneceu no esquecimento, ao contrário dos colegas com quem contracenou. Essa imagem de controle também funciona como uma maneira de perpetuar uma noção única de família que ignora as contribuições ofertadas pela mulher negra à sociedade. Sendo assim, essa categoria objetiva determinar quais as configurações familiares aceitas na sociedade patriarcal supremacista branca, fazendo com que a relação mãe–filhos permaneça em vigilância pelos gru-pos dominantes, influindo, assim, em outras categorias. Para Bueno (2020, p. 88) o “objetivo por trás dessa imagem de controle é manter as mulheres negras submissas ao trabalho doméstico e ensinar seus filhos a apresentarem o mesmo comportamento, o que também é articulado a partir das imagens de controle destinadas às crianças negras”.Essa imagem de controle corresponde também ao mito da aceitação da escravização, já que a suavi-zação das violências infere uma domesticidade falsamente aceita. A tentativa de criar a ideia de uma escravização branda, intuito também em voga no Brasil, não faz sentido, já que, se há a privação de liberdade e o trabalho forçado, não tem como existir aceitação ou passividade. Essa ideia também visa controlar os movimentos negros com o intuito de mascarar as formas de resistência ao sistema imposto.Outra categoria seria a “jezebel”, mulher negra hipersexualizada, que está sempre disposta a re-correr ao prazer sexual em troca de qualquer coisa, considerada uma “mulher de vida fácil”. Essa imagem de controle, presente no imaginário racista das sociedades escravocratas, também conse-gue ser facilmente identificada no audiovisual. Um bom exemplo é a personagem Nola Darling, do filme “She’s gotta have it” (1986), e em algumas telenovelas globais, como a marcante personagem Bebel, interpretada por Camila Pitanga em “Paraíso tropical”6(2008), e Berenice, vivida por She-ron Menezzes em “Lado a lado” (2012). Essa é outra categoria que pode ser aproximada no Brasil por meio do conceito da mulata.5A novela “Direito de nascer”, exibida pela TV Tupi em 1964, foi uma das primeiras produções do gênero a conquistar o público, tendo seu último capítulo exibido ao vivo em estádios de futebol, com bastante comoção. A personagem Mamãe Dolores era uma das mais adoradas pelo público, o que levou a atriz Isaura Bruno a consagração, reconhecimento que du-rou apenas poucos anos.6Apesar do forte apelo popular por meio do casal Bebel (Camila Pitanga) e Olavo (Wagner Moura), considerados o casal mais carismático da trama, a narrativa não buscava discutir questões raciais, o fato de Bebel ser uma mulher negra de pele clara e atuar como prostituta de luxo não era problematizado ou questionado.
image/svg+xml10Ana Ângela Farias Gomes; Victor Adriano RamosEnquanto a mammy é uma mulher negra assexuada, desprovida de qualquer conteúdo de beleza, nada atraente e, portanto, nem um pouco ameaçadora aos ideários hegemônicos das famílias brancas, a jezebel é a mulher negra sexualmente agressiva, insaciável, lasciva, que, portanto, deve ser tomada de qualquer forma (Bueno, 2020, p. 110).Essa imagem de controle datada desde a escravização visa confinar a mulher a partir da sexuali-dade, gerando um mito em relação à sua predisposição sexual, utilizado para justificar as diversas violências às quais eram submetidas as mulheres negras escravizadas em relação às investidas sexuais dos colonizadores brancos. A partir da lógica de dominação do colonizador, a diferença entre a categoria da mammy, em que a sua sexualidade é rejeitada, para a jezebel, em que a virtude sexual é exaltada, revela como a mulher negra e sua feminilidade são usadas como forma de con-trole do seu corpo dentro da sociedade patriarcal supremacista branca. Essa imagem de controle produz a ideia de que mulheres negras são movidas pelo instinto sexual, sendo mais compatível a investidas sexuais, já que seu corpo estaria sendo exposto para deleite da branquitude.Podemos traçar um paralelo entre as categorias apresentadas por Collins (2019) e as analisa-das por Gonzalez (2020). As duas pesquisadoras trazem pontos semelhantes em suas análises e na estruturação do feminismo negro. Gonzalez traz a categoria da “mucama”, também vinda do imaginário escravocrata. A mucama se assemelha à imagem de controle da mammy, sendo esta a mulher que cuida não só do filho dos patrões, mas de toda a sociedade brasileira. É a partir des-sa categoria que derivam as duas categorias analisadas pela autora, a da mulata e da mãe preta. Podemos visualizar facilmente em obras audiovisuais essas categorias, muito comuns nas tele-novelas brasileiras, nas quais as personagens negras são majoritariamente relegadas a papéis de coadjuvantes, sem ação e histórias próprias (Araújo, 2019).Essas categorias se desdobram de um mesmo significante inicial, que seria o papel da mulher escravi-zada na sociedade escravocrata, por meio do lugar da mucama. A autora chama atenção que diferente do que é apresentado em recriações artísticas e outras encenações sobre o período, a mulher negra também trabalhava na plantação das fazendas, sendo algumas escolhidas para o serviço doméstico, além do trabalho braçal, e outras eram colocadas nas cozinhas. Aquelas de quem os senhores se afei-çoavam eram, assim, por meio da violência, aproximadas deles, causando o que ficou conhecido popu-larmente como o “romance” entre a casa grande e a senzala7. Porém, apesar do forte mito de que havia uma cooperação entre os dois grupos, o que existia de verdade era violência física por parte daqueles que detinham o poder, e, por parte daqueles que eram privados de liberdade, cabia a resistência a par-tir de diversas formas, algumas ativas (como as diversas revoltas e revoluções) e outras passivas.A partir dessas funções pré-estabelecidas, a autora remonta às origens de duas categorias defini-doras na socialização das mulheres negras: a mulata e a mãe preta. A mulata representa a mulher jovem, hipersexualizada, vista apenas como um corpo passível da intromissão do homem branco. Essa definição se encaixa na construção do pensamento hegemônico a partir da ideia da escravi-zada como um objeto de compra, pertencendo assim ao seu senhor de engenho. Já a mãe preta cor-responde à categoria das mulheres escravizadas que tinham as suas sexualidades completamente 7As relações entre a casa grande e a senzala são apresentadas por Gilberto Freyre em seu livro “Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal”, no qual apresenta a teoria do lusotropicalismo, em que considera que a mistura das três raças formativas do Brasil, a portuguesa, a africana e a indígena, teria ocasionado um abrandamento em relação à discriminação racial. O autor consolida o mito da democracia racial, amplamente difundido a partir da década de 1930. Para Gonzalez (2020, p. 50), “o efeito maior do mito é a crença de que o racismo inexiste em nosso país graças ao processo de miscigenação”.
image/svg+xml11Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”anuladas, exceto se servissem para cuidar dos filhos dos seus senhores, sendo essas mulheres as responsáveis pela criação das crianças brancas.Gonzalez (2020) analisa as posições ocupadas pela mulher negra na sociedade, elencando que as formas de tratamento relegadas a esse grupo derivam dessas duas posições antagônicas. Assim como Collins (2019) determina que as imagens de controle nascem no período de escravização dos corpos negros nos Estados Unidos, criando assim complexos sistemas de dominação que re-percutem até os dias atuais, Gonzalez (2020) também chega à conclusão similar em suas análises no Brasil. Segundo a autora, essas posições relegadas às mulheres negras formam uma imagem padrão de como é entendida e esperada a vivência negra, e tem-se nos meios de comunicação uma de suas principais fontes de compartilhamento.Para Gonzalez (2020), a justificativa de um Brasil predominantemente negro vem justamente da posição ocupada pela mãe preta, já que ao ocupar essa posição, cabia-lhe educar a criança branca, enquanto o seu filho era arrancado de seus braços. Com isso, ela transmitia-lhe os ensinamentos e conceitos trazidos de sua vivência negra, passando assim adiante questões culturais primárias. Essa seria uma das estratégias de enfrentamento passivo ao regime escravocrata, uma forma efi-ciente que teria originado, segundo a autora, o pretuguês. A interlocução entre essas duas reali-dades provocou o deslocamento do idioma ao ponto de a forma falada no país ser única, sendo essa também a porta de entrada para a africanização da cultura brasileira, a partir das relações desenvolvidas pela mãe-preta. Gonzalez (2020, p. 55) analisa que “[…] se levarmos em conta a teoria lacaniana, que considera a linguagem como o fator de humanização ou de entrada na ordem da cultura do pequeno animal humano, constatamos que é por essa razão que a cultura brasileira é eminentemente negra”.Sobre a outra categoria destacada por nós, a mulata, a autora trata a partir da transformação dessa categoria em profissão, distorcendo o símbolo repercutido nas festas carnavalescas em uma esfera da representação da mulher negra na sociedade. Gonzalez (2020, p. 59) afirma que “[…] a pro-fissão de mulata é exercida por jovens negras que, num processo extremo de alienação imposto pelo sistema, submetem-se à exposição de seus corpos […], através do ‘rebolado’, para deleite do voyeurismo dos turistas e dos representantes da burguesia nacional” .Como percebemos, a sociedade patriarcal supremacista branca elenca posições possíveis para as mulheres negras segundo a suas percepções em relação ao seu corpo, classificando a partir das posições selecionadas. Ao enquadrar a mulher negra nessa categoria, afirma-se, mais uma vez, uma posição de dominação diante do seu corpo.No audiovisual, a exploração da mulher negra é refletida nos tipos de personagens a que estão sujeitas a exercer. Na pesquisa sobre a presença da mulher negra no cinema nacional recente, Candido e Feres Junior (2019) identificam que esse estereótipo está presente em 50% dos filmes analisados, que corresponde ao período de 2002 a 2014, quando é analisado o protagonismo de mulheres pretas e pardas. Nas produções televisivas, essas características não são muito diferen-tes, como já apontado por Araújo (2019).
image/svg+xml12Ana Ângela Farias Gomes; Victor Adriano Ramos3. As mulheres negras em “Lado a lado” – a maternidadeTendo por base Collins (2019) e Gonzalez (2020), que definem as categorias de controle do corpo da mulher negra, partimos do lugar que a maternidade tem nas relações envolvendo mulheres negras. Como já explicado, as principais categorias analisadas pelas autoras têm como ponto de partida a posição da maternidade. É a partir disso que se desenvolvem a categoria da mammy, principal imagem de controle da qual todas as outras derivam, e a categoria da mãe preta.Em “Lado a lado”, Isabel, coprotagonista, mulher negra de pele clara, jovem, trabalhadora do-méstica, na primeira fase, e dançarina profissional, na segunda, envolve-se afetivamente com Zé Maria, homem negro retinto, capoeirista, mais velho, barbeiro, na primeira fase, e marinheiro re-formado/contador, na segunda. Porém, a relação dos dois é atravessada por Albertinho, homem branco rico vindo de uma família aristocrática, jovem, que vive às custas do dinheiro da família na maior parte da trama. Esse personagem ganha uma “curva de redenção” quando inicia um traba-lho como advogado na fábrica do cunhado. Como resultado desse breve encontro sexual orques-trado por Albertinho com a intenção de se aproveitar de Isabel quando se encontrava fragilizada, nasce Elias, criança negra de pele clara.Escolhemos as cenas a serem analisadas (Quadros 1, 2, 3 e 4) envolvendo as personagens Zenaide e Isabel (Figura 1) em situações nas quais as duas exercem a função materna. Buscamos compre-ender de que maneira essa relação se desenvolve, tanto entre as personagens como entre outras que circundam essa relação.Quadro 1 – Zenaide e seus filhos – dimensão visual [cena do capítulo 52]CategoriaDimensão visualCenárioUm barraco feito de madeira com uma mesa de centro, um pequeno armário e alguns caixotes servindo de banco, todos em madeira gasta. Velas iluminam a cena. Panelas de barro, pratos e copos estão dispostos na mesa. Algumas ervas secas estão penduradas ao logo do cômodo.Figurino/ caracterizaçãoZenaide veste um conjunto de saia longa e blusa de manga comprida marrom, tecido simples de algodão cru sem nenhum detalhe ou acabamento. O cabelo crespo está pre-so em um coque.Elias veste calça comprida e camisa de manga longa branca, um pouco suja; seus dois irmãos vestem-se de uma roupa com material mais simples, da mesma cor do conjunto da mãe.Gestualidade/ performanceZenaide serve arroz aos filhos, colocando porções maiores para os mais velhos e dei-xando Elias com menos, ele olha o prato dos irmãos e questiona Zenaide, o que faz com que seu irmão coloque um pouco de comida em seu prato enquanto Zenaide está de costas. A mulher briga e ofende Elias, que fica triste na mesa, as outras duas crianças ficam confusas na maior parte da cena. Na conversa a mulher dá instruções aos filhos.EnquadramentoPlano aberto dá dimensão ao ambiente e plano médio conduz a cena.IluminaçãoLuz amarelada em tom sépia.Fonte: Elaborado pelos autores (2023).
image/svg+xml13Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”Quadro 2 – Zenaide e seus filhos – dimensão sonoraCategoriaDimensão sonoraTrilha sonoraInstrumental da música “O mundo é um moinho”.DiálogoElias: O Olavo e Vilmar sempre ganham mais. Zenaide: Tá reclamando do que, Elias?Vilmar: Pirralho que nem você tem que comer pouco mesmo. Né, mãe?Zenaide: Sou eu quem decide isso aqui. Anda! Come logo que eu não vou ficar requentando comida de ninguém não, hein? Olha aqui, presta atenção vocês três, eu não quero ninguém dando conversa pra esse povo daqui, não quero vizinho sabendo da nossa vida, e isso é principalmente pro senhor, viu seu Elias? Não gosto nada nada do Seu Alfonso se engraçando pra você, esse velho não tem que ficar metido na nossa vida não.Elias: Mas Seu Alfonso é bonzinho mãe, e todo mundo aqui no morro gosta de mim. Vilmar: Esse morro é chato, ficar toda hora subindo e descendo, eu queria morar lá embaixo.Zenaide: Mas é aqui que a gente mora, tem que gostar. Eu só não quero ninguém dando conversa pra esse povo daqui. Entendeu, Elias?Elias: Entendi… Aqui no morro é alto e dá pra soltar pipa. Né, Olavo? Eu gosto. Vilmar: Esse bobo não sabe nem soltar pipa direito e fica aí falando.Olavo: Mas eu vou te ensinar, Elias, e a gente vai fazer uma pipa nova.Fonte: Elaborado pelos autores (2023).Elaborando a partir das ideias apresentadas por Collins (2019), podemos inferir que essa cena desenha a personagem da mulher mãe e negra com base em noções estereotipadas, o que se apro-ximaria da ideia que a autora diz em relação à matriarca. Sendo essa mulher pintada como “mãe megera”, culpada da má educação dos seus filhos e rígida em seus tratamentos. Collins afirma que a importância da utilização das imagens de controle para a elite branca perpassa por uma sólida tentativa de se manter no poder. A associação das mulheres negras mães como megeras, desde a escravização, era necessária para enquadrar esse corpo como apto à punição e controle social exercidos pela sociedade branca. “Enquanto a mammy caracteriza a figura da mãe negra nas fa-mílias brancas, a matriarca simboliza a figura materna nas famílias negras. Assim como a mammy representa a mãe negra “boa”, a matriarca simboliza a mãe negra “má”” (Collins, 2019, p. 145).Há uma forte intenção na cena de ilustrar essa mulher como uma megera que não cuida direito dos filhos, especialmente daquele que sequer é seu filho biológico. Na dimensão do melodrama, Zenaide se enquadra na categoria de vilã, sua participação ao longo da trama não tem nenhuma outra função a não ser barrar a felicidade da heroína, para isso se recorreu a estereótipos relacio-nados a figura da mulher negra. Por essa cena podemos compreender que a trama reforça o sen-tido da mulher negra como o mal, não havendo no momento uma contraparte que contextualize ou reprove essas ações.Outro fato que nos chama atenção é a escolha da atriz para dar vida a essa personagem, uma mu-lher negra de tom de pele mais escuro quando comparado ao das outras personagens negras com relevância na história. Seu corpo se aproxima da imagem de assexuada e gorda que povoa a figura da mammy e da mãe preta, uma escolha visual que nos leva a aproximar o nosso repertório – ali-mentado por imagens racistas e tendenciosas – dessas figuras.Zenaide é apresentada na trama não apenas como um contraponto à maternidade, mas assume uma função narrativa específica de vilã, criando apenas mais um obstáculo à felicidade da prota-gonista. Não é oferecido nenhum momento de redenção à personagem, nenhuma outra função narrativa, seus objetivos estão em torno apenas da relação com Elias, filho de Isabel, de quem ela cuida em troca de uma pensão oferecida por Berenice, como pagamento. Desse modo, diferente
image/svg+xml14Ana Ângela Farias Gomes; Victor Adriano Ramosdas outras personagens, não é construída nenhuma complexidade para Zenaide, sendo apenas a mãe megera.A utilização de estereótipos e lugares-comuns ao longo da narrativa da telenovela poderia justi-ficar a exploração do tema central da trama. Porém, convém atenção ao que nos é apresentado. Essa cena simboliza o uso de noções estereotipadas de maneira a reforçar aspectos conflitantes com relação à mulher negra. Podemos sugerir que Zenaide é desenhada para servir de contra-ponto à Isabel, o que sugere que a narrativa está ancorada numa lógica binária, fazendo sentido na perspectiva do melodrama, que sugere o ideal oposto de uma mãe ruim, uma mãe boa. Porém, Zenaide, como podemos inferir pela cena apresentada, faz parte da parcela popular vivendo em um barraco no Morro da Providência. Podemos entender por isso que ela é o comum, diferente de sua contraparte, Isabel (Figura 1), como veremos a seguir (Quadro 4).Figura 1— Isabel conversa com Elias [cena do capítulo 149]Fonte: Lado a Lado (2012).Quadro 3 — Isabel conversa com Elias — dimensão visual [cena do capítulo 149]CategoriaDimensão visualCenárioUm quarto ricamente decorado com móveis de madeira de boa qualidade, cama com lençóis que apa-rentam ser de boa qualidade, papel de parede num tom cor de rosa, vários livros espalhados numa mesinha com luminária.Figurino/ CaracterizaçãoIsabel veste-se com um vestido branco de seda e um xale azul-marinho, seu cabelo volumoso encontra--se em um penteado simples. Seu Alfonso está com terno simples e Elias com um pijama.Gestualidade/ PerformanceElias está deitado na cama com as mãos nos ouvidos enquanto os dois adultos em pé tentam falar com ele. A conversa ocorre dessa forma. Elias chora ao longo da conversa enquanto argumenta com Isabel e Seu Alfonso que estão tristes e preocupados.EnquadramentoPlano aberto para mostrar o cenário seguido de campo e contracampo nos diálogos e plano médio ao final da cena.IluminaçãoFotografia amarelada em tom sépia.Fonte: Elaborado pelos autores (2023).
image/svg+xml15Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”Quadro 4 — Isabel conversa com Elias — dimensão sonoraCategoriaDimensão sonoraTrilha sonoraInstrumental da música “O mundo é um moinho”.DiálogoSeu Alfonso: Sua mãe só tá querendo te explicar uma coisa, Elias.Isabel: Você não quer saber por que você não pode ir na casa de sua avó? Então, tira a mão do seu ou-vido, tira. Vou te contar o resto da sua história, quando roubaram você de mim. Elias: A parte que tem a mulher malvada e que não gosta de você?Isabel: Sobre ela mesmo que eu quero falar. Porque ela ainda tá muito perto da gente, filho, e ela nem parece que é malvada, mas isso porque ela sabe mentir muito bem.Seu Alfonso: Você até gosta dela e não sabe que ela é perigosa. Elias: Eu conheço essa moça que me roubou?Isabel: A moça dos doces é sua avó, foi ela quem roubou você de mim, foi por causa dela que eu fiquei sem filho, que você ficou sem mãe.Elias: Mas ela me roubou só porque ela não gostava de você? Isabel: Foi filho, foi por causa disso.Elias: Mas por que ela não gostava? O que você fez pra deixar minha avó tão brava? Isabel: Eu não fiz nada pra ela não gostar de mim, eu não fiz nada de errado.Elias: E por que que ela não gostava de você?Isabel: Porque… Porque eu era pobre, filho, e ela não aceitava que uma mulher pobre namorasse o filho dela.Elias: Mas agora você não é mais pobre, você pode gostar dela e ela pode gostar de você. Isabel: É muito mais difícil de explicar do que isso, Elias, e é muito mais difícil de entender também.Seu Alfonso: Eu já te contei do tempo da escravidão.Elias: Eu sei vô, mas você também me contou que não existe mais escravo. Seu Alfonso: É verdade, só