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Revista TOMO
São Cristóvão, v. 42, e18803, 2023
Data de Publicação: Junho/2023
Dossiê
Tem negras nessa novela? A representação da
mulher negra em “Lado a lado”
Ana Ângela Farias Gomes
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Victor Adriano Ramos
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Resumo:
O artigo analisa a presença da mulher negra nas telenovelas da Rede Globo, com foco em “Lado a lado”
(2012-2013), tendo em vista a presença de personagens negras com protagonismo. Nossa base teórica en-
contra um diálogo alicerçado no pensamento feminista negro a partir das reflexões de Patricia Hill Collins e
Lélia Gonzalez. Buscamos empreender uma análise de conteúdo evidenciando as categorias defendidas por
tais autoras. O processo metodológico utiliza o conceito desenvolvido por Diane Rose em “análise da ima-
gem em movimento”, que considera a análise específica dos fenômenos televisivos. Nosso tensionamento
central é compreender como essas representações atuam para quebrar noções estereotipadas da população
negra em geral e, em específico, da mulher negra, ou manter conceitos racistas e pré-determinados.
Palavras-chave: Representação. Telenovela. Personagem. Feminismo negro. Lado a lado.
Introdução
Segundo dados do último censo do IBGE, a população negra (entendida como a somatória de pre
-
tos e pardos) representa 54,5% da população brasileira. Sendo assim, a pergunta “onde estão
a negra e o negro nas telenovelas brasileiras?” se mostra relevante. Considerando ainda que as
mulheres são 52% da população mundial, e ainda assim permanecem sub- representadas, é ne
-
cessário observar esses dados para entender como essas parcelas permanecem em posições de
desvantagem social. A interseção entre os dois dados joga luz para a situação específica da mulher
negra, vista a partir da pirâmide social como o elemento a ocupar a mais baixa posição.
Os meios de comunicação, em especial a televisão a partir de sua difusão das telenovelas, detêm
uma expressiva concentração de poder. Sobre isso, Lopes (2003, 2009, 2014) afirma que esse
veículo de comunicação ocupa no Brasil, devido às suas características específicas, geográficas e
culturais, um espaço privilegiado, que, antes, tradicionalmente, era ocupado por outros espaços de
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Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas. Departamento de Comunicação Social. Aracaju,
Sergipe, Brasil. Email: anaangela@academico.ufs.br https://orcid.org/0000-0001-7596-4777
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Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Culturas Contemporâneas. Faculdade de
Comunicação. Salvador, Bahia, Brasil. Email: adrianovctr92@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-1746-3461
Dossiê
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Ana Ângela Farias Gomes; Victor Adriano Ramos
dominação, como a igreja e a escola. Sendo assim, a TV detém um enorme poder de influência na
formação identitária por ser o principal veículo de informação e entretenimento. A autora defende
que esse espaço pode ser entendido como um “novo espaço público” (Lopes, 2009, p. 23), no qual
os postos de comando da sociedade passam a ter o controle do repertório compartilhado que an-
tes estava nas mãos dos intelectuais.
Este artigo tem como principal objetivo apresentar os primeiros resultados obtidos a partir da
pesquisa “Tem negra nessa novela? Representação da mulher negra em ‘Lado a lado’”, na qual
apresentamos uma extensa análise dessa narrativa seriada, com foco nas personagens femininas
negras. A escolha do produto analisado considera, além da posição de protagonismo da persona
-
gem negra, o aparente compromisso do enredo em apresentar e discutir relações raciais, seja dire
-
ta, seja indiretamente, fator que julgamos inicialmente como um dado relevante para a realização
da pesquisa. Por meio da análise do enredo compreendemos de forma ampla as estratégias de
aproximação com o público a partir das diferentes utilizações das personagens negras dispostas
ao longo da narrativa.
Essa produção apresenta uma característica que percebemos como recorrente em outras obras, o
multiprotagonismo. Entendemos inicialmente que esse fato pode ser encarado como uma estraté-
gia para veiculação de mais protagonistas racialmente identificadas como não brancas. Buscamos,
por meio da análise de “Lado a lado”, entender de que maneira o multiprotagonismo auxilia para
melhor apresentação de personagens de diferentes percepções raciais. Consideramos as perso
-
nagens negras dispostas no enredo, sendo elas: Isabel (Camila Pitanga), Berenice (Sheron Mene
-
zzes), Jurema (Zezeh Barbosa), Etelvina (Laís Vieira) e Zenaide (Ana Carbatti), conferindo a par
-
tir de noções interseccionais suas funções na narrativa em relação à disposição das personagens
identificadas como brancas.
Ao apresentar um casal de protagonista negros, “Lado a lado” subverte o padrão histórico, sendo a
primeira novela do horário das 18h da Rede Globo a trazer não só o protagonismo negro, mas tam
-
bém outras personagens negras com algum nível de complexidade narrativa. Sendo assim, con
-
sideramos essa telenovela como um marco histórico, definindo-a como a primeira a trazer uma
perspectiva complexa às populações negras, revelando como o período imediato ao pós-abolição
trouxe graves consequências para essa população, e para o país de maneira geral, configurando o
período como o embrião formativo da sociedade brasileira.
Para a análise, dialogamos com Lélia Gonzalez e Patricia Hill Collins, em relação à presença de mu
-
lheres negras na sociedade. Os trabalhos dessas pesquisadoras possuem pontos de semelhanças
ao apresentar de maneira categórica como a sociedade, por diversos meios — sendo o audiovisual
um dos mais importantes — enxerga as mulheres negras. As duas autoras, em seus diferentes
contextos sociais, promoveram questionamentos em relação à maneira como obras audiovisuais
justificam e até mesmo criam alguns estereótipos associados à população negra, principalmente
as mulheres, e como isso colabora para uma visão superficial e calcada em preconceitos que essa
parcela da população sofre diariamente.
Collins (2019) nomeia como “imagens de controle”, entendendo que essas categorias comumente
vinculadas às mulheres negras as aprisionam, servindo como um rígido controle para os corpos
negros, cumprindo assim uma meta estabelecida pelo Estado para a manutenção das relações
subjacentes das pessoas negras. Gonzalez também segue raciocínio similar em suas contribuições
sobre a posição da mulher negra brasileira, afirmando que essa foi, desde o período escravocrata,
um dos pilares de construção da nossa identidade nacional. Porém, a partir de determinados me
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Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”
canismos, como a ação deturpada dos meios de comunicação, em especial as telenovelas, a ima
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gem dessa mulher negra, assim como dos homens negros, é comumente associada a conotações
estereotipadas e inferiores.
Collins (2019) associa o pensamento feminista negro como uma importante fonte teórica, não só
para mulheres negras, como também para outros grupos sociais, que, consequentemente, pode
ser usado e articulado em outras esferas de estudos:
Ao defender, aperfeiçoar e disseminar o pensamento feminista Negro, os indivíduos de ou-
tros grupos que estão envolvidos em projetos de justiça social similares — homens Negros,
mulheres Africanas, homens Brancos, Latinas, mulheres Brancas e membros de outros gru-
pos raciais/étnicos norte-americanos, por exemplo — podem identificar pontos de articu
-
lação que façam avançar os projetos de justiça social. (Collins, 2019, p. 118).
A análise da telenovela foi desenvolvida a partir da metodologia desenvolvida por Diane Rose
(2002) intitulada “análise de imagens em movimento”. A autora propõe a tabulação de cenas se
-
lecionadas com base no referencial teórico do autor ou da autora. Os quadros aqui apresentados
se dividem em relação às dimensões sonora e visual, sendo nessa última necessária a criação de
categorias que visam compreender e buscar as informações por meio do que está sendo exposto.
Juntas elas nos darão as informações necessárias para a conclusão.
Para isso, dividimos a narrativa em eixos, sendo eles: casamento, maternidade e carreira, pois
compreendemos que, dentro da trama analisada e em conjunção com as explicações trazidas pelas
autoras, se faz necessário investigar a partir desses três pontos como as personagens mulheres
negras estão representadas. Neste artigo, apresentamos as análises referentes ao eixo narrativo
da maternidade. Foram selecionadas cenas em cada uma das categorias que abarcam não só a
trajetória da protagonista, como também de outras personagens, assim conseguimos obter dados
suficientes para responder às nossas indagações.
1. Apontamentos sobre a televisão: onde estão o negro e a negra na programação da Rede
Globo?
A telenovela está inserida em um campo específico, o da televisão, portanto obedece a regras que
guiam esse campo. Além disso, está também inserida em um subcampo que seriam os das pro-
duções seriadas folhetinescas. Como a televisão brasileira se insere em uma lógica de mercado
dependendo das inserções publicitárias, essa relação se torna relevante para podermos refletir
sobre as formas de produzir uma telenovela, assim como o que pode ser abordado em sua trama.
François Jost (2007), ao estabelecer as relações que moldam as funções das emissoras em sua aná
-
lise da televisão francesa, mas que serve também como modelo de aplicação em outros sistemas
televisivos, afirma que:
Uma emissora é, ao mesmo tempo, uma empresa, regida por uma lógica econômica; uma
instituição, voltada a missões no espaço público; e uma marca, em concorrência com outras
emissoras, via seus programas e programação. Essas três instâncias interferem, cada uma à
sua maneira, sobre a programação (Jost, 2007, p. 89-90).
Esta afirmação elucida bem a maneira como os grupos empresariais que constituem as emisso
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ras de televisão precisam estar posicionados. A programação desses canais considera todas essas
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Ana Ângela Farias Gomes; Victor Adriano Ramos
instâncias, sem perder de vista a busca pela audiência e o consequente faturamento por meio de
investimentos publicitários. Apesar de serem concessões públicas, portanto estão sujeitas a cum
-
prir regras preestabelecidas, as emissoras atuam como empresas privadas que estabelecem as
suas próprias regras, mantendo relações diretas com o mercado publicitário, o que podemos en
-
tender como televisão corporativa (Svartman, 2019). Esse modelo funciona em escala industrial
na produção diária de programas, mantendo estreita ligação com empresas de publicidade por
meio da venda de inserções em seus intervalos comerciais ou até mesmo na diegese das narrativas
audiovisuais, nos telejornais e nos programas de auditório.
Podemos inferir que as demandas sociais passam pelo crivo das empresas de telecomunicação
que avaliam a necessidade de inclusão ou não das temáticas, segundo os seus interesses. Porém,
chama atenção a falta de controle de órgãos públicos dentro dessas empresas no incentivo ao
aumento de diversidade racial, entre outros tópicos de interesse público. Essas demandas são
apenas acatadas quando visam estabelecer retorno financeiro. Com relação a isso, Santos (2021,
p. 49) afirma que “a televisão brasileira nasceu privada e com intenções comerciais, baseada no
modelo estadunidense, instrumentalizada para reproduzir o modus vivendi da elite dominante e
inferiorizar mentalmente a negros e mestiços”.
Gonzalez (2020), em seu discurso na constituinte em 1987, reforça o pensamento de que os meios
de comunicação de massa favorecem uma imagem positiva associada à parcela branca da socie
-
dade, alimentando assim a ideia de negros como significância de algo pejorativo, favorecendo um
discurso do “embranquecimento”, expresso nos meios de comunicação por meio da escolha de
pessoas de pele clara para viverem personagens negras, por exemplo o caso da novela “Escrava
Isaura”
3
. Porém, também acontece com a articulação, por produções audiovisuais, de casais in
-
terraciais, reforçando a ideia de branqueamento social. Todas essas questões estão intimamente
relacionadas à maneira como a mídia de massa representa os negros e negras brasileiros. A autora
nos diz que:
Ao levarmos em consideração que a ideologia é veiculada nos meios de comunicação – na
escola, nas teorias e práticas pedagógicas –, vamos constatar o quê? Sabemos sempre que
a escolha de um sistema de representação, de classificação, valoração e de significação nos
remete sempre a uma cultura dominante. No caso da sociedade brasileira, apesar da contri-
buição extraordinária que o negro trouxe, vamos perceber que a cultura, a classe e a raça do
-
minante impõem ao todo desta sociedade uma visão alienada de si (Gonzalez, 2020, p. 245).
A supremacia branca entende que a partir dessas imagens veiculadas de forma preconceituosa
será possível determinar e significar toda a população pertencente àquele grupo. Sobre isso, Mo
-
reira (2019) entende o poder dos meios de comunicação, em especial a televisão, como um im
-
portante ponto de apoio para a manutenção das relações sociais anacrônicas, em que o grupo
social mais privilegiado exerce pressão para manter as minorias silenciadas, pois “[…] mais do que
representações específicas da raça, a televisão é um lugar de legitimação de vários outros aspectos
responsáveis pela reprodução da hegemonia social das pessoas brancas” (Moreira, 2019, p. 66).
Mostra-se necessário entender os demais agentes que regulamentam o campo televisivo para po
-
dermos responder algumas perguntas, entre elas: por que não é comum a presença do negro e da
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A novela “Escrava Isaura” foi exibida pela Rede Globo em 1976 no horário das 18h. A trama, livre adaptação da obra de
Bernardo Guimarães, apresentava a personagem Isaura, interpretada pela atriz branca Lucélia Santos como protagonista.
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Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”
negra nas principais tramas das telenovelas brasileiras? Por que há divisão entre protagonistas
negros e brancos nas telenovelas? Quais relações com o índice de audiência e a trama central
dessas produções? Esses questionamentos podem ser alcançados por meio da análise da teleno
-
vela selecionada nesta pesquisa, mas para isso também temos que entender a estrutura que cerca
essas produções.
Pautar uma telenovela inteira revelando as problemáticas sociais relacionadas às maiorias meno
-
rizadas (Santos, 2020) pode afastar parcelas conservadoras da audiência ou até mesmo grupos
da população que não estão interessados em discutir determinadas problemáticas. Porém, existe
uma parcela expressiva da população que clama por essas inserções, o que é entendido como uma
representatividade para esses grupos.
A emissora se vê então em uma encruzilhada para cumprir o seu papel social sem arriscar perder
capital financeiro. Mais uma vez chamamos atenção para as especificações da produção televi
-
siva. No caso específico da telenovela, os autores tendem a buscar maneiras de aproximar essas
personagens dos telespectadores, usando em seu favor a longa duração das tramas e a narrativa
marcadamente folhetinesca. São estratégias que as empresas precisam recorrer por meio dos
autores, como a solução do multiprotagonismo em “Lado a lado”.
Com a absorção das chamadas pautas identitárias pelo capitalismo, tem sido cada vez mais co
-
mum que grandes corporações em vários segmentos, principalmente o midiático, se aproximem
desses grupos inserindo em seus quadros de funcionários e apresentando por peças publicitárias
o seu aceno a essas bandeiras (Caldwell apud Lima, 2018). Das 73 telenovelas produzidas pela
Globo entre 2010 e 2020, apenas 12 tiverem protagonismo negro e apenas uma delas teve todo
seu enredo pautando as relações raciais em diversos níveis da sociedade brasileira. Porém, todas
elas apresentavam ao menos duas personagens negras em seu elenco (Ramos, 2022).
O Grupo de Estudos Multidisciplinar de Ação Afirmativa (GEMAA) tem promovido pesquisas que
buscam apresentar diagnósticos da presença racial em telenovelas da Globo (Candido, 2019;
Campos; Feres Junior, 2015) com resultados relevantes sobre a presença racial nas tramas. Uma
das pesquisas para a qual chamamos atenção é em relação às protagonistas não brancas, em que
apenas 13 atrizes se destacam nessa posição, sendo elas: Taís Araújo, Juliana Paes e Camila Pitan
-
ga. Apenas em 2023, Sheron Menezzes entra nessa seleta lista ao protagonizar “Vai na fé”
4
, novela
das 19h.
Essa mudança, lenta, mas perceptível, pode ser atribuída a alguns fatores além do já apontado in
-
teresse de grandes empresas nos assuntos entendidos como pautas identitárias, como o interesse
na projeção de lucros ao se associar a novos possíveis consumidores, a partir da lógica: “se eu não
me vejo representado em um produto, não compro”. Com isso, tem sido cada vez mais comum a
aproximação com as parcelas sub-representadas, entre elas a população negra.
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Novela das 19h, escrita por Rosane Svartman, traz como foco principal a personagem Sol (Sheron Menezzes), ex- dançarina
de funk que aos 40 anos tem a oportunidade de reviver seus sonhos de juventude, mas com o diferencial de atualmente
ser uma mulher evangélica com duas filhas. A produção se destaca por apresentar metade do elenco formado por pessoas
negras, além de roteiristas negras na equipe de escrita.
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Ana Ângela Farias Gomes; Victor Adriano Ramos
2. “Lado a lado”: um marco histórico na teledramaturgia brasileira
A telenovela “Lado a lado” teve sua exibição entre setembro de 2012 e março de 2013, com 154
capítulos exibidos no horário das 18h. Foi dividida em duas fases, a primeira com uma média
de 50 capítulos, marcando o início da trama central que dá corpo para a obra na totalidade; e a
segunda marcada pelo desenvolvimento e conclusões das situações. Baccega et al. (2016, p. 18)
definem “Lado a lado”: “como uma novela sociocultural […] ocupando, muitas vezes, o local de fala
dos excluídos da história oficial, ela abre um canal de diálogo e discussões a questões ligadas a res
-
peito e diferença, a construção da cidadania, identidade nacional e cultural”. A trama busca desde
o princípio reinserir partes da população constantemente marginalizadas, fazendo isso de forma
sistemática ao retratar, a partir da população negra, a reencenação da história oficial do Brasil.
Os autores, brancos – João Ximenes Braga e Claudia Lage –, ao inserirem personagens do dia a
dia interligando suas vivências cotidianas com os grandes fatos históricos do início do século XX,
criam uma ficção que busca apresentar variadas vivências negras. Braga (apud Geledés, 2013)
define “Lado a lado” como “uma novela muito brasileira. No pano de fundo das nossas histórias de
amor, mostramos fatos que ajudaram a definir a identidade cultural brasileira, como o samba, a
capoeira, o carnaval, a popularização do futebol, as religiões de matriz africana, as favelas”.
A telenovela apresenta personagens conscientes de sua condição racial, que não baixam a cabeça
e lutam pelos seus direitos. Chegando a nomear as situações em que estão inseridos de racistas,
mesmo exibida em um contexto histórico no qual o racismo não era um crime previsto de retalia
-
ção, fato que só acontece décadas depois. Porém, ao exibir essas situações no tempo presente, a
narrativa dialoga com o público, e, ao assumir posturas de combate, as personagens de “Lado a
lado” se mostram como donas de sua própria trajetória, diferente do que é comumente apresen
-
tado em relação à personagens negras em outras produções. Com isso, não devemos confundir
as intenções com as ações práticas vistas em cena. Sobre a construção das personagens, Claudia
Lage, em entrevista para o portal Geledés, afirma que “essa foi uma proposta bem pensada, não ter
nenhum personagem negro sem essa consciência, com postura passiva e/ou conformista em rela
-
ção à condição de seu povo” (Cardoso, 2013, n.p.). Entendemos, com base nas entrevistas, que os
autores criam a novela como um projeto com intenção de construir uma nova e potente referência
sobre como o negro e a negra são retratados na televisão brasileira, oferecendo assim uma visão
ampliada de representação a ser explorada em futuras tramas da emissora.
Ao longo da trama, fatos históricos são apresentados. Além da construção do primeiro agrupa
-
mento social, a favela, é abordado o surgimento do samba enquanto ritmo musical. A Revolta da
Vacina (1904) e a Revolta da Chibata (1910) também são trazidas a partir das perspectivas da
reconstrução de figuras históricas como João Candido, que vira um personagem dentro da novela,
mas é espelhado no personagem Zé Maria. Esse personagem assume a figura de alguns heróis na
-
cionais negros, colocando-se em primeira pessoa.
Além desses movimentos, a trama incorporou a sua narrativa a figura histórica de Tia Ciata, conhecida
mãe de santo que disponibilizava seu terreiro para grupos de samba, sendo então conhecida como
uma das pessoas responsáveis pelo surgimento e popularização do ritmo. A personagem Tia Jurema a
representa, além de ser a pessoa responsável pelos caminhos espirituais que interligam a narrativa das
várias personagens. De acordo com Baccega et al. (2016, p. 7) “Lado a lado reconstrói o fato histórico
através do olhar do povo que conta a história vivida, seus protagonistas que fazem parte das classes
menos favorecidas da sociedade de ontem e de hoje, trazendo para a atualidade essas discussões”.
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Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”
Essa trama se apropria de uma narrativa histórica dialogando com a posição em que a novela
ocupa na faixa de horários da emissora. As faixas horárias reservadas às narrativas seriadas de
reconstrução histórica, com forte teor de narrativas escravocratas, sempre foram veiculadas às
18h. Os autores, estão em consonância com outros títulos consagrados dessa faixa horária, caso
de “Escrava Isaura”, já referida. Inferimos que “Lado a lado” questiona o lugar que essa obra coloca
a população negra, além disso, ressignifica narrativas já consagradas no imaginário popular, ao
mesmo tempo em que também é enquadrada em padrões estereotipados.
Teóricas negras e feministas
Partindo da ideia de um pensamento feminista negro como teoria social crítica, Patricia Hill Collins
cunha a base de suas perspectivas de análise social. Aqui dialogamos com o conceito de imagens
de controle a fim de criar uma estrutura para as nossas inquietações em relação às personagens
negras em “Lado a lado”. Collins (2019) entende que a vivência de mulheres negras é de suma im
-
portância para a produção de conhecimento, elegendo como intelectuais ou pensadoras não só as
pessoas com passagens por instituições acadêmicas, pois considera também a produção não reco
-
nhecida formalmente de mulheres negras. A autora cita o exemplo de Sojourner Truth, ex-escravi
-
zada que questiona ainda no século XIX a invisibilidade da mulher negra na sociedade estaduni
-
dense. Ao proferir a indagação “E eu não sou uma mulher?”, referindo-se às condições diferentes
que eram apresentadas às mulheres brancas e negras, ela desloca o sentido da universalidade da
categoria mulher, promovendo uma construção que abarca a vivência dessa realidade específica.
A autora abarca a sua construção conceitual a partir das relações com o feminismo negro, en
-
tendendo que as realidades consistentes às diversas vivências das mulheres negras podem ser
absolvidas por meio de várias fontes, como as músicas de blues interpretadas por negras e que
atingem um grande público. Collins (2019) afirma que a contribuição que essas mulheres dão é
fundamental para a construção de uma consciência coletiva em relação à demanda das mulheres
negras estadunidenses.
Desenvolver o pensamento feminista negro como teoria social crítica implica incluir tanto
as ideias de mulheres negras que não eram consideradas intelectuais — muitas das quais
de classe trabalhadora, empregadas fora da academia — quanto as ideias que emanam dos
ambientes de conhecimento mais formais e legitimados (Collins, 2019, p. 55).
Ao trazer essas definições, a autora aproxima a experiência com a produção teórica voltada a en
-
tender a relação das mulheres negras com a sociedade estadunidense. É uma teoria prática que
dialoga com as questões pertinentes às vivências da negritude, em especial as de mulheres negras.
Collins faz um grande apanhado da construção e da luta das mulheres negras nos Estados Unidos,
revelando e evidenciando algumas estratégias desenvolvidas pelas feministas negras ao longo
dos anos como forma de confronto numa sociedade machista e patriarcal. Segundo Winnie Bueno
(2020, p. 59), “a obra de Patricia Hill Collins pode ser considerada uma estrutura analítica que
possibilita examinar os conceitos do pensamento feminista negro e os contextos nos quais eles
operam”. Collins busca contextualizar os resultados desse trabalho no livro “Pensamento feminis
-
ta negro” (2019), no qual também apresenta algumas categorias de classificação impostas pela
sociedade patriarcal branca para promover o controle absoluto da mulher negra, fazendo com que
ela não tenha permissão para alcançar novos objetivos.
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Ana Ângela Farias Gomes; Victor Adriano Ramos
A autora, ao analisar os padrões de socialização impostos pela sociedade para as mulheres negras,
organiza categorias de análise intituladas de “imagens de controle”. Esse conceito nos serve como
um marcador para pensarmos as interlocuções entre o audiovisual e seus reflexos na sociedade.
Uma das principais divulgadoras dos estudos da pesquisadora no Brasil, Winnie Bueno, assim
define o conceito de imagens de controle:
[…] são a dimensão ideológica do racismo e do sexismo compreendidos de forma simultâ
-
nea e interconectada. São utilizadas pelos grupos dominantes com o intuito de perpetuar
padrões de violência e dominação que historicamente são constituídos para que perma
-
neçam no poder. As imagens de controle aplicadas às mulheres negras são baseadas cen
-
tralmente em estereótipos articulados a partir das categorias de raça e sexualidade, sendo
manipulados para conferirem às iniquidades sociorraciais a aparência de naturalidade e
inevitabilidade (Bueno, 2020, p. 73).
O que a autora chama de imagens de controle pode ser entendido como estratégias de manipula-
ção da população negra pós-abolição. Sendo ainda mais específicos, são as estratégias de controle
do corpo da mulher negra, dificultando a sua emancipação e luta por liberdade. Torna-se relevante
para a nossa pesquisa entender o uso e a classificação das imagens de controle, pois um dos meios
de sua perpetuação é a partir das mídias de massa, como o cinema e a televisão. “Essas imagens
de controle são traçadas para fazer com que o racismo, o sexismo, a pobreza e outras formas
de injustiça social pareçam naturais, normais e inevitáveis na vida cotidiana” (Collins, 2019, p.
136). É importante ressaltar que as imagens de controle diferem dos conceitos de representação
e estereótipo pela maneira como elas são destacadas e manipuladas dentro das esferas de poder
articuladas por raça, classe, gênero e sexualidade (Bueno, 2020). Essas categorias representam
correlações que datam desde o período escravocrata e são sempre atualizadas conforme a neces
-
sidade a partir das atualizações sociais, com o intuito de impedir uma visão positiva da mulher
negra na sociedade patriarcal. As imagens de controle atuam em correlação com os sistemas de
diferenciação de raça, gênero, sexualidade e classe, sendo um importante instrumento da supre
-
macia branca para dominação dos corpos de mulheres negras. Era importante para a sociedade
estadunidense perpetuar essas imagens, pois, além de justificarem as atrocidades cometidas pela
escravização dos seus corpos, também funcionavam para mascarar as relações sociais que afeta
-
vam todas as mulheres (Collins, 2019). Ou seja, ao definir a mulher negra como um objeto sem
direitos, representando apenas um corpo apto ao trabalho e para atender as necessidades sexuais
dos patrões, projeta-se uma diferença entre as mulheres brancas e negras.
Sendo assim, essas categorias também acabam por inferiorizar a mulher branca, ainda que em me-
nor medida. “As imagens de controle também podem ser consideradas símbolos que buscam restrin-
gir a autonomia de mulheres negras, também sendo utilizadas como uma forma de naturalização das
consequências do racismo e do sexismo a partir da inevitabilidade” (Bueno, 2020, p. 79).
As imagens de controle atuam como um mecanismo que busca barrar a entrada de mulheres ne-
gras como sujeitas atuantes na sociedade, consequentemente dificultando muito fortemente a
participação da população negra nas esferas de representação política. Essas categorias de do
-
minação são difundidas por meio de diversos mecanismos de controle social. Para este trabalho,
destacamos a sua operacionalização através dos meios de comunicação. Entretanto, é importante
destacar que tais categorias são vigentes em variados níveis dentro da sociedade patriarcal su
-
premacista branca, objetivando culpabilizar as mulheres negras pela situação socioeconômica em
que se encontra a população negra, isentando, assim, a burguesia, verdadeira responsável.
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Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”
Uma das imagens de controle mais difundidas pelos meios de comunicação é a das mammies –
mulheres negras que cuidam dos filhos das famílias brancas. Geralmente assexualizadas e gordas,
elas são apresentadas como “quase da família”, vistas como servas fiéis e nada mais. É a partir des
-
sa categoria que todas as outras imagens de controle são formadas, articulando uma forte relação
entre a questão da maternidade e as mulheres negras.
Essa imagem ficou eternizada na personagem de “E o vento levou” (1940), vivida por Hattie
McDaniel, mas podemos associar também à clássica personagem do “Sítio do pica pau amarelo”
(1977), Tia Anastácia. Nas telenovelas, temos a personagem da atriz Isaura Bruno em “ Direito
de nascer”
5
, de 1964, que interpretava uma empregada doméstica sem nome, conhecida apenas
como Mamãe Dolores. Esse exemplo é fundamental para entendermos como as imagens de con
-
trole se perpetuam pela mídia, extraindo o benefício para os grupos dominantes e relegando as
atrizes ao esquecimento e/ou à miséria. Isaura Bruno foi a primeira atriz negra de grande rele
-
vância nas telenovelas brasileiras, mas permaneceu no esquecimento, ao contrário dos colegas
com quem contracenou.
Essa imagem de controle também funciona como uma maneira de perpetuar uma noção única de
família que ignora as contribuições ofertadas pela mulher negra à sociedade. Sendo assim, essa
categoria objetiva determinar quais as configurações familiares aceitas na sociedade patriarcal
supremacista branca, fazendo com que a relação mãe–filhos permaneça em vigilância pelos gru
-
pos dominantes, influindo, assim, em outras categorias. Para Bueno (2020, p. 88) o “objetivo por
trás dessa imagem de controle é manter as mulheres negras submissas ao trabalho doméstico e
ensinar seus filhos a apresentarem o mesmo comportamento, o que também é articulado a partir
das imagens de controle destinadas às crianças negras”.
Essa imagem de controle corresponde também ao mito da aceitação da escravização, já que a suavi
-
zação das violências infere uma domesticidade falsamente aceita. A tentativa de criar a ideia de uma
escravização branda, intuito também em voga no Brasil, não faz sentido, já que, se há a privação de
liberdade e o trabalho forçado, não tem como existir aceitação ou passividade. Essa ideia também
visa controlar os movimentos negros com o intuito de mascarar as formas de resistência ao sistema
imposto.
Outra categoria seria a “jezebel”, mulher negra hipersexualizada, que está sempre disposta a re
-
correr ao prazer sexual em troca de qualquer coisa, considerada uma “mulher de vida fácil”. Essa
imagem de controle, presente no imaginário racista das sociedades escravocratas, também conse-
gue ser facilmente identificada no audiovisual. Um bom exemplo é a personagem Nola Darling, do
filme “She’s gotta have it” (1986), e em algumas telenovelas globais, como a marcante personagem
Bebel, interpretada por Camila Pitanga em “Paraíso tropical”
6
(2008), e Berenice, vivida por She-
ron Menezzes em “Lado a lado” (2012). Essa é outra categoria que pode ser aproximada no Brasil
por meio do conceito da mulata.
5
A novela “Direito de nascer”, exibida pela TV Tupi em 1964, foi uma das primeiras produções do gênero a conquistar o
público, tendo seu último capítulo exibido ao vivo em estádios de futebol, com bastante comoção. A personagem Mamãe
Dolores era uma das mais adoradas pelo público, o que levou a atriz Isaura Bruno a consagração, reconhecimento que du
-
rou apenas poucos anos.
6
Apesar do forte apelo popular por meio do casal Bebel (Camila Pitanga) e Olavo (Wagner Moura), considerados o casal mais
carismático da trama, a narrativa não buscava discutir questões raciais, o fato de Bebel ser uma mulher negra de pele clara
e atuar como prostituta de luxo não era problematizado ou questionado.
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Ana Ângela Farias Gomes; Victor Adriano Ramos
Enquanto a
mammy
é uma mulher negra assexuada, desprovida de qualquer conteúdo de
beleza, nada atraente e, portanto, nem um pouco ameaçadora aos ideários hegemônicos
das famílias brancas, a
jezebel
é a mulher negra sexualmente agressiva, insaciável, lasciva,
que, portanto, deve ser tomada de qualquer forma (Bueno, 2020, p. 110).
Essa imagem de controle datada desde a escravização visa confinar a mulher a partir da
sexuali
-
dade, gerando um mito em relação à sua predisposição sexual, utilizado para justificar as diversas
violências às quais eram submetidas as mulheres negras escravizadas em relação às investidas
sexuais dos colonizadores brancos. A partir da lógica de dominação do colonizador, a diferença
entre a categoria da mammy, em que a sua sexualidade é rejeitada, para a jezebel, em que a virtude
sexual é exaltada, revela como a mulher negra e sua feminilidade são usadas como forma de con
-
trole do seu corpo dentro da sociedade patriarcal supremacista branca. Essa imagem de controle
produz a ideia de que mulheres negras são movidas pelo instinto sexual, sendo mais compatível a
investidas sexuais, já que seu corpo estaria sendo exposto para deleite da branquitude.
Podemos traçar um paralelo entre as categorias apresentadas por Collins (2019) e as analisa
-
das por Gonzalez (2020). As duas pesquisadoras trazem pontos semelhantes em suas análises
e na estruturação do feminismo negro. Gonzalez traz a categoria da “mucama”, também vinda do
imaginário escravocrata. A mucama se assemelha à imagem de controle da mammy, sendo esta a
mulher que cuida não só do filho dos patrões, mas de toda a sociedade brasileira. É a partir des
-
sa categoria que derivam as duas categorias analisadas pela autora, a da mulata e da mãe preta.
Podemos visualizar facilmente em obras audiovisuais essas categorias, muito comuns nas tele
-
novelas brasileiras, nas quais as personagens negras são majoritariamente relegadas a papéis de
coadjuvantes, sem ação e histórias próprias (Araújo, 2019).
Essas categorias se desdobram de um mesmo significante inicial, que seria o papel da mulher escravi
-
zada na sociedade escravocrata, por meio do lugar da mucama. A autora chama atenção que diferente
do que é apresentado em recriações artísticas e outras encenações sobre o período, a mulher negra
também trabalhava na plantação das fazendas, sendo algumas escolhidas para o serviço doméstico,
além do trabalho braçal, e outras eram colocadas nas cozinhas. Aquelas de quem os senhores se afei-
çoavam eram, assim, por meio da violência, aproximadas deles, causando o que ficou conhecido popu
-
larmente como o “romance” entre a casa grande e a senzala
7
. Porém, apesar do forte mito de que havia
uma cooperação entre os dois grupos, o que existia de verdade era violência física por parte daqueles
que detinham o poder, e, por parte daqueles que eram privados de liberdade, cabia a resistência a par
-
tir de diversas formas, algumas ativas (como as diversas revoltas e revoluções) e outras passivas.
A partir dessas funções pré-estabelecidas, a autora remonta às origens de duas categorias defini
-
doras na socialização das mulheres negras: a mulata e a mãe preta. A mulata representa a mulher
jovem, hipersexualizada, vista apenas como um corpo passível da intromissão do homem branco.
Essa definição se encaixa na construção do pensamento hegemônico a partir da ideia da escravi
-
zada como um objeto de compra, pertencendo assim ao seu senhor de engenho. Já a mãe preta cor
-
responde à categoria das mulheres escravizadas que tinham as suas sexualidades completamente
7
As relações entre a casa grande e a senzala são apresentadas por Gilberto Freyre em seu livro “Casa-grande & senzala:
formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal”, no qual apresenta a teoria do lusotropicalismo, em
que considera que a mistura das três raças formativas do Brasil, a portuguesa, a africana e a indígena, teria ocasionado um
abrandamento em relação à discriminação racial. O autor consolida o mito da democracia racial, amplamente difundido a
partir da década de 1930. Para Gonzalez (2020, p. 50), “o efeito maior do mito é a crença de que o racismo inexiste em nosso
país graças ao processo de miscigenação”.
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Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”
anuladas, exceto se servissem para cuidar dos filhos dos seus senhores, sendo essas mulheres as
responsáveis pela criação das crianças brancas.
Gonzalez (2020) analisa as posições ocupadas pela mulher negra na sociedade, elencando que as
formas de tratamento relegadas a esse grupo derivam dessas duas posições antagônicas. Assim
como Collins (2019) determina que as imagens de controle nascem no período de escravização
dos corpos negros nos Estados Unidos, criando assim complexos sistemas de dominação que re
-
percutem até os dias atuais, Gonzalez (2020) também chega à conclusão similar em suas análises
no Brasil. Segundo a autora, essas posições relegadas às mulheres negras formam uma imagem
padrão de como é entendida e esperada a vivência negra, e tem-se nos meios de comunicação uma
de suas principais fontes de compartilhamento.
Para Gonzalez (2020), a justificativa de um Brasil predominantemente negro vem justamente da
posição ocupada pela mãe preta, já que ao ocupar essa posição, cabia-lhe educar a criança branca,
enquanto o seu filho era arrancado de seus braços. Com isso, ela transmitia-lhe os ensinamentos
e conceitos trazidos de sua vivência negra, passando assim adiante questões culturais primárias.
Essa seria uma das estratégias de enfrentamento passivo ao regime escravocrata, uma forma efi
-
ciente que teria originado, segundo a autora, o pretuguês. A interlocução entre essas duas reali
-
dades provocou o deslocamento do idioma ao ponto de a forma falada no país ser única, sendo
essa também a porta de entrada para a africanização da cultura brasileira, a partir das relações
desenvolvidas pela mãe-preta. Gonzalez (2020, p. 55) analisa que “[…] se levarmos em conta a
teoria lacaniana, que considera a linguagem como o fator de humanização ou de entrada na ordem
da cultura do pequeno animal humano, constatamos que é por essa razão que a cultura brasileira
é eminentemente negra”.
Sobre a outra categoria destacada por nós, a mulata, a autora trata a partir da transformação dessa
categoria em profissão, distorcendo o símbolo repercutido nas festas carnavalescas em uma esfera
da representação da mulher negra na sociedade. Gonzalez (2020, p. 59) afirma que “[…] a pro
-
fissão de mulata é exercida por jovens negras que, num processo extremo de alienação imposto
pelo sistema, submetem-se à exposição de seus corpos […], através do ‘rebolado’, para deleite do
voyeurismo dos turistas e dos representantes da burguesia nacional” .
Como percebemos, a sociedade patriarcal supremacista branca elenca posições possíveis para as
mulheres negras segundo a suas percepções em relação ao seu corpo, classificando a partir das
posições selecionadas. Ao enquadrar a mulher negra nessa categoria, afirma-se, mais uma vez,
uma posição de dominação diante do seu corpo.
No audiovisual, a exploração da mulher negra é refletida nos tipos de personagens a que estão
sujeitas a exercer. Na pesquisa sobre a presença da mulher negra no cinema nacional recente,
Candido e Feres Junior (2019) identificam que esse estereótipo está presente em 50% dos filmes
analisados, que corresponde ao período de 2002 a 2014, quando é analisado o protagonismo de
mulheres pretas e pardas. Nas produções televisivas, essas características não são muito diferen
-
tes, como já apontado por Araújo (2019).
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Ana Ângela Farias Gomes; Victor Adriano Ramos
3. As mulheres negras em “Lado a lado” – a maternidade
Tendo por base Collins (2019) e Gonzalez (2020), que definem as categorias de controle do corpo
da mulher negra, partimos do lugar que a maternidade tem nas relações envolvendo mulheres
negras. Como já explicado, as principais categorias analisadas pelas autoras têm como ponto de
partida a posição da maternidade. É a partir disso que se desenvolvem a categoria da mammy,
principal imagem de controle da qual todas as outras derivam, e a categoria da mãe preta.
Em “Lado a lado”, Isabel, coprotagonista, mulher negra de pele clara, jovem, trabalhadora do
-
méstica, na primeira fase, e dançarina profissional, na segunda, envolve-se afetivamente com Zé
Maria, homem negro retinto, capoeirista, mais velho, barbeiro, na primeira fase, e marinheiro re
-
formado/contador, na segunda. Porém, a relação dos dois é atravessada por Albertinho, homem
branco rico vindo de uma família aristocrática, jovem, que vive às custas do dinheiro da família na
maior parte da trama. Esse personagem ganha uma “curva de redenção” quando inicia um traba
-
lho como advogado na fábrica do cunhado. Como resultado desse breve encontro sexual orques
-
trado por Albertinho com a intenção de se aproveitar de Isabel quando se encontrava fragilizada,
nasce Elias, criança negra de pele clara.
Escolhemos as cenas a serem analisadas (Quadros 1, 2, 3 e 4) envolvendo as personagens Zenaide
e Isabel (Figura 1) em situações nas quais as duas exercem a função materna. Buscamos compre
-
ender de que maneira essa relação se desenvolve, tanto entre as personagens como entre outras
que circundam essa relação.
Quadro 1 – Zenaide e seus filhos – dimensão visual [cena do capítulo 52]
CategoriaDimensão visual
Cenário
Um barraco feito de madeira com uma mesa de centro, um pequeno armário e alguns
caixotes servindo de banco, todos em madeira gasta. Velas iluminam a cena. Panelas de
barro, pratos e copos estão dispostos na mesa. Algumas ervas secas estão penduradas
ao logo do cômodo.
Figurino/ caracterizaçãoZenaide veste um conjunto de saia longa e blusa de manga comprida marrom, tecido
simples de algodão cru sem nenhum detalhe ou acabamento. O cabelo crespo está pre
-
so em um coque.
Elias veste calça comprida e camisa de manga longa branca, um pouco suja; seus dois
irmãos vestem-se de uma roupa com material mais simples, da mesma cor do conjunto
da mãe.
Gestualidade/ performance
Zenaide serve arroz aos filhos, colocando porções maiores para os mais velhos e dei
-
xando Elias com menos, ele olha o prato dos irmãos e questiona Zenaide, o que faz com
que seu irmão coloque um pouco de comida em seu prato enquanto Zenaide está de
costas. A mulher briga e ofende Elias, que fica triste na mesa, as outras duas crianças
ficam confusas na maior parte da cena. Na conversa a mulher dá instruções aos filhos.
Enquadramento
Plano aberto dá dimensão ao ambiente e plano médio conduz a cena.
Iluminação
Luz amarelada em tom sépia.
Fonte: Elaborado pelos autores (2023).
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Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”
Quadro 2 – Zenaide e seus filhos – dimensão sonora
CategoriaDimensão sonora
Trilha sonora
Instrumental da música “O mundo é um moinho”.
Diálogo
Elias: O Olavo e Vilmar sempre ganham mais. Zenaide: Tá reclamando do que, Elias?
Vilmar: Pirralho que nem você tem que comer pouco mesmo. Né, mãe?
Zenaide: Sou eu quem decide isso aqui. Anda! Come logo que eu não vou ficar requentando comida de
ninguém não, hein? Olha aqui, presta atenção vocês três, eu não quero ninguém dando conversa pra
esse povo daqui, não quero vizinho sabendo da nossa vida, e isso é principalmente pro senhor, viu seu
Elias? Não gosto nada nada do Seu Alfonso se engraçando pra você, esse velho não tem que ficar metido
na nossa vida não.
Elias: Mas Seu Alfonso é bonzinho mãe, e todo mundo aqui no morro gosta de mim. Vilmar: Esse morro
é chato, ficar toda hora subindo e descendo, eu queria morar lá embaixo.
Zenaide: Mas é aqui que a gente mora, tem que gostar. Eu só não quero ninguém dando conversa pra
esse povo daqui. Entendeu, Elias?
Elias: Entendi… Aqui no morro é alto e dá pra soltar pipa. Né, Olavo? Eu gosto.
Vilmar: Esse bobo não sabe nem soltar pipa direito e fica aí falando.
Olavo: Mas eu vou te ensinar, Elias, e a gente vai fazer uma pipa nova.
Fonte: Elaborado pelos autores (2023).
Elaborando a partir das ideias apresentadas por Collins (2019), podemos inferir que essa cena
desenha a personagem da mulher mãe e negra com base em noções estereotipadas, o que se apro
-
ximaria da ideia que a autora diz em relação à matriarca. Sendo essa mulher pintada como “mãe
megera”, culpada da má educação dos seus filhos e rígida em seus tratamentos. Collins afirma que
a importância da utilização das imagens de controle para a elite branca perpassa por uma sólida
tentativa de se manter no poder. A associação das mulheres negras mães como megeras, desde
a escravização, era necessária para enquadrar esse corpo como apto à punição e controle social
exercidos pela sociedade branca. “Enquanto a mammy caracteriza a figura da mãe negra nas fa
-
mílias brancas, a matriarca simboliza a figura materna nas famílias negras. Assim como a mammy
representa a mãe negra “boa”, a matriarca simboliza a mãe negra “má”” (Collins, 2019, p. 145).
Há uma forte intenção na cena de ilustrar essa mulher como uma megera que não cuida direito
dos filhos, especialmente daquele que sequer é seu filho biológico. Na dimensão do melodrama,
Zenaide se enquadra na categoria de vilã, sua participação ao longo da trama não tem nenhuma
outra função a não ser barrar a felicidade da heroína, para isso se recorreu a estereótipos relacio
-
nados a figura da mulher negra. Por essa cena podemos compreender que a trama reforça o sen
-
tido da mulher negra como o mal, não havendo no momento uma contraparte que contextualize
ou reprove essas ações.
Outro fato que nos chama atenção é a escolha da atriz para dar vida a essa personagem, uma mu
-
lher negra de tom de pele mais escuro quando comparado ao das outras personagens negras com
relevância na história. Seu corpo se aproxima da imagem de assexuada e gorda que povoa a figura
da mammy e da mãe preta, uma escolha visual que nos leva a aproximar o nosso repertório – ali
-
mentado por imagens racistas e tendenciosas – dessas figuras.
Zenaide é apresentada na trama não apenas como um contraponto à maternidade, mas assume
uma função narrativa específica de vilã, criando apenas mais um obstáculo à felicidade da prota
-
gonista. Não é oferecido nenhum momento de redenção à personagem, nenhuma outra função
narrativa, seus objetivos estão em torno apenas da relação com Elias, filho de Isabel, de quem ela
cuida em troca de uma pensão oferecida por Berenice, como pagamento. Desse modo, diferente
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Ana Ângela Farias Gomes; Victor Adriano Ramos
das outras personagens, não é construída nenhuma complexidade para Zenaide, sendo apenas a
mãe megera.
A utilização de estereótipos e lugares-comuns ao longo da narrativa da telenovela poderia justi
-
ficar a exploração do tema central da trama. Porém, convém atenção ao que nos é apresentado.
Essa cena simboliza o uso de noções estereotipadas de maneira a reforçar aspectos conflitantes
com relação à mulher negra. Podemos sugerir que Zenaide é desenhada para servir de contra
-
ponto à Isabel, o que sugere que a narrativa está ancorada numa lógica binária, fazendo sentido
na perspectiva do melodrama, que sugere o ideal oposto de uma mãe ruim, uma mãe boa. Porém,
Zenaide, como podemos inferir pela cena apresentada, faz parte da parcela popular vivendo em
um barraco no Morro da Providência. Podemos entender por isso que ela é o comum, diferente de
sua contraparte, Isabel (Figura 1), como veremos a seguir (Quadro 4).
Figura 1
— Isabel conversa com Elias [cena do capítulo 149]
Fonte: Lado a Lado (2012).
Quadro 3 — Isabel conversa com Elias — dimensão visual [cena do capítulo 149]
CategoriaDimensão visual
Cenário
Um quarto ricamente decorado com móveis de madeira de boa qualidade, cama com lençóis que apa-
rentam ser de boa qualidade, papel de parede num tom cor de rosa, vários livros espalhados numa
mesinha com luminária.
Figurino/
Caracterização
Isabel veste-se com um vestido branco de seda e um xale azul-marinho, seu cabelo volumoso encontra
-
-se em um penteado simples. Seu Alfonso está com terno simples e Elias com um pijama.
Gestualidade/
Performance
Elias está deitado na cama com as mãos nos ouvidos enquanto os dois adultos em pé tentam falar com
ele. A conversa ocorre dessa forma. Elias chora ao longo da conversa enquanto argumenta com Isabel e
Seu Alfonso que estão tristes e preocupados.
Enquadramento
Plano aberto para mostrar o cenário seguido de campo e contracampo nos diálogos e plano médio ao
final da cena.
IluminaçãoFotografia amarelada em tom sépia.
Fonte: Elaborado pelos autores (2023).
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Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”
Quadro 4 — Isabel conversa com Elias — dimensão sonora
CategoriaDimensão sonora
Trilha sonora
Instrumental da música “O mundo é um moinho”.
Diálogo
Seu Alfonso: Sua mãe só tá querendo te explicar uma coisa, Elias.
Isabel: Você não quer saber por que você não pode ir na casa de sua avó? Então, tira a mão do seu ou
-
vido, tira. Vou te contar o resto da sua história, quando roubaram você de mim. Elias: A parte que tem
a mulher malvada e que não gosta de você?
Isabel: Sobre ela mesmo que eu quero falar. Porque ela ainda tá muito perto da gente, filho, e ela nem
parece que é malvada, mas isso porque ela sabe mentir muito bem.
Seu Alfonso: Você até gosta dela e não sabe que ela é perigosa. Elias: Eu conheço essa moça que me
roubou?
Isabel: A moça dos doces é sua avó, foi ela quem roubou você de mim, foi por causa dela que eu fiquei
sem filho, que você ficou sem mãe.
Elias: Mas ela me roubou só porque ela não gostava de você? Isabel: Foi filho, foi por causa disso.
Elias: Mas por que ela não gostava? O que você fez pra deixar minha avó tão brava? Isabel: Eu não fiz
nada pra ela não gostar de mim, eu não fiz nada de errado.
Elias: E por que que ela não gostava de você?
Isabel: Porque… Porque eu era pobre, filho, e ela não aceitava que uma mulher pobre namorasse o filho
dela.
Elias: Mas agora você não é mais pobre, você pode gostar dela e ela pode gostar de você. Isabel: É muito
mais difícil de explicar do que isso, Elias, e é muito mais difícil de entender também.
Seu Alfonso: Eu já te contei do tempo da escravidão.
Elias: Eu sei vô, mas você também me contou que não existe mais escravo. Seu Alfonso: É verdade, só