image/svg+xml1Revista TOMOSão Cristóvão, v. 42, e18857, 2023Data de Publicação: Junho/2023DossiêUm encontro com as protagonistas de Cabo Verde. Mulheres, memória e resistênciaCatarina Sales1Resumo:Este artigo analisa a presença e as interpretações dos temas da memória e da resistência na cultura produzi-da por mulheres. O seu contexto geográfico e social é o arquipélago cabo-verdiano contemporâneo onde, nas palavras de uma das nossas protagonistas, se vivencia “um momento único para as mulheres”. Sustentada numa revisão de literatura que cruza a análise literária com os estudos de memória, de identidade e de cul-tura, a investigação consistiu numa incursão etnográfica exploratória composta por entrevistas-conversas com 13 mulheres cabo-verdianas e participação direta em eventos culturais. Foi possível mapear diferen-tes formas de (re)significação da memória coletiva e histórica e perfis de resistência, bem como elencar questões-chave que norteiam essas mulheres e que, no nosso entender, consubstanciam propostas de fazer feminismo(s)no Cabo Verde contemporâneo. Palavras-chave: mulheres, Cabo Verde, cultura, memória, resistênciaIntroduçãoEste artigo apresenta uma investigação empírica em torno dos temas da memória e da resistência de género realizada em Cabo Verde. A memória social pode ser definida como a “articulação da memória como fonte de ligação social e construção da identidade cultural” (Torino, 2013). O rela-tivamente recente campo dos Estudos de Memória, que foi palco de um crescimento notável nos últimos anos, tem no conceito de memória coletiva de Halbwachs (2004) um pilar fundamental. Contudo, segundo Gensburger (2016), para Halbwachs a memória consistia num recurso para o estudo sociológico do mundo e não um objeto em si. É nessa acepção que trabalhamos a memória neste artigo, em articulação direta com as temáticas da identidade e da resistência, procurando perceber lógicas de (re)criação do passado vivenciadas no momento presente. Assumindo o nosso estudo na área dos estudos sobre as mulheres, osfeminismos e o gênero (EMFG) (Pereira, 2013), situamos a nossa perspetiva nas diferentes formas de resistência prota-gonizadas e desenvolvidas por mulheres artistas e produtoras de cultura. Falamos sem hesitações de resistência no contexto das práticas artísticas e culturais de mulheres em Cabo Verde, porque se trata de uma área na qual o protagonismo das mulheres, na esfera pública, é muito recente: o 1 Universidade da Beira Interior. Centro de Investigação e Estudos em Sociologia. Covilhã. Castelo Branco. Portugal. Email: catarinasalesoliveira@gmail.comhttps://orcid.org/0000-0002-5284-4390 Financiamento: Marie Skłodowska-Curie Grant Agreement No 778076Dossiê
image/svg+xml2Catarina Salesprimeiro livro de autoria feminina em Cabo Verde foi publicado na década de 1990. A obra das mulheres pioneiras na produção cultural tem sido estudada por algumas autoras e autores, mas sobretudo no campo da literatura (ver, por exemplo, Gomes (2013), Almeida (2019) ou Galassi (2021), entre outras autorias). Nesse sentido, no cenário da cultura cabo-verdiana é particular-mente adequada a frase de Barreno, Horta e Costa (2010, p. 231) de que “ o problema da mulher [,no meio disso,] não é o de perder ou ganhar, é o da sua identidade”. O lastro que a criação cultural feminina está a deixar e a forma como a obra das pioneiras abriu caminho e marcou as novas gerações de mulheres artistas são objetos de estudo que se nos afigu-raram muito pertinentes à análise sociológica. A resistência é um conceito regularmente convoca-do nos EMFG e aqui é acionado de forma bastante ampla, podendo consubstanciar ações, atitudes, princípios ou valores e mensurado a partir de duas vertentes: a voz direta das nossas interlocuto-ras quando questionadas e a sua obra, o que ela nos diz. Na primeira parte deste artigo fazemos uma breve revisão de literatura dos conceitos de memória e resistência à luz do contexto especí-fico de Cabo Verde. Em seguida, para situar sociologicamente o nosso objeto de estudo, fazemos um retrato das condições de vida das mulheres cabo-verdianas e debatemos o conhecimento já existente sobre mulheres e produção cultural, problematizando a existência, ou não, do feminismo em Cabo Verde.No ponto seguinte, apresentamos as nossas opções ao nível do trabalho empírico. Assim, o estudo resulta de uma estância de investigação de um mês em Cabo Verde no contexto do projeto RESIS-TANCE2, que incluiu deslocações interilhas, acionando a técnica de amostragem em bola de neve. Elencamos e convidamos para uma conversa 13 mulheres cabo-verdianas, ativas culturalmente no seu país no momento atual. A par das entrevistas-conversas com as mulheres, efetuou-se a observação direta de eventos culturais e a participação em atividades de teor artístico abertas ao público. Optamos por narrar subjetivamente esses encontros e a forma como se foram sucedendo e encadeando, convidando assim quem nos lê a acompanhar o nosso périplo porque o processo testemunha não apenas as especificidades de cada encontro como também a teia de relações en-tre essas mulheres. Apresentamos partes selecionadas das narrativas das nossas protagonistas, explorando os seus entendimentos sobre os temas em estudo e os seus próprios percursos. Ter-minamos com uma reflexão sobre o que nos foi dito e também sobre o nosso lugar nesse processo, enquanto mulher, feminista, portuguesa, investigadora em viagem e em diálogo.1. Passado e presente. Memória e resistência em Cabo VerdeA questão da identidade cabo-verdiana, em torno da “crioulidade” ou do “ser verdiano”, é um de-bate longo. Na nossa estadia em Cabo Verde rapidamente percebemos que o país contemporâneo permanece emerso na discussão histórica de definição e construção identitária. O tema está pre-2O projetoRESISTANCE é financiado pela Comissão Europeia e é liderado pela Universidade de Évora, sob a coor-denação de Mafalda Soares da Cunha. O RESISTANCE estuda os processos de resistência de categorias sociais discri-minadas, segregadas e “de baixo” nos impérios ibéricos, ou seja, nos territórios europeus ibéricos, americanos, africanos e asiáticos, entre 1500 e 1850. O seu objetivo central é o conhecimento das formas de participação desses grupos nos processos de transformação social. A equipe é composta por cerca de 110 investigadorespertencentes a 13 ins-tituições, das quais sete são europeias, quatro portuguesas, duas espanholas e uma alemã. As outras seis instituições situam-se no Chile, Argentina, Brasil, México, EUA e Cabo Verde. O RESISTANCE conta com um financiamento global de 1.030.500,00€, destinados a suportar os custos da mobilidade e as atividades da equipa de investigação. Teve início em ju-nho de 2018 e tem duração prevista de quatro anos.Esse projeto recebeu financiamento do programa de investigação e inovação Horizonte 2020 da União Europeia ao abrigo do o acordo de subvenção Marie Skłodowska-Curie n.º 778076.
image/svg+xml3Um encontro com as protagonistas de Cabo Verde. Mulheres, memória e resistênciasente nas conversas quotidianas com particular destaque para os ambientes frequentados por uma certa intelectualidade, como é o caso da emblemática livraria Nho Eugénio na cidade da Praia, que foi um lugar central para a nossa etnografia. Sendo a independência do país muito recente (5 de julho de 1975), está ainda em processo aquilo que foi a luta pela independência e o caminho de construção nacional que se tem feito desde então. Esse histórico está discutido na literatura recente por autores como Onésimo Silveira, João Paulo Madeira (2015), José Maria Semedo ou João Lopes Filho (2023). Mas, mais relevante para a nossa investigação, Cabo Verde também não resolveu ainda o seu passado mais distante, relacionado com o seu nascimento enquanto entre-posto comercial. É esse passado longo que a população cabo-verdiana sente que corporiza a sua história por escrever e por desvendar. Diz-nos Euridice Monteiro (2011, p. 104)que “o arquipélago de Cabo Verde tem suscitado um intenso debate, tanto quanto ao pensamento colonial português, como quanto ao imaginário mes-tiço cabo-verdiano.” A autora identifica uma “fantasia crioula” (Monteiro, 2011, p. 104) legitimada pelos próprios habitantes, que, se por um lado reivindicam para si uma identidade única, por ou-tro, desconhecem e têm silenciado parte do processo histórico de origem dessa mesma identidade crioula ou mestiça. João Paulo Madeira sistematiza “o debate contemporâneo que existe acerca da identidade cabo--verdiana que, para uns, resulta de ajustamentos geográficos e históricos e, para outros, do “senti-mento de pertença” de Cabo Verde à Europa ou África. Essa ambivalência acentua-se na discussão dos que defendem uma maior aproximação ao espaço europeu, e outros que são da opinião de que deveria existir uma maior integração de Cabo Verde no contexto africano. Porém, é possível identificar um conjunto de autores que não se revêm somente com a perspetiva africana nem apenas com a europeísta, mas que se enquadram na categoria de “singularistas”. Trata-se dos que reconhecem e caracterizam Cabo Verde como sendo único e/ou excecional no contexto africano, “pelo fato de resultar de uma síntese cultural e étnica de diferentes contingentes populacionais oriundos da África e da Europa, e que deu origem ao homem cabo-verdiano nestas ilhas” (Madeira, 2015a, p. 50-51). De particular interesse para a nossa temática é o fato de Madeira identificar as revoltas populares decorridas nos séculos XIX e XX como precursoras da criação do Estado-nação na medida em que “consistiram em protestos contra o regime e opressão colonial e se tra-duziram em processos de cariz emancipatório de resistência às pressões fiscais e às for-mas de hostilidade entre proprietários, morgados e/ou rendeiros e os escravos” (Madeira, 2015, p. 50). Dessas destacamos a revolta de Ribeirão Manuel, de 1910, integralmente protagonizada por mulheres e que detalharemos mais adiante.Apesar de ser uma temática fascinante, não nos deteremos a desenvolver mais esse processo his-tórico-identitário de Cabo Verde. Pretendemos somente dar conta de como esses debates estão presentes na sociedade cabo-verdiana contemporânea, dessa forma compondo o contexto inte-lectual com que nos deparamos. O tema impôs-se desde as primeiras conversas que mantivemos. Todas as pessoas – homens e mulheres, acadêmicos/as e leigas/os –, a quem explicamos o nosso objeto de estudo, de imediato o interpretaram no âmbito da questão identitária, política e territo-rial cabo-verdiana. Curiosamente, no primeiro dia da nossa estadia, foi-nos relatada a história da revolta de Ribeirão Manuel. Assim não estranhamos posteriormente que também as nossas pro-tagonistas – mulheres criativas, artistas e intelectuais – nos falasse amiúde dessas questões. Rapi-damente percebemos que se não tivéssemos definido a priorio questionamento sobre memória e
image/svg+xml4Catarina Salesresistência, ambos os conceitos emergiriam da fala das nossas interlocutoras. As mulheres estão atualmente amplamente envolvidas nesse debate visto que, segundo Marisa Carvalho, uma das nossas entrevistadas e atual presidenta do Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género, “as mulheres são hoje voz ativa em Cabo Verde” (ent. MC). 1.1 Produção/Criação cultural feita por/de mulheres. Krioulas poderosas A arte é uma forma possível de resistência. A cultura é um lugar de excelência para a resistência porque os temas que se convocam no processo criativo expressam muitas vezes os enfrentamen-tos, as mágoas e as quotidianidades de quem cria. Quando falamos em memória como forma de resistência, no caso da história (essencialmente oral) de Cabo Verde, está-se, antes de mais nada, a resistir ao esquecimento (Horta; Mallet, 2014; Ribeiro, 2012). São as mulheres a contar as histó-rias de ontem para que não caiam no esquecimento. Histórias de família, da povoação que fizeram parte das suas vidas quotidianas, (re)contadas de geração em geração em cozinhas pelas avós enquanto trabalhavam na lide doméstica ou pelas mães enquanto as embalavam reconfortando-as apesar de tipicamente essas serem histórias de luta e sofrimento. A cultura cabo-verdiana é muito rica. Utilizamos neste artigo o conceito de cultura numa acepção ampla, entendendo a cultura enquanto um complexo de ideias e significados transmitido histo-ricamente (Geertz, 1989). Todavia, na seleção dos nossos casos de estudo, por uma questão de limitação do tempo em campo, focamos a produção de cultura de uma forma mais afunilada, no sentido da erudição e da expressão artísticas. O tema da cultura cabo-verdiana está profundamen-te impregnado do debate identitário. Segundo Madeira (2015, p. 88):a “cultura crioula (…) foi fortemente combatida durante o domínio colonial e a cultura do-minante, neste caso a portuguesa, acabou por ser assimilada em grande parte, tendo, si-multaneamente, sobrevivido manifestações culturais africanas, como a tabanca, o funaná e o batuque, manifestações estas que foram proibidas no século XIX. Só após a independência em 1975 é que essas manifestações ressurgiram abertamente. Onde começa a história das mulheres em Cabo Verde? Desde sempre, mas a sua história escrita não existe. Não a podemos ler, como em geral pouco sabemos das mulheres na história a um nível geral porque foram dela arredadas (Scott, 1992).A situação das mulheres em Cabo Verde não foge ao que acontece na maioria dos países africanos. Apesar das conquistas efetuadas pela sociedade civil no domínio da igualdade e equidade de género, a discriminação das mulheres em esferas importantes da vida con-tinua a ser uma dura realidade” e “nota-se a ausência de documentos, dados ou relatos que abordem o contributo da mulher na (re)construção da sociedade cabo-verdiana. (Silva; Fortes, 2011, p. 11).Dois importantes trabalhos que contrariam essa tendência: o artigo de José Carlos Gomes dos An-jos ,“Da Revolta de Ribeirão Manuel ao Devir-Mulher de um povo”, e o artigo “Mulheres na sombra: as cabo-verdianas e a luta de libertação nacional”, de Ângela Coutinho, integrados na obra editada por Carmelita Silva e Celeste Fortes em 2011 sobre as mulheres em Cabo Verde. A revolta de Ribeirão Manuel é peculiar por ter sido liderada por mulheres. Um grupo de mulheres que se revoltou contra os morgados e a polícia que tinham aprisionado algumas companheiras
image/svg+xml5Um encontro com as protagonistas de Cabo Verde. Mulheres, memória e resistênciaque recolhiam alimentos de forma clandestina. A revolta foi organizada por Ana da Veiga, conhe-cida por Nhanha Bombolom. O artigo de Ângela Coutinho (2011) aborda o tema inédito até então das mulheres envolvidas no movimento independentista. Nesses dois artigos dá-se conta da par-ticipação das mulheres em movimentos de resistência fulcrais na história de Cabo Verde. Estamos certas de que muito mais há para relatar a esse nível e esperamos que no futuro muita história haja a acrescentar.Se a cultura cabo-verdiana foi transmitida essencialmente pelas mulheres por meio da história oral, também o seu papel na estruturação da crioulidade é central (Rovisco, 2022). Para tal, foi muito importante o fato da figura masculina se encontrar tipicamente ausente, seja por ser escra-vo, escravocrata, seja por ser emigrante (Monteiro in Rovisco, 2022). A mulher como guerreira e pilar da família é uma forte marca do passado, mas que percebemos que ainda persiste. Para com-preender melhor essa situação, fomos recensear estatísticas demográficas recentes. Para caracterizar a situação atual das mulheres em Cabo Verde recorremos ao Plano Nacional de Igualdade de Género 2022-2026 (ICIEG, s.d.), que parte de um diagnóstico inicial com base em fontes secundárias e repartido por três domínios: autonomia econômica das mulheres, autonomia do corpo e autonomia na tomada de decisões.Os dados demográficos recolhidos em 2019 apresentam uma repartição da população por sexo com 49,6% de mulheres. É na faixa etária dos 15 aos 44 anos que o peso das mulheres é mais re-duzido (apenas 47,6% das pessoas residentes) e vai subindo até aos 63% das pessoas com mais de 80 anos. Esse dado é condicente com a atual tendência para uma feminização da emigração cabo-verdiana, protagonizada sobretudo por mulheres solteiras (Carvalho, 2016). Temos presen-temente uma masculinização da população ativa, que é mais acentuada em determinadas ilhas do que noutras (Boavista, Santo Antão e Sal são os casos mais acentuados). Ao nível da educação, as mulheres apresentam níveis mais elevados de escolaridade que os homens – sobretudo nos níveis secundário e superior – numa população total que está prestes a atingir os 100% de alfabetização na faixa entre os 15 e os 24 anos. Contudo, esses resultados não se espelham no mercado de traba-lho: apenas 51% da população em idade ativa feminina está trabalhando, ou seja, 49% das mulhe-res em idade ativa não estão no mercado de trabalho pago, sendo essa realidade mais significativa nas zonas rurais, onde a inatividade das mulheres atinge os 63,9%. Das mulheres em inatividade laboral, 17,7% invocam responsabilidade familiares ou pessoais. Decorrente dessa situação há um fosso significativo nos rendimentos de homens e mulheres (INE, 2019). Essa situação é particular-mente grave quando 30% dos agregados familiares são monoparentais femininos. Nas tipologias de famílias pobres, o modelo da família monoparental com crianças encabeçado por mulheres representa 61,1% dos casos.De destacar ainda que em 2018 o país tinha um índice sintético de fecundidade de 2,5 crianças por mulher, embora o uso de contraceptivos ainda seja baixo: 42,5% das mulheres indicam não usar contraceptivo. A taxa de mortalidade materna é elevada: 18,8% em 2016. O abuso de menores é atualmente uma preocupação grande no país (Vicente, 2016), visto ser uma realidade fortemente silenciada. Relativamente ao último domínio da autonomia na tomada de decisões, 69,8% dos parceiros não aceitam que a sua companheira conviva com as suas amigas. Percebemos que Cabo Verde, apesar de reconhecido com um dos países mais equitativos ao nível do gênero no con-tinente africano, é caracterizado por assimetrias persistentes, sobretudo na esfera econômica e política, em desfavor das mulheres e com repercussão na atual geração de jovens e crianças (ONU Mulheres, 2018).
image/svg+xml6Catarina SalesO trabalho criativo das mulheres cabo-verdianas tem sido estudado sobretudo ao nível da sua produção literária. Simone Caputo Gomes (2013, p. 20) destaca que:a produção feminina trabalha questões candentes da vida cabo-verdiana como o desmas-caramento dos discursos de poder androcêntrico, a necessidade de auto-reflexão sobre as estratégias patriarcalistas de dominação, a violência contra a mulher, a loucura, a mater-nidade precoce, a pedofilia, as mulheres chefes de família, o elevado número de filhos, o envelhecimento da mulher, o centramento no trabalho e cotidianos femininos.Muito inspiradora e próxima da nossa problemática é a análise que Galassi (2021, p. 88) faz do conto de Dina Salustio (2018) sobre a “denúncia da situação ainda atual em que a população ex--colonizada cabo-verdiana vive” à luz do conceito de desmemória, uma “forma ardilosa de esque-cimento, resultante do desapossamento dos atores sociais de seu poder originário de narrarem a si mesmos” (Ricoeur, 2007, p. 455)”.É esse o mote para a nossa pesquisa: fazer uma fotografia situada do momento atual sobre cria-ção artística feita por mulheres de diversas gerações em Cabo Verde, questionando o papel que a memória e a resistência ocupa nos seus percursos e agendas e qual o feminismo possível nesse contexto de desmemória e busca identitária – o que cria um microclima específico que tem que se ter em conta quando se problematiza o lugar e papel das mulheres no seu processo emancipatório (Lugones, 2010).Ao objetivar fazer narrativas de memória e resistência no feminino, posicionamo-nos em con-sonância com a “ruptura produtiva no estudo da cultura efetuada pelos estudos feministas, de gênero e pelos estudos sobre etnicidade e raça” (Costa, 2014, p. 87). A esse respeito, a iniciativa PoderoZas, iniciada por duas cabo-verdianas acadêmicas na diáspora norte-americana, organiza desde 2015 um encontro científico para as mulheres cabo-verdianas na diáspora. Do encontro de 2021 resultou uma obra editada que foca precisamente a memória e a resistência, compilando vá-rios capítulos produzidos por mulheres cabo-verdianas (Lima-Neves; Pilgrim et al., 2021). É uma iniciativa que dialoga com o nosso projeto de perto e é também o corporizar recente da relevância da crioulidade e do feminino, o que nos leva a questionar se podemos falar da emergência de um movimento feminista cabo-verdiano.1.1.1 Feminismo em Cabo Verde?Falar de feminismo em Cabo Verde é complexo porque havendo acontecimentos e posicionamen-tos que no nosso entender são expressão de feminismo, não há consenso em lê-los enquanto tal. Algumas autoras, entre as quais mulheres com quem nos cruzamos, assumem-se abertamente como feministas, mas outras evitam o termo. A socióloga Crispina Gomes relata o histórico do mo-vimento feminista em Cabo Verde desde a luta pela independência até a primeira década do atual século (Gomes, 2011). A criação da OMCV (Organização de Mulheres Cabo-erdianas) em 1981 foi um momento central que permitiu tanto a confluência das mulheres participantes na luta pela independência como abrir um caminho para a emancipação das mulheres cabo-verdianas. Ainda hoje a OMCV tem um papel fundamental, envolvendo-se em projetos centrais para as condições de vida e bem-estar das mulheres. Porém, Gomes chama atenção nessa obra para o fato de que a OMCV não se autodesigna como associação feminista. Volvidos mais de dez anos, não logra-
image/svg+xml7Um encontro com as protagonistas de Cabo Verde. Mulheres, memória e resistênciamos identificar nenhuma associação ou coletivo autodesignado como feminista. As associações nomeiam-se “de mulheres” e as instituições ou projetos optam sobretudo pelo uso do termo gê-nero. Destacamos que o organismo governamental para a promoção dessas questões se denomina ICIEG – Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género. Essa designação está em linha com um discurso corrente que destaca o conceito de equidade rejeitando tendencialmente o(s) feminismo(s). Podemos sumarizar que, ao mesmo tempo que domina uma leitura com reservas do feminismo, se destaca e louva a ideia da mulher forte, cuidadora, trabalhadora e autônoma, que não precisa de um parceiro para fazer a sua vida e a dos seus filhos e filhas. Contudo, se essa ideia é claramente central na cultura crioula, ao mesmo tempo estamos perante uma sociedade com fortes carências econômicas e sociais. Essa ambivalência é uma pista para o nosso diálogo com as mulheres criati-vas. Em que medida se revêm e revêm as mulheres cabo-verdianas como crioulas poderosas?2. Ao encontro delas. Coordenadas de uma etnografia experimental e apresentação das participantesAceitando o desafio de tentar dar visibilidade a “modalidades de resistência estética” (Mouffle em Almeida, 2019, p. 76), o nosso posicionamento é assumidamente não neutro porque o nosso lugar de fala (Ribeiro, 2019) é o de uma mulher, feminista, portuguesa, socióloga. Interessa-nos o lugar das mulheres e a sua força. Mas, enquanto estrangeira e não especialista na cultura cabo--verdiana, queremos destacar o nosso respeito pela cosmovisão de cada uma das mulheres com que contactamos. Almeida (2019, p. 21) situa bem esses limites quando aborda o que ela chama dos desafios de uma investigação feminista. “Não podemos falar pelas muitas mulheres que hoje são silenciadas. (…) Assim, precisamos abrir caminho para que outras mulheres possam falar por si, para que elas possam se manifestar sobre suas experiências sobre as quais nós muitas vezes desconhecemos ou mesmo ignoramos”. Nesta investigação, a nossa capacidade de identificar casos relevantes estava limitada pelo fato de se tratar de um estudo qualitativo, de cariz etnográfico, que recorre a uma amostragem de tipo bola de neve e que tinha uma duração temporal limitada, a saber, um mês de estadia. As-sim, a partir de um elencar inicial das mulheres pioneiras na produção literária, falamos com ou-tras mulheres, que nos foram sendo sugeridas pelas entrevistadas ou que logramos identificar na agenda cultural em curso. Apesar de sabermos que essa técnica de amostragem iria forçosamente condicionar o número de contatos estabelecidos, consideramos especialmente interessante por proporcionar uma perceção das redes de contatos existentes entre essas mulheres. Temos plena consciência de que com mais tempo identificaríamos mais casos e que, dado o limite temporal de apenas um mês, teremos abordado sobretudo as mulheres com maior visibilidade social. É nesse sentido que consideramos tratar-se de um estudo de cariz experimental e exploratório que dese-javelmente será enriquecido com mais casos no futuro.Simultaneamente, apesar de termos logrado mapear alguma produção sobre o tema das mulheres produtoras de cultura em Cabo Verde, recenseada acima, a familiarização com o conhecimento existente sobre o tema foi sendo feita durante a estadia. Isso, porque se procurou adotar uma postura indutiva, sabendo tratar-se de um tema ainda pouco explorado teoricamente. O design da investigação pautou-se por alguma informalidade e flexibilidade, procurando adaptar-se aos con-textos e perfis das nossas interlocutoras. Assim, algumas das conversas com as mulheres consisti-
image/svg+xml8Catarina Salesram em entrevistas mais formalizadas, embora sempre abertas ao nível da estruturação, enquanto outras foram efetivamente conversas. Uma minoria não foi gravada (dois casos). Essa flexibilidade de alternância entre o uso do registo áudio, a par do bloco de anotações (tiradas no momento ou redigidas posteriormente), foi por nós sentida como essencial para melhor vivenciar o cariz único de cada partilha. A entrada em campo fez-se mediada por interlocutores privilegiados, acadêmicos e colegas da Universidade de Cabo Verde, aos quais pedimos enquadramento e sugestões sobre a nossa te-mática. Esses colegas, curiosamente todos homens, indicaram-nos as primeiras mulheres prota-gonistas da cena literária e intelectual cabo-verdiana, as três mulheres que publicaram nos anos 1990 do século passado os primeiros livros de autoria feminina. Ao mesmo tempo, acionamos duas outras estratégias – a ida a livrarias de referência e a consulta da agenda cultural e de jor-nais locais.Há três livrarias famosas na cidade da Praia. Na Achada de Santo António, as livrarias Nho Eugénio e Arnaldo França, e, no bairro da Fazenda, a livraria Pedro Cardoso. Fomos às duas primeiras e pedimos apoio na identificação de autoras cabo-verdianas. Foram-nos indicados os mesmos três nomes que nos tinham sido referenciados pelos colegas – Dina Salústio, Vera Duarte e Fátima Bet-tencourt. Nessa livraria deparamo-nos com uma exposição de pintura de Sónia Lopes. Na porta o cartaz “Vem pintar comigo!” da mesma autora. A partir desse momento, enveredamos esforços para contactar essas quatro mulheres. Simultaneamente, consultamos a agenda cultural de Cabo Verde e ao verificar que a Vera Duarte ia apresentar um livro (de uma jovem autora) na semana seguinte, decidimos assistir.Para contactar as outras três mulheres identificadas, as redes sociais revelaram-se um auxiliar precioso, o que nos surpreendeu, sobretudo no caso das mulheres mais velhas, que não esperáva-mos encontrar tão ativas online. Foi possível via Facebook e Instagram contactar as três e, poste-riormente, seria sobretudo por meio da primeira rede social que estabelecemos contacto com a larga maioria das mulheres entrevistadas. Não obstante, com exceção dos dois últimos casos, to-das as entrevistas e conversas foram presenciais. Seguindo o rumo das sugestões dadas pelas mu-lheres que íamos conhecendo e também do que fomos mapeando por meio de notícias e cartazes culturais, identificamos 16 casos. Foi interessante constatar que as mulheres se conheciam entre si, estando nos perfis digitais umas das outras. Não tivemos nenhuma recusa explícita, contudo houve três casos de mulheres que contactamos e que nunca nos chegaram a responder.Para contactar a música e artista plástica Sónia Lopes agendamos uma sessão de Terapia pela Arte para um sábado de manhã. Foi a primeira mulher com quem contactamos, mas não foi exatamente uma entrevista formal. Foi uma conversa-sessão.3. As nossas protagonistas. Perfis e palavrasPassamos a apresentar as mulheres entrevistadas mediante alguns dados contextuais seus e do seu trabalho, entrecruzando descrição com as palavras delas.Sónia. “Quando começas a pintar, vais descobrir coisas que são só tuas”.Envolvida em duas manifestações artísticas, a música e a pintura, a Sónia sumariza assim a relação que mantém com essas: “A música é perigosa. A pintura é o lugar de nos encontrarmos”. “A Arte como terapia é um projeto social, de encontro com outras pessoas, de conversa através da arte. Eu
image/svg+xml9Um encontro com as protagonistas de Cabo Verde. Mulheres, memória e resistênciaensino algumas técnicas, vamos conversando e bebendo um café ou um chá e trabalhando juntas”. Na sua loja/atelier vende bonecas de pano feitas pela avó e malas feitas pela mãe. A nossa con-versa do primeiro dia gerou dois quadrinhos de pintura, é assim que funcionam as sessões. Arte plástica como uma forma de se acalmar porque a música, diz ela, “gera muita adrenalina”. Mas não em palco. “Estar em palco é receber as pessoas em casa. Sejam bem-vindos!”. Pintar surgiu para se sentir. Recebia pessoas desconhecidas nos cursos por isso tem divulgado pouco. Prefere mulheres porque sente mais confiança.Considera-se uma mulher livre. Refere que a liberdade das mulheres não é fácil de aceitar pelos homens. “Homens não aguentam”. Tem dois filhos, o mais velho já é adulto e é DJ. Depois tem um mais pequeno de cinco anos. Refere um senhor que vem fazer sessões que necessitava “praticar o desapego”. Segundo Sónia, só se pode criar se sentir desapego. Sónia ressente-se com o machismo, acha que penaliza muito as mulheres. Considera a cidade da Praia perigosa, sobretudo para as mulheres.A primeira entrevista formalizada foi à Vera Duarte. Conhecemos a Vera no dia do lançamento do livro de Cheila Delgado. Nesse mesmo dia decorreu uma performance de uma declamadora. Retivemos o seu nome para pesquisa posterior, Vera Figueiredo. Quando nos apresentamos à Vera Duarte explicando o projeto ela de imediato se disponibilizou para conversarmos. Vera. O desafio do cânone. Dar espaço e abrir a porta.Reunimo-nos no seu escritório, na sua casa, rodeadas de livros, numa tarde de segunda-feira. Vera Duarte foi a primeira mulher juíza em Cabo Verde. Estudou Direito em Portugal. Agora que está reformada e dedica-se integralmente à escrita. Falou-nos detalhadamente da obra da sua geração que considera ter aberto a porta a essa nova geração que aprecia muito. Referiu as suas contem-porâneas com imenso carinho, a Fátima Bettencourt e a Dina Salústio, com quem mantém ligação estreita. Na manhã seguinte encontramo-nos com a Dina Salústio na Biblioteca Nacional, de acordo com o combinado telefonicamente. Dina. “A escrita como denúncia”.Dina Salústio foi professora e considera que continua a ser porque “aprende-se para ensinar” e considera que é isso que continua a fazer presentemente. Foi também assistente social. Vive na ci-dade da Praia, mas tem raízes em São Vicente e Santo Antão. Tem também residência em Portugal, Lisboa. Para a Dina, escrever é uma forma de denúncia fundamental.Nessa tarde fui ter com a Marisa Carvalho ao ICIEG, após contacto estabelecido via e-mail. Marisa. Uma mulher “em busca de raízes”.Diferentemente de todas as outras mulheres, Marisa Carvalho nasceu em Portugal. Veio para Cabo Verde já adulta, formada em Comunicação e, enquanto voluntária, à procura de raízes. O seu pai é cabo-verdiano, mas ela pouco sabia sobre Cabo Verde. Ficou. Apesar de ter duas publicações, a Marisa não configura exatamente o perfil de mulher artista. Ela é presentemente a presidenta do ICIEG, mas tem uma ligação próxima ao teatro por motivos fami-liares. Recomendou algumas mulheres da geração mais nova. É também prática corrente do ICIEG associar momentos artísticos ou culturais aos eventos que organizam.
image/svg+xml10Catarina SalesNesse mesmo dia ia haver um seminário no Palácio da Cultura Ildo Lobo sobre o impacto da vio-lência sexual na vida adulta. A Marisa ia moderar a conversa com o Dr. Jacob, psiquiatra com muita experiência de trabalho na área. Fui com ela e assisti. O evento iniciou com uma declamação de um texto. O texto base era do site ELA, de Vera Figueiredo, e abordava a questão da nomeação dos órgãos genitais. Pré-agendamos entrevista para breve.No dia seguinte rumei à ilha de São Vicente onde tinha agendado uma entrevista com Celeste Fortes, acadêmica e criadora. A Celeste me recebeu no polo da Universidade de Cabo Verde do Mindelo. Celeste. A “criadora de produtos de ativismo cultural”.Celeste Fortes estudou Antropologia em Portugal. Identificando-se como acadêmica, considera-se também criadora de produtos de ativismo cultural. Alguns desses produtos são dois documen-tários que já realizou e um programa de rádio intitulado o G da Questão, que foi recentemente transposto para livro3. Durante a conversa recomendou o contato com algumas outras mulheres. Na manhã seguinte, sexta-feira, visitei a Fátima Bettencourt em sua casa.Fátima. “Toda a cultura estava “morta” e ressurgiu com a independência”.Fátima Bettencourt considera-se uma autodidata. É uma mulher muito culta que foi professora de profissão. Afirma-se feminista sem reticências. Atualmente vive no Mindelo. Conversamos longa-mente e a Fátima partilhou alguns dos seus trabalhos, atualmente esgotados nas livrarias.Nessa tarde embarcamos no ferry para a ilha de Santo Antão. Esperava-nos Paula Chantre, que também tínhamos contactado via Facebook, a partir da visualização da programação da última edição do Mindelact 2022, onde a Paula esteve presente com um grupo de contadores de estórias. A conversa com a Paula foi a mais longa porque se prolongou para o dia seguinte. Paula. “A História é mais fácil de ouvir em conto”.Como Memaia4, Paula Chantre procura coisas. Histórias que mostrem o passado de Porto Novo e a cultura de Santo Antão. Não se conforma com o que considera ser o atual desinteresse da cidade pela cultura. Daí o seu livro – Estórias em Versos – publicado em 2022. Outros virão, neste momen-to já estão delineados, a lápis, no seu bloco de notas. Paula leu-nos vários dos seus contos. Tenta recuperar termos que já não se usam, como bicho fêmea, segundo Paula, usado para “pôr no lugar” (ent. PC)a feminilidade. Para entender o sentido desses termos conversa com os habitantes mais velhos da ilha.Paula foi professora durante 35 anos e contava histórias como forma de ensinar os conteúdos. Vive no Porto Novo e tem pena de haver poucas redes entre as pessoas que fazem esse trabalho de recuperar as histórias tradicionais. Desde que foi ao Mindelact 2022 tem colaborado com outras mulheres, mas a distância pesa nessa cooperação. Paula acha que há falta de sororidade entre as mulheres cabo-verdianas. Tem o projeto de recuperar a memória dos contadores de histórias de Santo Antão e dos seus contos. Quer criar a “Casa da Narrativa”.3Disponível em: https://pt.scribd.com/document/622080023/O-G-da-Questao4Memaia é uma personagem mítica de Santo Antão. Para mais informações, ver Rodrigues (1997).
image/svg+xml11Um encontro com as protagonistas de Cabo Verde. Mulheres, memória e resistênciaNo domingo regressamos a São Vicente e na segunda prosseguimos a campanha de entrevistas, falando com a programadora e jornalista Matilde Dias. Matilde. Reportar a cultura.Matilde Dias adora a área do jornalismo cultural e gostaria de se dedicar a ela em exclusividade. Estudou Comunicação no Brasil. Tratou-se de uma conversa muito rica, na qual novas pistas surgiram, sobre mulheres, carnaval, o papel das batucadeiras e mulheres protagonistas da cultura no Mindelo, na Praia e na diáspora. Uma das mulheres mencionadas foi a Miriam Simas, parceira do bailarino António Tavares, que juntos são responsáveis pelo Centro Cultural do Mindelo e da galeria Bombu Mininu, espaços cen-trais na cena cultural de São Vicente. Foi nessa galeria que no final da manhã nos cruzamos rapida-mente com a Miriam, mas não houve ocasião para uma entrevista porque era tempo de regressar à nossa base, a cidade da Praia.No dia seguinte, terça-feira, tivemos um encontro na livraria Arnaldo França com a realizadora de cinema Samira Vera-Cruz. Samira. “Tirar histórias para fora” e “criar memória de pessoas”.Samira Vera-Cruz estava de partida nesse mesmo dia para a África do Sul onde vai lançar a sua mais recente obra, Sumara Maré5. Vive na cidade da Praia, mas viaja frequentemente porque apos-ta na colaboração. Está particularmente interessada em colaborar com países africanos. Samira estudou Cinema. Para além de ser realizadora, tem uma produtora. Defende os direitos das mulhe-res e acredita profundamente em equipes mistas, o que promove enquanto empregadora.Nessa tarde fomos ter com a Vera Figueiredo ao seu local de trabalho. Foi uma conversa muito rica e interessante que terminou com uma boleia.Vera Figa. Desconstruindo a sexualidade.Vera formou-se em Comunicação e Relações Públicas no Brasil. Trabalha nessa área e escreve a título pessoal nas redes sociais e num blog, o ELA. Vive na cidade da Praia.Não se recorda quando é “que se virou para discutir a mulher” (ent. VF),mas começou a partilhar o que escreve após ter feito um curso de escrita criativa. Atualmente a sua atividade de criação cultural é regular: participa regularmente no Spoken Word6; com base no ELA, criou uma peça de teatro “ELAS, uma viagem no feminino”, com quatro mulheres como protagonistas, das quais três estavam grávidas quando estrearam a peça no Mindelact 2018.Apesar da repercussão midiática, não tem sido fácil para ela publicar. Vera falou-nos do impacto de publicar literatura erótica. Sente uma pressão social pelo fato de ser mulher e por haver ainda muito pouca coisa nessa área publicada por mulheres. Referiu-nos a primeira mulher a publicar poesia erótica, em 2009, Artemisa Ferreira, com quem procuramos entrar em contato.No dia seguinte, ao final da tarde, encontramos a Natacha Magalhães na livraria Nho Eugénio. 5Esse documentário experimental é sobre as mulheres que trabalham na apanha da areia, uma atividade simultaneamente perigosa e prejudicial para o ambiente. Trailer disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=J8rqTRlwCfM6Evento promovido desde 2016 pelo rapper Edyoung Lennon. Para mais informações consultar: facebook.com/spokenwordcabo-verde
image/svg+xml12Catarina SalesNatacha. Órfãos do lado africano.Natacha Magalhães formou-se em Comunicação e trabalhou algum tempo como jornalista. Agora trabalha com comunicação institucional. Vive na cidade da Praia. Começou por escrever para o público infanto-juvenil, mas há algum tempo mantém também uma página no Facebook na qual escreve para o público adulto. Vai agora publicar o seu primeiro livro direcionado para esse públi-co intitulado “Os Lobos não podem esperar”. Foi um diálogo fluido sobre a condição da mulher, a maternidade e o feminismo, ancorado na produção literária da autora. Na quinta-feira seguinte realizamos a primeira entrevista online dessa campanha, com Artemisa Ferreira, que está desde o início do ano em Portugal, mas que ainda assim se disponibilizou para uma conversa, que decorreu ao serão porque a criadora estava na altura num júri de um festival de cinema. Artemisa. A importância de falar do que se cala.Sobre ela e sua obra, diz Silvino Évora que “Poeticamente, Artemisa Ferreira constrói o percurso de um cabo-verdiano em movimento constante: um ser que anda de ilhas em ilhas”7. Artemisa Ferreira é uma das criadoras mais jovens que contactamos, terminou o seu mestrado em 2013 para o qual realizou o documentário “Identidades paralelas”. Vive entre Cabo Verde e Portugal, onde estudou. Artemisa escreve e é também cineasta. Paralelamente é acadêmica, trabalha como docente de Cinema na Universidade de Cabo Verde.Apesar do nosso tempo em Cabo Verde se estar a esgotar, foi difícil parar porque novas pistas iam surgindo, concretamente a menção à existência de mulheres designers a fazer coisas inovadoras em Cabo Verde e a relevância das mulheres batucadeiras, mencionadas na literatura e por diversas entrevistadas. Fizemos diligências junto de duas mulheres: a designer e artista Gilda Barros e a Katiza do Grupo Po di Terra. Logramos estabelecer contato com a primeira. Foi no dia do nosso re-gresso a Portugal e fizemos essa nossa última entrevista online porque a Gilda estava no Mindelo e não na Praia. Com a segunda mulher nunca conseguimos obter resposta.Gildoca. A “mulher de rua”.Gilda Barros é a mais nova das nossas entrevistadas. Formou-se em Design em 2018 na Uni-versidade do Mindelo, mas considera-se sobretudo uma pintora de mural e também ilustra-dora, visto que ultimamente tem entrado nessa área. Vive em São Vicente, mas nos últimos anos tem participado em diversos encontros e residências artísticas internacionais. Gosta do trabalho na rua porque permite dialogar com as pessoas e repercutir esse diálogo na sua obra, mas presentemente pretende trabalhar em tela para poder, com mais liberdade, explorar a sua linha, que se centra na figura feminina. Tem percebido cada vez mais que é a mulher quem lhe interessa artisticamente talvez porque foi criada por mulheres e porque a condição feminina lhe diz muito.Um mês de estadia, 13 narrativas escutadas e mais de 13 percursos vislumbrados. Um conjunto de mulheres fortes com impacto na vida social e cultural do seu país. Representantes de gerações diferentes, mas atentas entre si e partilhando sentimentos, contextos geográficos e emocionais e ligadas por serem mulheres e estarem atentas às outras mulheres. A imagem seguinte é uma representação nossa, feita a partir de imagens públicas, disponíveis livremente na internet das 7Retirado de: https://nosmedia.wordpress.com/2009/09/20/artemisa-ferreira-lanca-um-desejo-poetico/
image/svg+xml13Um encontro com as protagonistas de Cabo Verde. Mulheres, memória e resistêncianossas criadoras. Pretende ser uma homenagem porque, como se pode ver, elas são também mu-lheres muito bonitas.Figura 1- Mosaico de criadorasFonte: Elaboração própria a partir de imagens públicas das mulheres entrevistadas.4. Tchapa tchapa8 de mulheres. O que evocam, a que resistem, como se posicionamLiberdade somos nósEu e Tue a música da nossa vida, cuja letra escrevemos juntos ao sabor dos nossos devaneiosliberdade é ouvir-te melodiar teus sonhos de homem livre e eu reinventar-me a cada diaporque ser livre tem um preço o preço de não cabermos em mãos nenhumas… Retirado de https://www.facebook.com/Palavrascosturadas/É a voz da Natacha Magalhães que costura palavras porque também para ela a “escrita é uma arma para denunciar as coisas” (ent. NM). Interessa-lhe falar sobre a violência contra as mulheres e sobre o libertar dessa violência, mas também sobre “aquele vazio daquela outra parte que faz 8Técnica cabo-verdiana de composição (em tecido ou pintura) que resulta da conjugação de diferentes componentes. Semelhante ao patchwork, com a particularidade de não apenas misturar padrões, mas também tipos de material diferentes.