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Revista TOMO
São Cristóvão, v. 43, e20604, 2024

Data de Publicação: Março/2024
Entrevista

Entrevista

Um desbravador de novos mares:
Surfe, Turismo e Sociologia por Christophe Guibert*1

Marina de Souza Sartore**2

Cae Rodrigues***3

Wanderson José Francisco Gomes****4

Resumo
Nesta entrevista, cedida em 01 de Junho de 2023, Christophe Guibert compartilhou a sua trajetória acadê-
mica como desbravador de novos mares, pois foi um dos primeiros sociólogos a estudar o surf na França. A
sua trajetória é ilustrativa de que para a Sociologia pode ser muito fecundo compreender temas e proble-
mas que, tradicionalmente, não estão na sua agenda de pesquisa. Nesta entrevista, Guibert traz o cenário
editorial no qual está inserido o periódico pluridisciplinar “mondes du turisme” de cujo conselho editorial ele faz parte há anos. Ele também mostra como abordar o Surfe sociologicamente, os desafios de estudar o
turismo em escala internacional e as possíveis conexões entre a sociologia (principalmente a de Bourdieu)
e os estudos do turismo.
Palavras-Chaves: Surfe, Turismo, Bourdieu, Sociologia, Litoral

* Université Angers. Esthua, Faculté de tourisme, culture et hospitalité. UFR de Lettres, Langues et Sciences Humaines. Labo-
ratoire Espaces et Societés. Angers, Maine e Loire, França. Email: christophe.guibert@univ-angers.fr Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-9149-3634

** Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas. Departamento de Ciências Sociais. São Cristó-
vão, Sergipe, Brasil. Email: marinass@academico.ufs.br Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7935-4105 CrediT: Tradução
e Escrita do Rascunho Original

*** Universidade Federal de Sergipe. Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. Departamento de Educação Física. São Cristó-
vão, Sergipe, Brasil. Email: caerodrigues@academico.ufs.br Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7519-838X CrediT: Es-
crita – Revisão e Edição

**** Universidade Federal de Sergipe. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. São Cristóvão, Sergipe, Brasil. Email: wan-
dersonjfgomes@hotmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5788-0174 CrediT: Escrita – Revisão e Edição

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Marina de Souza Sartore; Cae Rodrigues; Wanderson José Francisco Gomes

01. Marina: Em 2005, você terminou a sua tese de doutorado em sociologia sobre o surfe.
Qual foi a sua principal motivação para estudar o surfe e como a escolha deste objeto de
pesquisa influenciou o seu percurso para se tornar professor na Universidade de Angers?

C. Guibert: Olá Marina. Antes de tudo, quero lhe agradecer por este convite de entrevista que me permite expor as minhas pesquisas e atividades científicas. Antes de começar, gostaria de frisar que é sempre interessante e agradável falar de nossos trabalhos científicos fora da universidade,
seja para a comunidade local ou ainda na mídia e nos jornais. Também é muito interessante poder apresentar nossos trabalhos no exterior, em países estrangeiros cuja comunidade científica nem
sempre consegue ler os trabalhos que são escritos em francês.

De fato, em 2005 eu defendi uma tese de sociologia na Universidade de Nantes, tese que iniciei no
ano de 2000. Nantes é uma cidade situada na região oeste da França. Minha pesquisa de tese foi constituída por uma análise das políticas públicas em relação à turistificação das atividades es-
portivas no litoral da Aquitânia. Na verdade, eu buscava uma temática que fazia sentido para mim
e que me motivasse para a minha pesquisa que duraria os cinco anos da tese.

De fato, o surfe ocupava uma parte importante das minhas preocupações em termos práticos, pois eu surfo desde adolescente! Mas, também, em termos acadêmicos e científicos. Eu queria analisar
cidade por cidade, departamento por departamento1, os diversos níveis e seções administrativas
na França. Eu queria analisar de qual forma cada território mobilizava o surfe objetivando uma
valorização turística, econômica, social e esportiva do território. Podemos observar variações bem
nítidas da utilização do surfe pelos governos locais em função dos seus interesses em desenvolver
esta atividade em seus territórios, dependendo da tipologia social da população de cada cidade, da
história social do esporte, do lazer e do turismo no território. Estas questões de pesquisa sobre o
surfe vão caracterizar, de maneira profunda, minha tese de doutorado. Depois, ampliei a agenda de
pesquisa para estudos sobre atividades náuticas, como o surfe, o iatismo, tanto na França como em outros países. Enfim, de todo modo, me tornei, em meio a outros colegas pesquisadores franceses,
um especialista do surfe e de outras atividades náuticas do litoral.

Então, eu analisei o surfe e as atividades náuticas litorâneas sob o ângulo das políticas públicas,
mas também sob o ângulo dos seus usos sociais, das questões de gênero e dos trabalhos por tem-
porada no litoral em destinos turísticos. Eu mobilizo o surfe como pretexto, como uma referência
que me permite questionar diferentes esferas da vida social e da vida socioeconômica dos territó-
rios litorâneos. Finalmente, eu consegui transformar uma paixão de adolescente em um objeto de
pesquisa maduro e legítimo. Eu acredito que, após mais de duas décadas pesquisando o surfe na
França e em outros países, o surfe ocupa atualmente um lugar legítimo dentre os objetos de pes-
quisa. No entanto, não foi sempre tão simples assim e eu me lembro que quando eu mencionava
que eu pesquisava o surfe no começo das minhas pesquisas de tese, alguns olhavam para o meu
trabalho como uma forma de diversão.

1 A França é atualmente dividida administrativamente em 101 departamentos (Départements Français).

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Entrevista: Um desbravador de novos mares: Surfe, Turismo e Sociologia por Christophe Guibert

02. Marina: Em 2006, você lançou o livro “O universo do surfe e estratégias políticas na
Aquitânia2”. Quais pontos você destacaria nesta obra (e na sua tese) que contribuíram
para o campo da sociologia do lazer e do turismo na França?

C. Guibert: Isso, em 2006 eu publiquei o livro “O universo do surfe e estratégias políticas na Aqui-
tânia”, resultado de minha tese de sociologia defendida um ano antes. Acredito que a minha tese
é uma das primeiras teses sobre o surfe que foram defendidas na França, em meio a outros traba-
lhos de pesquisa de colegas que pesquisaram atividades náuticas, os esportes, o lazer e o turismo.
O fato de utilizar o surfe me permite analisar, ou ainda, contribuir para uma sociologia do lazer e
do turismo na França muito porque meu trabalho está no cruzamento de diferentes orientações. É claro que o guarda-chuva mais geral é a sociologia, mas eu também mobilizei a geografia social, a ciência política que, então, me permitiram identificar e analisar fenômenos que, como eu indi-
quei na questão anterior, ultrapassam o estudo do surfe como um simples objeto de pesquisa e
que tornam mais sólida a sociologia do lazer, dos esportes, dos esportes do litoral e do turismo
na França. Então, é possível observar, depois de alguns anos, uma estruturação deste subcampo
da sociologia como espaço científico de debate, de análise, de interpretação e que é cada vez mais
fecundo e produtivo na França.

No livro O universo do surfe eu explico que, na Aquitânia, região litorânea situada no sudoeste da França, o surfe é presente sistematicamente nas dinâmicas de identificação. Na verdade, como
mostra o livro, a maleabilidade de representações ligadas a este esporte e aos seus praticantes per-
mite que ele seja usado de maneira múltipla, em função dos interesses políticos locais que buscam explorar os benefícios econômicos, midiáticos, turísticos e sociais do surfe. Em oposição a uma
imagem idílica, o surfe se revela um recurso político decisivo para as instituições locais. Para além do caráter polissêmico do “surfe” que remete à múltiplos significados, às vezes contraditórios,
os sentidos e representações são apropriados e mobilizados de maneira diferente pelos comitês
municipais do litoral de Aquitânia. Considerar o surfe como objeto de produção do território, ou
seja, como efeito de simbolização, lança uma luz original sobre o tema das políticas municipais no
sentido em que se trata, para uma municipalidade do litoral, de construir simbolicamente o terri-
tório, isto é, o “terrestre” com uma atividade “aquática”. Por consequência, a questão que inspirou
a análise pode ser colocada nos seguintes termos: de que maneira os usos políticos da maleabili-
dade do universo multidimensional do surfe e das “imagens” – ou dos sentidos – que ele produz contribuem para definir identificações territoriais diferenciadas? Os possíveis usos políticos deste
universo do surfe são múltiplos para um político local eleito na Aquitânia, a fortiori quando, sob o padrão uniformizante do “surfe” se dissimulam realidades plurais: o surfista “marginal”, o surfista
“competidor”, a “viagem” e a “liberdade”, a economia e a racionalização do mercado, as variadas re-ferências históricas, as competições profissionais etc. O jogo dos prefeitos e suas equipes de ges-
tão municipal, mais do que apoiar a prática do surfe em si mesma, reside no desenvolvimento das cidades com fins de desenvolvimento econômico, turístico, midiático, social e, às vezes, esportivo,
que comumente corresponde a uma lógica de “marketing territorial”, tal como um produto cha-
mariz. Como consequência, a análise das estratégias de identificação conduzidas pelos prefeitos
e suas equipes de gestão municipal nos faz questionar o lugar da prática e dos surfistas locais nas
representações dos eleitos e nas políticas municipais estudadas. Em minha análise, o substrato de
instrumentalização para o trabalho de produção do território é o surfe e, mais genericamente, o
universo do surfe, quero dizer, a prática do surfe, mas também e principalmente os grandes even-

2 GUIBERT C. L’univers du surf et stratégies politiques en Aquitaine, Paris: L’Harmattan, 2006, 321p.

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Marina de Souza Sartore; Cae Rodrigues; Wanderson José Francisco Gomes

tos midiáticos (festivais, competições profissionais), os empregos diretos, assim como o conjunto de representações ligadas ao surfe. A identificação comunal que resulta da produção do território
a partir deste universo do surfe se torna legítima aos olhos dos governantes, da mídia e, em última
análise, dos turistas e investidores quando ela é estável, original e lucrativa politicamente. Esta diferenciação de lugares do surfe é possível se, de um lado, a identificação territorial legitimada
pelos governantes na direção da população local e dos turistas é sustentada duravelmente e, do outro lado, se estes mesmos governantes são receptivos e acreditam nos benefícios e lucros even-
tuais. Trata-se, portanto, de compreender como estas crenças diferenciadas são produzidas e em
qual medida elas respondem a mecanismos sociais irredutíveis às escolhas individuais. Mais parti-
cularmente, o pertencimento a um partido político ou a uma “ideologia” política não é um critério
que opera por si mesmo.

O livro também tem a ambição de explicar porque o surfe não é inscrito de maneira similar nas
“agendas políticas” e avaliado seguindo as mesmas modalidades pelas equipes de gestão munici-
pal. Se algumas cidades do litoral da Aquitânia desejam conquistar ou manter uma posição elevada
no espaço das cidades do surfe, é porque os seus governantes crêem na possibilidade de obter lu-
cros econômicos e turísticos para a sua cidade. Mas, dado que a prática em si mesma, assim como os surfistas “ordinários”, não são prioritariamente visados por conta das representações coletivas
julgadas principalmente de maneira negativa pelo conjunto de prefeitos à época da pesquisa, os
jogos e as disputas se situam alhures. As construções dos jornalistas e o discurso do marketing das
empresas de surfwear não são os únicos a produzir efeitos nas categorias mentais dos agentes do campo político. Na verdade, é nos benefícios econômicos, midiáticos, turísticos e sociais que deve-mos pesquisar afim de compreender as ações dos governantes locais, para os quais ser o prefeito de uma cidade de surfe é, portanto, lucrativo. E esta é a razão pela qual eu pude justificar a ideia
a partir da qual, por exemplo, uma cidade como Biarritz mobilizava o surfe por sua historicidade,
quer dizer, por que Biarritz, no começo dos anos 2000, mobilizou o surfe para valorizar a histori-
cidade desta atividade no seu território, organizando, notadamente, festivais culturais de surfe. De
fato, o surfe surge na França em 1956, na cidade de Biarritz, onde residia uma população endinhei-
rada, tendo em seu seio habitantes que, à época, eram socialmente predispostos a ver o surfe como
uma atividade de lazer e progressivamente. Nos anos 50 e 60, o surfe vai se espalhar pela França
para as cidades mais ricas da Aquitânia como: Biarritz, Guétary, Anglet e, claro, Hossegor. Eu falei sobre isso para justificar a ideia de que não podemos compreender as problemáticas contemporâ-
neas sem uma leitura histórica dos fenômenos sociais. O sociólogo francês Jean-Claude Passeron
nos lembra bem que a “sociologia é uma ciência histórica3”!

03. Marina: Você também pesquisou o surfe no Marrocos e também os usos da praia na
China. Por que pesquisar estes países e quais são as principais diferenças e similaridades
com a sua pesquisa para o caso da Aquitânia?

C. Guibert: Sim, de fato eu sempre quis desenvolver minhas pesquisas em uma perspectiva de
comparação internacional. Eu tive a chance de realizar pesquisas de campo em muitos países,
notadamente Marrocos, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e China. Minha primeira pesquisa
de campo internacional foi no Marrocos, durante a minha tese de doutorado, no começo dos anos
2000. Inicialmente, eu desejava analisar as políticas públicas do litoral do Marrocos utilizando os

3 PASSERON J.-C., Le Raisonnement sociologique. L’Espace non-popperien du raisonnement naturel, Paris: Nathan, 1991.

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Entrevista: Um desbravador de novos mares: Surfe, Turismo e Sociologia por Christophe Guibert

critérios de minhas pesquisas na Aquitânia. Então, à medida que eu avançava na análise de meus
dados de campo, a comparação entre Marrocos e Aquitânia se tornava cada vez menos possível,
por razões econômicas, culturais e políticas. Os dois países são muito diferentes. Naquele momen-
to, uma política municipal esportiva na França não correspondia em nada a uma política espor-tiva municipal marroquina. Na minha tese, no final das contas, nenhuma linha foi escrita sobre
o Marrocos, mesmo com quase 6 meses de pesquisa de campo e de análise de material empírico exclusivamente dedicados ao caso do Marrocos! Por fim, a pesquisa sobre o litoral marroquino,
que ocorreu em 2002 e 2003, acabou focando como objeto de estudo os usos (e desusos) polí-
ticos do surfe pelas coletividades locais. Como evidenciam os programas eleitorais de lá, o lugar
do surfe na sociedade marroquina não desfrutava de visibilidade nas políticas esportivas locais e
nacionais. O surfe, atividade praticada majoritariamente por indivíduos pouco favorecidos social-
mente e que não têm idade para votar, não é digno de interesse dos governantes locais. Enquanto a Federação Marroquina, criada em 2003, tinha muita dificuldade de legitimar o surfe, ocorria que,
localmente, o surfe se transformava em uma ferramenta política de primeira ordem. Neste caso,
é surpreendente que, na verdade, é do lado das disposições da realeza marroquina que devemos
situar a análise para dar conta de explicar as estratégias políticas de algumas municipalidades,
como a de Rabat, principalmente4.

Eu desenvolvi pesquisas no Marrocos alguns anos mais tarde problematizando a questão do gê-
nero em relação à prática do surfe. Com a minha colega geógrafa Chadia Arab, eu pude comprovar a ideia de que ser surfista marroquina no Marrocos implica em lidar com as normas sociais e
culturais assim como com o “olhar dos homens” que são, na maioria, desfavoráveis a esta prática.
Carregando um discurso que mostra a alternância de lucros sociais e simbólicos com formas de descrédito, as surfistas interrogadas revelaram, na ocasião da pesquisa de campo, terem sido ex-
postas a socializações precoces singulares ao mundo do surfe. Os seus pares masculinos e a esfera
familiar (os pais e os irmãos) são os canais privilegiados desta socialização. Pelo viés destes per-
cursos, assim como dos discursos que os homens têm sobre estas mulheres, a prática feminina do surfe permite, finalmente, questionar a incorporação de valores da sociedade marroquina através
da relação com o corpo e das relações de gênero5. Enfim, mais recentemente, sempre em parceria
com a Chadia, nós continuamos com nossas análises sobre as condições sociais de existência no Marrocos, mas, agora, evocando um tema diferente: o “flerte”, tema que é distante do meu tema
do mundo do surfe. Nossa última pesquisa é sobre o que se pode fazer e o que não se pode fazer quando se flerta no espaço público. A análise parte de uma enquete de tipo exploratória, realizada
em Abril de 2016, em Rabat, capital administrativa do país, e teve como foco os casais heterosse-
xuais marroquinos que não são casados. Segundo os resultados de nossa pesquisa qualitativa, as maneiras de flertar antes do casamento, potencialmente repreensíveis aos olhos da sociedade,
são muito homogêneas. As mulheres e os homens jovens inovam em termos de estratégias para vivenciar suas expressões do íntimo através do que chamamos de “bolhas geográficas” que são identificadas previamente e se constituem em locais que ao mesmo tempo protegem dos olhares
indiscretos e desaprovadores e permitem uma intimidade. Os casais, e mais ainda, as mulheres,
dão uma atenção crucial à escolha dos lugares de seus encontros amorosos: se trata de não serem vistos e, ao mesmo tempo, ficarem seguros para poder flertar6.

4 GUIBERT C., “Le surf au Maroc: les déterminants d’une ressource politique incertaine, Sciences Sociales et Sports, n°1,
septembre 2008, p.115-146.

5 GUIBERT C. & ARAB C., “Être surfeuse au Maroc. Les conditions d’une socialisation à contre-courant”, Terrains et Travaux,
n°28, 2016, p. 115-146. 6 ARAB C. & GUIBERT C., “Le flirt à Rabat au Maroc: engagements des corps et arrangements socio-spatiaux”, L’Année du

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Marina de Souza Sartore; Cae Rodrigues; Wanderson José Francisco Gomes

Agora, sobre a China. As minhas primeiras pesquisas de campo foram realizadas dentro de um
programa de mobilidade internacional em parceria entre a Universidade de Angers e de Ningbo
(província de Zhejiang). Depois de 2010, a cada ano, eu tive a oportunidade de ir lecionar na China
e aproveitei para fazer pesquisa de campo, mais precisamente sobre a ilha de Hainan. A coleta dos
dados empíricos foi realizada em parceria com um colega que fala chinês, o Benjamin Taunay, e
nós pudemos coletar bastante dados sobre a prática dos usos da praia na China pelos chineses,
sejam elas conectadas ao surfe ou não. Eminentemente sociais, as práticas praianas dos chineses
na China resultam de disposições sociais dos indivíduos à luz de contextos culturais, sociais e geo-gráficos. Nós publicamos uma obra7 original com fotografias que visam então questionar o que os
chineses fazem e como eles fazem, explorando a dimensão corporal e suas práticas. As noventa fo-tografias propostas em nosso trabalho não têm por ambição estetizar a praia chinesa. Conectadas a análises de cunho etnográfico, elas ajudam a compreender melhor as singularidades, dando ao
leitor uma percepção descentralizada de um espaço (a praia) que, aqui na França, é culturalmente
ordinário. A questão que guiou o trabalho é a seguinte: como aquilo que é ou que parece evidente – portanto, incorporado – para os turistas chineses se torna exótico aos nossos olhos? As posturas
corporais e as maneiras de usar a praia, tais como as maneiras de se despir, de deitar na areia ou,
ainda, de banhar-se no mar são, na verdade, como na França, por exemplo, o produto de histórias
culturais e sociais – amplamente analisadas pelas ciências sociais – que, na realidade, não são
naturais. Os chineses, têm, inversamente, quase sempre e na grande maioria, com raras exceções
históricas, ignorado o mar como espaço de lazer e ainda muitos poucos sabem nadar. Tendo como ambição transformar uma evidência como os usos da praia em problemática científica, a pesquisa
que desenvolvo na China busca questionar nossa relação etnocentrada do lazer na praia, apontan-do as diferenças e especificidades dos usos da praia dos chineses na China.Por fim, estas pesquisas internacionais permitem um distânciamento, nos afastar dos nossos próprios preconceitos ou pré-noções, como afirmava Durkheim. As evoluções, lentas ou rápidas,
depois as tranformações materiais e sociais dos espaços estudados na China ou no Marrocos par-
ticularmente puderam ser medidas graças ao distanciamento que permitiu um longo trabalho de
coleta qualitativa ou quantitativa de materiais empíricos. Em minha opinião, é a partir da imersão
do pesquisador em sua pesquisa de campo por um tempo mais longo que as análises se tornam pertinentes e mais fecundas. No entanto, direcionar o olhar analítico para espaços e configurações
sociais estrangeiras, exóticas, distantes ou, ainda, alóctones, implica em perigos epistemológicos
que convêm ter ciência no momento da pesquisa de campo. Todo pesquisador em ciências sociais se apresenta em um campo de pesquisa estrangeiro (no sentido geográfico, mas também sociocul-
tural) cheio de pré-noções e de ideias, por vezes pré-concebidas, que convêm necessariamente
desconstruir. Neste sentido, as armadilhas devem ser evitadas, em particular – e isto deve ser uma reflexão científica – tanto no que tange às equivalências ou funcionalidades semânticas falsas, ou,
ao contrário, à armadilha universalista generalizante.

O lazer de praia na China não pode, por exemplo, ser apreendido a partir de uma simples com-
paração com o lazer da praia na França ou do que está em vigor no Marrocos. Trazer esta noção sem identificar antes os contextos nacionais ou locais, ou ainda, dito de outro modo, pensar como
equivalente de um país à outro a noção de “lazer na praia” constitui evidentemente um impasse
interpretativo. A armadilha universalista consiste em fazer uma análise comparativa espontânea

Maghreb, Dossier de recherche n°29 | 2023- vol. I : Intimités sous tension, dans et depuis les mondes arabo-musulmans,
p. 115-136.

7 GUIBERT C. & TAUNAY B., Les Chinois à la plage en Chine, Collection “Recherches asiatiques”, Paris: L’Harmattan, 2021, 172p.

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Entrevista: Um desbravador de novos mares: Surfe, Turismo e Sociologia por Christophe Guibert

sem medir os efeitos estruturantes dos contextos socio-históricos e culturais. A solução consiste então em historicizar e contextualizar geograficamente, economicamente, juridicamente, cultural-mente etc., o objeto de pesquisa: isto leva tempo e é intelectualmente difícil, mas, para mim, é uma
etapa essencial e indispensável.

04. Marina: Em 2017, você publicou um livro com Benjamin Taunay sobre as questões
metodológicas em ciências sociais sobre o turismo como objeto de pesquisa. Quais são, na
sua opinião, as principais contribuições da sociologia para os estudos do turismo?

C. Guibert: Esta obra coletiva que eu coordenei tem por ambição apontar as diferentes abordagens
das ciências sociais no que tange ao objeto de pesquisa “turismo”. Como a história, a sociologia, a geografia social, a antropologia etc., analisam este objeto? Quais são os resultados principais? Quais bases metodológicas e quais enquadramentos epistemológicos caracterizam os estudos fo-cados em turismo? Eu me lembro que eu propûs, antes da introdução geral do livro, duas citações
que eu vou citar aqui: Quando o espírito se apresenta à análise científica, ele nunca é neutro. Ele
é ainda bastante velho, porque tem a idade dos seus preconceitos. A opinião pensa mal, ela não pensa: ela transforma as necessidades em conhecimento. O espírito científico nos impede de ter
uma opinião sobre os objetos que nós não conhecemos8” e “É importante que, ao adentrar no
mundo social, o pesquisador tenha consciência que está adentrando em um mundo desconhecido.
É necessário que o pesquisador esteja pronto para fazer as descobertas que o surpreenderá e o
desconcertará9”. Estas duas frases são, para mim, essenciais para todo trabalho de pesquisa em
ciências sociais e, por consequência, para os objetos que nós conhecemos tão bem, porque somos
nós mesmos os praticantes (aqui, eu falo do turismo!).Os estudos científicos que tomam o turismo por objeto são recentes na França e, por vezes, ainda
fragmentados, mesmo que ainda algumas disciplinas tenham, antes de outras, convocado as práticas e representações do mundo do turismo nas suas análises e interpretações. A geografia, por exem-
plo, com foco econômico desde os anos sessenta e, depois, com foco social e cultural, sistematizou o
estudo dos fatos turísticos com a formação de redes de pesquisadores, a publicação de dossiês em
revistas acadêmicas, com a edição de obras em editoras especializadas, com cursos de formação
curtos e especializados, ou ainda com as defesas de teses de doutorado. Esta longa história de estudo do fenômeno turístico na geografia leva muitos autores a buscar reformular os paradigmas cientí-ficos a partir da “geografia do turismo”, ou mesmo a propor outros. Já aqui na França, a sociologia
ou a história, ao contrário, são disciplinas cujas pesquisas sobre o turismo são fragmentadas, pouco
visíveis e em menor quantidade. Isto levanta a questão da legitimidade dos objetos de pesquisa no
universo do conhecimento acadêmico. Eu sempre levo pra mim uma fala de Howard Becker quando
ele diz que escutou a seguinte frase: “isto é trivial, não é um verdadeiro problema”, referindo-se aos
jazzmen e os fumantes de maconha. Becker disse: “Eu escutei esta crítica mais de uma vez sobre os
meus trabalhos. Assim como umas pessoas consideram que a tragédia é mais interessante ou mais
importante que a comédia, alguns problemas são julgados como sendo intrinsecamente sérios e dig-
nos da atenção que uma pessoa adulta pode lhes dar, e outros são julgados como triviais. […]. O fato
de acreditar nestas ideias comuns é uma das razões comuns pelas quais os sociólogos não estudam
uma gama completa de atividades sociais que mereciam a atenção deles”10.

8 BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico, 1938.
9 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico, 1895.
10 BECKER H., Les ficelles du métier. Comment conduire sa recherche en sciences sociales, Paris: La Découverte, 2002, 353 p.

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Marina de Souza Sartore; Cae Rodrigues; Wanderson José Francisco Gomes

Contudo, de um lado, qualquer que seja a ancoragem disciplinar (sociologia, geografia, etnologia,
história) ou pluridisciplinar e, de outro, qualquer que seja o modelo metodológico mobilizado
nos trabalhos de pesquisa (de tipo qualitativo ou quantitativo), as pesquisas em ciências sociais devem se inscrever em um sistema de produção, de análise e de interpretação dos dados, com fins
de gerir as evidências, que necessita de salvaguardas epistemológicas. O objetivo do livro sobre o qual estamos falando é o de sistematizar o que este universo acadêmico chama de “reflexividade reflexiva”, quer dizer, um retorno reflexivo sistemático sobre a construção de seu objeto, sobre a
desconstrução das categorias nativas, sobre a utilização de tal ou tal ferramenta de investigação,
ou ainda, sobre a sua própria postura de pesquisador e, então, sua própria relação mais ou menos
etnocentrada e distanciada no campo. É então “em termos de obstáculos que se deve colocar o problema do conhecimento científico”. Este preceito bachelardiano vale para os estudos em turis-
mo. No livro de Bachelard de 1938, que já mencionei, ele propõe, na verdade, superar o primeiro
obstáculo, sem dúvida o mais imperativo e o mais fundamental, que é a “experiência primeira”
(dito de outro modo, as pré-noções ou os saberes imediatos). Nós podemos supor, na verdade, sem
muito risco de nos equivocarmos, que os pesquisadores que convocam em seus trabalhos o fato
turístico são (ou já foram) eles mesmos turistas, como eu já disse antes. Esta constatação pode,
por si só, levantar um problema bastante clássico de distanciamento. Este obstáculo pode ser du-
plicado quando a pesquisa é realizada em uma perspectiva de comparação internacional, o que
é muito comum nos estudos do turismo. De todo modo, podemos contrargumentar que um dos
maiores aportes epistemológicos na comparação internacional reside justamente no olhar des-
centralizado sobre o objeto de pesquisa, muitas vezes analisado à luz do próprio ambiente local
ou nacional do pesquisador. Todo pesquisador chega a um campo de pesquisa estrangeiro com um
conjunto de pré-noções que convém desconstruir logicamente, principalmente no momento em que o fenômeno turístico “se mundializa” e em um momento no qual novas fronteiras geográficas e científicas restam para serem exploradas.

Outro obstáculo proposto por Bachelard é o do “conhecimento geral” pelo qual “as leis gerais definem as palavras mais do que as coisas”. A generalização, muito presente nos estudos do tu-
rismo, constitui um impasse e potencialmente leva a erros de interpretação através dos quais o
pesquisador, por facilidade ou ignorância, corre o risco de afundar na descrição padronizada. Não
é raro na literatura acadêmica encontrar aproximações do tipo: “o turista francês prefere a praia no verão”, ou o “turista chinês viaja principalmente para tal tipo de destino”, etc. Esta dificulda-
de se cruza sempre com o obstáculo do “conhecimento quantitativo” e seu corolário excessivo,
“o matematismo”. A proposta aqui não é contestar o aporte heurístico das enquetes estatísticas
(na verdade, é o contrário), mas, quando se trata de uma população de turistas, é metodologica-
mente árduo interrogar de maneira representativa uma população global que é, por definição,
dificilmente captável pela enquete quantitativa. Também, a “profusão dos números”, segundo a
fórmula de Bachelard, quer dizer, a falsa precisão, cria apenas uma ilusão e não corresponde ao
espírito científico.

Alguns trabalhos em sociologia constituem um bom exemplo ilustrativo. Ao contrário da geogra-fia social e das ciências de gestão, a sociologia começou a explorar muito tardiamente o turismo,
objeto fundamental na sociedade francesa, como nos mostram os dados sobre empregos diretos
e indiretos, a existência de uma Secretaria de Estado, as orientações políticas de coletividades lo-
cais, a estruturação e manutenção dos territórios, o setor comercial do turismo, os usos sociais do turismo etc. Mesmo com a multiplicação das publicações e edições especiais de revistas científicas
na França a partir dos anos 2000 (por exemplo, na Etnologie française, na Actes de la recherche en
sciences sociales
etc.), o estado do campo da pesquisa sociológica no domínio do turismo autoriza

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Entrevista: Um desbravador de novos mares: Surfe, Turismo e Sociologia por Christophe Guibert

ainda interpretações falsas. É, portanto, um ato epistemológico em si mesmo lamentar uma análi-
se uniformizadora e generalizadora baseada em materiais empíricos quantitativos mal construí-dos em favor de um objeto de pesquisa com fronteiras históricas, geográficas e sociais bem delimi-tadas. No final, é portanto a partir de um “sistema de habitos intelectuais”11 que os pesquisadores em ciências sociais devem considerar o estudo objetivo e científico do turismo, qual seja a anco-
ragem teórica ou disciplinar. Desconstrução, desnaturalização, desessencialização, historicização,
contextualização, etc., são todas “palavras de referência” com as quais a pesquisa em ciências so-
ciais, no domínio do turismo, deve combinar para fabricar objetos e as hipóteses de pesquisa.

05. Marina: Na França, você faz parte da comissão editorial da revista Mondes du
Turisme (Mundos do Turismo). Quais edições e leituras você recomenda e quais são, na
sua opinião, importantes para os estudantes de sociologia que buscam estudar o turismo?

C. Guibert: De fato, por quase uma década, eu faço parte da comissão editorial da revista pluridis-
ciplinar de pesquisa em turismo, Mondes du Turisme12, criada em 2010 por uma equipe de pesqui-
sadores francófonos. O último número, que saiu no verão de 2023 e que eu coorganizei, fala sobre
a questão fundamental do turismo e do gênero. A revista argumenta que o turismo pode ser cons-truído como objeto de conhecimento científico isolável no fluxo de acontecimentos e processos das sociedades humanas. Seu projeto científico e editorial visa, notadamente, a encorajar a inven-ção de novos enquadramentos teóricos ou conceitos afim de compreender melhor os processos turísticos em funcionamento. A revista é o ponto de encontro de trabalhos científicos advindos
das pesquisas em ciências sociais, como desenvolvimento e planejamento urbano, antropologia, economia, geografia, história, administração, comunicação, ciências políticas, sociologia. Então,
esta revista constitui um bom suporte para apreender o fenômeno do turismo do ponto de vista geográfico, histórico, sociológico e da administração. No universo da pesquisa francófono, também há a revista do Québec que se chama Téoros, que
veio antes da Mondes du Turisme. Há também um volume importante de obras e coletâneas em múltiplos editores. Revistas importantes em sociologia, em etnologia, em geografia também
propuseram dossiês sobre o campo do turismo, mas publicações deste tipo são mais raras. No
âmbito internacional, a pesquisa está bastante dominada pelas revistas anglosaxônicas que dis-
frutam de uma visibilidade graças ao “fator de impacto” elevado – por exemplo, a revista Annals
of Tourism Research
. Mas, gostaria de salientar que a minha visão sobre a pesquisa científica
tem menos a ver com a questão do “fator de impacto” do que com esta fórmula segundo a qual é
mais apropriado “medir o que conta e não o que é contado”, ou seja, dou mais importância para
trabalhos com forte impacto heurístico, em vez de multiplicar, em uma lógica mais quantitativa,
artigos de má qualidade.

Em minha perspectiva, é antes de tudo como “sociólogo” que eu problematizo os fenômenos e os
usos sociais ligados ao consumo turístico. Eu mobilizo os enquadramentos teóricos da sociologia geral para os aplicar no caso específico do turismo ou das práticas esportivas (eu também pesqui-
sei a música do gênero “metal” e eu utilizo os mesmos conceitos). Se eu pudesse dar um conselho
aos estudantes que querem se engajar nos estudos sobre o turismo, seria justamente de não se
fechar em leituras super centradas nos fenômenos turísticos, mas sim de se abrir para a sociologia

11 BOURDIEU P., PASSERON J.-C., CHAMBOREDON J.-C., Le métier de sociologue, Paris: Mouton, 1968, 430p.
12 Disponível em: https://journals.openedition.org/tourisme/

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Marina de Souza Sartore; Cae Rodrigues; Wanderson José Francisco Gomes

da cultura, a sociologia do esporte, a sociologia do trabalho, a sociologia do gênero etc., sempre
mobilizando os quadros teóricos mais gerais da sociologia. É notadamente o que tentei fazer ao
publicar um pequeno texto sobre o Bourdieu.

06. Marina: É isso mesmo! Em 2022, a França celebrou os 20 anos da morte de Pierre
Bourdieu. E você publicou um texto sobre os aportes possíveis de Bourdieu para estudar
o turismo. Em qual sentido podemos usar o Bourdieu nos estudos sobre o turismo? Há
muitos pesquisadores que utilizam Bourdieu na França para compreender os mundos do
turismo?

Eu publiquei em 2023 um pequeno artigo teórico13 sobre os aportes conceituais da sociologia de
Bourdieu para o estudo dos fenômenos turísticos. Como eu já disse nesta entrevista, aqui na Fran-
ça a maioria que toma o turismo por objeto de pesquisa são geógrafos, mais do que sociólogos.
Eu penso que a leitura ou a utilização que é feita dos conceitos de Bourdieu ainda é muito parcial
ou aproximativa no âmbito dos estudos do turismo. Então, eu queria esclarecer um pouco melhor
as coisas! A teoria bourdieusiana é complicada em termos conceituais; a leitura dos livros e dos artigos do Bourdieu é por vezes árdua e, no final, poucos colegas acabam utilizando o Bourdieu
de maneira mais recorrente em seus trabalhos sobre o turismo (ao contrário do que ocorre na so-
ciologia do esporte, da educação, da cultura ou do trabalho, por exemplo). Também é importante
lembrar que nós somos poucos sociólogos na França que se interessam em estudar o turismo!

Pierre Bourdieu [1930-2002] é um sociólogo francês que está entre os mais citados nos trabalhos
de ciências sociais pelo mundo e ele nunca estudou as práticas turísticas como objeto de pesquisa.
Se a cultura14, a arte15, a fotografia16 ou ainda o esporte17 fazem parte das formas de lazer investi-
gadas por Bourdieu tanto em seus trabalhos individuais quanto coletivos, os usos sociais das mo-
bilidades turísticas não foi um objeto de pesquisa propriamente dito para Bourdieu. O conjunto de
seu quadro teórico e heurístico permite, na minha opinião, questionar e interpretar com precisão
as modalidades de práticas turísticas, das mais diversas, enquanto fato eminentemente social. As publicações de Bourdieu estão ficando cada vez mais antigas, mas o seu quadro teórico ainda
continua operante. A obra “A distinção” é uma destas obras raras em sociologia que sobrevive ao
envelhecimento dos dados empíricos de tanto que a ambição teórica foi e continua sendo genera-
lista. A objetivação sociológica exposta em “A distinção” visa determinar as posições sociais dos in-
divíduos no espaço social, caracterizadas pelo volume e as estruturas de capital que os caracteriza
e também as suas práticas, suas atitudes, seus gostos, sempre expondo a relação de homologia que
os associa. As escolhas dos agentes sociais se exprimem assim à luz dos contextos históricos co-
letivos (por exemplo, a sociedade francesa de 1970) e das trajetórias individuais (socializações),
elas próprias inseridas em estruturas sociais. Em outras palavras, um “agente” é para Pierre Bour-
dieu a instância individual pela qual se exprimem as práticas e as ações individuais, conscientes

13 GUIBERT C., “Analyser les usages sociaux du tourisme: les apports de la sociologie de Pierre Bourdieu”, Chronique, Mondes
du Tourisme, n°20, décembre 2021, https://journals.openedition.org/tourisme/4197

14 BOURDIEU, P. A distinção: Crítica Social do Julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk. 2007.[1979]. 560p.
15 BOURDIEU, P; Darbel, A. O amor pela arte. São Paulo, Zouk, 2003 [1966]. 240p.
16 BOURDIEU, P; BOLTANSKI, L; CASTEL, R; CHAMBOREDON, C. Un art moyen – essai sur les usages sociaux de la photogra-

phie, les éditions de minuit, 1965. 361p.
17 BOURDIEU, P. Como se pode ser deportista? In. Questões de Sociologia. Lisboa: Edições, Sociedade Unipessoal, 2003

[1984]. p. 181-204.

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Entrevista: Um desbravador de novos mares: Surfe, Turismo e Sociologia por Christophe Guibert

e inconscientes, de acordo com as disposições subjetivas socialmente adquiridas e que são, elas mesmas, produtos de uma história específica vivida por este agente dentro dos constrangimentos
objetivos do espaço social.

As condições econômicas e sociais de existência estão no princípio da formação dos gostos como
operador de distinção. Elas desempenham, portanto, um papel essencial no aparecimento de jul-
gamentos de gosto e de repulsa, depois, nas lutas entre classes sociais e frações de classe pela definição legítima do que é “bom gosto”, por exemplo, fazer turismo cultural e “viajar de forma in-
teligente” visitando as capitais europeias ao invés de, como diz a expressão consagrada, “Bronzer
Idiot
” (Bronzeamento Idiota18). Esta “teoria do sistema social”, apoiada por conceitos como habitus
e as diferentes espécies de capital (econômico, cultural, social e simbólico) pode, assim, ser apli-
cada aos contextos e práticas variadas, como as formas de consumo do tipo turísticas (ou ainda, a
prática do surfe e ouvir músicas do tipo metal).

A estética turística, como por exemplo um patrimônio notável, uma arquitetura tradicional de in-
teresse, uma bela praia, um hotel luxuoso etc., são apreciações de julgamentos de gosto socialmen-
te situados. Assim, entendidos como bens de consumo, os destinos turísticos balneários são todos produtos de uma história social definida pelos arranjos sociais, por aqueles que ali passaram, pelo
trabalho de autoridades locais visando construir tal ou qual “imagem” etc. Isto resulta em hierar-quias simbólicas nos nossos sistemas de classificação; os destinos turísticos são classificados e
hierarquizados uns em relação aos outros: um espaço à beira-mar popular e padrão versus outro sofisticado (huppée) e distinto, uma praia familiar versus “da moda”, internacional versus local etc. Estas classificações, baseadas no “espaço de estilos de vida”, segundo a fórmula de Bourdieu, são também classificatórias e hierarquizantes no sentido de que o fato de expressar um julgamen-to (“esta estância balneária é demasiado familiar”) tem como efeito, em retorno, de se classificar
a si mesma.Em suma, podemos ver claramente que a sociologia de Bourdieu continua a ser muito eficaz e útil
para analisar os mecanismos sociais ligados ao turismo. Além disso, na França os conceitos de “ca-
pital” e “distinção”, por exemplo, são amplamente utilizados na maioria das ciências sociais, mas
também fora do campo acadêmico. O “capital cultural” ou o “capital econômico”, por exemplo, são
utilizados tanto no campo político como nos meios de comunicação, mas muitas vezes e infeliz-
mente, sem o rigor que a sua utilização exige.

07. Marina: Agora, uma última pergunta: Na conferência sobre o Oceano em 2017, as
Organizações das Nações Unidas estimaram que 40 % da população mundial vive a
menos de 100 quilômetros do mar. Na edição de 2020, a ONU estimou que 80 % de
todas as atividades turísticas se desenvolvem nas zonas costeiras. Em 2019, foi publicado
os anais do Seminário Internacional do Instituto Archipel Université Bretagne Sud, no
qual você participa com artigos. Em seu ponto de vista, quais são os desafios possíveis
que os sociólogos encontram no cenário mais global de ocupação crescente do litoral?

Na Universidade de Angers coordeno uma pequena unidade na costa atlântica, na cidade de Les
Sables d’Olonne. Dou aulas para alunos do 3º ano de licenciatura e alunos do mestrado em cursos

18 A expressão se refere ao fato de uma pessoa ficar tomando sol de maneira improdutiva enquanto poderia estar enriquecen-
do a mente nos momentos de lazer.

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Marina de Souza Sartore; Cae Rodrigues; Wanderson José Francisco Gomes

de formação em turismo costeiro. Posso afirmar que a maioria dos alunos está consciente das
questões e problemas relacionados aos fenômenos ambientais. Além disso, cursos com formação
em desenvolvimento sustentável são sistematicamente oferecidos em todos os níveis da formação
universitária. É verdade que já não podemos pensar no desenvolvimento de um destino costeiro
sem levar em conta os efeitos do aquecimento global, da subida do nível dos oceanos, da erosão
costeira, da redução dos recursos haliêuticos etc. O turismo, em um sentido mais amplo, está en-
volvido nestes fenômenos cujas questões políticas e econômicas são muito estruturantes para os
territórios.

Como então conceber a construção e a conquista de um bem comum num contexto de grande pressão ambiental, econômica e social? O caso das ondas do surfe constitui um bom exemplo: o
surfe é, para mim, mais uma vez, utilizado como pretexto para a análise de fenômenos globais. Te-
nho desenvolvido diversas pesquisas de campo que demonstram a (muito) relativa percepção das
ondas como um bem comum acessível e dedicado ao maior número de pessoas. Interesses políti-cos, econômicos e sociais ilustram a dificuldade de partilha de um bem natural apropriado19 por residentes, governantes locais eleitos, empreendedores turísticos, banhistas e surfistas. Portanto,
a otimização do acesso às ondas, a sua preservação sustentável e a manutenção das suas proprie-
dades ambientais levantam a questão dos processos de regulação/desregulamentação. Como, por
iniciativa de quem e segundo quais lógicas sociais deverá ser decidido o quadro normativo que visa compreender o surfe nas ondas como um bem comum? O tratamento destas questões faz par-
te de uma abordagem histórica e sociocultural do fato turístico próprio de cada país: eu penso que
a situação seja diferente na França e no Brasil. Coloca-se a questão da importância dada ao valor
da “natureza”, à eufemização das tensões sociais, ou mesmo aos interesses econômicos. Lógicas
antagônicas são então confrontadas no desenvolvimento do turismo e, em particular, no turismo
de natureza, que precisam encontrar o equilíbrio entre exploração, controle e conservação.

Estas questões contemporâneas – politicamente sensíveis – perpassam parte da minha docência
e de algumas das minhas atividades de pesquisa. Também consegui medir os efeitos da atividade
litorânea, em particular dos desenvolvimentos costeiros, sobre o meio ambiente na região de Re-
cife e Porto de Galinhas, em Pernambuco, há alguns anos. Acho que também aqui as comparações
internacionais seriam muito instrutivas, também estou aberto a possíveis colaborações! Para
a sociologia, de forma global, surgem questões, entre outras, sobre os usos do litoral, a mobilida-
de turística, a judicialização e a regulação de atividades e empreendimentos. Tudo isso deve ser
pensado de acordo com as características culturais e históricas dos locais. Não podemos pensar
sociologicamente sobre os usos do litoral na França, no Brasil, no Marrocos ou na China da mesma
maneira, meu trabalho atesta isso, penso eu. Mas agora, a todas estas questões junta-se a questão
transversal, duradoura e estruturante das questões ligadas às alterações climáticas e aos seus
efeitos inerentes. Acredito que muitas áreas de pesquisa ainda precisam ser exploradas ou, pelo
menos, atualizadas.

19 GUIBERT, C., “O controle sobre os Espaços (Patrimonialização, Privatização e Monopolização): o caso das ondas de surfe.
Revista TOMO, n.34, 2019. https://periodicos.ufs.br/tomo/article/view/10152

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Entrevista: Um desbravador de novos mares: Surfe, Turismo e Sociologia por Christophe Guibert

A “sea explorer”: Surf, Tourism and
Sociology by Christophe Guibert

Abstract:
In this interview, given on June 1, 2023, Chris-
tophe Guibert shared his academic trajectory as a sea explorer, as he was one of the first sociolo-gists to develop reseach on surfing in France. His
trajectory is illustrative of the richness to explore
themes and problems that, traditionally, are not on
the sociological research agenda. Guibert, as a long
lasting member of the editorial board of multidis-
ciplinary journal “mondes du turisme”, presents
the context for publications related to tourism stu-dies. He also talks on how to approach Surfing so-
ciologically, the challenges of studying tourism on
a international comparative scale and the possib-
le connections between sociology (mainly Bour-
dieu’s) and tourism studies.
Keywords: Surf, Tourism, Bourdieu, Sociology, Co-
ast

Un pionero de nuevos mares: surf,
turismo y sociología por Christophe
Guibert

Resumen:

En esta entrevista, concedida el 1 de junio de 2023,
Christophe Guibert comparte su trayectoria académi-
ca como pionero de nuevos mares, ya que fue uno
de los primeros sociólogos que estudió el surf en
Francia. Su trayectoria es ilustrativa de que para la
Sociología puede resultar muy fructífero comprender
temas y problemas que, tradicionalmente, no están
en su agenda de investigación. En esta entrevista,
Guibert presenta el escenario editorial que opera el
periódico multidisciplinar “mondes du turisme”, de
cuyo consejo editorial forma parte desde hace años.
También muestra cómo abordar el Surf sociológica-
mente, los desafíos del estudio del turismo a escala
internacional y las posibles conexiones entre la socio-
logía (principalmente la de Bourdieu) y los estudios
sobre turismo.
Palabras-Claves: Surfe, Turismo, Bourdieu, Sociolo-
gia, Costa

HISTÓRICO
Recebido: Fevereiro/23
Parecer: Abril/23
Aceito: Maio/23Revisão Gramatical/Ortográfica e ABNT: Maio/23
Revisado Autor: Maio/23
Diagramação: Março/24
Publicado: Março/24

Equipe Editorial Revista TOMO envolvida no processo editorial deste artigo
Marina de Souza Sartore (Editora-Chefe)
Gabriela Losekan (Editora assistente júnior)