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O Graffiti na fronteira de expansão amazônica:
Pincel, spray e táticas por reconhecimento
Jesus Marmanillo Pereira1
Resumo
O presente artigo busca compreender as táticas e campos de possibilidades de um artista local
chamado Edney Areia, na cidade Imperatriz-MA, conhecida como “portal da Amazônia”. Para com-
preender como ele segue sobrevivendo naquele local, onde não há valorização da arte de rua e cuja
política é focada nos grandes projetos de espoliação da natureza, acompanhamos percurso biográ-
fico com especial atenção nos processos culturais, experiências cotidianas e saberes que apontam
para as formas como ele se integra em uma rede de relações mais vastas. Nesse sentido, foram rea-
lizados registros fotográficos, observações diretas nas ruas e no ambiente virtual. Como conclusão,
verificou-se a relação direta entre sociabilidades juvenis e a atualização do conhecimento técnico lhe
possibilitou a obtenção de novas habilidades e capacidade de sobrevivência material.
Introdução
De modo geral, Campos (2010), Ferro (2016) e Leal (2023) notam que a prática do graffiti pode
ser compreendida como manifestação tipicamente juvenil, enquanto cultura de rua e um estilo
de vida, significando muito mais que o gesto de pintar em si. Dessas observações, partimos da
hipótese de que os processos técnicos, utilizados nas confecções das artes, são permeados por
histórias, relações sociais, experiências e aprendizados desenvolvidos ao longo da vida dos pra-
ticantes. Portanto, temos o objetivo de refletir sobre a prática de graffiti na cidade de Imperatriz
(Maranhão - MA), considerando tais aspectos e seus impactos na mudança de status, papéis sociais
e reconhecimento do graffiti enquanto ofício. Em termos de recorte, será analisado o itinerário ou
“curso de vida” (Pais, 1993) de um artista imperatrizense chamado Edney Areia.
1 Universidade Federal da Paraíba; Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes; Departamento de
Ciências Sociais. Faculdade e Departamento); João Pessoa, Paraíba, Brasil; E-mail: jesusmarma-
nillo@hotmail.com; Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5220-5567
Revista TOMO
São Cristóvão, v. 43, e20975, 2024
Data de Publicação: Setembro/2024
Dossiê
Dossiê
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Jesus Marmanillo Pereira
Priorizamos a compreensão desde a inserção dele na prática, relacionadas à fase de juventude, até
o seu tempo de reconhecimento público nos meios de comunicação locais. Sobre esses momentos,
o texto possui um foco transacional entre as fases da infância e da vida adulta dele, recorte que,
para Marcon e Galvão (2023) – ao ser somado com o debate em torno das representações sociais,
condutas e (auto) reconhecimento– pode ser apreciado por meio da perspectiva dos estudos so-
bre juventude.
Para esses pesquisadores, o termo possui um significado plural e heterógeno, observado em
determinados estilos de vida, percepções e concepções que constituem o campo independente-
mente dos padrões etários objetivados nas leis e instituições. Para acompanhar essa dinâmica
de papéis, status e características, buscamos inspiração nos estudos de Barth (1981; 2000), que
analisa tais aspectos em relação à produção e transação do conhecimento. Metodologicamente,
seguimos os passos de Pais (2023, p.71) quando explica que a transição dos jovens para a vida
adulta é uma fase dos indivíduos que pode ser analisada e compreendida como “uma fatia de
coetâneos movendo-se através do tempo, cada um deles com a sua própria experiência de vida,
influenciada por circunstâncias históricas e sociais específicas”. Significa, portanto, focalizar as
situações de socialização2 e “transmissão de modelos de conduta”, “valores”, recursos, entre ou-
tros aspectos.
O trabalho de campo foi composto por reportagens biográficas, fotografias produzidas durante
as observações diretas e diálogos com o próprio interlocutor. A partir da relação desses dados
com o viés teórico-metodológico apresentado, organizamos o artigo em duas partes, em que: I)
apresentaremos uma breve reflexão da relação entre os estudos sobre juventude e a perspectiva
bathiana e II) traremos uma narrativa etnográfica focada nas interações, socializações, produção e
atualização de saberes que possibilitam o reconhecimento profissional de Edney Areia.
Transmissão, resistência e transação: tateando a complexidade na juventude
O cerne do debate a respeito das principais perspectivas sobre juventude possui uma dimensão
relacional, como apontam Marcon e Galvão (2023, p.3) ao enfatizarem que a noção carrega a ideia
de transitoriedade e “seu frequente estado de tensão com as estruturas pré-estabelecidas no mun-
do dos adultos, incluindo as formas de representação e de institucionalização do que é ser jovem”.
O aspecto relacional foca-se no debate sobre os contatos entre gerações e nos possíveis resultados
disso. Seja em interpretações hipotéticas em que ocorra integração entre gerações e assimilação
de valores e condutas das mais antigas para as jovens, seja com um viés mais classista que toma a
juventude enquanto ideal de resistência e mudança.
Em termos de contextos estruturais e das relações, Feixa e Leccardi (2010) observam que cada
momento histórico é marcado por mudanças: algumas são mais fechadas territorialmente e ou-
tras emergem dos contextos de migrações transnacionais, do trabalho precário e da hibridização
cultural, influenciando e induzindo a construção de outros tipos de relações entre gerações. Mu-
danças que não podem ser desvinculadas das estratégias familiares no reforço e construção de
2 Para ele, ao abordar as culturas juvenis como resultados de processos de socialização, recai-se em dois caminhos: um
macrossocial, focado na transmissão das normas a nível coletivo, e outro microssociológico, que possibilita refletir sobre as
maneiras como os indivíduos cotidianamente reproduzem ou modificam essas normas.
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O Graffiti na fronteira de expansão amazônica
laços afetivos, de reciprocidade. Por outro lado, Feixa e Leccardi (2010) possibilitam, também,
ampliar a análise dessas interações, considerando outras combinações e perspectivas com vistas
à manutenção e relação de forças entre gerações3.
Sobre essa complexidade e tensão entre estrutura e atores sociais, Feixa (1998) cita a metáfora do
relógio de areia, que representa uma espécie de marco conceitual representado em três planos:
o da cultura hegemônica e culturas parentais, expressado nos ambientes escolar, do trabalho, da
família, vizinhança e meios de comunicação. O microcultural juvenil, caracterizado no tempo livre,
pelos grupos de iguais, e uma base que constitui o primeiro campo, marcado pelas condições so-
ciais de geração, gênero, classe, etnia e território. Com isso, Feixa (1998) demonstra a importância
do aspecto temporal das culturas juvenis e do aspecto dialógico das variáveis, que podem seguir
várias direções e estabelecer muitas conexões, não ocorrendo um determinismo estrutural.
Longe de adentrar esse debate mais robusto, focamos prioritariamente no plano da base e em
alguns pontos da cultura parental. Trata-se de planos que permitem a visualização de um deba-
te sobre a distinção entre “sucessão” e “sobreposição” (aspectos diacrônicos e sincrônicos) em
relação ao tema do conhecimento, transmitido ou transacionado. Por ora, buscamos apenas um
afastamento da oposição binária entre as perspectivas “integração” e “conflito”4 para refletir sobre
aspectos de reflexividade, arranjos e negociações que possivelmente estejam presentes nessa me-
táfora do relógio de areia ou entre as fronteiras que marcam as gerações.
Sobre as abordagens macro e micro, Groppo (2017) faz menção direta aos trabalhos de Talcott
Parsons e William Foote Whyte, ao citar que as pesquisas conduzidas pelo viés estrutural-funcio-
nalista, focalizavam as classes escolares e cultura escolar, enquanto a outra, próxima da sociologia
urbana, priorizava a cultura e sociedade “dramatizadas nas ruas e esquinas”. Enfim, trazem um
olhar para a estrutura e outro para o cotidiano.
Nosso ponto de partida nesse quadro maior é analisar as interações entre diferentes gerações,
observando continuidades, rupturas e negociações que marcam um trabalho cotidiano de cons-
trução, reprodução e atualização do conhecimento. Na metáfora do relógio de areia (Feixa, 1998),
condiz simplesmente a relacionar aspectos da “primeira” dimensão com o plano superior das cul-
turas hegemônicas e parentais. Traduzindo para nosso campo, implica em analisar como o am-
biente da família e relações de amizade possibilitam que Edney Areia dialogue com outros artistas
e com o contexto hegemônico de desvalorização da arte na cidade.
Ao considerar a coexistência de gerações em um mesmo tempo, o pesquisador terá que lidar com ne-
gociações e sentidos que marcam as operações de transações do conhecimento. Sobre o conceito de
transação, compreende-se uma sequência de interações que são sistematicamente orientadas pela
reciprocidade. O processo de transações ocorre quando as partes envolvidas na interação tentam, de
maneira planejada, assegurar que o valor obtido seja maior ou igual ao valor perdido (Barth, 1981).
Ao buscar a compreensão dos jovens e seus trânsitos nas “ruas e esquinas”, será possível obser-
var o conhecimento transacionado, ou socialização, na forma como as partes buscam determina-
3 Tal abordagem que chama a atenção para olhar de dentro e por fora, nos remete para uma perspectiva complexa que foi
tratada pelo antropólogo Erick Wolf quando observava a relação entre comunidades e o sistema colonial maior. A depen-
dência das comunidades de um sistema maior afeta-as de duas maneiras. De um lado, comunidades inteiras passam a de-
sempenhar papéis especializados dento do todo maior. De outro, funções especiais concernentes ao todo se tornam tarefas
de grupos especiais dentro da comunidade (Wolf, 2003, p. 74).
4 Estrutural funcionalista e classista.
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dos valores. Nos dizeres de Pais (2003, p.70), seria utilizar o conceito de socialização “a um nível
microssociológico, sendo possível entender como os indivíduos reproduzem ou modificam essas
normas, ou criam em alternativa outras, em seus cotidianos”.
Recorremos aos estudos de Bath (2000), para quem a cultura é tão dinâmica quanto o movimento
das pessoas que as difundem. O autor entende que os atores sociais (re)produzem e atualizam a
cultura por meio de suas interações cotidianas e trânsitos por distintos espaços. Portanto, segui-
remos no caminho que considera a aprendizagem como processo transacionado, marcado pela
reflexividade dos atores envolvidos, e não como uma transmissão passiva por via exclusivamente
institucional. Tal caminho abre a possibilidade de se analisar os processos de mudança e criativi-
dade no âmbito das gerações.
O antropólogo social Fredrik Barth observou os processos de transação do conhecimento de modo
comparativo em Bali e na Nova Guiné. Nesses casos, os respectivos papéis, de “Guru” e de “ini-
ciador” correspondiam a um importante ponto de partida analítico em torno dos processos de
reprodução e criatividade cultural. Os dois papéis possuem importância na questão da transação
do conhecimento entre diferentes gerações e, como afirma Barth (2000, p.144), seguem princí-
pios opostos, constituindo “duas modalidades de gerenciar o conhecimento na interação social”.
Apesar de distintos, também se aproximam quanto à questão específica de integração processual
dos indivíduos em um sistema cultural. Nesse sentido, trata-se de uma perspectiva que considera
tanto o modelo de tensão quanto o de integração, caracterizando uma abordagem complexa.
O papel do iniciador é relacionado ao espaço de um sacerdócio no qual o segredo, o mistério e o
controle das informações são pontos que caracterizam a interação entre esses “mestres” e seus
noviços. Nesse caso, a posição social deve ser obtida pela manutenção e ocultamento dos segre-
dos, e não por um movimento de difusão do conhecimento de cima para baixo. Barth (2000) nota
que o ambiente do iniciador desencoraja as conversões para baixo. Retomando a questão dos valo-
res que orientam as interações, tal situação é uma importante chave nesse esquema analítico, pois,
para a cultura dos iniciadores, o valor do conhecimento aumenta de modo inversamente propor-
cional à sua difusão entre as pessoas. Tal proteção do conhecimento repercute na possibilidade do
desenvolvimento de aspectos criativos e inovadores no conhecimento.
Em sua prática ritual, o iniciador se vale de uma performance não verbal, e o aprendizado dos no-
viços ocorre por meio da própria participação deles no processo de iniciação. Barth (2000, p.149)
explica que “eles conhecem porque veem, porque lá estão, porque são objetos da ação”. Nessa
performance, o iniciador pode utilizar objetos, geralmente em casos religiosos, e atos que demons-
trem domínio sobre um corpo de conhecimentos. Ele deve ser hipnotizando e capaz de afetar os
noviços, pois é assim que consegue colocar o conhecimento em ação. Um conhecimento que existe
no próprio rito, que depende das emoções colocadas na situação e que não é isolado das pesso-
as para ser transmitido “fora do lugar”. O conhecimento, no caso do iniciador, está preso ao seu
contexto, e seu conhecimento só é transmitido imediatamente a vizinhos ou como resultado de
populações inteiras.
Por outro lado, o Guru5 faz parte do cotidiano dos aldeões e sua prática pedagógica caracteriza-se
pela oralidade e por ser bastante explicativo. Ele estabelece relações com os discípulos a partir
desse processo de instrução constante, porém controlado e sistematizado, pois vai oferecendo
5 Existem muitas variações de gurus, a depender de cada lugar. No caso específico de Bali, há uma relação com o hinduísmo,
principalmente na crença de que a idade madura seja a melhor para o início dos estudos religiosos.
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O Graffiti na fronteira de expansão amazônica
as informações aos poucos. Nesse sentido, seu status não é sustentado por alguma performance
ritual, mas por ter sempre alguma informação para transmitir. Dessa maneira, Barth (2000, p.147)
explica que “se um guru entra em contradição ou seu estoque de conhecimentos é exaurido, ele é
rapidamente ofuscado por seus rivais ou discípulos”.
Barth (2000) nos faz refletir sobre a necessidade de se considerar as transações do conhecimento
no âmbito das dinâmicas das interações e suas repercussões na manutenção de papéis e status
sociais, seja em instituições ou nas relações cotidianas das práticas mais próximas da interação
face a face, ou microbianas, como diria Certeau (2018).Assim, abre caminho para se considerar os
processos de aprendizagem não apenas em ambientes institucionais, como a escola, mas também
no próprio âmbito das interações e cultura de rua.
Seguindo esse viés, buscaremos elencar tais aspectos teóricos em relação à trajetória de Edney
Areia Santos, um ator social que passou a ser bem mencionado como praticante de graffiti na
mídia local da cidade de Imperatriz-MA6 desde 2018. Ele é imperatrizense, tem 43 anos e resi-
de no bairro periférico chamado Parque Universitário7. Tal como seus pais, ele é adventista e foi
professor de desenho na Fundação da Criança e do Adolescente (FUNAC), onde utilizava o ensino
de pintura como ferramenta socioeducativa. Se atualmente ele é apresentado profissionalmente
como artista plástico ou praticante de graffiti, isso resultou de um processo contínuo marcado por
interações, experiências e transações do conhecimento.
Um itinerário sobre tintas: de artista plástico a praticante de graffiti
Ao lado de Eder Areia, Haresh Koury e Rubão, Edney Areia é um dos quatro artistas de rua dedica-
dos ao graffiti na cidade de Imperatriz-MA. Apesar de serem de faixas etárias próximas e de Eder
Areia ser seu irmão mais novo, Edney Areia possui um estilo de vida distinto dos demais artistas.
Enquanto os outros manifestam publicamente uma visualidade que remete à cultura skateboard,
nosso interlocutor traz consigo uma indumentária caracterizada pelo uso de calças jeans, bermu-
das, camisa polo ou camisetas básicas. O cabelo segue sempre o corte social mais tradicional, um
pouco mais alto em cima e curto dos lados, e sua barba nunca chega a ter um volume médio. Não
há nada de extravagante que chame a atenção no estilo básico de Edney Areia enquanto algum
símbolo de resistência geracional, pois seu estilo é bastante comum a maioria da população local.
Tais características garantem que esse estudo é distinto das clássicas pesquisas que observam,
no âmbito das visualidades juvenis, que os praticantes de graffiti emergem em contextos carac-
terizados pelas culturas skateboard e do hip-hop, compondo um repertório simbólico, gestual e
cultural desses dois universos8· Sobre esse aspecto relacionado às impressões públicas, Campos
(2010) enfatiza que as culturas juvenis se valem da visualidade como esfera privilegiada de co-
municação, utilizando o próprio corpo nesse processo, bem como tatuagens, posturas e objetos
6 A cidade de Imperatriz-MA é conhecida como portal da Amazônia. Estando vinculada à história da fronteira de expansão
para a Amazônia, a referida cidade teve um grande período de isolamento até a década de 1950, antes de se conectar com a
rodovia Belém-Brasília. Diferentemente das antigas cidades brasileiras e suas capacidades de cosmopolitismo, Imperatriz
estabeleceu suas conexões globais da década de 1980 aos tempos atuais graças aos grandes projetos de extração mineral,
madeireiras e agronegócio. Os únicos grafismos que marcaram aquela cidade entre as décadas de 1980 e 2010 foram as
pinturas comerciais feitas para lojas, empresas ou para festas religiosas.
7 Bairro periférico, localizado a cerca de 6km do centro da cidade. Trata-se de um bairro afastado e com sinais de abandono do poder
público.
8 Ver: Campos, 2010; Silva e Silva, 2011; Gitahy,2012; Santos, 2015 entre outros.
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Jesus Marmanillo Pereira
culturais, entre outros. Em caminho próximo, Feixa (1999) nota que uma questão fundamental na
análise das culturas juvenis é a dissecação das imagens culturais com as quais eles se apresentam
publicamente.
Trata-se de manifestações simbólicas com certo grau de coerência e compostas por elementos
materiais e imateriais que os jovens consideram representativos de sua identidade como grupo.
Valendo-se dos estudos de Bacherlad (1996), podemos dizer que, à primeira vista (fácil, pitoresca
e repleta de imagens), indicaria que se trata de um jovem adventista e não um artista de rua, pois
ele não possui nenhum sinal que o identifique com a representação mais comum de arte de rua,
nem com os atores sociais presentes nos estudos clássicos sobre o tema.
Deixando as primeiras impressões de lado, é importante explicitar que Edney Areia é o terceiro
filho de uma família adventista e que ganhou destaque na cidade primeiramente por ter sua ima-
gem bem relacionada à de seu pai, Kydney Lopes. Vale salientar que Kyndey Lopes é um migrante
do Pará (PA), que chegou a Imperatriz-MA em 1959, e passou a trabalhar com pinturas publicitá-
rias (letreiros e desenhos) em lojas da área comercial da cidade. Ele fez grandes amizades, entre
as quais destacamos a com Ton Neves, outro artista consagrado que chegou à cidade anos depois.
Essa relação de amizade foi uma base importante para que eles desenvolvessem um conhecimen-
to sobre artes plásticas. Isso pode ser observado na entrevista presente no vídeo “Ton Neves e
Kydney - Artistas Plásticos de Imperatriz, MA”, na qual Kydney Lopes relata que eles iniciaram
juntos, apoiando-se mutuamente, compartilhando experiências, dificuldades e acertos. Em outro
momento, explica que certa vez produziram uma tela em parceira cuja divisão do trabalho era
baseada na melhor habilidade de cada um: Kydney iniciou pelo céu e Tom Neves pela terra. Enfim,
são migrantes de origem humilde cujo aprendizado na pintura em telas estava relacionado às ex-
periências laborais cotidianas e às trocas de conhecimento desenvolvidas no âmbito da amizade.
Esse foi o primeiro contexto que marcou o contato de Edney Areia com as tintas. Ele recorda que,
na infância, já acompanhava seu pai nas situações de trabalho e explica que ficava preenchendo
letreiros e desenhos, enquanto Kydney Lopes realizava os acabamentos. Além disso, explica que,
aos sete anos de idade, lembra-se que se sentava de frente para a televisão, olhava os
desenhos e personagens de filmes e ia copiando os traços no papel. Recorda-se com
nitidez do dia em que seu pai pintou um quadro do Rambo, filme interpretado pelo
ator Sylvester Stallone, “até hoje não sai da minha cabeça aquela pintura que ele fez de tão
perfeita que ficou, e quando eu vi aquilo eu disse, eu quero isso para minha vida” (Barbosa
e Feitosa, 2019, grifos do autor).
Ainda nesse viés lúdico, ele também explica que tinta guache e pincel passaram a ser os presentes
favoritos. A admiração pela habilidade do pai e os relatos sinalizam que, desde cedo, a pintura
pode ser compreendida por um duplo sentido, na infância de Edney Areia: ora como lazer, ora
como trabalho. Contudo, ambos os sentidos totalmente integrados na dinâmica de sua própria
família e relações primárias.
Tal situação nos remete para o estudo de Sposito (1993) que, ao analisar a relação entre juventu-
de, trabalho e família, nota que,no caso brasileiro, é importante considerarque existem situações
em que as relações com o mundo do trabalhoocorremde maneira precoce e influenciam nos âm-
bitos da família e mundo escolar. Ela explica que “muitas vezes a inserção no mundo do trabalho
é movida pela pressão familiar, tanto para melhorar o nível de subsistência do grupo quanto para
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O Graffiti na fronteira de expansão amazônica
ocupar o tempo ocioso do adolescente ou do jovem, frequentemente”(Sposito, 1993, p.165), pos-
sibilitando, assim, um conjunto de relações pessoalizadas e solidarias no ambiente da família.
Além da questão material, é importante ressaltar que a família nuclear de Edney Areia também é
estruturada sobre valores e condutas da igreja adventista. Entre outras coisas, é possível compre-
ender queocorracerto controle em relação à cultura de rua, algo bem característico em instituições
totais ou que almejam esse sentido. Para Goffman(2001), as instituições totais possuem controle
e vigilância sobre seus membros, tendem ao fechamento simbólico em relação a outros ambientes
sociais por meio de um controle da comunicação e tendem a concentrar um conjunto de funções e
rotinas em seu interior, favorecendo a maior permanência de seus membros. Essas características
citadas por Goffman(2001) são totalmente presentes no cotidiano desse ator social, cujos mem-
bros da família, incluindo a esposa, participam de atividades juvenis, como escoteiros, grupos de
estudo ou de ações sociais vinculadas à instituição religiosa.
Se formos pensar no primeiro plano da metáfora do relógio de areia (Feixa, 1998), é possível
identificar as instituições religiosa e familiar como espaços de socialização nos quais Edney Areia
constituiu seus primeiros laços, afastando-o de uma possibilidade de aprendizado mais relaciona-
do a uma cultura que, para eles, era considerada “mundana”, marcada por bebidas, falta de regras,
uso de drogas e todos os estigmas que recaem, geralmente, sobre skatistas e praticantes de hip-hop
na cidade de Imperatriz-MA
Portanto, a compreensão do tipo de transação do conhecimento no caso de Edney Areia passa, pri-
meiramente, pela identificação do papel social de seu pai na cidade, que é marcado pelo respeito
dos pares e reconhecimento social dos moradores mais antigos – caracterizado em premiações e
trabalhos notáveis, como foi o caso da pintura na Igreja Nossa Senhora de Fátima.
Considerando esse status e o engajamento de Edney no trabalho em pintura comercial, temos um
modelo de tradição do conhecimento próximo daquele classificado como o dos “iniciadores”. Ou
seja, foi afastado de uma ideia tradicional de professor que se vale de uma hierarquia, de muitos
escritos e de massas de informaçõesoferecidas de cima para baixo. Falamos de uma preponderân-
cia de características, mas não de um rótulo fechado, até mesmo porque Kidney Areia já chegou a
repassar um material escrito sobre brilho, sombra e profundidade,o que auxiliou na habilidade de
Edney na prática de retratismo.
Ao lado do pai e do amigo Tom Neves, ele passou a compor o cenário das exposições locais de artes
plásticas,situações que sinalizam um rico momento de socialização. Um exemplo disso pode ser
observado na exposição a “Vida e obra de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião”, realizada em dezembro de
2012 no Imperial Shopping. Na reportagem “Exposição homenageia centenário de Luiz Gonzaga”,
Carloto Júnior (2021) relata:
A exposição foi composta a partir das obras de vários artistas, como Antônio Amorim, Ton
Neves, Silvano Araújo, Edney Areia, Kleison Abreu, Daniel Licá e Kydney Lopes que juntos,
resolveram trazer este presente da cultura nordestina ao público de Imperatriz (grifos do
autor).
Trata-se de um momento que representa o trânsito de Edney Areia em uma comunidade maior de
artistas locais dedicados às pinturas em telas. Dois anos depois, em 2014, seu pai, ele e seu irmão
mais novo ganharam o concurso “Imperatriz em telas”, promovido pela prefeitura da cidade, ob-
tendo as posições de primeiro, segundo e terceiro lugar, respectivamente.
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A aparição do interlocutor entre artistas consagrados reafirmou seu papel público, sendo men-
cionado como retratista ou artista plástico pelos repórteres da época. Os bastidores desse evento
(Goffman, 2013) resultam das interações estabelecidas no âmbito da amizade e de uma sociabi-
lidade em torno da arte. Sobre esse âmbito de relações interpessoais, Barth (1978) enfatiza que,
ao contrário desse mundo moderno impessoal, a “estrutura da pessoa” também fornece prolifera-
ções de relações. No caso de Edney Areia, a estrutura revelava relações de parentesco e amizade,
constituindo um tipo de cultura parental, compreendida aqui como:
Conjunto de formas devidas e valores característicos e distintivos de certos grupos de adul-
tos, que correspondem genericamente a identidades de classe (culturas trabalhadoras,
burgueses, camponeses, etc.(Feixa, 1998, p.269).
Edney Areia possuía admiração pelos artistas mais experientes que se consagraram na década de
1980. Em diálogo informal, ele expressou admiração pelo trabalho de Antonio Carlos, conhecido
por desenhar carros nas empresas ligadas ao ramo de autopeças, localizadas próximas à BR Be-
lém-Brasília. Um documento que sinaliza essa relação com a antiga geração é uma reportagem do
jornal Arrocha, realizada por Viveiros (2013), que cita a relação de apadrinhamento de Tom Neves
com Edney Areia como propiciadora de grande incentivo em termos de experiência e materiais
artísticos. O trecho da entrevista de Viveiros (2013) traz a seguinte interação de Edney Areia:
“Você vê essa tela aqui? (Aponta para trás de si e exibe o grande quadro ainda em branco),
foi ele que me deu. Não seria possível eu tirar o alimento da minha família, para com-
prar uma dessas, por exemplo (Entrevista concedida de Viveiros, 2013, p. 5, grifos do
autor).
Apesar de esse artista já possuir certo reconhecimento, sendo citado por Bruna Viveiros em uma
edição especial do jornal Arrocha intitulada “Vida de artista”,o trecho relata um dilema entre pra-
ticar a arte e trabalhar para sustentara família. Uma experiência similar vivenciada por Kydney
décadas antes. Casado e com uma filha, ele teve que focar em suprir as novas necessidades vincu-
ladas ao seu contexto matrimonial e de paternidade.
No caso estudado, não houve agências privilegiadas de socialização secundária, como a escola, por
exemplo. Sua tradição de conhecimento, pautada na prática (do iniciador), sempre o encaminhou
para outros espaços sociais que lhe possibilitavam relações sociais e oportunidades de trabalho.
Pelo viés de Certeau (2018), é possível pensar que não havia a possibilidade de construção de um
projeto global de artista de rua, mas que ele foi aproveitando pequenos movimentos e se projetan-
do, dependendo totalmente da própria astúcia e percepção para seguir sobrevivendo.
Uma situação emblemática em seu aprendizado foi a atuação nos salões de games, cujo frequenta-
dores eram da mesma faixa etária e possuíam gostos similares. Sobre esse contexto, a reportagem
de Barbosa e Feitosa (2019) traz o seguinte relato feito por ele:
O primeiro serviço que fiz sozinho, eu tinha 15 anos de idade. Só que antes o meu pai já me
levava para ajudar no trabalho, preenchendo alguma letra, ele desenhava e eu preenchia.
Então,aos 15 anos de idade, eu fiz um serviço sozinho, foi em um salão de videogame no
ano de 1996. Fiquei muito nervoso quando foi para fazer a primeira vez, nunca tinha feito
em parede grande, mas em coisa pequena, agora em parede grande não. Porém, deu tudo
certo, o pessoal gostou, na época retratei o Mario Bros, personagens do Street Figther,
Mortal Kombat e Sonic (Barbosa e Feitosa, 2019, grifos do autor).
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Esse é um momento bem característico da década de 1990, quando as locadoras de games, de fitas
VHS, salões de games e fliperamas ganharam espaços em muitas metrópoles. Foi nesse período
que ele afirma ter decidido que teria essa atividade como uma forma de “ganhar a vida”. Assim,
todo o movimento de Edney Areia sempre traz uma mescla entre a continuidade de um saber da
geração anterior e sua própria forma de apropriação e modificação, como, por exemplo, aprimorar
a técnica com uso de motor de compressão ou utilizar o conhecimento para atuar como professor
na FUNAC.
O prazer da descoberta de uma nova técnica e de outras possibilidades caracteriza esse seu pri-
meiro trabalho no salão de games durante a década de 1990. Na figura1, é possível observar o ar-
tista (em seus primeiros trabalhos) posando para uma foto enquanto segura uma pequena pistola
de aerógrafo, técnica que já o diferenciaria em relação ao seu grupo de socialização primária no
âmbito da arte.
Figura1– Trabalho artístico no salão de games
Fonte: Arquivo do interlocutor(1996).
Foi o contexto no qual ele passou dos desenhos bidimensionais para os tridimensionais, acom-
panhando a própria evolução dos gráficos dos games. Acompanhou, assim, a tendência estética
daquela época, mobilizando saberes e a própria experiência sobre profundidade, luz, sombra e
contrastes, que foram nitidamente aplicados na nova situação. Isso induz a pensar que renovação
e atualização do conhecimento técnico estão totalmente relacionadas ao decurso da ação prática,
esfera que não pode ser apartada do conhecimento nem das competências (Sigaut, 1994).
Essa mudança de suporte, das telas para as paredes e muros ganhou notoriedade quando ele pre-
encheu quase dois lados do muro da FUNAC9, em 2018.Lá, ele produziu grafismos de Ayrton Sen-
na, de Rocky Balboa, da Turma do Chaves10 e dos atores da série “os trapalhões”, garantindo sua
9 Localizada na esquina das ruas Dom Cesário e Bahia, no Bairro Jardim Três Poderes.
10 Em termos das representações sociais da cidade, essa “estreia” resultou na reportagem intitulada “Artista plástico de Im-
peratriz faz homenagem a turma do Chaves em muros da cidade e viraliza na internet” (Castro, 2018), e no dia seguinte
observamos a publicação de uma entrevista com Edney Areia no site da Mirante comunicação (filiada da TV Globo no Ma-
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primeira aparição pública nas ruas da cidade. Nesse novo contexto, teve que lidar com proporções
ainda maiores que as das paredes das casas de jogos e trabalhar de forma totalmente exposta aos
transeuntes observadores que passavam pela rua. Para buscar concentração, ele se valeu do uso
de headphonepara ouvir música enquanto pintava.
De 2018 em diante, seus desenhos passaram a compor as ruas da cidade e seu nome passou a
circular nos meios de comunicação, com uma aparição cada vez maior de seu trabalho em lojas,
muros e na internet. Era comum ler títulos de reportagens como: “Conheça o trabalho do artis-
ta plástico maranhense que está transformando as ruas de Imperatriz” (Imirante, 13/12/2018),
“Cartazes de cinema são inspiração para artista por trás dos muros da FUNAC” (Imperatriz online,
28/10/2019).
Na televisão e em canais do YouTube, observamos reportagens como: “Grafite em Imperatriz” (TVMN,
2021), e “A Arte do Grafite colore as ruas de Imperatriz – MA” (TVI, 03/11/2020), entre outras. Veri-
ficamos que ele passou a ser chamado de “grafiteiro”, muralista e,às vezes, artista plástico. Mas não
se tratava mais daquele Edney Areia das exposições, ao lado dos artistas mais antigos.
Figura 2–Arte urbana
Fonte:Facebook(2021).
Não se falava tanto sobre o Edney das artes plásticas, masem um artista urbano que estava sempre
colorindo da cidade. Essa mudança de papel e status não está desvinculada da aparição de outros
artistas que passaram a ocupar as áreas centrais da cidade, principalmente Haresh Koury, em
2019, que era um artista de Belém-PA, forte adepto de um graffiti mais atrelado à cultura de rua.
A cidade passou a ser dividida pelas intervenções de Edney Areia, Haresh Koury, Rubão e Eder
Areia, com estes dois últimos em menor escala. Provavelmente por isso, a partir de 2022, Edney
Areia passou a aparecer nas redes sociais, com o spray em mãos, sinalizando um processo de ob-
tenção de outra técnica de grafismo. Pelo viés de Barth (2000), isso não pode ser apartado das in-
terações estabelecidas com outros artistas da cidade, criando condições para o transacionamento
do conhecimento.
ranhão), na qual foi dado um especial destaque a referida esquina que passou a ser tratada como um novo ponto turístico
na cidade.
11
O Graffiti na fronteira de expansão amazônica
Tabela 1 – Postagens em relação ao tipo de equipamento utilizado nos grafismos
Ano 2019 2020 2021 2022
Pincel 55 42 62 38
Compressor 0 2 03 1
Spray 0 0 0 4
Fonte: Instagram,2022
Por meio do levantamento expresso na tabela 1, verificamos que suas fotografias priorizaram
sempre a imagem da exposição do pincel e que, apenas em 2022, ele apareceu quatro vezes segu-
rando latas de spray. Tal fato não pode ser afastado de dois pontos: 1) Que o artista de Belém-PA,
Haresh Koury passou a fazer graffitis com spray na cidade em 2019, e 2) Que a marca de spray
NOU passou a ser comercializada na cidade em fevereiro de 2022. Antes dessa data, temos o co-
nhecimento de que Haresh Koury realizava os pedidos de spray da Color Gin Arte urbana em lojas
de Belém-PA, e que as latas eram transportadas por ônibus até Imperatriz-MA. Dessa situação,
podemos inferir que tanto a circulação de objetos e informações quanto o acesso aos materiais
possibilitaram um contexto de tendência técnica (Leroi-Gourhan, 1984) para o desenvolvimento
da prática do graffiti.
Já a interação entre os artistas ocorreu no compasso da aparição de seus trabalhos. Cada um pos-
suía uma ideia própria e crítica a respeito da arte do outro. Há uma situação emblemática em que
Edney Areia e Haresh Koury foram convidados para produzir um corredor em uma importante
galeria de lojas, localizada no calçadão comercial da Avenida Getúlio Vargas, no centro da cidade.
Naquela situação, em que seus trabalhos ficariam frente a frente, soubemos que ambos apresen-
taram um empenho maior e até mesmo de superação, pelo fato de preverem que, estando lado a
lado, seus trabalhos seriam inevitavelmente comparados.
Figura 3– O encontro de artistas
Fonte: Pereira (2022) e Senna(2023).
12
Jesus Marmanillo Pereira
Aquela situação (retratada na figura 3) sinaliza a interação entre os dois artistas11(Haresh de
bermuda e Edney de roupa preta) da maneira como se apresentam em suas artes. Ambos desen-
volveram o tema ambiental na parte central do corredor, e depois o cenário foi sendo alterado
com símbolos juvenis como Frida Kahlo, asas para self e as temáticas infanto-juvenis de super-
-heróis12.
Haresh e Edney passaram, respectivamente, quatro e dezessete dias para concluir o trabalho. O
primeiro seguiu um viés de graffiti urbano, atrelado à velocidade e à cultura de rua e ao estilo
freehand (mão livre), e o segundo dedicou mais tempo para os detalhes de traços, equilíbrio e pro-
porções mais “exatas”,valendo-se da técnica Grid para realizar o esquadrinhamento e ampliação
das imagens reproduzidas nas paredes.
Enquanto Haresh trazia uma influência graffiti e da pixação de Belém-PA, Edney recorreu prepon-
derantemente à tradição laboral de sua família. Isso ficou claro quando observamos Haresh abrir
um estojo de pano com uma variedade de caps (bicos) para as latas de spray, enquanto Edney se
munia de vários tamanhos de pincéis. O spray com tinta sintética, de um lado, e os pincéis utilizan-
do tinta à base de água, de outro.
Embora com diferentes tecnologias, tanto caps quanto os pincéis possuíam a mesma função de
produzir preenchimentos mais gerais e detalhes nos grafismos. Trata-se de tradições de conheci-
mento distintas, mas que acabam se influenciando mutuamente nesse processo, também influen-
ciando os dois artistas. Edney, por exemplo, realizou a produção de uma arte no portão de metal
da loja Lueno Fitness em abril de 2024, utilizando tinta esmalte, um pequeno compressor portátil
e aerógrafo. Esse trabalho foi feito a poucos metros do mural do corredor da galeria comercial da
Avenida Getúlio Vargas.Provavelmente, a primeira arte serviu como propaganda para o empresá-
rio que o contratou para esse outro trabalho recente.
Por fim, o aspecto comercial dessas produçõesremete aos estudos de Campos (2018, p.6), que
notou que a “streetart é uma manifestação que se encontra mais confortavelmente situada entre
os domínios da arte e o comércio”. Principalmente porque, naquela situação, a arte deles eram
totalmente instagramáveis, podendo ser consumidas por qualquer transeunte que desejasse fazer
uma self fotográfica. Essa dimensão econômica confere o sentido de profissionalização, exigindo
que sempre apareçam publicamente com domínio de várias técnicas de pintura.
Outra situação interessante ocorreu quando Edney Areia ganhou notoriedade por conta de sua
homenagem aos profissionais de saúde. Observamos, por meio de um vídeo produzido pela TV
Assembleia13, uma reportagem que apontava aquela arte como “um presente dado pelo artista
plástico e por um grafiteiro”. Esse material é interessante porque demonstra a maneira como Ed-
ney Areia se modificou a partir da interação com o MC Davis Brown. Para tanto, prestemos atenção
na transcrição das falas deles:
Edney: Eu tive essa ideia desde o ano passado quando vi alguns profissionais sofrendo
por conta desse vírus [coronavírus], e estando a frente dessa batalha. Então, nesse ano, eu
11 Quando dialogamos com seu irmão Eder Areia, ficamos sabendo que aquela situação do comercial GV o impulsionou a ter
um empenho e detalhamento maior, já que ficaria ao lado do “concorrente”.
12 No dia 18 de janeiro, pude filmar um pouco do processo que pode ser visualizado no link: https://www.youtube.com/
watch?v=9UDuNVCP8wc&t=13s
13 https://www.youtube.com/watch?v=IiRxPHXllQ4 exibido em 28 de mai. de 2021.
13
O Graffiti na fronteira de expansão amazônica
tive oportunidade de realizar essa vontade e fazer uma homenagem aos profissionais da
saúde (grifos do autor).
Davis Brown: Vindo aqui homenagear vocês da saúde, através desse lindo grafite.
Representando todos vocês. Vocês que estão de enfrentando ocorona vírus a todo vapor,
trazendo esperança, amor à nossas vidas e a vida de todos maranhenses e todos brasi-
leiros. Então pravocês profissionais da saúde, aqui está a nossa homenagem, do nosso
mano Edney Areia e “é nois”. Cultura Hip hop homenageando a saúde do Maranhão(grifos
do autor).
Uma primeira questão é a diferença na maneira como eles se apresentam: enquanto um utiliza
osingular (eu), Davi Brown utiliza o plural (nós) de maneira continua. O MC Davis Brown se prota-
goniza a partir da expressão “através desse lindo grafite” e se coloca em comunicação direta com
os profissionais de saúde, elogiando a capacidade deles de trazer amor, esperança etc. Demons-
tra experiência com as telas e opera de maneira tática (Certeau, 2018), pois consegue lidar com
aquela situação mesmo sem ter participação alguma na produção do mural14.Já nosso interlocutor
apresenta uma linguagem bastante polida, sem gírias e com uma forma de se vestir mais séria e
institucional (Frame 2). Enfatizouos aspectos materiais da produção: a dificuldade de obtenção
de espaço que resultou em uma distância temporal de um ano entre a ideia e a execução da home-
nagem.
Mais que uma disputa de poder entre o “nós” e o “eu” (em um sentido individualista e oportunis-
ta), a situação pode ser compreendida como uma experiência que resulta na produção de conheci-
mento para nosso interlocutor. Para compreender isso, capturamos três frames de duas matérias
sobre a mesma arte. A primeira é a já citada produzida pela TV Assembleia, cujos frames 1 e 2
podem ser observados na imagem.
Já o frame 3 é oriundo da segunda reportagem, produzida pela empresa Imperatriz Online, que
foi veiculada nas redes sociais15 42 dias depois da situação em que ele apareceu ao lado de Davis
Brown. A principal distinção entre as duas situações e que demonstra uma aquisição de conhe-
cimento tático de Edney é o fato de ele aparecer (frame 3 da imagem) totalmente diferente, mais
despojado e de modo central no quadro da imagem da arte, com braços cruzados. Ele demonstra
que aprendeu a se protagonizar diante do próprio trabalho. Os frames sinalizam aquele primeiro
obstáculo, pois, para qualquer expectador ou leitor mais apressado a leitura dos frames 1 e 2 in-
dicaria que Davis Brown seria o produtor da arte, reforçando uma ideia já consagrada de graffiti
vinculado ao hip-hop.
14 De modo mais pragmático, qualquer transeunte verá que a arte no muro foi assinada por Edney Areia. Apesar de não se in-
tegrado em uma cultura skateboard ou hip-hop, ele é reconhecido pelos pares não se limitando ao rótulo de artista plástico.
15 https://www.facebook.com/watch/?v=350265669819681publicada em julho de 2021.
14
Jesus Marmanillo Pereira
Figura4–Interações com a cultura de rua
Fonte: TV Assembleia (2021) e Imperatriz Online (2021)
Ao lado das redes sociais e mídia, é fundamental considerar o aumento populacional, que foi de
196.605 habitantes em 1995 para 273.110 pessoas em 2022 (IBGE, 2022) graças, majoritaria-
mente, aos processos migratórios. Isso implica perceber que se tinha uma cidade totalmente dife-
rente daquela vivida por Kydney Lopes nas décadas de 1970 e 1980. Assim, Edney Areia teve que
lidar com novos atores sociais, serviços e valores que nem sempre iam ao encontro de seus valores
religiosos, culturais etc.
Um exemplo disso foi o fato de que, embora ele afirmasse inicialmente não gostar de pintar em
bares por conta da questão religiosa (Barbosa e Feitosa, 2019), ele produziu um mural sobre a
dupla sertaneja Henrique e Juliano no bar Made in Roça, em 2022, que é de propriedade de um em-
presário mineiro recém-chegado na cidade. Se um viés estrutural compreenderia isso como uma
contradição, observamos tal fato atrelado ao nível de especialização e profissionalização da arte
de Edney Areia, possuindo uma espécie de autonomia de seu papel em relação às outras dimen-
sões da vida. Por outro lado,refletindo sobre os contextos de fronteira, podemos pegar empres-
tado de Barth (2000a) sua problematização sobre os grupos étnicos e, de maneira mais flexível,
compreende que Edney não deixou de ser religioso por conta da produção em um bar, nem o bar
tornou-se cristão por contratar um adventista. Isso sinaliza que as fronteiras entre esses espaços
sociais são os lócus de uma negociação constante, tal como o próprio processo de (re)elaboração
e transação do conhecimento (Barth, 2000).
15
O Graffiti na fronteira de expansão amazônica
Conclusão
Diferentemente de uma prosopografia que apontasse Edney Areia como um simples herdeiro dos
capitais econômicos, sociais e culturais de seus familiares, portanto mero reprodutor de um jeito
de fazer grafismo, as contribuições de Friedrik Barth e Michel de Certeau foram fundamentais no
sentido de apontar um jeito alternativo, uma maneira própria de lidar com as condições ofertadas
e interagir com aquele contexto histórico e regional.
Pelo método do curso de vida, foi possível observar como esse personagem urbano vai se modi-
ficando com o passar do tempo, adquirindo novas habilidades, maneiras de se apresentar e inte-
ragir. Isso nos possibilita ir além do binarismo entre integração e resistência, valorizando uma
perspectiva de experiência ligada à produção do conhecimento. A observação detalhada de seu
itinerário demonstrou a dramatização da cultura e conhecimento nas ruas, fora do ambiente de
socialização da escola.
Observamos que o reconhecimento do graffiti e a classificação dele enquanto artista urbano é
fruto de um processo, e que curiosamente não se trata de um estilo de vida juvenil urbano como
os tantos observados nos estudos que relacionam o graffiti ao skate ou hip-hop. Antes de ser um
jeito de se apropriar da cidade, o contexto socioeconômico dele sinaliza um direcionamento para
o aspecto laboral desde a infância. Considerando o estudo de Silva e Silva (2011) e nossas obser-
vações, trata-se de um graffiti comercial que emerge de seu contato com outros artistas, como
Haresh Koury, com MCs, com o uso da internet e o modo de sobrevivência material aprendido
desde cedo.
16
Jesus Marmanillo Pereira
Graffiti on the Amazon expansion
frontier: Brush, spray and reconnaissance
tactics
Abstract:
This article aims to understand the tactics and
fields of possibilities of a local artist named Edney
Areia, in the city Imperatriz, state of Maranhão,
Brazil, known as the “gateway to the Amazon”. To
understand how he continues to survive in that
place, where street art is not valued and whose
policy focuses on large-scale projects exploiting
nature, we followed his biographical journey with
special attention to cultural processes, daily expe-
riences, and knowled geth at point to the ways he
integrates into a broader network of relationships.
In this context, we took photographs, performed
direct observations on the streets and in the vir-
tual environment. In conclusion, we found that
the direct relationship between youth’s sociability
and the updating of technical knowledge enabled
him to acquire new skills and the ability to survive
materially.
Keywords:Graffiti,tactics,knowledge transaction,
youth.
Grafiti enla frontera de expansión
amazónica: Pincel, spray y tácticas de
reconocimiento
Resumen:
El presente artículo busca comprender las tácticas
y los campos de posibilidades de un artista local
llamado Edney Areia, en la ciudad de Imperatriz,
en el estado de Maranhão, Brasil, conocida como
el “portal de la Amazonia”. Para entender cómo
él sigue sobreviviendo en aquel lugar, donde no
se valora el arte callejero y cuya política está en-
focada em grandes proyectos de expoliación de la
naturaleza, acompañamos su recorrido biográfico
con especial atención a los procesos culturales, las
experiencias cotidianas y los conocimientos que
apuntan a las formas en que se integra en una red
de relaciones más amplia. En este sentido, se re-
alizaron registros fotográficos, observaciones di-
rectas en las calles y en el entorno virtual. En con-
clusión, se verificó que la relación directa entre las
sociabilidades juveniles y actualización del cono-
cimiento técnico le permitió obtener nuevas habi-
lidades y la capacidad de supervivencia material.
Palabras clave: Grafiti,tácticas,transacción de co-
nocimiento, juventud.
HISTÓRICO
Recebido: Abril/24
Parecer: Junho/24
Parecer: Julho/24
Aceito: Julho/24
Revisado Autor: Julho/24
Revisão Gramatical/Ortográfica e ABNT: Agosto/24
Revisado Autor: Agosto/24
Publicado: Setembro/24
Equipe Editorial Revista TOMO envolvida no processo editorial deste artigo
Marina de Souza Sartore (Editora-Chefe)
Gabriela Losekan (Editora Assistente Junior)
Tatiana Silva Sales (Editora Assistente Junior)