CHAMADA VOL. 14, N. 31

29-03-2024

CHAMADA PARA O VOL. 14, N. 31

 

A OBRA DE NIKOS KAZANTZÁKIS: LEITURA CRÍTICA E RECEPÇÃO

 

O espírito inquieto de Nikos Kazantzákis (1883-1957), cuja vivacidade imortalizou-se principalmente em sua produção literária, pulsa firme mesmo após quase 70 anos de sua morte. Com personagens icônicas, como Aléxis Zorbás e o Capitão Mihális, Kazantzákis consegue tensionar as fronteiras pensadas entre a vida e a arte, proporcionando ao público leitor o contato com maneiras particulares de sentir a existência humana e suas angústias. A dualidade entre pensar e sentir é sugestiva da força motriz que embala suas produções, como Ascese, Relatório ao Greco ou mesmo sua Odisseia.

Do romance ao poema épico, passando por cartas e diários de viagens, o autor costura sua escrita com uma visão crítica acerca dos valores que regem o ser humano. Refletindo e absorvendo traços e maneiras de apreender o mundo de culturas das mais distintas, do cristianismo ao budismo, de Nietzsche a Lênin, da Europa à Ásia, o filho mais ilustre da vida recente de Creta tensiona as bases do mundo e ressignifica tradições cristalizadas, demarcando a Liberdade como sentido fundante do seu modo de ser. Em narrativas como O Cristo recrucificado e A última tentação, a cultura religiosa ortodoxa grega entra em choque com uma visão crítica aos paradigmas vigentes. A instituição cristã vê a ferida da hipocrisia exposta e dissecada. O Cristo surge, então, como falho, vaidoso e humano, demasiadamente humano. Ao invés do homem ser a imagem e a semelhança de Deus, Kazantzákis alude ao contrário: o homem traz consigo o gérmen da divinização, enquanto Deus sofre, clama por ajuda e, sobretudo, humaniza-se.

Olhando para a tradição ocidental por um prisma particular e afirmativo, o escritor subverte a perspectiva judaico-cristã de negação da existência em face da ambiciosa vida no além, no paraíso cristão. Tendo na negação do agora um dos principais obstáculos a serem superados pela existência, Kazantzákis busca afirmar uma espécie de niilismo criativo, o qual nega qualquer possibilidade de esperança num porvir e toma da existência como a afirmação do instante presente, da liberdade do corpo e da mente, do rompimento com dogmas sufocantes e aprisionadores, mesmo que prometedores de uma garantia de segurança no amanhã, condicionada à morte do corpo para a salvação da alma.

Muito a partir do contato com o pensamento de Nietzsche, a reflexão sobre os valores civilizados passa a ser sinônimo da busca por uma liberdade ainda não conhecida e expressa na dança, no significar o mundo com os próprios sentidos, na ultrapassagem dos limites impostos pelas instituições e convenções sociais. Assim, a dança, a música e a arte, bem como a expressão de uma linguagem anterior às palavras e, por conseguinte, mais livre são elementos constitutivos do seu espírito artístico. Kazantzákis, enquanto instância que tenta ultrapassar as polarizações já sentidas no final do séc. XIX e na primeira metade do séc. XX, apresenta uma expressividade paradoxal e insatisfeita, talvez fruto das vivências trágicas e traumáticas pelas quais passou.

Em suas obras, a recorrência de episódios bélicos, muito além de sugerir uma relação com sua vida empírica e tensionar os limites entre a ficcionalização da obra literária e sua relação com o real empírico do escritor, aponta para o modo como o autor tende a enxergar a existência humana: sempre à beira de um grande combate, à beira de dar um grande passo em direção à reafirmação primordial frente ao mundo. As situações-limite vividas e sentidas não só pelo autor (Primeira [1914-1918] e Segunda [1939-1945] Grande Guerra Mundial, por exemplo) desde sua infância até a vida adulta, como também por seus antepassados (Guerra de Independência Grega [1821-1829]) incrustaram-lhe no espírito a ânsia por liberdade, essa abstração que nasce, em Kazantzákis, da percepção do quão adoecedores são os valores nos quais a existência humana tem fincado seus alicerces; valores que, com muita intensidade, afastam do humano a possibilidade de uma reconexão com ele próprio e com a própria natureza.

No Brasil, os estudos sobre o autor de Zorba têm sido recorrentes a partir da década de 1990 até os dias atuais. São investigações que abordam principalmente suas narrativas, sejam elas em verso ou em prosa. Obras como sua Odisseia — considerada como uma continuação ao clássico de Homero, ou mesmo suas produções como A última tentação e Zorba, o Grego — são lidas a partir do contato com a retomada da tradição clássica grega e da instituição do gênero épico como fonte da afirmação dos valores primordiais à humanidade ou mesmo a partir do contato e da ressignificação de ideias provindas de campos do conhecimento como a teologia e a filosofia. Kazantzákis foi lido não só por autoras como Hilda Hilst e Clarice Lispector: a primeira deve sua retirada à Casa do Sol, além do mais, à leitura de Relatório ao Grego, enquanto a segunda foi responsável por realizar uma tradução do mesmo livro em 1975; como também por críticos(as) como Benedito Nunes, José Paulo Paes, Lucília Maria Soares Brandão e Carolina Donega Bernardes, dentre outros(as), que se detêm/detiveram sobre a obra do escritor, seja ela em prosa ou em verso, destacando suas relações com a tradição literária grega, com a filosofia moderna ou mesmo com a arte literária universalmente conhecida. Esses traços da recepção kazantzakiana no país demonstram uma presença bem marcada entre alguns artistas e críticos brasileiros da nossa história recente, aspecto que, todavia, ainda engatinha no rol de estudos sobre Kazantzákis.

Assim, considerando a importância de Nikos Kazantzákis para a arte literária, a Travessias Interativas convida autores(as), pesquisadores(as) e, sobretudo, estudiosos da obra kazantzakiana, a contribuírem com a expansão das investigações sobre suas produções em língua portuguesa. O dossiê temático, previsto para ser publicado em novembro de 2024, tem como principal escopo o escritor cretense e abre margem a escritos sobre temáticas como a relação entre a literatura e a filosofia, a literatura e a teologia, o existencialismo na literatura, as tensões entre a vida e a arte, pautadas sobretudo pelas construções kazantzakianas que podem ser lidas pelo prisma da construção da personagem literária, por exemplo, as relações entre Kazantzákis e o Brasil, principalmente quando pensamos sua recepção, entre outras.

 

Prazo submissão: 15 de julho de 2024

 

Organizadores:

Alexandre de Melo Andrade

João Victor Rodrigues Santos