APRESENTAÇÃO
DOI:
https://doi.org/10.51951/ti.v8i16Resumo
LITERATURA DE AUTORIA FEMININA
APRESENTAÇÃO
Alexandre de Melo ANDRADE
Claudia PARRA
O dossiê literário é dedicado às expressões, olhares e vozes femininas em múltiplas representações e gêneros literários. Em toda sua existência, a tradição literária descreveu um mundo criado por homens e narrou a existência humana, majoritariamente, a partir do ponto de vista masculino, transformando essa única perspectiva em verdade absoluta. Dessa forma, os aspectos que dizem respeito particularmente à existência feminina foram, em muito, ignorados no cânone e, quando abordados, derivam, quase que de maneira exclusiva, de mãos e interpretações masculinas.
Diante desse cenário, contar a experiência feminina na literatura significa transformar esse quadro por meio da problematização de questões essencialmente complicadas para as mulheres. Para tanto é preciso, antes de tudo, consciência da necessidade de transcender a ritualização e domesticação do universo feminino. É, sobretudo, por meio dessas representações literárias, ousar perfurar os moldes sociais que encobrem o ser feminino e revelar a “mulher” e a “humana” que ali sempre estiveram. Os textos aqui reunidos contribuem como parte desse processo de transformação e ressignificação dos papeis sociais de gênero impostos e que, por séculos, têm propagado disparidades nas relações. Este dossiê, portanto, pretende ser uma forma de desafio e resistência ao silenciamento, estereotipagem, marginalização e subordinação que têm historicamente cerceado a experiência feminina dentro e fora do domínio do literário.
Parte dos textos aqui publicados reverbera o discurso da própria literatura que se quer feminista, sem que se perca o estatuto literário textual, como é o caso da abordagem do discurso literário de Simone de Beauvoir, de ressonância significativa para a discussão em torno do gênero e da própria literatura que sobreveio à sua época. Questões da mulher periférica e condicionada socialmente à opressão e aos preconceitos avultam nos artigos, como é o caso do registro da mulher sertaneja/mulher possível em Maria Valéria Rezende, ou mesmo na poesia comumente associada à literatura afrodescendente de Conceição Evaristo e de Elizandra Sousa, iluminadas pelo ser-mulher, pela exposição da subalternização, mas também pela esperança. Expressões do desejo, que esbarram no erotismo tão caro à poesia brasileira contemporânea de autoria feminina, surgem em textos sobre Ana Cristina César e Hilda Hilst – a primeira comumente associada à geração marginal, e a segunda já aclamada como uma das principais referências literárias do século XX, tanto pela crítica especializada quanto pelos leitores fora do círculo da academia. Outra poeta que aparece nesta edição é Noémia de Souza, cujo estudo nos leva às relações entre poética e política.
Há uma diversidade de textos que tematizam, em clave narrativa, os papeis assumidos pela mulher e os conflitos daí emergentes, seja no âmbito das relações familiares, seja na sua condição marginalizada; romancistas moderno-contemporâneas surgem nessa perspectiva, como Patrícia Galvão, Maria Regina de Sousa, Núbia Marques, Lúcia Miguel Pereira, Raquel de Oliveira e, no conto, o discurso racista em Geni Guimarães. Encontram espaço, aqui, abordagens da obra de Alina Paim e de Glória Kirinus, esta com linguagem poética dotada da imaginação infantil e aquela atrelada às questões do imaginário e do simbólico, ambas transitando pelo universo do maravilhoso e estabelecendo diálogo e reflexões com a contemporaneidade. O intimismo do romance de Adriana Lisboa, centrado no tema da morte, também encontra lugar seguro nesta seleção.
Ampliando para uma visão mais universal da mulher, tanto no que concerne a autoria quanto a abordagem literária, vários artigos analisam obras estrangeiras. Nesse viés, encontramos as seguintes escritoras: Dea Loher (dramaturga alemã), Lucy Maud Montgomery (literatura juvenil canadense), Chimamanda Ngozi Adichie (contista nigeriana), Alice Childress (dramaturga afro-americana), Christine Dwyer Hickey (contista irlandesa) e Nella Larsen (romancista estadunidense). Nas obras dessas escritoras retomadas aqui, encontramos, em consonância com a abordagem das autoras brasileiras, recortes da opressão, do racismo e dos assuntos periféricos.
Tem destaque, ainda, a autobiografia produzida por mulheres (que são: Magdalena Antunes, Yolanda Penteado, Maria Werneck de Castro, Zélia Gattai e Patrícia Galvão), o mapeamento (de acordo com o gênero textual) da produção literária de mulheres sul-rio- grandenses entre os anos de 1976 e 2016, e os recursos metateatrais da escritoa Consuelo de Castro.
Cumprimos com o nosso objetivo, declarado na chamada para submissão, de “[...] ampliar o horizonte da escrita feminina” e “[...] proporcionar também espaço para obras de escritoras que estão fora dos muros do cânone e que apresentem pouca fortuna crítica”. Os vinte e cinco artigos que entregamos nesta edição transitam principalmente pelo romance, mas também, e muito significativamente, pela poesia, pelo conto e pelo teatro, com ênfase nas manifestações contemporâneas. Nesse momento em que nos encontramos, de discussão (necessária, diga-se de passagem) em torno de gênero, de opressão, de papeis construídos socialmente e de marginalização, temos consciência da importância de lançar luz sobre essas escritoras que nos possibilitam veios de leitura múltiplos e nos oferecem obras literárias de magnitude e representatividade.
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