Chamada para o DT Estudos críticos sobre a televisão e suas transformações
A Revista Eptic - Revista Eletrônica Internacional de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura abre chamada de trabalhos para o dossiê temático Estudos críticos sobre a televisão e suas transformações, a ser publicado na primeira edição de 2025 da Revista EPTIC (vol. 27, n. 1, jan-abril).
O dossiê será coordenado pela Profª Dra. Helena Martins (Universidade Federal do Ceará) e pela Profª Dra. Patrícia Maurício (PUC-Rio). Interessados devem submeter seus trabalhos até o dia 29 de novembro de 2024.
Confira abaixo a chamada completa.
Em 2025, a TV Globo, principal emissora de televisão do Brasil e parte de um dos maiores grupos midiáticos da América Latina, completará 60 anos. A data nos convida a analisar o papel da emissora e da televisão, em geral, na história política, econômica e cultural do Brasil, atualizando as discussões apresentadas em Mercado Brasileiro de Televisão (Bolaño, 2004), e a situação da televisão no momento atual do capitalismo e na configuração da Indústria Cultural, tendo em vista a importância da internet e das plataformas digitais na constituição de um nova estrutura de mediação social (Bolaño; Martins; Valente, 2022) e seus impactos na produção, distribuição e consumo de bens culturais.
As mudanças mais gerais que afetam a televisão foram identificadas, desde os anos 1990, no que foi chamado, a partir da Economia Política da Comunicação, de convergência audiovisual-telecomunicações-informática, avaliada como a expressão da reestruturação capitalista nas comunicações. Esse processo resultou, primeiro, na multiplicação da oferta de conteúdos por meio da TV por assinatura (Brittos, 2001), culminando na alteração de elementos centrais de organização do modo de regulação setorial, como o ambiente político-institucional, as trajetórias tecnológicas, o modelo dominante de programação ou serviço, as formas de financiamento e a dinâmica da concorrência (Martins, 2018).
No Brasil, tais mudanças foram dinamizadas a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, na década de 1990, quando testemunhamos a privatização das telecomunicações e a imposição de reformas trabalhistas que afetaram profundamente as relações de trabalho nas comunicações e, particularmente, na televisão, onde jornalistas e outros profissionais passaram a ter contratos cada vez mais precarizados. Não obstante, no país se estabeleceu uma “convergência divergente” (Santos, 2004), que por décadas protegeu os interesses da burguesia nacional, a despeito das possibilidades abertas pela tecnologia. No âmbito da televisão, os grupos tradicionais, como a Globo e o SBT do recém-falecido Silvio Santos, continuaram desenvolvendo papeis diferentes, mas complementares, ao passo que outros agentes, sobretudo ligados ao campo religioso, passaram a ocupar lugar de destaque na TV aberta. Quando foi criada uma tecnologia digital (parte dela no Brasil) a partir de 2003 que permitia um grande aumento no número de canais da TV aberta, todas as emissoras se juntaram e a Globo usou de seu poder na política para evitar que isso acontecesse, mantendo assim o mercado concentrado em poucas mãos, embora já num processo de queda de audiência para os então novos meios digitais (Maurício, 2022).
A partir da década de 2010, a convergência tem se aprofundado por meio da plataformização, significando, em um plano mais geral, a aproximação entre informação, comunicação e cultura da própria dinâmica capitalista, atualizando o funcionamento da Indústria Cultural. Especificamente, a plataformização foi definida “como o modelo infraestrutural e econômico dominante da web social e suas consequências”, entre as quais “a extensão das plataformas de mídia social para o resto da web e seu esforço para tornar os dados externos da web ‘prontos para a plataforma’” (Helmond, 2015, p. 1). Esforço favorecido pela crescente disponibilidade de dados, fruto da “dataficação”, isto é, da “transformação da ação social em dados quantificados on-line, permitindo assim o rastreamento em tempo real e a análise preditiva” (van Dijck, 2014, p. 198).
A televisão – que, para lembrar Raymond Williams (2016), é uma tecnologia e uma forma cultural – sofre as consequências desse conjunto de mudanças. Há a dispersão da audiência e a necessidade de ocupação de múltiplas telas, como o streaming. No Brasil, esse setor tem forte participação da Globo, que enfrenta transnacionais como Netflix, Disney e Amazon (Nova Filho et al, 2023), o que abre toda uma série de questões sobre as vantagens competitivas das empresas transnacionais, mas também problemáticas envolvendo o campo da cultura, marcada pela dialética entre homogeneização e segmentação, que nos interessa trazer à tona no dossiê.
Com as novas tecnologias, emergem outras formas de produzir e circular conteúdos muito semelhantes aos televisivos, mas não-lineares, que podem, inclusive, ser vistos nas telas dos televisores com acesso à internet. É o caso, por exemplo, dos canais de YouTube, que hoje viabilizam a multiplicação de produtores de conteúdo e afetam conteúdos historicamente estratégicos para a televisão, como as transmissões de futebol, questão visível empiricamente na recente transmissão das Olimpíadas e que tem dinamizado uma importante agenda de pesquisa (Santos; Santos, 2016).
Além da distribuição, a produção dos conteúdos também tem sido alterada. Transformados em informação, os dados são utilizados para nortear a elaboração, reduzindo o espaço da criatividade do trabalhador cultural (Silva, 2024). Os dados e os novos canais digitais permitem o envio de conteúdo direcionado a públicos segmentados, afetando ainda a publicidade, fonte primeira do financiamento dos meios tradicionais e também das plataformas. Processo que pode ser aprofundado com a chamada TV 3.0. Instaura-se, assim, um convívio marcado por disputas entre esses setores e seus agentes pela publicidade, que se estende para o campo da regulação e do exercício do poder político.
Essa disputa não deve ser reduzida à disjuntiva que opõe apocalípticos e integrados. Mais que uma superação de um meio por outro, há um reposicionamento e uma complementaridade que devem ser observados, ainda mais em contextos marcados pela forte presença da televisão, caso dos países latino-americanos. Diante disso, interessa-nos o reordenamento do seu papel no âmbito dos sistemas de comunicação e em relação à economia política brasileira e mundial, o que remete à questão da concorrência; ao problema da hegemonia e da legitimação do sistema; à criação de públicos e ao seu envolvimento; e à possibilidade de contestação a partir dele e a partir de disputas que se inscrevem também na regulação.
Para esta chamada de trabalhos, esperamos artigos que proponham reflexões críticas sobre os seguintes aspectos:
- A história da Rede Globo de Televisão e demais emissoras sob o ponto de vista de seu modelos de negócio, padrão técnico-estético e exercício do poder;
- O padrão técnico-estético da Globo e suas transformações;
- A ocupação da televisão por grupos religiosos;
- A (re)organização dos mercados de televisão no contexto atual;
- A plataformização da televisão e seus impactos nas formas de produção, circulação e consumo de conteúdos;
- A evolução das relações de trabalho nas emissoras de televisão, com a plataformização do jornalismo e a presença de tecnologias de inteligência artificial;
- A TV entre o modelo tradicional e o streaming: concorrência, financiamento, padrão técnico-estético e relação com o público;
- Problemas relativos à regionalização, à padronização nacional e internacional na TV aberta e dela em relação às plataformas de streaming;
- A questão da audiência entre a massificação e a segmentação;
- Os sistemas públicos de comunicação no novo contexto comunicacional;
- A disputa pelas transmissões esportivas entre emissoras e com plataformas digitais.
Referências
BOLAÑO, César. Mercado Brasileiro de Televisão. 2 ed. rev. e amp. São Cristóvão, Sergipe: EDUFS-SE; São Paulo: EDUC-SP, 2004.
BOLAÑO, César Ricardo Siqueira; MARTINS, Helena; VALENTE, Jonas Chagas Lúcio. Para a análise teórico-metodológica das plataformas digitais como estruturas de mediação a partir da Economia Política da Comunicação. Avatares de la Comunicación y la Cultura, n. 24, 2022. Disponível em: https://publicaciones.sociales.uba.ar/index.php/avatares/article/view/7615. Acesso em: 24 set. 2024.
BRITTOS, Valério Cruz. Capitalismo contemporâneo, mercado brasileiro de televisão por assinatura e expansão transnacional. 2001. 425 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas)- Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador: UFBA, 2001.
HELMOND, Anne. The Platformization of the Web: Making Web Data Platform Ready. Social Media + Society. 1 (2), 1-11, 2015.
MARTINS, Helena. O mercado de comunicações brasileiro no contexto da convergência: análise das estratégias do Grupo Globo e da América Móvil. 2018. 369 f., il. Tese (Doutorado em Comunicação)—Universidade de Brasília, Brasília, 2018.
MAURÍCIO, Patrícia. Conflitos na TV digital brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2022. Disponível em: http://www.editora.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1057&sid=3
NOVA FILHO, Marcus Vinicius Menezes da; CHIARINI, Tulio; MARCATO, Marília Bassetti. Plataformização do mercado audiovisual: a indústria de streaming de vídeo no Brasil. Rio de Janeiro: Ipea, out. 2023. 42 p. (Texto para Discussão, n. 2929). DOI: http://dx.doi.org/10.38116/td2929-port.
SANTOS, Irlan Simões da Cruz; SANTOS, Anderson David Gomes dos. Futebol e Economia Política da Comunicação: Revisão de Literatura e Propostas de Pesquisa. 2016. Disponível em: https://cev.org.br/biblioteca/futebol-e-economia-politica-da-comunicacao-revisao-de-literatura-e-propostas-de-pesquisa/. Acesso em: 24 set. 2024.
SANTOS, Suzy dos. Uma Convergência Divergente: a centralidade da TV aberta no setor audiovisual brasileiro. Salvador: 2004. 270p. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas) –Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Bahia: UFBA, 2004.
SILVA, Ana Flávia Marques da. Uma só Globo: o caso da Globoplay na plataformização da empresa brasileira de comunicação. 2024. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2024. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27164/tde-02072024-120927/pt-br.php. Acesso em: 24 set. 2024.
VAN DIJCK, Jose. Datafication, dataism and dataveillance: Big Data between scientific paradigm and ideology. Surveillance & Society 12(2): 197-208, 2014.