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Dossiê Indígena: identidades, reconhecimento e direitos
v. 12 n. 04 (2023)APRESENTAÇÃO
Ruth Henrique
Neste dossiê, sobre a temática indígena no tempo presente, refletiremos sobre os diversos contextos em que se encontram algumas etnias NO Brasil, suas relações e interações interétnicas, nas fronteiras (simbólicas e geopolíticas) e com o aparato estatal, suas demandas, seus territórios (ancorados na tradicionalidade de ocupação que cada grupo étnico elabora, segundo suas próprias características identitátias, organizacionais e culturais), seus percalços, dificuldades e conquistas, inclusive no âmbito da educação indígena, seja como público-alvo ou como produtores de conhecimentos acadêmicos.
Começaremos nossas reflexões com uma faceta da pesquisa que realizei, por ocasião do meu doutorado, junto aos indígenas Camba, na fronteira entre o Brasil e a Bolívia, suas construções identitárias e estratégias para conseguirem seu reconhecimento como um grupo indígena, pelo Estado Brasileiro, na cidade de Corumbá/MS, resultando no artigo A BUSCA POR RECONHECIMENTO IDENTITÁRIO: a trajetória dos Camba na fronteira Brasil-Bolívia. Esta discussão sobre reconhecimento e acesso a direitos constitucionais dos povos indígenas NO Brasil, nos conduzirá ao trabalho de Jamerson Lucena, “HOY, VAMO HACER BAILE WARAO EN ESCUELA”: Um estudo etnográfico sobre fluxo cultural e performance de um grupo Warao no espaço urbano, que aborda sobre a situação dos Warao, indígenas migrantes da Venezuela, na cidade de João Pessoa/PB, em especial o desafio do acesso à educação diferenciada que vem enfrentando.
Partindo da discussão do acesso à educação diferenciada aos povos indígenas NO Brasil, teremos o trabalho de Marta Santos (da etnia Sateré-Mawé/AM), intitulado LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA: uma leitura das imagens e as aventuras do caminho da escola, sobre suas memórias e vivências no trajeto para a escola e os percalços e dificuldades para acessá-la, associando a uma leitura das imagens do seu cotidiano, e o ensaio Um tour pela história do Insikiran, elaborado por Joani Lyra e Aparecida Silva, sobre a entrada e a saída de acadêmicos indígenas dos cursos do Instituto Insikiran, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), entre 2015 e 2019.
Encerraremos este dossiê com uma discussão teórica que retoma parte do debate do primeiro artigo, enfatizando as demandas territoriais. Em seu artigo TERRITÓRIO: POLÍTICA, GESTÃO E DIREITOS HUMANOS - dialogando conceitos e refletindo as reverberações sociais da necropolítica sobre etnias indígenas no “Brasil”, Klaus Castagnotto aborda sobre o processo de transformação dos espaços em territórios, não apenas geopolíticos, mas simbolicamente construídos e que envolvem um processo histórico de apropriações de territórios indígenas, dinâmicas e relações de poder.
Que a leitura deste breve dossiê suscite, no/as leitore/as, a importância em debatermos sobre as condições em que vivem muitos grupos indígenas NO Brasil e a necessidade do Estado brasileiro de aplicar, com mais afinco, assertividade e celeridade, os direitos constitucionais a que os povos originários fazem jus.
João Pessoa, 20 de abril de 2023.
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Dossiê - Ensino de História do Holocausto: itinerários de pesquisas
v. 11 n. 01 (2022)Os textos aqui reunidos nesse Dossiê foram selecionados e avaliados a partir do I Congresso Internacional sobre Ensino do Holocausto e Educação em Direitos Humanos, organizado pelo Museu do Holocausto de Curitiba em parceria com a Universidade de Pernambuco e a Universidade Federal do Paraná. Em colaboração com o Boletim do Tempo Presente, da Rede de Estudos do Tempo Presente/Brasil, optamos por fazer a divulgação dos textos num periódico acadêmico, ao invés do modelo tradicional de anais. Acreditamos que esse formato dará aos textos maior visibilidade e acesso. Foram selecionados vinte textos de autores(as) de diversas regiões do país que compõem o que aqui chamamos de “novos itinerários” de pesquisas sobre o Holocausto no Brasil. Os textos foram editados por eixo temático e serão publicados em quatro edições do Boletim do Tempo Presente, sendo essa a primeira edição de 2022.
Em outubro de 2021 o CNRS, francês, editou uma coletânea intitulada Penser les Génocides, com o intuito de atualizar o estado da arte das pesquisas sobre essas temáticas com autores de diversos países sobre os mais variados processos históricos que culminaram em crimes contra a humanidade. Seguindo as observações do historiador belga Joël Kotek: “Se o judeocídio aparece, por excelência, com um crime de genocídio, então está longe de ser único”.[1] Não há dúvidas de que todos esses eventos genocidários, incluindo o Holocausto, foram únicos sobre a leitura de uma realidade intransponível, mas comparáveis sobre seus mecanismos de destruição de grupos humanos e de pessoas. Por isso, empreende em todos os pesquisadores um enorme desafio metodológico, cognitivo, emocional e ético para análise de realidades complexas e em contexto específicos. Em oposição ao senso comum que tenta pensar ou apresentar a violência em massa por termos de gradação, acreditamos, tal qual Kotek, na necessidade de pensar sobre a ideia de “hierarquização”, levando em consideração todos os crimes não são iguais e, não sem razão, o crime de genocídio é considerado o pior dos crimes contra a humanidade.[2] Isso não nos leva a uma escala valorativa em relação a que crimes seriam mais ou menos “traumáticos”, mas ao entendimento de que não estamos falando de sofrimento ou mesmo em níveis de gravidade, mas de crimes.
Os textos aqui organizados para essa edição se dedicam ao campo disciplinar do Ensino de História do Holocausto[3], relativamente recente no Brasil, mas em franca expansão contando com pesquisadores em diversos programas de pós-graduação. O que esses cinco textos apresentam em comum é a afirmação de que ninguém “ensina” o Holocausto descomprometido. Dialogando com C. Browning boa parte da negativa em ensinar temas como o Holocausto partiu da concepção de que existem atos tão vis que nossa tarefa direta seria rejeitá-los, evitá-los para não correr o risco de entendê-los empaticamente.[4] Os autores(as), humanistas em sua formação, procuram em suas pesquisas demonstrar a necessidade de que o ensino do Holocausto rume contra a tendência narrativa da “inevitabilidade” para com isso poder se apresentar como uma ferramenta da consciência histórica ou mesmo como citando Arthur Chapman, da argumentação histórica.[5]
O texto que abre esse Dossiê é o da historiadora Franciele Becher onde o foco está nos usos e potencialidades das fontes “primárias” como ferramenta para o ensino de história dos genocídios e passados traumáticos. Seu trabalho, repleto de fontes e originalidade, apresenta os dossiês pessoais de adolescentes no Centro de Observação da Justiça francesa dos anos 1940 procurando analisar as percepções desses indivíduos, em pleno tempo de extermínio, com a guerra e o genocídio e como esses relatos podem contribuir para o campo da argumentação histórica quando se trata de ensino.
Mônica Broti em seu artigo “A verbo-visualidade da experiência da Shoah” procura investigar a diferentes formas de interpretação e representação da imagem enquanto instrumento para o ensino do Holocausto na educação básica. Com uma forte base teórica, que remonta a clássicos como Bakthin, se apropria do conceito de “verbo-visualidade” para compreender os efeitos de sentido que essas imagens do genocídio podem ter quando se trata do ensino de história.
A educadora Bruna Braz buscou nos livros “paradidáticos” as representações dos eventos históricos do Holocausto procurando entender que “momentos” eram privilegiados por tais livros e como eles auxiliam numa determinada “cristalização” da imagem que se possui sobre o Holocausto no ensino básico. Mesmo tendo escolhido textos de autores de grande renome como Alcir Lenharo, a autora tentou fazer uma breve anatomia dos textos e, mesmo de forma não intencional, acabou por realizar uma “paratradução” dos livros escolhidos, tal qual o definiu José Yustes Frías[6] da Universidade de Vigo.
Simone Rocha e Matheus Stanski tornam público, por meio do artigo, o resultado de uma intervenção pedagógica interdisciplinar com o projeto “Diário de Anne Frank: uma história pelo mundo após a II Guerra Mundial”, numa escola do Estado de Santa Catarina. O trabalho tinha como eixo norteador o conceito cunhado pela filósofa alemã Hannah Arendt de “banalidade do mal” e culminou com a elaboração de um livro pelos alunos, dando uma espécie de continuidade ao mundialmente conhecido Diário de Anne Frank. Nesse trabalho os estudantes passam a ter o protagonismo dentro do processo histórico interferindo na reescrita de um passado traumático.
A historiadora Camila Silva se dedicou a analisar formas de uso da história de Ane Frank, na sua adaptação para os quadrinhos, problematizando novas abordagens para se ensinar a Shoah. Sua ideia foi a de utilizar uma Graphic Novel para a aproximar a linguagem do público-alvo e com isso poder demonstrar a grande complexidade, no nosso entender, desses temas “socialmente vivos”.
É nesse aspecto que todos os textos aqui reunidos estão em sintonia com o que chamamos de “tradução da memória do Holocausto” para o campo do ensino. Alguns desses textos estão do campo do nível paratradutivo, tentando apresentar as estratégias na construção do processo de tradução dessa memória no ensino de história, outros caminham para o nível sociológico ou protradutivo, quando demonstram os múltiplos agentes dessa tradução, que em alguns casos são os próprios estudantes que se apropriam dessa memória a ponto de “inventá-la” e chegam ao nível metatradutivo, onde se entende que traduzir é, acima de tudo, como já afirmou José Yustes Frías, uma experiência.
Sendo assim não falamos de uma transposição[7], sendo o Holocausto uma língua a ser decifrada, mas uma experiência a ser problematizada. Acreditamos que esses textos podem auxiliar nessa difícil e necessária tarefa.
Karl Schurster[8]
Carlos Reiss[9]
Luzilete Falavinha[10]
Notas:
[1] KOTEK, Joel. Génocide, revenir à l’essentiel?. In: Penser les Génocides. Paris: CNRS, 2021, p.115.
[2] Idem, o, 116.
[3] Ver: Silva, F. C. T. da, & Schurster, K. (2016). A historiografia dos traumas coletivos e o Holocausto: desafios para o ensino da história do tempo presente. Estudos Ibero-Americanos, 42(2), 744-772. https://doi.org/10.15448/1980-864X.2016.2.23192
[4] BROWNING, C. The Origins of the Final Solution. Canadá: Bison Books, 2007.
[5] CHAPMAN, Arthur. Construindo a compreensão e o pensamento histórico através do ensino explícito do raciocínio histórico. In: ALVES, Luís Alberto Marques; GAGO, Marília. Diálogo(s), Epistemologia(s) e Educação Histórica. Um primeiro olhar. Porto: CITCEM, 2021.
[6] Ver: Frías, J. Y. (2015). Paratradução: a tradução das margens, à margem da tradução. DELTA: Documentação E Estudos Em Linguística Teórica E Aplicada, 31(4). Recuperado de https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/22228
[7] Ver as obras fundamentais sobre paratradução e seus usos: YUSTES FRÍAS, José. Teoria de la paratraduccion. In: VILARIÑO, Xóan Garrido; YUSTES FRÍAS, José. (Eds) Traducción & Paratraducción I. Líneas de investigación. Berna: Peter Lang, 2022 (en prensa). Ver também: FERREIRO VÁSQUEZ, Óscar. El paraintérprete en la Real Audiencia de la Plata de Los Charcas del virreinato del Perú (1569-1575), In: : VILARIÑO, Xóan Garrido; YUSTES FRÍAS, José. (Eds) Traducción & Paratraducción I. Líneas de investigación. Berna: Peter Lang, 2022 (en prensa).
[8] Universidade de Vigo/Maria Zambrano/Grupo de Investigação em Tradução & Paratradução.
[9] Diretor do Museu do Holocausto de Curitiba.
[10] Mestranda em Educação pela UFPR e membro do Departamento de Educação do Museu do Holocausto de Curitiba.
* Imagem de divulgação: Colagem de Erika Stránská, garota presa em campo de concentração nazista