APRESENTAÇÃO

Auteurs

  • Elis Regina Fernandes ALVES

DOI :

https://doi.org/10.51951/ti.v9i19

Résumé

DOSSIÊ 1 - MEMÓRIA E LITERATURA:
ESQUECIMENTOS E REMEMORAÇÕES

Apresentação

O dossiê literário se dedicou a tematizar a memória em suas relações com a literatura, a história, o esquecimento, o testemunho, o trauma, e outras relações afins. O recurso da memória na composição ficcional literária tem servido, desde muito, a evidenciar um passado ressignificado e revisitado por meio das rememorações ou mesmo do esquecimento por parte de narradores, eu-líricos, autores. A evocação do passado na tessitura narrativa, autobiográfica e poética pode evidenciar traumas, lamentos, culpas, medos, bem como ser meio de denúncia, de análise da construção identitária de si, e ainda dar voz aos sujeitos silenciados e marginalizados por memórias históricas seletivas e ideológicas. A ideia de memórias individuais que se tornam coletivas foca na possibilidade de memórias serem representações de grupos.

Neste sentido, os textos publicados neste dossiê conseguem fazer um apanhado vasto destas ideias de memória como recurso ficcional em sentidos variados, desde a memória do trauma, até a memória usada na autobiografia, na fabulação de si, e os recursos memorialísticos para retratar sujeitos apagados do discurso histórico oficial. O dossiê consegue, assim, evidenciar que o recurso memorialístico é ainda muito recorrente na ficção literária, já que a rememoração do passado perpassa a todos os sujeitos, quer sejam eles atormentados por seu próprio passado, quer dele se orgulhem, quer sejam esquecidos propositadamente ou busquem esquecer-se a si e aos outros.

A ideia das memórias individuais que se tornam coletivas, ao figurar grupos, como pensou Maurice Halbwachs, é recorrente nos artigos que tematizam as mulheres negras, marginalizadas e sem voz, que buscam, através da memória individual, evocar o esquecimento social a elas imposto. Assim, textos sobre Conceição Evaristo, em prosa ou poesia, são utilizados como forma de se perceber que a memória de certos grupos marginalizados, como as mulheres negras, pode ser evocada para se evidenciar uma memória coletiva daquelas que foram apagadas e silenciadas pelas memórias históricas que constituem o imaginário sobre a mulher negra. É meio de dar voz a quem não a teve nos registros históricos. Da mesma maneira, pensa-se a autora Carolina de Jesus, em seu uso de diários, para evidenciar o legado da escravidão negra às mulheres, seu silenciamento e sua necessidade de se fazer ouvir. Sobre a memória de mulheres, a contribuição da literatura europeia vem com Elena Errante, italiana, e o modo como a personagem feminina rememora seu próprio passado, de nodo a tornar coletivas as memórias dos papeis atribuídos às mulheres, ensinadas a serem esposas e mães, invisibilizadas pelo casamento, pela submissão e pela dependência emocional.

Memórias individuais que se querem coletivas é o tema, ainda, do texto que discute a literatura Infantojuvenil de forma comparada, em três textos, de Ana Maria Machado, do angolano José Eduardo Agualusa e da portuguesa Alice Vieira, de forma a evidenciar que as memórias infantis deixam de ser individuais ao evocar memórias familiares, coletivas, portanto, que retratam os episódios familiares contados e recontados pelos pais, tios e primos e evocados pela criança. A ideia destas leituras cruzadas é recorrente no texto em espanhol que compõe este dossiê, comparando o argentino Ricardo Piglia ao tcheco Bohumil Hrabal e no modo como seus protagonistas rememoram suas experiências e as testemunham pela linguagem, num viés benjaminiano e intimista.

A memória intimista se mostra, também, como pano de fundo do texto que examina a criação literária de Raquel de Queiroz, brasileira que escreveu até os anos 2000, por meio de sua autobiografia, a construção de sua escrita e suas influências, da mesma forma que o artigo sobre Sylvia Plath analisa como as memórias autobiográficas da escritora norte americana ajudam a compor sua ficção em prosa, tecendo a escrita do eu e a auto ficção.

A prosa romanesca brasileira parece ter destaque nas análises de rememoração e esquecimento neste dossiê, como se evidenciam os textos sobre Cristóvão Tezza e Graciliano Ramos, e a resenha sobre Daniel Francoy. No primeiro, o protagonista revisita seu passado de forma quase autobiográfica e os espectros dos erros do passado o assombram, de modo que tenta esquecer, embora sem sucesso. O mesmo ocorre com Paulo Honório, de Graciliano Ramos, que tenta rememorar o passado para espiar sua culpa, mas é atormentado pelo remorso. Em ambos os romances, evidencia-se a ideia de imagens-lembrança, de Henri Bergson, que são negativas para estes dois heróis. Diferente é a memória do protagonista de Daniel Francoy, que não sofre pelas memórias do passado, mas mostra seu desajuste com o presente, rememora o passado, sente saudade, mas não consegue mudar nada.

Ainda retomando a ideia de memória coletiva de Halbwachs, o texto sobre José Lins do Rego quer trazer a memória histórica como elemento ficcional, ao tematizar o cangaço e realizar certa denúncia de injustiças sociais, dando voz aos pobres, marginais, o povo sofrido do nordeste brasileiro na década de 30. De forma similar, o texto sobre Bernardo Kucinski elenca a ditadura militar brasileira como temática, de maneira a rememorar o trauma dos torturados na época, para que o evento em si não seja esquecido ou minimizado, combatendo, ainda, o esquecimento das vítimas deste período sombrio da história brasileira. O texto sobre Lima Barreto, que também analisa seus diários, também traz a ideia da memória como resistência, da crítica ao modo como se construíam verdades pseudocientíficas sobre os loucos no Brasil dos anos 1920. Memória como resistência, ligada à memória histórica, é também observável no texto sobre Manuel Scorza e como tenta dar voz aos vencidos, já defuntos, mortos em luta pelo campesinato peruano nos anos 1960, buscando justiça através da rememoração, tentando reescrever a memória histórica sobre tais fatos.

A chamada para este dossiê objetivou discutir “como a obra literária pode figurar a memória, seja ela individual, coletiva, histórica, psicológica, fenomenológica”, em textos que buscassem recuperar “vozes silenciadas, evocando traumas, sendo utilizada como recurso para dar vazão ao lirismo de narradores, eu-líricos e personagens sufocados por esquecimentos propositais de memórias históricas atravessadas por determinadas ideologias”, e este objetivo se cumpriu a contento, já que os quatorze artigos publicados e uma resenha conseguem debater ideias diversas de memória em textos ficcionais, desde a ideia de memória individual que se faz coletiva ao figurar grupos sociais silenciados e esquecidos por memórias históricas, até o recurso do uso de memórias históricas ficcionalizadas para que as minorias não sejam esquecidas, bem como as memórias intimistas trazidas em diários e autobiografias, e o fenômeno das memórias-lembrança. Importa ressaltar que a ficção é um meio de não se permitir que certas memórias sejam relegadas à alteridade, que passados sejam revisitados, saudados ou condenados, para que as memórias de fatos dolorosos, injustos, e crueis não sejam apagadas por memórias coletivas excludentes e seletivas.

Elis Regina Fernandes Alves

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Publiée

2019-12-01

Comment citer

ALVES, Elis Regina Fernandes. APRESENTAÇÃO. Travessias Interativas, São Cristóvão-SE, v. 9, n. 19, p. pp. 15–17, 2019. DOI: 10.51951/ti.v9i19. Disponível em: https://periodicos.ufs.br/Travessias/article/view/12674. Acesso em: 19 déc. 2024.

Numéro

Rubrique

Dossiê 1 - Memória e Literatura: esquecimentos e rememorações