A NATUREZA E A NORMA: SOBRE O PROBLEMA DO MAL EM MACHADO DE ASSIS
Antonio José Pereira Filho
Resumen
Grosso modo, pode-se dizer que Machado de Assis revisita o tema do mal em todas as suas facetas filosóficas, a saber: o mal natural (ou metafísico), o mal social e o mal moral. O assim chamado mal natural, só para dar um exemplo, é representado alegoricamente no Capítulo VII (o Delírio) de Memorias póstumas de Brás cubas. Ali, vemos a figura da Natureza ou Pandora apresentada como “mãe e inimiga”: mãe, porque é doadora da vida (é matrix), mas se trata de uma mãe maligna, porque não fornece a beatitude (não é beatrix) e, por isso, não é benevolente. Nesse sentido, a natureza, na perspectiva machadiana, assim como na de Schopenhauer e Giacomo Leopardi, autores que o influenciaram, não possui finalidade alguma, a não ser o único propósito de perpetuar o “querer viver” e, com isso, conservar “o legado de nossa miséria”. Dada condição finita do ser humano e a infinitude dos seus desejos, para Machado, sempre iremos oscilar entre a posse e a frustração, entre o prazer e a dor, entre o ser e o nada, pois a fome, a sede e o sexo – desejos naturais que estruturam e movimentam as paixões – nunca poderão ser plenamente satisfeitos, pois a natureza nos obriga sempre a recomeçar a luta pela auto-conservação, enquanto o tempo lascivo nos alimenta e corrói. Nesse sentido, a natureza nos impele a desejar sempre e diante da força das paixões, a razão e a liberdade são limitadas e impotentes, embora nossa condição demasiado humana, civilizada, se define pela capacidade de reprimir as paixões e, como isso, fundar e tornar possível a ordem social, política e moral. Contudo, na perspectiva de Machado, a sociedade não nos põe a salvo das ilusões de Pandora, pois lutamos uns contra os outros e, antes de sermos tragados pela “voluptuosidade do nada”, cada um de nós se gaba de ter colhido batatas ou amores inúteis e, como a natureza não nos dotou com garras e chifres, para sobreviver em nosso meio, usamos o ardil do mérito e da máscara. Ora, é justamente nesse ponto que a crítica machadiana se divide: Roberto Schwartz, por exemplo, vê em Machado um autor que ironicamente põe na boca dos seus narradores o discurso da desfaçatez de classe, típica de uma elite que mistura darwinismo social e pessimismo filosófico e, assim, essa elite, tão bem representada na figura de Brás Cubas, acredita justificar ou naturalizar uma condição histórico-social tida por ela como insuperável. Já Alfredo Bosi, embora veja em Machado um crítico do seu tempo e um fino analista da situação local, não deixa de apontar para o conteúdo universal ou “filosófico” de sua obra, sobretudo por sondar o lado subterrâneo da alma humana. Entre as duas perspectivas, penso que seja possível adotar uma terceira via. Trabalharemos com a hipótese de que o mal metafísico ou natural, no caso de Machado, parece ser um problema que não se resolve, ele apenas muda de endereço, e ora permeia exteriormente a vida social e política, como vemos, por exemplo, no conto Pai conta Mãe, que trata das condições da escravidão no Brasil, ora o mal se instala nas profundezas da alma sob a forma de um “demônio interior”, que, visto sob o ângulo sexual, não raro veste a capa do perverso, do vampiro, do voyer ou do sádico (como vemos em contos como a Causa secreta e D. Paula). Em suma, a meu ver, as três facetas do mal (natural, social e moral) estão interligadas na obra de Machado, e seus textos enfatizam às vezes um, às vezes outro aspecto, sempre de modo ambíguo, sedutor e sutil.